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370 ASCENSÃO E QUEDA DO COMUNISMO do bem comum. É claro que a rivalidade burocrática ocorre também em democracias, mas em um sistema em que os poderes político e econômico se concentram em agências estatais, com uma concomitante ausência de forças de mercado para contrabalançar, o departamentalismo se torna a principal arena da luta política. Conforme observado em capítulo anterior, Kruschev tentou lidar com o problema abolindo a maioria dos ministérios centrais e criando, no lugar deles, conselhos econômicos regionais. Mas descobríu que o departamentalismo foi substituído rapidamente pelo "Ioc~lis~o". O padrão de comportamento burocrático que ele deplorava no centro foi logo reproduzido nas localidades. , Se as conquistas na saúde e na educação ajudaram a sustentar o apoio ao sistema existente' em Cuba, um aliado involuntário do regime de Fidel têm sido os Estados Unidos. Quanto mais contato pessoas de sociedades relativamente fechadas têm com pessoas de sociedades abertas, mais difícil é para esses regimes fechados manter seu controle autoritário. Ao impor um embargo econômico a Cuba, e ao dificultar as visitas de cidadãos americanos à ilha, o governo dos EUA não apenas ajudou a liderança cubana susten- tando a ameaça externa, e reforçando, assim, o patriotismo cubano, como reduziu as oportunidades de uma interação em que cada um dos dois lados pode~ia ter aprendido alguma coisa com o outro. Provavelmente, porém, um SIstema que impõe controles a consultas livres seria mais corrosivo do que um sistema em que ideias liberais, conservadoras e mesmo Comunistas estejam prontamente acessíveis, embora o auge nada impressionante do Partido Comunista dos Estados Unidos já tivesse passado antes de Fidel Castro chegar ao poder. 17 China: das "Cem Hores" à "Revolução Cultural" A chegada ao poder dos Comunistas chineses foi discutida no capítulo 11, em um relato que termina em 1953, o ano da morte de Stalin. Este capítulo cobre um período não menos tumultuado - de 1953 até o falecimento de Mao Zedong, em 1976. Foi um período de enorme significado tanto para a China quanto por suas implicações para o resto do mundo Comunista. Tão importantes quanto os anos da guerra civil e da revolução na China foram os quatro principais acontecimentos que abordo neste capítulo: a campanha das "Cem Flores" e a repressão que se seguiu; o "Grande Salto para Frente", que acabou sendo um desastre; a ruptura sino-soviética, que foi um divisor de águas na história do Movimento Comunista Internacio- nal; e a "Grande Revolução Cultural Proletária" da última década de Mao como governante chinês, um movimento que causou imenso sofrimento e teve importantes consequências não intencionais. Até meados dos anos 1950, a política dos Comunistas chineses no poder se baseava fortemente na experiência soviética. Um plano de cinco anos executado de 1953 a 1957 teve o objetivo de dobrar a produção industrial e aumentar em um quarto a produção agrícola.' Embora não tenha sido grande em termos financeiros, a ajuda soviética foi significativa por prover especialistas. Engenheirose tecnologistas russos sem dúvida tiveram um papel importante ao ajudarem a desenvolver a infraestrutura industrial da China nos anos 1950. A política industrial obteve resultados melhores do que a tentativa de coletivizar a agricultura - embora os chineses tenham tentado evitar os excessos da coletivização compulsória de Stalin no fim dos anos 1920 e início dos anos 1930 na União Soviética. Cooperativas de Produtores Agrícolas foram criadas, envolvendo todos os moradores de vilarejos. Esperava-se que estas se expandissem gradualmente - passando de algumas dezenas de famílias para centenas em cada cooperativa. O crescimento da produção agrícola foi, porém, muito mais lento do que o previsto e surgiram divergências no Partido Comunista entre aqueles que

China o grande salto para frente

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do bem comum. É claro que a rivalidade burocrática ocorre também emdemocracias, mas em um sistema em que os poderes político e econômico seconcentram em agências estatais, com uma concomitante ausência de forçasde mercado para contrabalançar, o departamentalismo se torna a principalarena da luta política. Conforme observado em capítulo anterior, Kruschevtentou lidar com o problema abolindo a maioria dos ministérios centraise criando, no lugar deles, conselhos econômicos regionais. Mas descobríuque o departamentalismo foi substituído rapidamente pelo "Ioc~lis~o". Opadrão de comportamento burocrático que ele deplorava no centro foi logoreproduzido nas localidades. ,

Se as conquistas na saúde e na educação ajudaram a sustentar o apoioao sistema existente' em Cuba, um aliado involuntário do regime de Fideltêm sido os Estados Unidos. Quanto mais contato pessoas de sociedadesrelativamente fechadas têm com pessoas de sociedades abertas, mais difícilé para esses regimes fechados manter seu controle autoritário. Ao impor umembargo econômico a Cuba, e ao dificultar as visitas de cidadãos americanosà ilha, o governo dos EUA não apenas ajudou a liderança cubana susten-tando a ameaça externa, e reforçando, assim, o patriotismo cubano, comoreduziu as oportunidades de uma interação em que cada um dos dois ladospode~ia ter aprendido alguma coisa com o outro. Provavelmente, porém,um SIstema que impõe controles a consultas livres seria mais corrosivo doque um sistema em que ideias liberais, conservadoras e mesmo Comunistasestejam prontamente acessíveis, embora o auge nada impressionante doPartido Comunista dos Estados Unidos já tivesse passado antes de FidelCastro chegar ao poder.

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China: das "Cem Hores" à "Revolução Cultural"

A chegada ao poder dos Comunistas chineses foi discutida no capítulo 11,em um relato que termina em 1953, o ano da morte de Stalin. Este capítulocobre um período não menos tumultuado - de 1953 até o falecimento deMao Zedong, em 1976. Foi um período de enorme significado tanto paraa China quanto por suas implicações para o resto do mundo Comunista.Tão importantes quanto os anos da guerra civil e da revolução na Chinaforam os quatro principais acontecimentos que abordo neste capítulo: acampanha das "Cem Flores" e a repressão que se seguiu; o "Grande Saltopara Frente", que acabou sendo um desastre; a ruptura sino-soviética, quefoi um divisor de águas na história do Movimento Comunista Internacio-nal; e a "Grande Revolução Cultural Proletária" da última década de Maocomo governante chinês, um movimento que causou imenso sofrimento eteve importantes consequências não intencionais.

Até meados dos anos 1950, a política dos Comunistas chineses no poderse baseava fortemente na experiência soviética. Um plano de cinco anosexecutado de 1953 a 1957 teve o objetivo de dobrar a produção industriale aumentar em um quarto a produção agrícola.' Embora não tenha sidogrande em termos financeiros, a ajuda soviética foi significativa por proverespecialistas. Engenheirose tecnologistas russos sem dúvida tiveram umpapel importante ao ajudarem a desenvolver a infraestrutura industrial daChina nos anos 1950. A política industrial obteve resultados melhores doque a tentativa de coletivizar a agricultura - embora os chineses tenhamtentado evitar os excessos da coletivização compulsória de Stalin no fimdos anos 1920 e início dos anos 1930 na União Soviética. Cooperativasde Produtores Agrícolas foram criadas, envolvendo todos os moradores devilarejos. Esperava-se que estas se expandissem gradualmente - passandode algumas dezenas de famílias para centenas em cada cooperativa. Ocrescimento da produção agrícola foi, porém, muito mais lento do que oprevisto e surgiram divergências no Partido Comunista entre aqueles que

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de~endiam um processo mais gradual (incluindo a manutenção de terraspflvad~s e alguns mercados livres) e os linha-dura, liderados por Mao, quedefendiam uma socialização mais rápida." Mas em 1956 a transferênciabásica dos meios de produção da posse privada para a propriedade estatalou coletiva havia sido concluída na economia chinesa, de um modo geral.'

Como em outros países Comunistas, houve um progresso substancialna e~ucação. Nos .níveis mais elevados, houve perdas - principalrriente,ecrucialrnente, da liberdade intelectual nas ciências humanas e sociais-(em~bora Ma.o achasse que havia muito pouca doutrinação ideológica). Masa disserninação da educação básica ocorreu em enorme escala. O númerode crianças que frequentavam escolas primárias aumentou de 24 milhõesem 1949, para 64 milhões em 1957.4 No mesmo período, os números noensino su~erior dobraram. Continuava havendo, porém, grandes diferençasentre as cidades e o interior, com poucas boas escolas fora das cidades bemcomo grandes disparidades entre homens e mulheres. Mesmo nas escolasprimá~ias: a p~oporção de meninos para meninas era de dois para uma."Na primeira decada de poder dos Comunistas, houve melhorias substan-~iai.s na saúde pública. Isso trouxe benefícios, mas também problemas. Oíndice de mortalidade diminuiu muito mais do que o índice de natalidadee um aumento populacional de dois por cento causou mais pressão sobreos recursos escassos.s

A experiência soviética e os acontecimentos mais recentes na UniãoSoviética continuavam a influenciar a política chinesa. Assim, no VIIICongresso. do Partido Comunista Chinês, em setembro de 1956, o papelde Mao fOI menos enfatizado do que no Congresso anterior, em 1945. OPensamento de Mao Zedong foi removido (por enquanto) dos estatutos dopartido e foi dada uma forte ênfase à liderança coletiva. Essas mudançasforam, pelo menos em parte, consequência do destronamento de Stalin noXX Congresso do Partido Comunista Soviético e do ataque mais geral ao"cult? à personalidade" ali.? O cerne da liderança do partido chinês foimantido no VIII Congresso, embora uma promoção significativa à cúpulaten?a. sido a de Deng Xiaoping, que mais tarde se tornaria uma das figurasrnars Importantes da história chinesa do século XX. Em conversa com O

líder soviético Nikita Kruschev em 1957, Mao apontou para Deng e disse:"Está vendo aquele homenzinhó ali? Ele é muito inteligente e tem um grandefuturo pela frente.?" A observação parece particularmente apropriada emretrospec.to~ mas c?mo o futuro de Deng envolveu a reversão de grande partedo que fOIdito e feito por Mao Zedong, dificilmente era isso o que Mao tinha

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em mente. O VIII Congresso parecia marcar uma nova estabilidade na vidapolítica, com diversos interesses burocráticos - especialmente ministérioseconômicos e organizações do partido nas províncias - fazendo com quesuas reivindicações fossem ouvidas." Acabou representando, porém, apenasuma calmaria antes de uma série de tempestades.

As Cem Flores

Por um breve período, pareceu que o Congresso seria, inesperadamente,seguido de um pluralismo crescente. Para muitas pessoas na China e noexterior, parecia que Mao Zedong inaugurara uma nova fase de desenvol-vimento pós-revolucionário ao incentivar as pessoas a ter um olhar maiscrítico sobre o que fora alcançado até então. O que se tornou conhecidocomo o movimento das Cem Flores, em 1956-57, derivava da observaçãode Mao: "Que cem flores desabrochem, que cem escolas de pensamento seenfrentem."!" Embora inaugurada em 1956, a campanha foi intensificadana primeira metade de 1957. Mao incentivou as críticas ao que fora reali-zado desde 1949, embora tivesse em mente a identificação de deficiênciasespecíficas, e não críticas a tudo. Em geral, ele assumiu uma visão positivado conflito, sustentando que membros do partido deveriam criticar nãoapenas eles próprios, mas um ao outro. Estipulou um limite, porém, paraas críticas a ele próprio ou ao sistema Comunista. Mas foram externadasalgumas críticas aos fundamentos. Estas incluíam até questionamentos aodireito do Partido Comunista Chinês de governar sem qualquer verificaçãode seu poder ou sem prestar contas sobre suas decisões. Quando Mao emitiuuma instrução aos altos funcionários do partido para que eles deixassemas críticas continuarem, em maio de 1957, seus motivos eram suspeitos. Naépoca - se não antes - ele estava tentando fazer com que seus inimigose aqueles que se opunham ao sistema se mostrassem. Isso permitira a ele- assim como a Lenin em 1921 - "pôr a tampa na oposição", ou, naspalavas do próprio Mao (que continuava a usar metáforas horticulturais),extrair "as sementes venenosas".'!

A liderança soviética ficara alarmada com a conversa chinesa sobre per-mitir que cem flores desabrochassem, já que isso aumentava a pressão poruma liberdade de expressão maior na União Soviética e no Leste Europeu.Em retrospecto, pelo menos, Kruschev acreditava que a afirmação "quecem flores desabrochem" não passava de uma provocação: "Mao fingiu

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estar abrindo as comportas da democracia e da Iiberdade de expressão. Elequeria estimular as pessoas a expressar seus pensamentos mais Íntimos,tanto oralmente quanto em publicações, para poder destruir aqueles cujospensamentos considerasse nocivos.?'? A liberalização parcial que permitira,ainda que brevemente, uma exposição de ideias heterodoxas significou, en-tretanto, que a posição de Mao havia sido temporariamente enfraquecida.A campanha prejudicou sua autoridade e revelou diferenças de opiniãoacentuadas dentro do partido governante. A resposta de Mao foi lançar uma"campanha antidireitista" e reenfatizar a importância da luta de classes."

Não apenas intelectuais de histórico "burguês", mas também estudantesque haviam recebido educação superior no período Comunista estavam entreaqueles que expressaram seu descontentamento, alguns deles questionandoa competência do partido. Tudo isso indicava uma crescente alienação demuitos segmentos mais instruídos da sociedade em relação ao sistema. \4 Oataque aos "direitistas" que se seguiu atingiu duramente os intelectuais. Maisde meio milhão deles foram tachados de "direitistas" e sofreram grande pres-são ideológica, o que levou a inúmeros suicídios. Muitos intelectuais foramdesignados para trabalhos braçais. Uma das ironias dos sistemas Comunistas- o mesmo aconteceria na Tchecoslováquia depois da repressão à Primaverade Praga e, em momentos diversos, em outros Estados Comunistas - é que,embora os trabalhadores braçais constituíssem a classe dominante oficial,o padrão de punição aos intelectuais considerados culpados por escritosnão ortodoxos ou por atividades politicamente suspeitas era retirá-Ios desuas profissões que exigiam curso superior e torná-Ios operários. Assim,paradoxalmente, eles eram "rebaixados" à "classe dominante".

Os líderes chineses eram sensíveis ao que acontecia em outros lugares domundo Comunista. Haviam apreciado de certa forma o Discurso Secreto deKruschev no XX Congresso do PCUS em 1956, embora Mao fizesse sériasreservas à sua conveniência e tenha ficado furioso por não ter sido avisadode antemão sobre uma mudança de linha tão radical. Estavam também bas-tante preocupados com o papel político desempenhado por intelectuais naPolônia e na Hungria no mesmo ano. A lição que Mao e seus aliados maispróximos aprenderam com o movimento das Cem Flores foi que os inte-lectuais chineses também haviam mostrado que não eram ideologicamenteconfiáveis. A liderança do partido permaneceu consciente de que precisavada habilidade de profissionais de níveis mais elevados. Consequentemente,enfatizou que a campanha anridireitista, que se seguiu ao fracasso - doponto de vista deles- da iniciativa das Cem Flores, não tinha como alvo a

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maioria dos intelectuais chineses. Entretanto, o ataque àqueles que haviamsido corajosos, ou ingênuos, o bastante para acreditar piamente na ideiade uma disputa aberta entre diferentes escolas de pensamento conteria, emvez de estimular, o entusiasmo já decrescente de muitos intelectuais pelosobjetivos do partido.

o Grande Salto para Frente

Ao visitar Moscou em outubro de 1957, Mao demonstrou admiração pelasconquistas soviéticas, especialmente à luz do recente feito da URSS de se tor-nar o primeiro país do mundo a pôr uma espaçonave em órbita. No conflitoentre o Leste e o Oeste, declarou ele, o vento leste prevalecia sobre o ventooeste." Entretanto, apenas um ano depois, Mao e seus aliados estavam seafastando do modelo soviético de desenvolvimento que haviam seguido, emessência, até então. A ideia do Grande Salto para Frente, que defenderam,era um programa de mobilização em massa em que o entusiasmo e a forçade vontade do povo seriam totalmente utilizados. Mao pretendia aproximarmais gerentes, técnicos e operários, rejeitando a abordagem mais tecnocrá-tica e hierárquica dos assessores soviéticos. Os engenheiros e tecnologistassoviéticos foram largamente excluídos, assim como as agências burocráticasdo governo central chinês. Para que o interior pudesse se tornar mais autos-suficiente em todos os aspectos, cada localidade foi incentivada a estabelecertecnologias em pequena escala, de modo a complementar a indústria de largaescala já construída. Mao chamou isso de "caminhar sobre duas pernas".Significou, entre outras coisas, a criação de fornalhas de fundo de quintalque eram um desperdício de trabalho e economicamente inúteis. O GrandeSalto para Frente proclamou uma redistribuição de energia. Nas províncias,entregou a iniciativa de dirigentes centrais e gerentes a generalistas políticoscuja tarefa era inspirar os trabalhadores ideologicamente."

Enquanto protegia zelosamente seu poder pessoal, Mao também levavaas ideias a sério, e estava ansioso para avançar a comunização da sociedadechinesa. Em particular, isso significava transformar as Cooperativas deProdutores Agrícolas em "comunas do povo" muito maiores. Muito maismulheres foram levadas para a força de trabalho quando as fazendas maciçasforam criadas, enquanto os homens trabalhavam frequentemente longe desuas vilas nativas. O utopismo do Grande Salto para Frente pode ter sidoinspirador no início, mas seus resultados foram desastrosos. O desprezo

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por obstáculos materiais e pela especialização profissional levou ao caosno interior e, com isso, a uma fome devastadora. Os falsos relatos sobre oaumento da produção de grãos contrastavam com a dura realidade de umaqueda drástica na produção. Os transportes rurais foram interrompidos eos equipamentos agrícolas negligenciados. A situação piorou com enchen-tes e secas em 1959 e 1960. A melhor estimativa do número de mortesresultantes do tumulto econômico criado pelo Grande Salto entre 1955e1961 - as "mortes em excesso", em termos estatísticos, naquele per-íodo- é da ordem de 30 milhões de pessoas. Isso significa que uma pessoa emcada vinte do interior chinês foi vítima fatal desse desastre provocado emgrande parte pelo homem.'?

No Tibete, que fora incorporado à República Popular da China (RPC)em 1950, a ameaça do tipo de mudança estabelecida pelo Grande Salto foisuficiente para criar uma séria agitação em 1959. Os tibetanos representamum dos 55 grupos étnicos diferentes reconhecidos oficialmente pela RPC,embora os chineses han sejam, em número, esmagadoramente dominantesna China como um todo, formando mais de 90 por cento da população.A revolta de 1959 foi reprimida por tropas chinesas e o líder espiritual dostibetanos, o Dalai Lama, buscou refúgio na índia. Embora as autoridadeschinesas tenham conseguido manter o controle sobre o Tibete nos anos quese seguiram, a questão da autonomia religiosa e política da população nativado Tibete continua sendo até hoje uma questão Internacional controversa."

No fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, enquanto ficava cada vezmais claro para algumas pessoas da liderança chinesa que v Grande Saltohavia sido um erro monumental- na verdade, um passo gigante para trás- vieram a público tensões que, em alguns casos, estavam ali sob a super-fície há anos. Entre aqueles que criticaram Mao pelo fiasco do Grande Saltopara Frente, sobressaiu-se Peng Dehuai, que se destacara como general nocomando das forças chinesas na Guerra da Coreia. Peng defendia relaçõespróximas com a União Soviética e, como ministro da Defesa, queria queas forças armadas da China seguissem o modelo do exército soviético. Semqualquer prova real, Mao suspeitou que Peng coordenava ataques a ele comcríticas que logo viriam de Moscou. Peng foi prontamente demitido de seucargo, mas a posição um tanto enfraquecida de Mao se refletiu em sua de-cisão de desistir do cargo de chefe de Estado em 1959, embora mantivesseo cargo mais importante de presidente do Partido Comunista Chinês.

Deng Xiaoping se tornara secretário-geral do partido e, como tal, exerciagrande autoridade no secretariado. Mas enquanto Maoestava vivo, o cargo

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de secretário-geral não era o mais importante - o que é incomum em umPartido Comunista. A presidência do partido era o principal cargo, umavez que Mao o ocupava. Na ocasião em que Mao elogiou Deng Xiaopinga Kruschev, em 1957, Deng ainda era um forte aliado do presidente dopartido, mas isso mudou durante o Grande Salto para Frente. Ele passou ater menos consideração por Mao, que mais tarde - durante a RevoluçãoCultural- reclamou que Deng "não lhe dava ouvidos desde 1959".19 Osucessor de Mao como chefe de Estado, Liu Shaoqi, anunciou em 1961 que,não obstante as graves enchentes ocorridas em inúmeras províncias chinesas,70 por cento da fome que atingia o país se devia a erros humanos, e não adesastres naturais. 2U Liu não declarou isso como uma acusação a Mao, mas,principalmente em retrospecto, sua atitude pode ser vista como uma críticavelada ao líder. Foram Liu e Deng que juntos desenvolveram as políticas de1961 a meados dos anos 1960, que puseram a economia chinesa de novoem um rumo mais sensato-oO conhecimento especializado foi novamentereconhecido e foram tomadas medidas para fortalecer o aparelho do partidocomo um órgão disciplinado."

A Ruptura Sino-Soviética

A ruptura sino-soviética tem sua origem em 1956, com o discurso deKruschev no XX Congresso, o qual incomodou os chineses, uma vez queeles davam a Stalin um apoio público sem críticas até então." Aquele tam-bém foi o ano em que, com a iniciativa das Cem Flores, Mao começou apromover políticas fortemente divergentes dos governantes Comunistas daUnião Soviética e do Leste Europeu - e potencialmente constrangedoraspara eles. Em 1957, vieram à tona inúmeras diferenças. O resultado dacrise do Grupo Antipartido é um bom exemplo. Mao discordou da decisãode Kruschev de afastar da liderança soviética antigos bolcheviques, comoMolotov, embora uma década depois ele próprio trataria seus antigos com-panheiros com ainda menos respeito.P

Na esteira da crise na liderança soviética em 1957 - que se seguiu aosacontecimentos muito mais'turbulentos na Polônia e na Hungria, no anoanterior - o Partido Comunista Soviético começou a tentar restaurar ereforçar a unidade do Movimento Comunista Internacional. Em novembrode 1957 foi realizada em Moscou uma conferência de líderes de partidosComunistas, na qual foi feito um esforço para reunir todos os principais

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partidos. Isso significava, em particular, garantir a participação de Mao eTito. Mao apareceu, mas Tiro não. O líder iugoslavo se opusera a uma versãopreliminar de uma declaração que se referia ao "campo socialista" -termodo qual não gostava, já que podia colocar em questão a liberdade de açãoda !~go~lávia. Ele também se opôs à frase "luta contra o dogmarismo e orevisiorusmo'', O termo "dogmatismo" se referia às políticas stalinistas de •linha-dura e seria cada vez mais aplicado à China. "Revisionism~"~ra há ..muito tempo o termo relativo a abusos no Movimento Comunista Internacio-nal para desvios na direção oposta - concessões ao mercado ou tolerância·política. Desde a expulsão da Iugoslávia do Cominform, o termo "revisio-nista" era um dos epítetos aplicados à Iugoslávia por outros Comunistas.

Em 1961-62, a Iugoslávia já não estava proscrita do Movimento Comu-nista Internacional como estivera nos últimos anos de vida de Stalin. Masnaqu~les anos, o,termo "revisionista" foi repetidamente aplicado ao paíspela liderança chinesa. A essa altura, porém, Iugoslávia se tornara um co-dinome para a União Soviética. Isso aconteceu em um período um poucoantes de os Comunistas chineses começarem a atacar publicamente Kruscheve a liderança soviética, chamando-os de "revisionistas". E assim como osc~ineses inicialmente direcionaram sua discussão aberta para Belgrado, enao para Moscou, a União Soviética criticou publicamente o "dogmatis-mo" dos "albaneses" (em substituição aos chineses) que, sob a liderançade Enver Hoxha, haviam transferido sua lealdade de Moscou para Beijingem 1960. Houve relutância na União Soviética, em particular, em revelarpara todo mundo que os dois mais importantes Estados Comunistas domundo estavam divergindo. Analistas sérios do mundo Comunista tiverampouc~ dificuldade, porém, para entender a profundidade da desavença entrea China e a União Soviética. Durante o ano de 1962, esse fato ficou cadavez mais claro, embora alguns políticos ocidentais obtusos, principalmentenos Est~dos Unidos, tenham optado por acreditar durante os anos seguintesque a disputa sino-soviética era uma artimanha arquitetada para enganarO "mundo livre".

As diferenças entre a China e a União Soviética estavam vindo à tonaaos poucos, mas Mao chocou muitos de seus ouvintes quando, em um dis-curso durante sua visita a Moscou em novembro de 1957 considerou comtranquilidade a possibilidade de uma guerra nuclear. Talv:z 700 milhões depessoas fossem mortas (aproximadamente um terço da população mundialna época), ou, p~ssivelme~te, metade da população do planeta. Mas logoessas pessoas seriam subStituídas, disse Mao, e os ganhos seriam enormes.

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O imperialismo seria esmagado e o mundo inteiro "se tornaria socialista't."Nem Kruschev em sua fase mais impetuosa (no início da crise dos mísseisem Cuba) jamais pensou, e muito menos disse, algo remotamente tão ir-responsável. A reação dos Comunistas tchecos e poloneses fo_ide horror.Mao podia se dizer preparado para perder metade da populaçao da Chinaem uma guerra nuclear - o que no fim dos anos 1950 significaria a mortede 300 milhões de chineses - mas, como disse o líder Comunista tchecoAntonín Novotny a Kruschev, a Tchecoslováquia perderia "até a últimaalma" em uma guerra assim.P

Quando Kruschev visitou a China em 1958, encontrou Mao altamenteresistente à ideia de permitir que submarinos soviéticos usassem portoschineses ou uma estação de rádio localizada em território chinês para secomunicar com a frota soviética. Mao ofendeu Kruschev ao compararseu desejo de fazer esse uso do território chinês com as atividades daGrã-Bretanha e do Japão no passado. Ele não usou a palavra "imperia-lista", mas a implicação era clara. Também fez o que pôde para humilharKruschev de outras maneiras. Mao era um exímio nadador. Em 1966, aos72 anos, juntou-se aos cinco mil participantes de uma travessia anual norio Amarelo e, ajudado por uma forte corrente, cobriu a distância de 16quilômetros." Kruschev, em contraste, nadava tão mal quanto dançava.Se Stalin o havia constrangido mandando-o uançar o gopak, o método deMao para demonstrar superioridade foi realizar discussões poíincas em umapiscina, Enquanto Mao nadava sem esforço, expondo opiniões que eramimediatamente traduzidas, Kruschev tinha que balbuciar suas respostascom a boca cheia de água. "É claro que eu não podia competir com Maona piscina", comentou ele em suas memórias. "Como todo mundo sabe,ele bateu um recorde mundial tanto em velocidade quanto em distância.t' "

Sinais de reaproximação entre a União Soviética e os Estados Unidosforam um anátema para Mao, que desaprovou a visita de Kruschev aos EUAem setembro de 1959. Três meses antes, Moscou quebrara uma promessa defornecer aos chineses a bomba atômica (que logo eles desenvolveriam porsi próprios). A liderança chinesa supôs que o recuo ocorrera para agradaraos americanos embora na verdade, os soviéticos temessem que os Estados

" ',' 28Unidos retaliassem fornecendo armas nucleares a Alemanha OCidental.(Não há fundamento factual algum para essa suposição, mas em 1959 aslembranças da Segunda Guerra Mundial eram frescas o bastante para osalemães ainda serem vistos como o principal inimigo em potencial da UniãoSoviética na Europa, Foi com a eleição de Willy Brandt como chanceler da

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Alemanha Ocidental uma década depois - e com a política de seu governode envolvimento construtivo com a União Soviética e os países do LesteEuropeu - que as percepções sobre a Alemanha na Rússia e no Leste Eu-ropeu passaram por uma grande mudança.)

Quando Kruschev fez sua terceira e última visita à China, em oútubrode 1959, as tensões entre os dois países haviam aumentado muito ~ bemcomo a irritabilidade entre seus dois líderes. Conflitos na fronteira entreChina e índia eram um constrangimento para a União Soviética. Embora amediação diplomática não fosse o seu forte, Kruschev aconselhou conten-ção. A URSS gozava de boas relações com a Índi~ de Nehru e continuavasendo, pelo menos oficialmente, o aliado Comunista fraterno da China.Kruschev não agradou a seus anfitriões ao cumprir a promessa que fizeraao presidente Eisenhower de levantar a questão dos cinco americanos queeram mantidos presos na China. Tanto Mao quanto Zhou Enlai trataramdesse e de outros comentários de Kruschev como se ele fosse um porta-vozdos EUA. Quando Mao reclamou sobre os Estados Unidos terem enviadouma frota para perto da costa chinesa, Kruschev respondeu francamente:"Deve-se ter em mente que não estamos isentos de pecados. Fomos nós quea~r.aímos os americanos à Coreia do Sul" - em uma referência à responsa-bilidade de Stalin pelo início da Guerra da Coreia.?? Quando a conversa sevoltou para o Tibete, foi a vez de Kruschev atacar. Mao disse que a intençãodeles havia sido "adiar a transformação do Tibete por quatro anos", ao queKruschev respondeu: "E esse foi o seu erro." Mao também foi forçado a sedefender do fracasso da China por não impedir que o Dalai Lama deixasseo T!~ete. ~ruschev deixou claro que considerava isso uma incompetênciapolítica, dizendo. "Quanto à fuga do Dalai Lama do Tibete, se fôssemosnós, não teríamos deixado que ele escapasse. Seria melhor que ele estivesseem um caixão. E agora ele está na Índia, e talvez vá para os EUA. Seria issouma vantagem para os países socialistas?" Mao respondeu que a fronteiracom a lndia era muito extensa e que o Dalai Lama poderia tê-Ia cruzadoem qualquer ponto. 30

. Em julho de 1960, líderes Comunistas chineses, em sua comunicaçãoInterna, estavam se referindo à luta entre "marxismo e oportunismo" noMovimento Comunista Internacional. Nessa luta, é claro que eles eram osmarxistas e Kruschev era o "oportunista" número um, além de um "ma-quinador".» A disputa foi além das palavras quando, naquele mesmo mêsa União Soviética informou a Beijing que estava retirando imediatament:seus cerca de 1.400 especialistas que trabalhavam na China. Em uma carta

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confidencial, o lado soviético apresentou motivos para essa ação repentina.Esses incluíam a alegação de que haviam sido feitas críticas ao trabalhodos especialistas na China, desconsiderando a ajuda deles (embora fosse arejeição chinesa à ajuda política soviética, e não à ajuda técnica, que pesassemais) e, principalmente, a propaganda do Partido Comunista Chinês contrao PCUS.12 Entretanto, qualquer que fosse a desilusão com Kruschev e aliderança soviética, os chineses reconheceram a ajuda prática que os enge-nheiros e tecnologistas soviéticos haviam dado. Em meados de agosto de1960, em um jantar de despedida em homenagem aos especialistas soviéticosque partiam, Zhou Enlai agradeceu a contribuição que eles haviam dado àconstrução do "socialismo" na China." Entretanto, para piorar as relaçõesentre as duas maiores potências Comunistas, naquele mesmo ano o comér-cio soviético-chinês praticamente acabou, aumentando as dificuldades daeconomia chinesa em meio aos problemas com o Grande Salto para Frente.

Os ch ineses tentaram propagar dentro da Rússia sua posição ideológicae sua opinião sobre a disputa com a União Soviética, entregando a institutosde pesquisa de Moscou documentos que mostravam o lado chinês da histó-ria. A liderança soviética reagiu expulsando três diplomatas e outros doiscidadãos chineses. Estes voltaram para Beijing no início de julho de 1963,tendo uma recepção de heróis, da qual Zhou Enlai participou. 34 Aquele foi omês em que a disputa se tornou pública. Em 14 de julho, o Pravda publicouem carta aberta a resposta do Comitê Central do PCUS a propostas queos chineses haviam feito um mês antes." Na época, os chineses estavamatacando abertamente o "revisionisrno" soviético. Os anos de 1963-64foram um divisor de águas no Movimento Comunista Internacional. Osdois maiores partidos Comunistas do mundo se envolveram em discussõesabertas, vivendo claramente uma relação de antagonismo. A ideia do Co-munismo como ideologia que unia revolucionários e "anti-imperialistas"no mundo inteiro sofreu um golpe do qual jamais poderia se recuperartotalmente. Acostumada como estava à ideia de que o Partido Comunistada União Soviética tinha um papel importante, se não dominante, no Mo-vimento Comunista Internacional, a liderança soviética procurou manteruma unidade, mas não à custa de se render ideologicamente à posição doschineses. Mao, porém, estava contente por manter a polêmica, em partepor temer o "revisionismo" em seu país, bem como dentro do movimentocomo um todo. Ao se colocar como chefe do ataque à apostasia soviética,ele estava fortalecendo sua posição para um ataque aos apóstatas internos.Alguns líderes chineses, como Deng Xiaoping e Liu Shaoqi, que haviam

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brigado assiduamente com seus colegas soviéticos em apoio à linha de Maodescobririam que acusações semelhantes de "revisionisrno" -e em termo'. f . ,smais orres, de que estavam buscando o capitalismo - seriam feitas COntraeles próprios na Revolução Cultural."

Quando Kruschev foi derrubado por seus colegas, em outubro de 1963~ao teve ~sperança por um breve momento de que a liderança soviérícntivesse acenado suas críticas às políticas de Kruschev. Também por PbLi~Otempo, os líderes soviéticos imaginaram que o afastamento do nada di-plomático ~ruschev t~rnaria mais fácil para eles resolver suas diferençascom o PartJd~ Comunista Chinês. Porém, a disputa era muito mais do que .:pess~a.l. Havia profundas questões políticas e ideológicas em jogo. ZhouEnlai h~erou uma delegação nas comemorações do aniversário da revoluçãobolchevique, em 7 de novembro de 1964, apenas três semanas depois doafas,tamento de Kruschev. Em seu discurso oficial na ocasião, Leonid Brejnevpediu uma nova reunião internacional de países Comunistas fraternos. Estaobse~vação ~oirecebida com aplausos estrondosos dos quais, porém, ZhouEnlai conspicuamente não participou. Em uma recepção mais tarde no~esmo dia, o ministro, ~a Defesa soviético, marechal Rodion Malinov~ky,disse a um me~~ro militar da delegação chinesa que eles deveriam seguir~ exemplo sovienco e se livrar de Mao, assim como os soviéticos haviam selivrado de Kruschev. 37 Malinovsky estava um tanto bêbado no momento~as a tentat~~a de Brejnev de convencer o ultrajado chinês de que aquel;nao era a política oficial, mas sim o resultado da embriaguez de Malinovsky,I~vou Zhou a responder que o álcool simplesmente permitira a Malinovskydizer o que ele achava." Como a observação de Malinovsky seria relatadaa Mao, Zh~u teria tido terríveis problemas em Beijing se tivesse reagido deoutra maneira que não fosse denunciando-a veementemente.

Incidentes na fronteira soviético-chinesa aumentaram as tensões entre osdois lado~. Mais ta~de, "" 1969, resultariam em muitas mortes em regiõesda fronteira dos dOISpaises e causariam o temor de uma guerra em escalatotal entre ~s,lo~s g;games Comunista~. Entretanto, as disputas territoriais,em~~~a reais, nac :oram fundamentais para O rompimento entre a UniãoSO:'letlca e a Chiria <\.sdiferenças ideológicas é que o foram. Na época, oschineses estavam mais cor- »ometidos com a revolução mundial e a U '-S '" niao, oVletlc~ se tornara toleravelmente satisfeita com o status quo europeu emterna~lOnal, ~omamo que ocupasse um dos dois lugares mais importan-tes da hierarquia mundial, ao lado dos Estados Unidos. A União Soviéticadefendia a "coexistência pacífica", o que significava que queria, de fato,

evitar uma guerra, embora se opusesse resolutamente à coexistência ideo-lógica. (As autoridades soviéticas, assim como os governantes Comunistasde outros lugares, tentavam firmemente evitar a disseminação de ideias nãoComunistas no país, ao mesmo tempo que faziam de tudo para promoversua ideologia no mundo.) Em contraste com a ênfase soviética na coexis-tência pacífica, Mao parecia disposto a considerar a guerra uma maneirade fazer o Comunismo avançar, embora na prática fosse mais cauteloso naarena internacional do que sua retórica poderia indicar."

Havia também discordância entre as duas lideranças em suas atitudesem relação a Stalin. Esta se tornou menos pronunciada depois de outubrode 1964, porque os sucessores de Kruschev logo decidiram que as críticasa Stalin e ao stalinismo eram potencialmente desestabilizadoras e puseramfim a elas em seu país. Embora na elite política soviética algumas pessoasquisessem reabilitar Stalin, isso não aconteceu. Entre a queda de Kruschev,em 1964, e a morte de Mao, em 1976, Stalin foi muito mais enaltecido emPequim do que em Moscou. Além disso, em diversas de suas ações - tantoquanto em sua vitória (muito cara) sobre as autoridades do partido, que foio cerne da Revolução Cu/tural- Mao parecia estar seguindo os passos deStalin. Na "Grande Revolução Cultural Proletária" da China, certamentehouve ecos dos expurgos de Stalin no fim dos anos 1930, nos quais muitosmembros antigos do partido foram eliminados. Havia discordâncias entreas lideranças dos dois Estados Comunistas em relação ao modo como aeconomia deveria ser administrada. Mao desprezava a natureza altamenteburocratizada do Estado soviético e se preocupou em combater essas tendên-cias em seu país. Além das reais diferenças ideológicas, deve ser consideradaa ambição pessoal de Mao de ser o principal teórico do mundo Comunista esua aspiração a fazer uma transição para o comunismo, no sentido utópicodo termo, antes da União Soviética. Depois da queda de Kruschev, líderessoviéticos fizeram apenas ocasionais declarações da boca para fora sobre anoção deste estágio supostamente final de desenvolvimento da sociedade,de modo que Mao teve este campo para ele

A Revolução Cultural

Com o colapso do Grande Salto para Frente, o governo chinês se tornaramais disciplinado e cada vez mais institucionalizado na primeira metadedos anos 1960. Embora Mao Zedong estivesse no topo da hierarquia polí-

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tica, diversas instituições detinham poder e autoridade verdadeiros. Essasincluíam o Politburo do Comitê Central do PCC; O Secretariado do ComitêCentral, liderado por Deng Xiaoping; organizações regionais e municipaisdo partido, principalmente a de Beijing, chefiada por Peng Zhen; o Con-selho do Estado, que incluía a rede ministerial, chefiada por Zhou Enlai;e a chefia oficial do Estado, cargo ocupado por Liu Shaoqi, que _ mais'importante que isso - tinha uma base forte na máquinadoEs~ad~; Ele'era o número dois no Politburo, e era identificado como sucessor de Mao.No início dos anos 1950, o slogan "A União Soviética de hoje somos nósamanhã" havia sido visto como uma feliz previsão de um progresso eco~nômico rápido e como motivo de otimismo. Nos anos 1960, Mao, com suavisão cada vez mais indigesta dos acontecimentos na União Soviética, viuesse slogan como uma terrível advertência.e? Se a China não adotaria ummodelo de burocracia e revisionismo, o sistema precisava passar por outramodificação fundamental.

Assim, Mao estava suscetível às pressões daqueles que achavam queeram tolhidos pela velha guarda que comandava as principais instituiçõesdo país. Foi influenciado, não menos, pela facção liderada por sua esposa,Jiang Qing, que tinha um olho clínico especialmente para qualquer distan-ciamento em relação à retidão revolucionária no campo cultural. No sentidomais pleno do termo, a Revolução Cultural durou da primavera de 1966 àprimavera de 1969. Como, porém, nunca foi formalmente declarada comoencerrada enquanto Mao viveu, de maneira mais branda ela durou até suamorte, em 1976. Juntamente com Chen Boda, o intelectual do Partido Co-munista (embora um homem de origem camponesa humilde) mais próximode Mao, Jiang Qing liderou o que ficou conhecido como o Pequeno Grupoda Revolução Cultural. Inicialmente, faltou ao grupo uma base de poderfirme no partido. Mas com o apoio crucial de Mao, o grupo se tornou umadas três organizações com as quais ele mais interagiu durante a RevoluçãoCultural, sendo as outras duas o Exército de Libertação Popular (ELP), che-fiado pelo ministro da Defesa, Lin Biao, e o Conselho do Estado, lideradopor Zhou Enlai." Em parte porque não haviam se disposto a levar JiangQing a sério como voz política, Peng Zhen e Liu Shaoqi estavam entre asprimeiras vítimas da Revolução Cultural. Zhou Enlai sobreviveu assumindoposições que eram "radicais o bastante para evitar a destruição, enquantotrabalhava para minirnizar o caos"."

Embora fosse acabar se tornando uma vítima da Revolução Cultural,Lin Biao foi um aliado crucial de Mao durante a maior parte da revolução.

Apesar de algumas semelhanças com o Grande Expurgo, Mao chegou muitomais perto de destruir o partido do que Stalin, que permaneceu consciente deque precisava dele. Outra diferença notável foi o papel desempenhado pelosexércitos soviético e ch inês. No final dos anos 1930, o exército soviético foidizimado por Stalin e seus seguidores, e ficou muito longe de exercer umpapel importante na política interna. Em contraste, quando as organizaçõesdo partido chinês e da rede ministerial foram atacadas, o ELP se tornou oprincipal baluarte instirucional, no qual Mao Zedong pôde confiar entre1966 e 1969. Mao também foi apoiado entusiasticamente pelos jovens, osGuardas Vermelhos, introduzidos como uma nova força da política chinesa.Mas o ELP, por ser um exército, era muito mais disciplinado. Livres de regrase desprezando a hierarquia, os Guardas Vermelhos acabaram assustandoaté mesmo o presidente do PCc. Embora Mao estivesse psicologicamentepreparado para iniciar um conflito dentro do partido e da sociedade, epara restabelecer o domínio de suas opiniões, foi Jiang Qing quem, com aaprovação do marido, desferiu o primeiro golpe. Ela argumentou que umapeça de teatro de um historiador, Wu Han, chamada Hai Rui demitido dogoverno e apresentada em Beijing em 1961, era um ataque velado às políticasde Mao. Além de sua experiência acadêmica, Wu Han era vice-prefeito deBeijing. Assim, gozava da proteção do primeiro-secretário do partido nacapital, Peng Zhen. Consequentemente, Jiang Qing não conseguiu encontrarem Beijing um autor que pudesse escrever um artigo polêmico contra WuHan - uma boa indicação do poder exercido pelo chefe do partido na ci-dade. Sem se deixar intimidar, ela foi a Xangai, onde o primeiro-secretáriolocal, consciente de que Mao aprovara a iniciativa da esposa, designou doispropagandistas para a tarefa de desmascarar Wu Han. Obedientemente,eles descreveram a peça como "uma intervenção reacionária na grande luta

. b . I' d "43de classes entre a urguesia e o pro etana o .A publicação da denúncia contra Wu Han (o texto do artigo foi editado

pessoalmente por Mao) lançou a Revolução Cultural. Desse momento emdiante, tornou-se muito mais significativo falar em maoismo e maoistas,porque era o presidente quem definia o que era a autêntica doutrina revo-lucionária, distinguindo-a do que fora aceito até então. Ele usou sua auto-ridade e a fabricação de um culto à sua personalidade que alcançou níveiselevados para substituir, um após o outro, membros importantes do sistemapolítico e cultural chinês. Wu Han e Peng Zhen estavam entre os primeiro~que foram expulsos. Lin Biao, cujo ELP dera um apoio crucial a Mao, fOI

um dos últimos. Em 1971, ele foi acusado de conspirar, juntamente com

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seu filho, um oficial do ELP, para assassinar Mao. Com a mulher e essefilho, Lin Biao seguiu às pressas para um aeroporto, no meio da noite, econfiscou um avião. Eles tentaram voar para a União Soviética, mas o aviãose acidentou na Mongólia, muito provavelmente por falta de combustivel.v'Em um período anterior da Revolução Cultural, Lin Biao assumira alugarde Liu Shaoqi como aparente herdeiro de Mao, mas essa sempre fora urriaposição perigosa para se ocupar. Muitos anos depois de sua morteç Lirrainda era denunciado em reuniões orquestradas na China. O próprio LiuShaoqi havia sido o alvo mais importante da primeira e mais maníaca faseda Revolução Cultural, entre 1966 e 1969. Afastado do governo em 1967, elemorreu em prisão domiciliar, em 1969. Havia sido denunciado formalmentecomo "traidor, renegado e desprezível". Sua esposa, Wang Guangmei, ficou12 anos presa. Depois da morte de Mao, Liu foi postumamente reabilitado,sendo todas as acusações contra ele consideradas sem fundamento.

Morreram muito menos pessoas durante a "Grande Revolução ProletáriaCultural" do que durante o Grande Salto para Frente. Isso, em parte porquea Revolução Cultural afetou principalmente a população urbana, quando amaioria das pessoas - cerca de 620 milhões no fim dos anos 1960 - aindavivia no interior." Mas estima-se que pelo menos meio milhão das cerca de137 milhões de pessoas que moravam nas cidades morreram como resultadodireto da Revolução Cultural." O expurgo político de dirigentes foi, emtermos percentuais, ainda maior do que aquele realizado por Stalin entre1936 e 1938, embora na China uma proporção menor tenha sido executa-da ou presa. Entre 60 e 70 por cento dos dirigentes de órgãos centrais doPartido Comunista foram afastados. Dos 13 membros do Secretariadodo Comitê Central em 1966, apenas quatro ainda estavam ali em 1969, eapenas 54 dos 167 membros do Comitê Central mantinham seus cargos.Metade dos ministros do Conselho do Estado perdeu seu cargo. Muitosdesses dirigentes afastados do governo e de órgãos centrais e regionais dopartido foram enviados para "escolas de oficiais" no interior, onde tiveramque se submeter a uma reeducação ideológica intercalada com duro trabalhofísico. Alguns, porém, tiveram um tratamento pior, sendo espancados até amorte ~u torturados. Wu Han, o escritor cuja desgraça Jiang Qing organi-zou, fOI um dos que tentaram se suicidar." Deng Xiaoping foi denunciadocomo "capitalista infiltrado" (descrição que era um exagero grosseiro naépoca, mas que poderia ser considerada como tendo uma fração de verdadequando ele deteve o poder supremo, uma década e meia depois) e demitidode todos os seus cargos. Foi enviado para trabalhar como montador em

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uma fábrica, função para a qual tinha qualificação, ainda que ultrapassada,já que durante seus estudos na França, quarenta anos antes, ele trabalharaem meio expediente fazendo isso em uma fábrica da Renault. O filho maisvelho de Deng ficou inválido para o resto da vida ao pular da janela de umdormitório em um andar superior da Universidade de Beijing, na tentativade fugir de Guardas Vermelhos que o perseguiam."

Na verdade, foram as escolas e universidades que sofreram os pioresefeitos da Revolução Cultural. Milhões de professores foram ridicularizadospublicamente e universidades ficaram fechadas vários anos, a partir de 1966,de modo que os estudantes podiam participar do processo revolucionáriocomo Guardas Vermelhos. De início, a maioria dos jovens que participouacreditava realmente que acontecia uma "purificação" da revolução e, comuma fé implícita, acreditava na sabedoria de Mao Zedong. A destilação dospensamentos de Mao no onipresente Pequeno Livro Vermelho se tornouuma leitura obrigatória, e não apenas para os estudantes. (Lembro-me bemque no ano acadêmico que passei na Universidade do Estado de Moscou,em 1967-68, vi diplomatas da embaixada chinesa caminhando em fila in-diana, com uniforme de estilo Mao, cada um deles lendo o Pequeno LivroVermelho enquanto caminhava.) Os tumultos no sistema educacional chinêscontinuaram na primeira metade dos anos 1970, e muitos ex-Guardas Ver-melhos transferidos para o interior tiveram, com sua educação interrompidapor mais de uma década, bastante tempo para se arrepender de seu fervorrevolucionário na juventude.

CONSEQUÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS NA CHINA

Mesmo quando Mao Zedong ainda era vivo, houve uma reavaliação parcialda Revolução Cultural. Em 1975, Mao estava usando a fórmula de que elahavia sido 70 por cento um sucesso e 30 por cento um fracasso." Depoisde ele se pronunciar, era preciso coragem para discordar. Deng Xiaoping,que fora levado de volta à liderança como vice-prernier, viu-se, porém, sobataque, devido à sua compreensível relutância em concordar que a RevoluçãoCultural era - considerando tudo - uma história de sucesso. Deng teveque fazer uma aurocrítica, mas o que disse estava longe de satisfazer Mao.Foi afastado mais uma vez, depois de atribuir seus erros a "uma profundaincapacidade de compreender o que era a Revolução Cultural't.ê"

Em 1975, além de insistir que a Revolução Cultural fora bem-sucedida,Mao criticou 0 íacciosismo dentro do Partido Comunista, inclusive a fac-

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çã.o mais fanaticamente envolvida na revolução, da qual sua mulher, JiangQing, era membro. Mao descreveu os círculos internos do partido comoa "?angue dos Quatro" - expressão que depois de sua morte se tornariam_ulto m~ls !a~osa do que ele pretendia. (A relação de Jiang com Maonao era tao mtima quanto seu status de esposa sugeria. Uma das funçõesdo c~efe de segurança de Mao, general Wang Dongxing; era garantir um,s.upnmento constante de mulheres jovens, cujos serviços' sexuais 'er~m ~ii-lizados pelo "Grande Timoneiro". Elas eram eufemisticari1ent~ conh~'cidascomo a "Trupe do Trabalho Culrural't}" Além de Jiang Qing, compunhama ?a~gue dos Quatro Wang Hongwen, um líder trabalhista radical nospnmelfo,s anos da Revolução Cultural, e que nos anos 1970 era consideradoum possl.vel.sucessor de Mao; Yao Wenyan, crítico literário de Xangai quefora? .pnnclpal autor do ataque (por ordem de Jiang Qing) à peça Hai Ruidemltz~o do governo; e Zhang Chunquiao, um veterano propagandista de~an~a.1 que em meados dos anos 1970 era presidente do Comitê Revolu-cionario de Xangai e vice-premier do Conselho do Estado.

A Revolução Cultural foi um desastre pessoal para milhões de chine-s~s.. Quanto mais instruídos eles eram, mais provavelmente se tornavamvltJ~as. Em quase t~dos os aspectos, aquela foi também uma RevoluçãoAntlCultural, na medida em que envolveu a injustificável destruição, pelosGuardas Verm~lhos (frequentemente agindo por iniciativa própria), de ar-t:~atos .cu!t~rals~ fossem livros, pinturas, obras de museus, cemitérios ou~ltlOs~lstoncos.)2 Já em 1966 os Guardas Vermelhos haviam sido, porém,IncentIvados a atacar os "Quatro Velhos". Os velhos pensamentos, a velhacultura, os velhos costumes e os velhos hábitos tinham que ser eliminados.r'Aparentem~nte, u~a das coisas que motivou Mao a lançar a RevoluçãoCult.ural fOIo de~eJ~de garantir seu legado. Ele queria ser seguido e reve-renciado p~r radicais, e não por "revisionistas".54 Entretanto, o desastreda Revoluçao Cultural, que rapidamente se seguiu ao desastre ainda maiordo ~rande Salto para Frente, ajudou a assegurar o triunfo do que ele teriaconsiderad., um revisionismo extremo.

, De fato, a Revolu?ãO Cultural teve consequências não intencionais queacabaram sendo benéficas para a China, por mais trágico que tenha sido opreço. alto p~go pel~ ressu~gimento do bom-senso. Um motivo importantepel~_qual f?,1~uas~ Impossível realizar uma reforma econômica radical naUnz~o SOVte~l~a ~o~a força dos grupos de interesse - a começar pela buro-cracia ~os mllllstenos_econômicos e das organizações regionais do partido.

"Na Chma, a Revoluçao Cultural rompeu totalmente essas estruturas, que

nunca recuperaram completamente sua antiga coerência e dominação. As-sim, a resistência burocrática à reforma do mercado foi muito mais fraca doque teria sido quando a inovação econômica foi empreendida seriamente,depois da morte de Mao Zedong. Além disso, a campanha contra O "revi-sionismo" levara a extremos tão irracionais, que os fanáticos da RevoluçãoCultural logo se viram na defensiva quando seu mentor e protetor, Mao, jánão estava ali. A Gangue dos Quatro foi detida em 6 de outubro de 1976,menos de um mês depois da morte de Mao, e mantida presa durante quatroanos, até ser levada a julgamento em 1980. Foi acusada de causar a mortede quase 35 mil pessoas. Dois de seus membros - a viúva de Mao, JiangQing, e Zhang - foram condenados à morte, pena que mais tarde seriacomutada.v A publicidade dada aos crimes do grupo ajudou a desacreditarainda mais o extremismo da Revolução Cultural e a reabilitar funcionários,incluindo aqueles de tendência reformista, que haviam sido perseguidosnaqueles anos. A liderança do partido não pôde se permitir desacreditarMao de maneira abrangente, porque ele era o Lenin e também o Stalin de-les. Uma parte grande demais da legitimidade do regime Comunista teriasido perdida se eles tivessem feito isso. Entretanto, uma "Resolução sobrea História do Partido", feita pelo Comitê Central, não se furtou a atribuira Mao a responsabilidade final pela década desastrosa de meados dosanos 1960 a meados dos anos 1970, sem chegar ao ponto de transformara Gangue dos Quatro na Gangue dos Cinco. O documento observou: "A'Revolução Cultural', que durou de maio de 1966 a outubro de 1976, foiresponsável pelos reveses mais sérios e pelas perdas mais pesadas sofridospelo Partido, O Estado e o povo desde a fundação da República Popular.Foi iniciada e liderada pelo Camarada Mao Zedong."56

A influência da ideologia Comunista jamais poderia voltar a ser a mes-ma na China. Nem o marxismo-leninismo, nem o Pensamento de MaoZedong - embora a retórica sobre eles continuasse - dominavam a mentedas pessoas como acontecera antes e, de maneira extrema, nas' primeirasfases da Revolução Cultural. O utopismo estava fora, o pragmatismo estavadentro. Na verdade, quase tudo o que Mao quisera destruir para sempre,e que constituíra sua principal motivação para lançar e continuar a Revo-lução Cultural, recebeu um novo impulso na reação contra o tumulto e aarbitrariedade da "Última Revolução de Mao",57 Os antigos dirigentes querecuperaram seus cargos, depois de sofrerem em graus diversos nas mãosdos fanáticos revolucionários de sua própria geração, e ainda mais com ofanatismo jovem dos Guardas Vermelhos, uniram-se em sua determinação

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de nunca mais se sujeitar a tamanho extremismo e insubordinação. (Experi-ências recentes sobre o que os jovens poderiam fazer quando aparentementerecebessem liberdade para fazer o que quisessem não serviram, porém,para levar aqueles que foram reintegrados a se inclinar para a democraciapolítica.) Embora muitos chineses continuassem a acreditar que Mao, aolongo de sua extensa carreira de revolucionário e governante, tivesse feitomais bem do que mal, ele deixou de ser endeusado. Tanto MaQ quanto oPensamento de Mao Zedong haviam sido secularizados.

muito tempo um absurdo que o país já não estivesse ali. O maior obstáculoeram os Estados Unidos - daí as tentativas de abertura chinesa junto aogoverno Nixon, às quais o presidente Richard Nixon e seu ~ecretário deEstado, Henry Kissinger, responderam. Embora o reconhecimento ame-ricano à China tenha sido pouco mais do que um tardio reconhecimentodo óbvio, e apesar de o encontro de Nixon com Mao Zedong em 1972 tersido menos importante do que Nixon e Kissinger fizeram parecer, o fatode um presidente republicano - e que durante o período do macartismoperseguira os Comunistas - ter tomado a iniciativa mudou os contornos

da diplomacia internacional.t"Desse momento em diante, os Estados Unidos puderam tentar jogar a

"carta da China" contra a União Soviética, embora isso fosse acabar nãotendo qualquer importância na época em que as relações entre os EUA e aUnião Soviética melhoraram de maneira mais significativa - na segundametade dos anos 1980. Historicamente, a ruptura sino-soviética foi umaconJecimento muito mais importante do que o desenvolvimento da relação1e ·tr~balho sino-americana. Esta estava atrasada e fazia sentido. Muitasiezes, porém, envolveu hipocrisia dos dois lados, sendo a União Soviéticamuito mais castigada - durante os governos de vários sucessores de Nixon_ do que a China por seu desempenho em direitos humanos. Isso, emborao currículo da China de repressão e intolerância fosse - principalmenteno período de Mao - muito pior até mesmo que o de Brejnev na Rússia.

CONSEQUÊNClAS NÃO INTENCIONAIS INTERNACIONAIS

Mesmo durante o período de Mao Zedong, houve um recuo em relação aalgumas das desordens violentas produzidas pela Revolução Cu ltural. Maoteve que recorrer aos serviços do ELP para conter os excessos mais ferozesdos Guardas Vermelhos. Mas foi na política externa que ele reverteu o cursode maneira mais espetacular. Depois de criticar e ridicularizar a liderançasoviética por ser branda em sua atitude com a potência arqui-imperialista, osEstados Unidos, Mao começou, em 1970-71, a enviar sinais a Washingtonde que uma relação menos antagonista seria bem-vinda. Em 1969, a Chinachegara mais perto do que nunca de uma guerra contra a União Soviética, eter relações igualmente ruins com as duas superpotências parecia desacon-selhável. A Revolução Cultural exacerbara o conflito sino-soviético. Uniraa maior parte do sistema soviético - fosse'm Comunistas reformistas ouconservadores - contra a China, que os fazia lembrar do Grande Terrordos anos 1930. De fato, uma das consequências não intencionais dos acon-tecimentos na China para a política soviética foi que, em uma época em quea liderança de Brejnev interrompera as críticas a Stalin, diversos escritoressoviéticos antistalinistas - totalmente "revisionistas" - publicaram livrose artigos aparentemente sobre Mao e a China, mas que seus leitores maisperspicazes perceberam que eram sobre Stalin e a União Soviética. Assimcomo a "Iugoslávia" serviu por algum tempo como União Soviética, napolêmica com a China, e a "Albânia", nas respostas soviéticas, substituiua China, Mao se tornou um substituto de Stalin e os escritos sobre ele setornaram uma maneira de pressionar por moderação, reformas e um Estadode direito na URSS.5~

Consciente de seu isolamento internacional no início dos anos 1970,a liderança chinesa começou a demonstrar um novo interesse em receberum lugar nas Nações Unidas. Na maior parte do mundo, considerava-se há