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4 | SEM-ABRIGO | Texto de João Marrana, João Firme, João Gonçalves e Carla Rosa [COORDENADOR E TéCNICOS DO PROGRAMA INTERGERAçõES | INTERSITUAçõES_SCML] PROGRAMA INTERGERAçõES Intersituações de Exclusão e Vulnerabilidade Social

Artigo cidade solidária intersituações

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| sem-abrigo |

Texto de João Marrana, João Firme, João Gonçalves e Carla Rosa[CooRdenadoR e TéCniCos do pRoGRaMa inTeRGeRações | inTeRsiTuações_sCML]

PROGRAMAInteRGeRAçõesIntersituações de exclusão e Vulnerabilidade social

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A condição de sem-abrigo é um fenómeno complexo e de difícil análise. Face à ausência de dados concretos e atualizados sobre esta população, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estruturou uma intervenção com o objetivo da identificação, sinalização e diagnóstico dos sem-abrigo da cidade.

ser sem-abrigo Enquanto tinha dinheiro, tinha amigo O desemprego foi o motivo pelo qual me tornei sem-abrigo Neste momento não me integro na sociedade O sistema não me dá oportunidade

Aprende-se muito na rua Por mais comida que me deem Ninguém me mata a fome Vivo um dia de cada vez

Não quero ser ajudado Sinto-me mais próximo da miséria Quem dorme na rua Precisa de ter cuidado

Temos que dar a volta à crise Posso baixar a cabeça, mas nunca os braços Se não conseguir jogar na primeira divisão, jogo na quarta Sinto falta é de conversar com alguém

Julgo que a minha mãe ainda está viva Gostava de ver a minha filha antes de morrer Tenho o sonho de ter um quarto Um prato todos os dias, compreensão e amizade

Poema composto por João Firme (a partir de frases de sem-abrigo de Lisboa) Julho de 2013

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A existência de pessoas em condição de sem-abrigo é a evidência mais visível dos processos de exclusão social que a cidade produz quotidianamente. A

mesma cidade que, plena de contrastes, se orgulha de ser o espaço de cultura, liberdade e cidadania, de conforto e qualidade de vida, que a colocam nos lugares cimeiros dos rankings mundiais. Bem sabe-mos que a cidade gera um conjunto de vivências e de condições que propiciam este fenómeno que, associado a outras problemáticas – como as pa-tologias e as dependências –, torna a existência de sem-abrigo uma quase inevitabilidade.

A este fator devemos, nos dias de hoje, acrescen-tar as novas configurações sociais das populações em risco de exclusão e vulnerabilidade social que transformam a realidade dos sem-abrigo num fe-nómeno heterogéneo e muito complexo, de difícil análise e de delicada observação. Uma situação que só pode ser contrariada se os organismos públicos e privados concertarem estratégias e definirem uma intervenção cuidada e continuada, avaliada de for-ma crítica e com uma definição clara de objetivos e prioridades.

As pessoas que se encontram nesta situação estão, desde logo, privadas de exercer os seus di-reitos básicos de cidadania, como o direito à mo-rada e, como tal, à sua própria existência enquanto cidadãos. Estão afastados do acesso aos sistemas de informação de apoio e ao conjunto das respos-tas sociais formais. Sabemos que, regra geral, os sem-abrigo não se dirigem aos serviços e, quando o fazem, chocam com a rigidez dos mecanismos de distanciamento, dos procedimentos e das regras que são criadas e impostas pelas necessidades fun-cionais e interesses dos serviços e dos seus profis-sionais. Esta forma de acolher representa uma bar-reira quase intransponível. Um obstáculo perante o qual a maioria desiste.

Mas, quem são estas pessoas? Quantos são aqueles que vivem nas ruas da nossa cidade? A au-sência de números concretos e dados atualizados e credíveis sobre estes nossos concidadãos (também pelo facto de ser um fenómeno em constante muta-ção) levou a que fosse estruturada uma intervenção que nos permitisse encontrar as respostas a estas e outras questões, importantes e indispensáveis para

podermos agir com rigor e assertividade.É importante ir ao encontro do outro, penetrar no

seu espaço e no seu mundo e deixarmo-nos ir. Só assim é possível alcançar o que está por detrás de cada gesto e atitude, perceber a linguagem do ou-tro e conhecer a sua capacidade de compreender aquilo que comunicamos como verdades absolutas. Nessa altura ganhamos a confiança e estabelece-mos o elo necessário que nos permite estar pre-sente e observar como cada um, à sua maneira e por sua iniciativa, vai desenhando o seu caminho e definindo o seu percurso.

Entendemos este nosso trabalho como uma mis-são. Predispusemo-nos a ouvir e a criar cumplici-dades. Desejamos que todos possam usufruir deste estudo da realidade dos sem-abrigo de Lisboa e nele encontrem um contributo positivo. Dignidade não é apenas garantir o acesso a bens e serviços. É também denunciar publicamente as situações en-contradas, dar voz e protagonismo aos sem-abrigo, incentivar neles a vontade de participar e proporcio-nar as condições para que possam decidir sobre as suas vidas.

Só através do esforço que cada um de nós está predisposto a fazer e da capacidade de conhecer com profundidade a realidade em que estas pes-soas vivem e dos que com ela se relacionam é que estaremos à altura de efetivar uma intervenção rea-lista e qualificada, consistente e produtiva.

ConheCer a realidadeO programa Intergerações | Intersituações de Ex-clusão e Vulnerabilidade Social visou então, numa primeira mão, a identificação, a sinalização e o diag-nóstico dos sem-abrigo da cidade de Lisboa. Porém,

operação da equipa do programa

Intergerações / Intersituações junto da população sem- -abrigo, em Lisboa

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outros objetivos foram sendo traçados ao longo do trabalho desenvolvido. Pretendemos também ficar a conhecer e identificar as situações de vulnerabili-dade social das pessoas que recorrem à distribuição alimentar realizada pelas “carrinhas”. Desejámos ainda conhecer e identificar todas as instituições que prestam apoio à população sem-abrigo, bem como perceber os hábitos de higiene e alimenta-res desta população. Todos estes desafios só foram possíveis de concretizar uma vez que acompanhá-mos as rotinas de diferentes pessoas sem-abrigo, durante um período de 24 horas seguidas, para me-lhor conhecer esta realidade.

Procurámos, assim, saber quantas e quem são estas pessoas que vivem na rua. Onde vivem e por-quê? Quais as suas redes de apoio? Quais as suas fontes de rendimentos? Quais os seus problemas de saúde? E quais são as suas expectativas face ao futuro? Os seus sonhos e objetivos…

Metodologia de trabalhoCom o intuito de fazer um diagnóstico holístico de cada pessoa abordada, foram constituídas equipas multidisciplinares, compostas por profissionais das áreas de enfermagem, psicologia, serviço social, rea-bilitação e inserção social. As equipas percorreram as ruas de Lisboa, segundo uma divisão estruturada em sete eixos geográficos. O eixo 1 corresponde à zona oriental da cidade, atravessando toda a zona situada entre Xabregas e o aeroporto de Lisboa, in-cluindo os Olivais e o Parque das Nações. O eixo 2 abrange toda a zona de beira-rio oriental, de Santa Apolónia ao Campo das Cebolas. A zona central e histórica da cidade (eixo 3) inclui a Baixa-Chiado, Avenida da Liberdade e zonas circundantes, Par-que Eduardo VII e Campolide. Todos os locais entre o Cais do Sodré e Santos pertencem ao eixo 4. A zona de Alcântara e Belém corresponde ao eixo 5. O eixo 6 corresponde às zonas de Benfica / Campo Grande / Sete Rios / Lumiar / Areeiro / Picoas. Por fim, o eixo 7 diz respeito à zona de Martim Moniz / Avenida Almirante Reis / Arroios.

Um traço caraterístico do nosso trabalho foi, des-de cedo, procurar a colaboração das mais diversifi-cadas entidades da cidade de Lisboa, com o intuito de criar forças sinérgicas na prossecução do nosso objetivo. Assim, contámos com o apoio de entida-

Com a aplicação do questionário às pessoas sem-abrigo, não foi só possível identificar e diagnosticar esta população mas, nalguns casos, efetuar uma sinalização ou identificação de situações específicas à Direção de Emergência e Apoio à Inserção (atual Unidade de Emergência), durante o horá-rio normal de expediente, ou à Comunidade Vida e Paz no horário noturno, de acordo com o protocolo que foi previa-mente estabelecido com esta entidade. Tendo em conta que a condição de sem-abrigo é, por si só, uma situação de risco e vulnerabilidade, o programa Intergerações | Intersituações sentiu a necessidade de definir os seguintes critérios de sina-lização/identificação de casos:• indivíduos em situação de sem-abrigo recente, sem histo-rial prévio;• jovens-adultos e seniores (maiores de 65 anos) em situação de sem-abrigo;• indivíduos sem acesso a cuidados de saúde ou com cuida-dos deficitários;• solicitação de serviços de apoio (atendimento social, desa-bituação de substâncias psicoativas, centro de acolhimento temporário, etc.);• solicitação de cartão de cidadão;• solicitação de atendimento na Direção de Emergência e Apoio à Inserção;• solicitação de regresso ao país de origem.Foi possível constatar que a maior percentagem de sinali-zações (73%) prende-se com a solicitação de serviços de apoio, especificamente de atendimento social, desabituação de substâncias psicoativas e respostas habitacionais, assim como encaminhamentos para a antiga Direção de Emergên-cia e Apoio à Inserção. Outro dado que se destaca é a signi-ficativa percentagem de pessoas que deseja regressar ao seu país de origem (13%). Encontrámos 8% de indivíduos que preenchiam os critérios para sinalização, mas que não dese-jaram ser ajudados. Por fim, com prevalências da ordem dos 3%, identificámos duas categorias distintas: por um lado, in-divíduos sem acesso a cuidados de saúde ou com cuidados deficitários, por outro, indivíduos que pretendiam renovar/solicitar o cartão de cidadão.

identifiCar, diagnostiCar e sinalizar

des oficiais, nomeadamente da Câmara Municipal de Lisboa, na qual se destaca a parceria importan-tíssima da Divisão de Higiene Urbana na identifica-ção dos locais de pernoita, pois são os funcionários

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que compõem esta divisão que melhor conhecem todas as ruas, becos e arcadas da nossa cidade.

Ainda ao nível das entidades oficiais, contámos com o apoio das juntas de freguesia e da Polícia de Segurança Pública. As instituições de solidarieda-de social que prestam apoio à pessoa sem-abrigo revelaram-se igualmente uma importante fonte de informação, tendo-nos auxiliado prontamente na identificação de locais. Por último, mas não menos importante, realçamos o apoio das empresas pri-vadas de segurança, dos agrupamentos de escu-teiros, das associações de moradores e paróquias, de estabelecimentos de ensino, do comércio local e dos moradores, bem como de diversas empresas, nomeadamente a ANA – Aeroportos de Portugal, o Metropolitano de Lisboa, a Refer e a Transtejo.

Com vista ao levantamento aprofundado de infor-mações do ponto de vista pessoal, familiar, socioe-conómico e de saúde, foi elaborado um questioná-rio de heterorresposta com um conjunto de itens que abrange todas as áreas acima mencionadas.

Tendo em conta a crescente evolução das comuni-dades romenas na cidade de Lisboa, com especial atenção àquelas que vivem em situação de sem--abrigo, a equipa do programa sentiu a necessida-de de traduzir o questionário para a língua romena, para uma melhor aplicação nas situações em que a comunicação em português era impossível.

ContageM total e úniCa dos seM-abrigo na Cidade de lisboaDe forma a obter um número exato de pessoas sem-abrigo, o programa Intergerações | Intersitua-ções preconizou uma contagem de todos os sem--abrigo que, no dia 12 de dezembro de 2013, se en-contravam a pernoitar nas sete mil ruas da cidade de Lisboa. Este método, utilizado internacionalmen-te para a contagem dos sem-abrigo, tem-se reve-lado extremamente eficaz nas diferentes cidades e países onde é utilizado.

Por outro lado, este modelo de ação conta ain-da com um vasto leque de benefícios. É uma ação que sensibiliza toda a comunidade envolvente para a condição de sem-abrigo e, por consequência, a todos mobiliza na procura de soluções para dar resposta a este fenómeno. A contagem total e úni-ca permite ainda obter informações fidedignas e atuais acerca dos pontos de referência de pernoita, informações que nem sempre é possível recolher de

A abordagem direta a indivíduos em situação de vulnerabilidade e exclusão social é uma tarefa delicada e sensível. Como tal, considerámos per-tinente a elaboração de um documento de apoio que servisse de guia a todos aqueles que traba-lham com esta população. Deste modo, foi elaborado um instrumento de abordagem direta à população sem-abrigo da cidade de Lisboa. Constituem parâmetros desse guião aspetos relacionados com a apresenta-ção inicial, postura, comunicação verbal e não--verbal, responsabilidades dos entrevistadores e procedimentos gerais a ter em conta neste tipo de trabalho.

guião de abordageM direta aos seM-abrigo

Mapa da operação de

contagem única da população

sem-abrigo realizada pela Misericórdia

de Lisboa

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Vestígios de ocupação por sem-abrigo na Avenida Infante D. Henrique, em Lisboa

longo de todo este trabalho, percebemos que são várias as causas que concorrem para esta condi-ção de sem-abrigo, nomeadamente os conflitos familiares e relacionais, a doença mental ou física, o desemprego, a perda de rendimentos ou mesmo o desajuste face à estrutura social definida pelos grupos sociais maioritários.

O que distingue a pessoa sem-abrigo acaba por ser a forma como cada indivíduo experiencia esta condição. O percurso que faz e as consequências que se vão revelando pelo caminho (o alcoolismo, a toxicodependência, as doenças físicas e men-tais, a dificuldade de relação com o outro), são es-pelho das várias casualidades que o empurraram para a rua.

Mais do que uma situação de vulnerabilidade – que implica a privação e a falta de recursos – e de exclusão social – que nos remete para um proble-ma de cidadania, pela impossibilidade de acesso aos sistemas sociais básicos –, a situação de sem--abrigo é uma situação de rutura.

No entanto, o diagnóstico realizado é promissor no que toca a esta mesma situação de rutura. Cons-tatámos que, na maior parte das situações, ainda é possível recuperar a vinculação das pessoas em si-tuação de sem-abrigo à sua rede social de suporte. Para o sucesso dessa recuperação, podem cooperar diversos fatores, nomeadamente o tempo de per-manência de rua, a existência de laços familiares e as habilitações literárias.

diferentes situações… diferentes loCaisA proximidade e o contacto regular que a equipa Intergerações manteve com esta realidade permitiu que fossem identificados diferentes situações e lo-cais associados à população sem-abrigo da cidade de Lisboa, permitindo uma abordagem também ela distinta.

Constatámos a existência, por um lado, de algu-mas comunidades de sem-abrigo que, devido ao conjunto de caraterísticas e traços comuns ineren-tes ao processo de exclusão e vulnerabilidade social de que são alvo, acabam por criar laços de amizade entre si. Estes laços amenizam a situação de rutura e facilitam a sobrevivência na rua, fortalecendo o espírito de entreajuda e cooperação. Uma reflexão

forma exata. Por fim, é um método prático que não necessita de muitos recursos para a sua realização. Não obstante, é importante igualmente apontar algumas limitações a este método. Dizem respei-to às condições climáticas, à falta de preparação do grupo de voluntários envolvidos, à extensão da área geográfica a percorrer e à própria limitação dos dados recolhidos, pois só nos indicam um local de pernoita das pessoas observadas.

No sentido de agilizar o planeamento desta gran-de iniciativa, optou-se por dividir o território da cidade de Lisboa tendo por base a recente reorga-nização das freguesias. Foram assim constituídos diversos grupos, organizados por freguesia, grupos esses que percorreram as ruas do território que lhes fora atribuído, entre as 21h30 e as 00h30, identifi-cando todas as pessoas sem-abrigo (género e ida-de) e o local onde foram encontradas.

A realização da contagem total e única contou com o apoio das juntas de freguesia, mas também de todas as associações/entidades/particulares que quiseram colaborar com o programa, nomea-damente agrupamentos de escuteiros, associa-ções de moradores, instituições particulares de solidariedade social, instituições de ensino, entre outras. O número total de voluntários ultrapassou oitocentas pessoas.o ContaCto CoM a realidadeEntre as várias caraterísticas dos sem-abrigo, um traço comum é o da quebra dos laços que ligam as pessoas estáveis a um conjunto de estruturas sociais inter-relacionadas, reforçando a importân-cia do conceito de desvinculação, visto como o enfraquecimento ou ausência de vinculações. Ao

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interessante acerca destas comunidades diz respei-to à necessidade demonstrada pelas pessoas que as compõem de encontrar um sentimento de iden-tidade. Dessa forma, foi possível verificar que as comunidades diferem consoante as caraterísticas individuais das pessoas que as compõem, como, por exemplo, os hábitos de consumo de substân-cias psicoativas, a iliteracia e a própria postura face à resolução dos seus problemas – maior ou menor proatividade.

Por outro lado, este contacto com a realidade e com as rotinas diárias das pessoas sem-abrigo permitiu ao programa Intergerações identificar di-ferentes locais onde encontramos indivíduos nesta situação. Os locais de pernoita são espaços que os sem-abrigo escolhem para passar a noite. São sele-cionados em função da necessidade de segurança, de conforto e de companhia que cada um percecio-na individualmente. Nesta categoria, encontramos casos como os do viaduto de Pedrouços, da arcada de um prédio ou de um banco de um jardim. Já os locais de passagem referem-se aos espaços de pa-ragem das várias carrinhas de distribuição alimen-tar, onde encontramos, todas as noites, uma longa fila de sem-abrigo e pessoas em situação de vulne-rabilidade social a aguardar pela sua vez para rece-ber um saco com uma refeição. Por fim, os locais de mendicidade são aqueles onde os sem-abrigo con-seguem amealhar algum dinheiro, como é o caso das entradas de supermercados, escadarias de igre-jas e zonas de estacionamento para automóveis.

os aCaMpaMentos de roMenos O programa Intergerações visitou ainda comunida-des romenas, nas quais foi bem recebido. Na maioria dos casos, estas comunidades são compostas por indivíduos que se concentram em grande número, organizados em famílias numerosas e com meno-res, debaixo de viadutos e em prédios devolutos. O motivo pelo qual estas pessoas estão em condição de sem-abrigo difere dos casos que mencionámos anteriormente, tendo em conta que estas pessoas emigraram para Portugal à procura de melhores condições de vida e encontraram na mendicidade e no convívio com os seus a melhor alternativa para subsistir e sobreviver em Portugal.

Em todos os acampamentos desta comunidade

foram observadas deficientes condições higiénico--sanitárias e ausência de água potável, recorrendo os ciganos romenos às fontes de água pública mais próximas, transportando depois a água em conten-tores (garrafões e alguidares). Verificou-se ainda que as comunidades confecionam a sua própria ali-mentação no local, fazendo fogueiras para o efeito. Normalmente, abrigam-se em pequenas barracas improvisadas de cartão e/ou madeira.

No que concerne ao seu estilo de vida, durante o dia esta população recorre à mendicidade, pede dinheiro e estaciona carros em pontos espalhados pela cidade de Lisboa, utilizando depois esse dinhei-ro para comprar bens alimentares que confeciona no local onde pernoita. Verifica-se um certo rigor e organização na forma como é executada essa mendicidade: as pessoas escolhidas abandonam o acampamento de madrugada, algumas acompa-nhadas de crianças, deslocam-se aos locais já pre-

A realidade de Portugal é significativamente diferente da dos Estados Unidos da América, onde a percentagem de veteranos de guerra em situação de sem-abrigo é problemática (estimativas apontam que cerca de 40% da população sem-abrigo nos EUA seja compos-ta por veteranos de guerra), levando mesmo à criação de programas específicos para esta subpopulação. Ainda assim, o programa Inter-gerações encontrou em Lisboa alguns vetera-nos das guerras nas ex-colónias ultramarinas que se encontram em situação de sem-abrigo. São homens com idades na ordem dos 60 anos, frequentemente com problemas de alcoolismo e que tendem a estar em situação de sem-abri-go de forma crónica (vários anos de rua), com maiores problemas de rutura de ligações à rede familiar e de suporte. Muitas vezes, por detrás destas situações escondem-se doenças psi-quiátricas, como a perturbação de pós-stress traumático, resultado dos acontecimentos traumáticos que vivenciaram em situações de guerra.

Veteranos de guerra das ex-Colónias

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comboios. Durante o período em que o acompa-nhámos não tomou banho, tendo desfeito apenas a barba. De salientar que “Manuel” tem cuidado com a sua imagem pois, antes de sair da estação de com-boios, pela madrugada, tem o cuidado de se pentear. Para realizar as suas necessidades fisiológicas, utili-za também os sanitários da estação ferroviária.

No que concerne à Interação social, “Manuel” é bastante comunicativo. Interage com os funcio-nários da estação de comboios, com transeuntes e com outras pessoas em situação de sem-abrigo com quem se vai cruzando ao longo do dia. Gosta de se manter ocupado. Diariamente, durante o período da manhã, vai dar pão seco e duro às gaivotas junto à beira-rio. Faz um passeio diário pela área circun-dante, regressando por volta das 10h00 ao jardim da zona ribeirinha da cidade, onde permanece o resto do dia. Neste local, dedica-se à leitura de livros e à

aCaMpaMento da comunidade romena situado na Avenida das Forças Armadas, em Lisboa

viamente estabelecidos (portas de igrejas, super-mercados, centros comerciais), onde passam o dia, voltando ao acampamento ao final do dia.

Existe uma grande disparidade de idades no seio das comunidades romenas visitadas pela equipa do programa, tendo sido encontrados menores, bebés inclusive, bem como mulheres grávidas. Si-multaneamente, encontram-se pessoas com mais de 65 anos. Apesar de termos sido bem recebidos, existiram barreiras comunicacionais – mesmo com a versão do inquérito traduzida –, pois algumas das pessoas revelaram não saber ler. Verificou-se tam-bém a existência de hierarquias na estrutura social do acampamento, sendo que, regra geral, os mais novos e as mulheres seguem as indicações de pes-soas de mais idade do sexo masculino.

duas Vidas na CidadeNome: “Manuel”; Idade: 58 anosDe uma forma geral, “Manuel” passa o seu dia na estação de comboios e áreas circundantes.

No que diz respeito à alimentação, “Manuel” re-corre ao apoio fornecido pelas carrinhas de distri-buição alimentar. Realiza apenas uma refeição com-pleta, ao jantar, distribuída por uma das instituições que se desloca à estação de comboios. Durante o dia vai comendo bolos e empadas. Não bebe água, ingerindo apenas café (entre três e quatro) durante o dia. Não tem consumos etílicos.

Relativamente aos cuidados de higiene, “Manuel” realiza-os nas instalações sanitárias da estação de

O prOgrAMA INtergerAçõeS |

INterSItuAçõeS de exCLuSãO e

VuLNerAbILIdAde SOCIAL VISOu

eNtãO, NuMA prIMeIrA MãO,

A IdeNtIFICAçãO, a sinalização

e o diagnóstiCo dos seM-

-abrigo da Cidade de lisboa

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Carrinhas de distribuição aliMentar – loCais de ConCentração

equipa do intergerações /

intersituações na Avenida da

Liberdade, em Lisboa

Podemos identificar 16 locais na cidade de Lis-boa que constituem os pontos de passagem com maior afluência de pessoas que aí acorrem com o objetivo de recolha de alimentação. • Jardim D. Luís I• Rua D. Luís I• Campo das Cebolas• Praça José Fontana• Praça Duque de Saldanha• Sete Rios – Estação CP• Praça de Londres – Café Mexicana• Igreja Nossa Senhora de Fátima• Gare do Oriente• Estação de Santa Apolónia

– Largo do Museu Militar• Restauradores – Antiga Loja

do Cidadão• Rossio – Teatro D. Maria II• Largo de Alcântara• Meia-Laranja• Praça da Figueira• Cais do Sodré – Estação CP

De uma forma geral, estes locais coincidem com as zonas com uma maior incidência de popu-lação sem-abrigo da cidade de Lisboa. Porém, convém frisar que são pessoas com teto as que mais recorrem a este serviço de distribuição ali-mentar.O que carateriza estes locais? Geralmente, são locais estratégicos em termos de mobilidade para as pessoas, pois situam-se junto dos trans-portes e são centrais, tendo em conta as zonas de habitação, de locais de mendicidade e de maior fluxo de pessoas.Maioritariamente, as pessoas que recorrem a este tipo de apoio são homens e a faixa etária mais representativa é a compreendida entre os 30 e os 50 anos. Porém, observam-se também menores a acompanhar os seus familiares, no-meadamente em locais como o Teatro D. Maria II e a Praça Duque de Saldanha. As instituições com serviço de distribuição alimentar mais pre-sentes são a Comunidade Vida e Paz e o Cen-

tro de Apoio ao Sem-abrigo, possivelmente por serem as únicas instituições que prestam este serviço com maior regularidade. No entanto, outras instituições e particulares percorrem al-guns destes pontos – e outros locais aqui não representados –, como é o caso dos centros paroquiais, agrupamentos de escuteiros, par-ticulares, grupos de funcionários de empresas privadas, entre outros. Ainda há uma outra realidade que gostaríamos de traçar. De facto, são várias as situações de vulnerabilidade social com que nos fomos de-parando e que, de certa forma, nos suscitaram a atenção para desenvolver este trabalho. Uma destas situações é a observada, diariamente, na entrada principal de um supermercado situado no centro de Lisboa, aquando do fecho deste estabelecimento. Por volta das 21h00, quando esta superfície comercial encerra, junta-se um grupo numeroso de pessoas que vão à procu-ra de alimentos nos contentores do lixo do su-permercado, nomeadamente produtos frescos que já não podem ser comercializados no dia seguinte ou ainda produtos que terminaram a data de validade naquele mesmo dia e que, por isso, não podem estar nas prateleiras para ven-da ao público. O grupo, heterogéneo na idade e no género, já está provido de sacos de plástico, carrinhos de transporte de compras ou ainda veículos motorizados, de forma a recolher rapi-damente os produtos e transportá-los para as suas casas. Todo este processo é feito de forma muito rápida e sem dar nas vistas, pois depreen-de-se claramente que são casos de “pobreza envergonhada”.

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escrita de poemas. O aspeto mais marcante de “Ma-nuel” é efetivamente o seu gosto pela poesia. Publi-cou um livro com a sua poesia, com apoio de uma Fundação. De frisar ainda que “Manuel” mantém contatos regulares com a filha, via telemóvel.

Por fim, em termos de estado emocional e com-portamento geral, “Manuel” apresenta-se bem--disposto, sem oscilações de humor e com uma postura adequada. Acorda todos os dias com o seu despertador, por volta das 5h00 da manhã. Mostra--se bastante organizado, arrumando as suas coisas de forma cuidadosa. “Manuel” anda todo o dia com os seus pertences, deixando apenas o papelão junto às escadas de acesso à estação de comboios.

Nome: “António”; Idade: 48 anosDe uma forma geral, “António” passa o seu dia no mercado e áreas circundantes.

No que diz respeito à alimentação, “António”, além de recorrer ao apoio fornecido pelas carrinhas de distribuição alimentar, nomeadamente a da Co-munidade Vida e Paz, recebe apoio de alguns co-merciantes do mercado. Normalmente realiza ape-nas uma refeição completa, para a qual compra no mercado alguns ingredientes e que pede a um dos cafés da redondeza para confecionar. Não ingere lí-quidos durante o dia.

Relativamente aos cuidados de higiene, “António” refere deslocar-se aos balneários públicos existentes na Alameda a fim de os realizar e tomar banho. Po-rém, durante as 24 horas em que o acompanhámos, não realizou qualquer cuidado de higiene. Utiliza, por norma, as instalações sanitárias do mercado para satisfazer as suas necessidades fisiológicas.

No que concerne à Interação social, “António” é bastante comunicativo. Interage com os funcio-nários do Mercado, com transeuntes e com outras pessoas com quem se vai cruzando ao longo do dia. Gosta de se manter ocupado. Diariamente, a partir das 6h00, colabora com os comerciantes do merca-do a descarregar as carrinhas, a distribuir produtos pelos comerciantes da zona e na limpeza do merca-do após o fecho do mesmo. Devido a esta prestação de serviços, os comerciantes dão-lhe algum dinheiro e apoiam-no com a doação de géneros alimentares. A sua família desconhece que se encontra nesta si-tuação. No entanto, contata diária e telefonicamente

a sua filha e aos domingos vai passear com ela para um jardim público. Refere que gostaria de ter um es-paço condigno para poder receber a filha, que está entregue aos cuidados da mãe. É notável o gosto em falar da família, principalmente da filha.

Finalmente, em termos de estado emocional e comportamento geral, ao longo do dia “António” apresenta-se sempre bem-disposto, sem oscilações de humor e com uma postura adequada. Acorda entre as 4h00 e as 5h00 da manhã, arrumando os seus pertences numa carrinha abandonada que se encontra em frente do mercado.

perspetiVas futurasApós este diagnóstico e face às necessidades trans-mitidas pela população sem-abrigo procurámos apresentar propostas concretas e inovadoras:• equipa de Ligação: Uma equipa multidisciplinar que pretende ser o elo de ligação entre a pessoa sem-abrigo e o conjunto das respostas sociais exis-tentes.• Centro de Recuperação de Competências Psicos-sociais: Porque a pessoa sem-abrigo é sem-abrigo 24 horas por dia, é necessário um espaço que aco-lha e potencie a plena inserção social do indivíduo• Centro de Alojamento de transição: Será um alo-jamento com o conforto de uma casa mas com as regras da rua e onde as pessoas sem-abrigo possam recuperar hábitos de higiene, de responsabilidade, de organização e de relacionamento interpessoal.

• Maioritariamente com apoio de alimentação• Apoio de saúde quase inexistente• Apenas cerca de 1/3 já dormiu num albergue• Maioria sem passado de Institucionalização

• sobretudo Homens• Idades entre 35 e 64 anos• solteiros e divorciados/separados• Com o ensino primário e ensino secundário• Rendimento obtido através de biscates e mendicidade

PeRF

IsA

POIO

s

• Maioritariamente há menos de 6 anos na rua, com grande peso dos que estão há menos de 1 ano

• Maioritariamente com filhos• Mantém com filhos um contacto regular• Minoria tem contacto com outros familiares de forma regular

LIG

ões

perfil do seM-abrigo