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1 Evolução dos orçamentos públicos de cultura no Brasil do Século XXI 1 Álvaro Santi 2 RESUMO: O estudo analisa séries históricas de dados da contabilidade pública do Brasil, do início deste século, sobre os gastos na Função Cultura, em termos globais e por esfera de governo (União, estados e municípios). São comparados dados das 27 Unidades da Federação e das capitais, que apresentam notáveis disparidades entre si. No conjunto, houve aumento dos recursos em termos percentuais e, em valores, o aumento superou a inflação. Destaca-se no período o incremento de recursos federais, embora o montante destes ainda seja muito inferior ao gasto dos municípios, que permanece sendo a fonte principal. Dentre estes, houve aumento na participação do interior em relação às capitais. Recursos destinados à Subfunção Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico são particularmente escassos e irregulares. Variações extremas entre os diversos estados e capitais sugerem a necessidade de se estabelecerem patamares mínimos, visando ao bom funcionamento do Sistema Nacional de Cultura, bem como uma melhor definição das atribuições de cada esfera de governo no setor. PALAVRAS-CHAVE: Contas públicas, Orçamento público, Função Cultura, Subfunção Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico, Sistema Nacional de Cultura. A gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura do Brasil (MinC) (2003- 2008) constituiu um marco divisório das políticas do Estado brasileiro para este setor. Datam deste período um conjunto de ações e programas estruturantes, em cuja gestação colaboraram diversos atores sociais de artistas a gestores, de empresários a acadêmicos alcançando-se “um novo e promissor patamar das políticas culturais nacionais” (Rubim, 2010). 1 Uma versão deste artigo foi apresentada no VI Seminário Internacional de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 28/5/2015, em relação à qual a presente versão atualiza dados referentes aos balanços públicos disponibilizados posteriormente pelo Tesouro Nacional. 2 Prefeitura de Porto Alegre/Observatório da Cultura. Mestre em Letras e Bacharel em Música (UFRGS). [email protected] . Colaboraram Giovana Smialowski e Camila Justi Coan.

Evolução dos orçamentos públicos de cultura no Brasil do Século XXI

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Evolução dos orçamentos públicos de cultura no Brasil do Século XXI1

Álvaro Santi2

RESUMO: O estudo analisa séries históricas de dados da contabilidade pública do Brasil, do início deste século, sobre os gastos na Função Cultura, em termos globais e por esfera de governo (União, estados e municípios). São comparados dados das 27 Unidades da Federação e das capitais, que apresentam notáveis disparidades entre si. No conjunto, houve aumento dos recursos em termos percentuais e, em valores, o aumento superou a inflação. Destaca-se no período o incremento de recursos federais, embora o montante destes ainda seja muito inferior ao gasto dos municípios, que permanece sendo a fonte principal. Dentre estes, houve aumento na participação do interior em relação às capitais. Recursos destinados à Subfunção Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico são particularmente escassos e irregulares. Variações extremas entre os diversos estados e capitais sugerem a necessidade de se estabelecerem patamares mínimos, visando ao bom funcionamento do Sistema Nacional de Cultura, bem como uma melhor definição das atribuições de cada esfera de governo no setor. PALAVRAS-CHAVE: Contas públicas, Orçamento público, Função Cultura, Subfunção Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico, Sistema Nacional de Cultura.

A gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura do Brasil (MinC) (2003-

2008) constituiu um marco divisório das políticas do Estado brasileiro para este setor. Datam deste período um conjunto de ações e programas estruturantes, em cuja gestação

colaboraram diversos atores sociais de artistas a gestores, de empresários a acadêmicos

alcançando-se “um novo e promissor patamar das políticas culturais nacionais” (Rubim, 2010).

1 Uma versão deste artigo foi apresentada no VI Seminário Internacional de Políticas Culturais da Fundação

Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 28/5/2015, em relação à qual a presente versão atualiza dados

referentes aos balanços públicos disponibilizados posteriormente pelo Tesouro Nacional. 2 Prefeitura de Porto Alegre/Observatório da Cultura. Mestre em Letras e Bacharel em Música (UFRGS).

[email protected]. Colaboraram Giovana Smialowski e Camila Justi Coan.

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Entre essas iniciativas, destacam-se a realização da primeira Conferência Nacional de Cultura (2005); a instalação do Conselho Nacional de Política Cultural (2007) e de seus órgãos colegiados setoriais; a aprovação do primeiro Plano Nacional de Cultura (PNC), sob a forma da Lei 12.343/2010; o Programa Cultura Viva, também fixado em lei recentemente; e a aprovação da Emenda Constitucional 71/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Cultura (SNC).

Passada mais de uma década do início deste processo, renovaram-se os discursos e abordagens do poder público sobre a cultura, assumindo crescente relevo (e suscitando debates) expressões como diversidade cultural, cidadania cultural, patrimônio imaterial, economia criativa e mesmo política cultural.

Para a continuidade e institucionalização dessas políticas, restam ainda por vencer enormes desafios, como assegurar patamares mínimos de recursos orçamentários e reformular os perversos mecanismos de renúncia fiscal, fixados pelas Leis Rouanet e do Audiovisual, ambos objeto de proposta do Executivo em tramitação no Congresso, sob pena de perpetuar-se o conflito entre tais políticas e seus modos de financiamento (Rubim, 2010).

Também são ainda escassos e incipientes os mecanismos de avaliação e monitoramento das políticas de cultura, em todas as esferas de governo. Na ausência de metas e indicadores para a maioria das ações – ainda que eventualmente constem em convênios ou outros documentos oficiais, para legitimar ações, sob acordo tácito de não serem levados a sério – e de políticas para a coleta, armazenamento e publicação regular de dados que permitam avaliar o seu sucesso em termos dessas metas (e não da

repercussão midiática), gestores, cidadãos e pesquisadores têm de se contentar com os três dados geralmente disponíveis: número de eventos, público participante e dinheiro gasto.

Este último dado é brandido amiúde pelas autoridades como suposto indicador de reconhecimento da importância da cultura. Analisado friamente, contudo, tal discurso

equivale – como bem notou Fonseca (2007) ao de um gestor da área da saúde que se orgulhasse da quantidade de medicamentos que adquiriu e distribuiu, mas nada soubesse do seu efeito sobre a saúde da população.

Ainda que tal situação seja deplorável, merecendo urgente reparo, e feita a ressalva sobre a limitação dos dados disponíveis, julgamos entretanto ser de interesse público a análise da evolução dos recursos executados em cultura pelas três esferas de governo, senão por outro motivo (como adiante se verá), pela importância de se dispor de patamares orçamentários mínimos, destinados com regularidade e executados sem oscilações extremas ou contingenciamentos imprevisíveis, permitindo assim o planejamento a médio e longo prazo, com a crescente institucionalização de políticas de Estado, em substituição a ações esporádicas.

Esta pesquisa foi possível graças à disponibilização, pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) do Ministério da Fazenda, dos dados de execução orçamentária de Estados, Municípios e União, desagregados por função de governo, tendo sido desmembrada a função Cultura a partir do ano 2000 para a União e de 2002 para as demais esferas (até então agrupada em “Educação e Cultura”). A partir de 2004, encontram-se desagregados os dados da função Cultura nas sub-funções "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico" (que abordaremos adiante), “Difusão Cultural”, e “Outras”. Parte dos dados que aqui analisamos foram por nós antecipados no blog do Observatório da Cultura.3

Evolução por esfera de governo

Tomemos inicialmente a evolução do gasto público em cultura, total e por esfera de governo, em termos percentuais (Fig. 1).

3 http://culturadesenvolvimentopoa.blogspot.com

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Figura 1: Evolução do percentual dos orçamentos aplicados na função Cultura, 2000-20134.

Setor público e por esfera de governo. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

Na estrutura do Estado brasileiro, capilarizada em mais de 5 mil municípios, a União concentra a maior fatia do gasto público, tendo executado em 2013 cerca de R$ 1,93 trilhão, ou 71,3% do gasto total, que foi de R$ 2,7 trilhões. Em segundo lugar, bem distante do primeiro, vêm os estados e Distrito Federal (DF), que gastaram juntos R$ 400 bilhões (14,8% do total), seguidos de perto pelos municípios, responsáveis por R$ 375 bilhões (13,9%). Não obstante, foram estes que mais destinaram recursos à cultura, em termos percentuais, conforme evidencia a Fig. 1. Embora o percentual aplicado pela União tenha aumentado de forma sustentada (ultrapassando pela primeira vez a marca de 0,1% em 2012), a média federal para o período 2003-2013 foi de apenas 0,07%, quinze vezes menor do que a dos municípios, de 1,04%. A média dos estados ficou em 0,43%.

No quadro atual, portanto, somente os municípios (considerados em média) atingem o percentual proposto como parâmetro mínimo pelo Executivo, através da Emenda Constitucional 150/2003, em tramitação no Congresso Nacional, que seria de 2% para União; 1,5% para estados e DF; e 1% para municípios. Sua aprovação nesses termoso obrigaria os estados a multiplicarem seus orçamentos de cultura. Caso ela venha a ser aprovada nesses termos, os estados e DF teriam de triplicar seus orçamentos de cultura (considerando os 0,47% gastos em 2013); enquanto a União, que alcançou 0,12% em 2013, precisaria multiplicar seu orçamento por 16.

4 Os dados da função Cultura para a União estão disponíveis a partir de 2000; para estados e municípios, a partir de 2002. O

dado de 2002 para o gasto de cultura dos estados, fornecido pela base Consolidação das contas públicas (utilizada para este gráfico) foi descartado da série, devido à grande divergência (76% maior) em relação à soma dos gastos dos estados e DF,

apurada com base nos dados da base Execução Orçamentária dos Estados para cada estado.

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Figura 2: Repartição do gasto público entre as esferas de governo, 2013. Fonte: Minfaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

Em consequência, conforme vemos na Fig. 2, são os governos municipais que

respondem pela maior parcela, em valores absolutos, dos R$ 7,87 bilhões de recursos públicos destinados em 2013 para a cultura, sendo responsáveis por R$ 3,64 bilhões, contra R$ 1,88 bilhões dos estados e DF, e R$ 2,35 bilhões da União. Essa repartição, contudo, vem se modificando ao longo do tempo, no sentido de um maior equilíbrio entre as esferas, principalmente devido ao aumento dos recursos federais, conforme vimos na Fig. 1. Ao longo de uma década, a União quase triplicou sua participação, que em 2003 era de apenas 10,8%, contra 54,2% dos municípios e 35% dos estados e DF.

Figura 3: Crescimento percentual do gasto público em cultura, por esfera de governo, comparado ao crescimento da despesa total, 2003-2013. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas

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No cômputo geral, ao longo de uma década, cresceu o financiamento público à cultura, pois enquanto o gasto público total cresceu 126%, a despesa em cultura aumentou mais que o dobro, 268% (Fig. 3). Descontada a inflação, medida pelo IPCA em 71 % (dez. 2003 a dez. 2013), os aumentos reais foram, respectivamente, de 55% e 197 %, ou seja, o gasto público em cultura quase triplicou, em valores reais. Ao olharmos separadamente os dados de cada esfera, destaca-se o orçamento federal como principal responsável por este incremento, tendo aumentado em 915%, muito acima do total da despesa federal (120%). Nos estados e municípios, o gasto em cultura aumentou bem menos do que na União: 152% e 214%, respectivamente. Ainda assim, o aumento dos estados ficou bem acima do crescimento da despesa total (89%), fato que não ocorreu nos municípios, cuja despesa total aumentou em 231%.

Situação dos estados e DF

Passemos à comparação do desempenho entre os estados e DF, segundo o percentual aplicado em cultura em relação ao orçamento total, sintetizada na Fig. 4 (onde cores distintas identificam as regiões a que pertencem).

0,0%

0,2%

0,4%

0,6%

0,8%

1,0%

1,2%

AM

PA

DF

BA

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Esta

do

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RS

RO

Figura 4: Estados e DF: Percentual da despesa total executada na função cultura, 2002-2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução Orçamentária dos Estados.

Tomados em conjunto, estados e DF gastaram em média 0,43% de seus orçamentos em cultura, no período 2002-2013. Nenhum deles, individualmente, atingiu o percentual mínimo proposto na Emenda Constitucional 150/2003, de 1,5%. Destaque para a Região Norte, a que pertencem os dois estados líderes: Amazonas, com 1,15% e Pará, com 0,97%. Outros dois dessa Região, Acre e Amapá, estão entre os nove que gastaram mais que a média. Completam a parte de cima do ranking o Distrito Federal, São Paulo e três estados da Região Nordeste (Bahia, Maranhão e Rio Grande do Norte). Outros seis estados dessa região gastaram menos que a média, assim como os da região Sudeste (com exceção de SP), Centro-Oeste (com exceção do DF) e todos da região Sul.

Independente de considerarmos os valores dos atuais orçamentos justos ou suficientes para atender às políticas do setor cultural, chama a atenção a enorme disparidade entre os estados, sendo o maior percentual (Amazonas, com 1,15%) dez vezes superior ao menor (0,11%, no estado vizinho de Rondônia). Comparando-se os valores per capita, as desigualdades são ainda maiores. Por exemplo, em 2013, último ano da série, em

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que o gasto médio por habitante foi de R$ 13,44, o Distrito Federal gastou R$ 75,03 por habitante, 34 vezes mais do que o estado vizinho de Goiás (R$ 2,17).

0,20%

0,30%

0,40%

0,50%

0,60%

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Figura 5: Estados e DF: Percentual médio do orçamento executado na Função Cultura, 2002-2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução Orçamentária dos Estados.

A média dos orçamentos de estados e DF ao longo do período (Fig. 5) evoluiu positivamente, se considerarmos a diferença entre o último valor da série, 0,42%, e primeiro, 0,38%. Contudo, após atingir o pico de 0,52% em 2010, seguiram-se três anos consecutivos de queda, o que torna arriscado inferir desses dados qualquer tendência a longo prazo.

Situação das capitais

A seguir, compilamos os dados dos orçamentos das capitais entre 2002 e 2012, conforme disponibilizado pelo Tesouro nas bases de dados Finbra. No último ano desse período, o gasto em cultura das 26 capitais alcançou R$ 1,1 bilhão, representando 1,02% da soma das despesas totais desses municípios, que foi de R$ 108,5 bilhões.

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Figura 6: Capitais, segundo percentual da despesa total aplicado na função cultura, 2002-2012. Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

Assim como nos estados, os orçamentos de cultura das capitais apresentaram extrema variação entre si, em termos percentuais (Fig. 6), chegando a dez vezes a diferença entre o maior (Recife, com 2,32%) e o menor (Salvador, com 0,22%). Menos da metade das capitais (10 de 26) atingiram o patamar de 1%, proposto pela PEC 150; enquanto outras três não alcançaram sequer 0,5%.

Figura 7: Capitais: Evolução do percentual da despesa total aplicado em cultura. 2002-2012.

Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

Considerados em conjunto, ao longo do período enfocado, os orçamentos de cultura das capitais oscilaram em torno do 1%. Sua evolução, vista na Fig. 7, assim como a dos estados, não permite vislumbrar uma tendência de longo prazo.

Municípios do interior x capitais

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Figura 8: Crescimento da despesa de cultura das capitais x municípios, 2002-2012. Fonte: MinFaz/STN. Finbra e Consolidação das Contas Públicas.

No âmbito dos municípios, outro aspecto interessante a analisar é o peso relativo das capitais no conjunto da despesa de cultura (Fig.8). Na comparação, observa-se que a despesa do conjunto dos municípios cresceu em ritmo maior do que a das capitais, inclusive as relacionadas à cultura. Enquanto a despesa total municipal cresceu, entre 2002 e 2012, de R$ 83,7 para R$ 341 bilhões (307%), os gastos em cultura acompanharam esse crescimento, saltando de R$ 870 milhões para R$ 3,57 bilhões (309%)5. Já nas capitais, não se manteve essa paridade: enquanto a despesa total cresceu de R$ 31,5 para R$ 108,6 bilhões (244%), os gastos em cultura subiram apenas 208% (de R$ 360 para R$ 1,1 bilhões). Em suma, num período em que a despesa total do conjunto de municípios cresceu mais do que a das capitais, estas apresentaram redução dos gastos de cultura em percentuais da despesa total, o que não ocorreu nos municípios em geral.

Figura 9: Participação das capitais no total das despesas e nas despesas em cultura dos municípios, 2002-2012. Fonte: MinFaz/STN: Finbra e Consolidação das Contas Públicas.

A Fig. 9 mostra a progressiva redução da parcela das capitais na despesa pública municipal como um todo, bem como no tocante às despesas em cultura. Em 2002, o orçamento de cultura das capitais representava 41,2% do gasto de todos os municípios nessa área. Já em 2012, caiu para 31%, demonstrando aumento da participação dos municípios do interior, significativo para o período de uma década.

Subfunção Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico

A partir de 2004, os dados do Tesouro referentes à execução orçamentária da função Cultura encontram-se desagregados em três sub-funções: Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico; Difusão Cultural e Outras Sub-funções. Uma leitura rápida permite constatar que a esmagadora maioria das despesas classifica-se como Difusão. Sendo, assim, sempre insuficientes os recursos para as sempre urgentes e crescentes ações relacionadas ao patrimônio cultural (como de resto é do conhecimento de quantos atuam no setor), é nesta subfunção que vamos nos deter a seguir.

5 Note-se que o período analisado aqui difere do da Fig. 3 (2003-2012), daí a divergência entre os percentuais.

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-

50

100

150

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250

União:

Patrimônio

Hist. Art.

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ORÇAMENTO

União

Estados:

Patrimônio

Hist. Art.

Arqueol.

ORÇAMENTO

Estados

Municípios:

Patrimônio

Hist. Art.

Arqueol.

ORÇAMENTO

Municípios

Setor Público

- Patrimônio

Hist. Art.

Arqueol.

ORÇAMENTO

Setor público

%

Figura 10: Brasil: Crescimento do gasto público na subfunção "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico", por esfera de governo, comparado ao crescimento da despesa total, 2004-2012. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

O gasto público na subfunção Patrimônio também evoluiu positivamente, seguindo, na soma das três esferas, a tendência de aumento relativo verificada nos orçamentos para a cultura, ainda que de maneira mais branda. Enquanto a despesa com patrimônio subiu 139%, o gasto público total cresceu 119% (Fig. 10). Descontada a inflação de 50,2% (IPCA entre dez. 2004 e dez. 2012), o crescimento real ficou em 89% e 69%, respectivamente. Aqui, no entanto, tendo crescido os percentuais de cultura dos estados e da União, houve notável redução na fatia dos municípios que, embora tenham quase triplicado seu orçamento em valores nominais, aumentaram em apenas 71% os gastos em cultura, ainda assim acima da inflação.

Figura 11: Evolução do percentual dos orçamentos aplicados na subfunção "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico", 2004-2012. Setor público e por esfera de governo. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

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Contudo, a evolução desses dados, dispostos na Fig. 11, não é tão animadora como com os mostrados na Fig. 1, sobre os orçamentos da função cultura, no que se refere a tendências de aumento a longo prazo. O aumento do percentual federal para o patrimônio, de 0,007% para 0,010% é muito menos significativo do que o observado no orçamento federal da função cultura. Já os municípios reduziram drasticamente seus gastos em patrimônio do primeiro para o segundo ano da série, de R$ 114 milhões (0,098% da despesa total) para R$ 61 milhões (ou 0,052%), permanecendo até o final em percentuais semelhantes a este; enquanto os estados, após período de aumento constante entre 2006 e 2010, quando chegaram a ultrapassar o percentual dos municípios, apresentaram redução nos dois exercícios seguintes.

Figura 12: Brasil: Repartição do gasto público na subfunção "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico", por esfera federativa, 2002-2012. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.

No tocante à repartição dos gastos entre as esferas de governo (Fig. 11), de um total de R$ 631,8 milhões despendidas na Subfunção em 2012 – cerca de 10% do gasto na função Cultura daquele ano – a maior parte (R$ 246 milhões, ou 39%), veio dos estados e DF, que aumentaram sua participação no período (eram 31,3% em 2004). Também houve aumento na fatia da União: de 25,2% para 29,9%. Já a participação dos municípios caiu significativamente no período, de 43,5% para 31,1%.

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0,05%

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Figura 13: Estados, por percentual do orçamento aplicado na subfunção "Patrimônio histórico, artístico e arqueológico", 2002-2013. Fonte: MinFaz/STN: Execução Orçamentária dos Estados.

A disparidade entre os orçamentos dos estados e DF, mostrada na Fig. 12, é ainda

mais gritante do que a verificada na função Cultura (Fig.4). Somente três estados –

Amazonas, Pará e Bahia superaram 0,1%, enquanto três outros (excluídos do gráfico) não registraram quaisquer despesas na subfunção: Mato Grosso do Sul, Paraná e Roraima. Outros 17 ficaram abaixo da média, de 0,041%. Os mesmos dois estados da Região Norte, Amazonas e Pará, lideram novamente; com destaque também para a região Sudeste, que tem São Paulo e Espírito Santo bem posicionados. Tomando-se os valores de 2013 como referências, o gasto médio por habitante dos estados foi de R$ 1,53, sob a liderança isolada do Amazonas, com R$ 12,32. Apenas sete estados gastaram mais de R$ 1 por habitante, enquanto dez gastaram menos de um centavo.

Figura 14: Capitais, segundo percentual aplicado na subfunção Patrimônio Artístico, Histórico e Arqueológico. 2004-2012. Fonte: Minfaz/STN. Finbra.

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Na Fig. 14, vemos os gastos das capitais na subfunção Patrimônio, cuja média ficou em 0,048%. Esse valor difere pouco da média dos estados, referida acima, porém uma vez mais, há enorme variação entre os extremos. Destaca-se na liderança a capital catarinense, com 0,23%, seguida por Belém e Recife. Das 26 capitais, 21 não atingem 0,1%; nove não atingiram sequer 0,01%, das quais duas (excluídas do gráfico) não destinaram um centavo ao Patrimônio em oito anos: Teresina e Salvador (esta última particularmente notável por seu patrimônio arquitetônico colonial).

Conclusões e desdobramentos

Em suma, os dados aqui reunidos demonstram uma tendência global de aumento nos recursos destinados à cultura, em todas as esferas, em parte condizente com os avanços institucionais observados no plano federal, cuja disseminação vem sendo estimulada pelo MinC através do SNC. Ainda que em si não bastem, como afirmamos, para verificação do sucesso, prestígio ou permanência das políticas públicas de cultura, oferecem um patamar mínimo de informação ao debate sobre como essas políticas podem ser planejadas, avaliadas e aperfeiçoadas.

Uma última ressalva diz respeito ao fato das despesas relativas à cultura, realizadas pelos governos estaduais e municipais através de variados órgãos e divisões, serem classificadas também de diversas formas, ora como “cultura”, ora como “turismo”, “comunicação” ou mesmo “educação”, na elaboração dos orçamentos e balanços públicos, aspecto que recomenda cautela no uso das comparações aqui estabelecidas, sujeitas a revisão por investigações mais detalhada.

Julgamos oportuno sugerir questões interessantes que emergem dos dados apresentados, a requerer estudos que transcendem os limites deste trabalho. Uma delas é a aparente falta de relação direta (que o senso comum tende a estabelecer), entre os níveis de riqueza e do investimento em cultura. Igualmente interessante podem ser os resultados de cruzamentos dos dados acima com indicadores de desenvolvimento humano, desigualdade ou violência, entre outros, no quadro de uma possível tendência de fortalecimento do papel dos municípios do interior em relação às capitais, conforme indicam os dados que analisamos. Em relação às notáveis desigualdades entre os gastos dos diferentes estados e capitais, há indícios de que elas ocorrem também ao longo do tempo, sujeitas a oscilações e descontinuidades devido às trocas de governo.

Outra hipótese a ser testada é a existência de relações de complementaridade entre os orçamentos dos estados e de suas capitais, tomando-se como exemplo Manaus, capital do estado com o maior orçamento percentual, que possui o quarto menor orçamento entre as capitais; e sua antípoda Boa Vista, dona do segundo maior percentual de cultura e capital de Rondônia, último colocado entre os estados. Outra relação de complementaridade poderia existir entre o volume de recursos orçamentários de determinado ente e aqueles oriundos de leis de renúncia fiscal, adotadas amplamente desde os anos 1990 pela União, estados e capitais6. Em outros casos pode se estabelecer, em vez de complementaridade, uma relação de competição entre governos de estados e suas capitais, especialmente quando administrados por partidos rivais, ambos em busca de dividendos políticos através do investimento em cultura.

Em artigo dedicado à arquitetura jurídico-política do SNC, Cunha Filho (2010), após constatar que a Constituição brasileira não atribuiu, no campo da cultura, competências específicas a cada esfera de governo, referindo-se em geral ao “Estado” ou ao “Poder Público”; aponta como o “grande desafio para os que entendem a importância e a necessidade da organização sistêmica das políticas culturais” a tarefa de “desenhar com a maior clareza possível as responsabilidades dos entes públicos”.7 Ou seja, a tarefa de

6 Com a dificuldade que em geral esses dados, com exceção dos referentes à União, não se encontram acessíveis

pela Internet. 7 No campo da educação, por exemplo, encontram-se definidas as competências de cada esfera de governo.

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planejamento ressente-se, ainda antes da falta de recursos, de uma definição clara das responsabilidades de cada ente federado, que precisa em alguma medida ser feita pela regulamentação do SNC.

O mesmo vale, em nossa opinião, para o estabelecimento de parâmetros mínimos de orçamento, em termos percentuais, buscando-se através da articulação entre os entes reduzir as enormes disparidades existentes, incompatíveis com os princípios do SNC, sob pena de estarmos multiplicando, de forma irresponsável, institucionalidades meramente decorativas, sem condições de desempenharem as funções que delas se esperam. Após mais de uma década de tramitação, não parece sensato depositar na PEC 150 – cuja

aprovação nos termos propostos multiplicaria por seis o orçamento público de cultura todas as esperanças de solução para a falta crônica de recursos. Resta porém saber como a União, ente com os menores percentuais de cultura, poderá exigir que estados ou municípios ampliem os seus, como condição para aderir ao SNC.

Referências

Brasil. Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Consolidação das contas públicas. Demonstrativos da despesa por função (Consolidado, União, Estados e Municípios). [Arquivo MSExcell] http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/balanco-do-setor-publico-nacional-bspn-. Acesso em 23 fev.2015.

. Execução Orçamentária dos Estados 1995-2013. [Arquivo MSExcell] http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/index.asp; http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/contas-anuais. Acesso em 23 fev.2015.

. Finanças do Brasil (Finbra). Dados contábeis dos municípios. [Arquivos MSAccess]

http://www3.tesouro.gov.br/estados_municipios/index.asp; http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/contas-anuais. Acesso em 23 fev.2015.

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