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1 Monteoliveto 1 Honorius Causus De sua janela, Rossignoli viu as ruas estreitas da medieval e torreosa San Gimignano. Tosca na aparência, sensível na história e na beleza. Ele contemplava as paredes de tijolos antigos, com suas portas em arco, como que saudando as pessoas que passavam. Ouvia os sinos da Collegiata que ressoavam naqueles vales, fazendo pairar sobre vinhedos e olivais um som metálico e antigo, tão carregado de solenidade. Naquele começo de noite não se sentia inspirado, mas queria escrever um conto. Depois de dois ou três goles de vinho, na taça mais simples de sua cristaleira, pôs-se, então, a escrever. Atiçou o fogo na lareira, alimentando-o com duas achas de lenha e colocando, em seguida, uma coberta sobre os ombros. Visto por detrás, era como um vulto informe, contra o alaranjado clarão do fogo. Um gato cinzento, enorme e preguiçoso, veio de mansinho e o acariciava com seu corpo macio, aproveitando-se, também, do calor da lareira. Rossignoli fez o lápis deslizar sobre o papel e escreveu um título: A Passagem. Começar um conto pelo título era o que ele menos fazia, por isso imaginou que já não estava começando bem. Mesmo assim, foi adiante e escreveu: “Eu vinha de Peccioli para Legoli, instigando meu cavalo que soprava quentes linhas de fumaça pelas narinas úmidas. O frio era cortante e as copas das árvores faziam longas vênias ao vento que as açoitava. Cruzei a ponte de tábua e atravessei o vinhedo dos Gozzoli. O percurso era curto, em uma hora ou menos seria feito. No entanto, o que me aconteceu no caminho quase me impediu de chegar em casa naquela noite: uma mulher, correndo pela estrada, veio em minha direção”. Rossignoli tomou um gole de vinho, descontente com o que escrevera. Achou tudo muito comum, insosso até. Esticou as pernas lentamente, de modo a colocá-las bem próximas à boca da lareira, contemplando as chamas e sem saber como continuar o relato que principiara. Aos poucos, a quentura do fogo e o calor do vinho invadiram seu corpo. Abandonou a coberta de sobre os ombros e entregou-se àquele doce acalanto com que o 1 Terceiro lugar no Concurso Literário Nacional do “Jubileu de Ouro da Academia Itajubense de Letras”. Itajubá (MG), 25 de Julho de 2014.

Monteoliveto

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Monteoliveto1

Honorius Causus

De sua janela, Rossignoli viu as ruas estreitas da medieval e torreosa San Gimignano.

Tosca na aparência, sensível na história e na beleza. Ele contemplava as paredes de tijolos

antigos, com suas portas em arco, como que saudando as pessoas que passavam. Ouvia os

sinos da Collegiata que ressoavam naqueles vales, fazendo pairar sobre vinhedos e olivais um

som metálico e antigo, tão carregado de solenidade. Naquele começo de noite não se sentia

inspirado, mas queria escrever um conto.

Depois de dois ou três goles de vinho, na taça mais simples de sua cristaleira, pôs-se,

então, a escrever. Atiçou o fogo na lareira, alimentando-o com duas achas de lenha e

colocando, em seguida, uma coberta sobre os ombros. Visto por detrás, era como um vulto

informe, contra o alaranjado clarão do fogo. Um gato cinzento, enorme e preguiçoso, veio de

mansinho e o acariciava com seu corpo macio, aproveitando-se, também, do calor da lareira.

Rossignoli fez o lápis deslizar sobre o papel e escreveu um título: “A Passagem”. Começar

um conto pelo título era o que ele menos fazia, por isso imaginou que já não estava

começando bem. Mesmo assim, foi adiante e escreveu:

“Eu vinha de Peccioli para Legoli, instigando meu cavalo que soprava quentes linhas

de fumaça pelas narinas úmidas. O frio era cortante e as copas das árvores faziam longas

vênias ao vento que as açoitava. Cruzei a ponte de tábua e atravessei o vinhedo dos Gozzoli. O

percurso era curto, em uma hora ou menos seria feito. No entanto, o que me aconteceu no

caminho quase me impediu de chegar em casa naquela noite: uma mulher, correndo pela

estrada, veio em minha direção”.

Rossignoli tomou um gole de vinho, descontente com o que escrevera. Achou tudo

muito comum, insosso até. Esticou as pernas lentamente, de modo a colocá-las bem próximas

à boca da lareira, contemplando as chamas e sem saber como continuar o relato que

principiara. Aos poucos, a quentura do fogo e o calor do vinho invadiram seu corpo.

Abandonou a coberta de sobre os ombros e entregou-se àquele doce acalanto com que o

1 Terceiro lugar no Concurso Literário Nacional do “Jubileu de Ouro da Academia Itajubense de

Letras”. Itajubá (MG), 25 de Julho de 2014.

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crepitar das chamas sempre fascinou a humanidade. Em sua mente, imaginava mil formas de

dar vida ao conto, mas nenhuma delas satisfazia sua alma diante da lareira.

Bateram à porta. Como não esperava ninguém àquela hora, Rossignoli foi ver a causa

do incômodo. Toda a inquietação e desconforto sumiram como fumaça ao vento, quando, à

sua frente, surgiu a imagem de Pierina Rossi. A jovem estava envolvida em uma longa capa

de pele. Seu rosto pequenino parecia ainda menor e seus olhos brilhavam no interior de um

capuz que mais parecia o de um frade. Um pouco de seus cabelos vermelhos aparecia por

sobre os olhos, dando a impressão de que tinham sido forjados na lareira de Rossignoli. Uma

dobra do capuz insinuava-se por sobre seu olho direito, deixando encoberta a sobrancelha.

Um filete de sombra descia até o queixo, ilustrando em uma face o que a natureza belamente

fizera na outra.

Passados aqueles instantes de contemplação, o homem pediu que ela entrasse. A moça

atirou o capuz para trás, deixando aparecer aqueles cabelos cor de brasa. Ele jamais tivera

coragem de conversar com Pierina, embora muito a admirasse, sendo aconselhado pelos

amigos a abordá-la diretamente.

Uma coisa, porém, lhe faltava: coragem.

É verdade que, por várias vezes, ele tentara, porém nunca conseguira ordenar bem as

palavras, para que sua investida obtivesse sucesso. A mulher tinha qualquer coisa que lhe

tapava a boca quando as palavras vinham; qualquer coisa de penetrante que impedia os seus

olhos de mirarem os dela por mais de dois míseros segundos.

− Preciso que vá comigo a Monteoliveto − ela disse, arrancando Rossignoli de seus

devaneios. E antes que ele pudesse responder, continuou: − Eu soube que você é o único que

conhece a passagem secreta do monastério, aquela que era rota de fuga dos padres antigos.

Meu tio está lá, sendo ameaçado de morte. Eu preciso levar um documento e o dinheiro que

poderão salvar a sua vida.

A situação era grave e Rossignoli jamais imaginara que seria tirado de seu repouso por

questão tão singular. Por outro lado, a sensação de estar próximo como nunca daquela que

tanto desejara quase fazia seu coração sair pela boca. Pediu a ela que recolocasse o capuz e

esperasse à porta, enquanto ele mesmo buscava suas botas e os arreios para o cavalo.

Enquanto assim procedia, considerava a possibilidade de uma acolhida hostil por parte dos

sequestradores, uma vez que, para eles, Pierina poderia não chegar sozinha. Retirou da gaveta

uma arma que prendeu ao cinto, afivelando-o ao redor dos rins. Tropeçava nos objetos pela

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casa, pensava e repensava várias coisas misturadas. Não conseguia tirar os olhos daquela

silhueta formosa que a noite lhe trouxera. A mulher parecia crepitar como uma chama à sua

frente, fazendo o calor do fogo ser pouco mais que um sopro de ar quente.

Rossignoli não tinha notícias sobre parentes da moça pelos lados de Monteoliveto.

Sabia apenas que ela era órfã e morava com uma velha conhecida de sua mãe, sem nenhum

vínculo sanguíneo. Além disso, durante todo o tempo em que vivera ali, nunca fora visitada

por ninguém que morasse além da província e tampouco recebera alguma ajuda financeira.

Ele sabia de tudo isso graças a algumas perguntas aparentemente desinteressadas que, de vez

em quando, lançava ao vento na praça. Algumas respostas voavam pelos ares e, não raro,

pousavam em seus ouvidos, despertando mil fantasias sobre aquela que o fazia adormecer

como uma criança e acordar como um dragão.

Em pouco tempo, seu cavalo já trotava pela rua. A moça ia agarrada à sua cintura,

enquanto passavam pelas sombras das torres que, na rua deserta, eram como guardiãs da

cidadela fortificada. O guarda do portão gritou: − Quem vem lá? − e Rossignoli mostrou sua

medalha dourada, que brilhava naquela noite cinzenta. O homem o saudou cordialmente, mas

por mais que tentasse, não pôde ver o rosto de quem ia atrás de Rossignoli.

Desceram pelas encostas de vinhedos e os pensamentos do homem ainda não estavam

organizados. Ele, que frequentemente se gabava de uma lógica impecável e de uma exímia

perspicácia, encontrava-se atormentado pelo simples e fino toque de duas mãos femininas em

sua cintura. Precisava ir rápido por se tratar de caso grave, mas queria diminuir o passo do

animal para aproveitar o contato daqueles braços que o esquentavam mais que a lareira.

De repente, o céu tornou-se límpido e uma lua esbranquiçada derramou, como farinha,

um luar por sobre as uvas. Os pássaros da noite saíram em revoada e, no pescoço do animal, o

suor rivalizava com o sereno. Os cães das casas próximas uivavam para a lua, enquanto outros

protestavam contra os estalidos das patas do cavalo sobre as pedras da estrada. Pierina

choramingava, de vez em quando, apertando ainda mais seus dedos à cintura de Rossignoli.

Ele queria que aquele momento – se ao menos não fosse eterno – durasse alguns

longos séculos.

Numa curva da estrada, Rossignoli refreou a montaria, olhou de um lado a outro e saiu

da estrada. Pierina esticou os olhos, procurando visualizar algum caminho aparente. Com

segurança, o homem desceu pela trilha estreita e parou ao pé de uma árvore seca.

− Precisamos caminhar a partir daqui − disse.

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− Onde estamos? − sussurrou Pierina.

− Próximos da entrada, mas, se houver alguém lá dentro, poderá ouvir o som dos

cascos do animal.

− Então vamos, não podemos perder tempo... – ela disse mais para si que para ele.

Caminharam encostados ao muro de pedra, depois entraram por uma porta onde

principiava um corredor, em cujo fundo deslizava uma água fria. Rossignoli, à frente, de arma

na mão, ia com os sentidos alertas, atento ao menor movimento. Pensou se não deveria ter

deixado Pierina junto ao cavalo, mas a urgência da situação e o medo do que a jovem poderia

sofrer causavam-lhe estremecimentos terríveis. Depois de duas curvas corredor adentro, ouviu

vozes, ao mesmo tempo em que viu um clarão de fogo que rodopiava no alto da parede. Fez

sinal para que a moça parasse, mas ela pisou em falso, soltando um “ai”. Imediatamente, as

vozes cessaram, três sombras ficaram de pé e uma delas correu ao encontro deles. Tudo

aconteceu muito rápido: um gigantesco homem barbudo, com uma capa grande e cinzenta,

apareceu diante de Rossignoli, que apertou o gatilho.

A arma não disparou!

O recém-chegado trazia uma tocha na mão direita e uma espécie de machado na

esquerda. Desferiu um golpe que arrancou lascas de tijolo a poucos centímetros da cabeça de

Rossignoli. No desvio súbito do perigo iminente, ele desequilibrou-se e caiu de costas; a arma

escapuliu de sua mão, indo cair distante de ambos. Pierina afastara-se correndo, com gritos

angustiados, rumo à saída da passagem. Quando o homem levantou o machado pela segunda

vez, Rossignoli pressentiu seu fim, já que o outro fincava um joelho sobre seu ventre e não

lhe permitia respirar. O gigante jogou a tocha para o lado, mas ela bateu na parede e caiu

sobre a perna de Rossignoli, entornando óleo quente e restos de fogo que se agarravam em sua

calça. Ele, com um movimento instintivo, desferiu um golpe brusco com a perna queimada.

Sua bota voou para longe e o gato que dormia em seu colo soltou um miado pavoroso,

desaparecendo cozinha adentro.

Rossignoli estava diante de sua lareira!

Uma acha de lenha em brasa rolara sobre sua perna e o acordara, no momento fatal.

Inclinando-se para o lado, ainda sonolento, o homem pegou o papel que continha o primeiro

parágrafo do conto, rasurou o título e escreveu um novo: Monteoliveto.