1. COMISSO NACIONAL DA VERDADE RELATRIO Volume II TEXTOS
TEMTICOS dezembro / 2014
2. 2014 Comisso Nacional da Verdade (CNV) Todos os direitos
reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde
que citada a fonte. COMISSO NACIONAL DA VERDADE Jos Carlos Dias Jos
Paulo Cavalcanti Filho Maria Rita Kehl Paulo Srgio Pinheiro Pedro
Bohomoletz de Abreu Dallari Rosa Maria Cardoso da Cunha Dados
Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da Comisso
Nacional da Verdade B823r Brasil. Comisso Nacional da Verdade.
Relatrio: textos temticos / Comisso Nacional da Verdade. Braslia:
CNV, 2014. 416 p. (Relatrio da Comisso Nacional da Verdade; v. 2)
ISBN 978-85-85142-56-8 (Coleo) ISBN 978-85-85142-58-2 (v. 2) 1.
Ditadura militar - Brasil. 2. Violao de direitos humanos. 3.
Relatrio final. I.Ttulo. CDD 323.81044
3. COMISSO NACIONAL DA VERDADE RELATRIO Volume II TEXTOS
TEMTICOS Jos Carlos Dias Jos Paulo Cavalcanti Filho Maria Rita Kehl
Paulo Srgio Pinheiro Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari Rosa Maria
Cardoso da Cunha dezembro / 2014
4. 7 NDICE APRESENTAO
.............................................................................................................................................9
Texto 1 - Violaes de direitos humanos no meio militar
................................................................................11
Texto 2 - Violaes de direitos humanos dos trabalhadores
.............................................................................57
Texto 3 - Violaes de direitos humanos dos camponeses
................................................................................91
Texto 4 - Violaes de direitos humanos nas igrejas crists
..............................................................................155
Texto 5 - Violaes de direitos humanos dos povos indgenas
.........................................................................203
Texto 6 - Violaes de direitos humanos na universidade
................................................................................265
Texto 7 - Ditadura e homossexualidades
..........................................................................................................299
Texto 8 - Civis que colaboraram com a ditadura
..............................................................................................313
Texto 9 - A resistncia da sociedade civil s graves violaes de
direitos humanos...........................................341
5. 9 Apresentao O presente volume do Relatrio da Comisso
Nacional da Verdade contm um conjunto de textos produzidos sob a
responsabilidade individual de alguns dos conselheiros da Comisso.
Inclusive parte desses textos foi elaborada a partir da atividade
desenvolvida por grupos de trabalho constitudos no mbito da prpria
Comisso, integrando vtimas, familiares, pesquisadores ou
interessados na memria dos temas e das pessoas investigados. Os
textos referem-se a violaes de direitos humanos ocorridas em
diferentes segmentos, grupos ou movimentos sociais, a exemplo de
militares, trabalhadores urbanos e rurais, camponeses, povos
indgenas, membros de igrejas crists, homossexuais, docentes e
estudantes universitrios. Tambm integram este volume textos que
registram a reao de muitos que resistiram ditadura militar a partir
de seus ofcios, suas atividades e seu cotidiano, assim como a
participao dos civis no golpe e no regime ditatorial, notadamente
de empresrios. O conselheiro que redigiu ou supervisionou a produo
do texto, os assessores da Comisso e os colaboradores externos que
participaram de sua elaborao esto identificados no incio de cada
contribuio. Braslia, 10 de dezembro de 2014. COMISSO NACIONAL DA
VERDADE
6. 1 texto violaes de direitos humanos no meio militar
7. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 12 Este texto foi
elaborado sob a responsabilidade da conselheira Rosa Maria Cardoso
da Cunha. Pesquisas, investigaes e redao fo- ram desenvolvidas
pelos pesquisadores da Comisso Nacional da Verdade Paulo Ribeiro da
Cunha, Wilma Antunes Maciel, Guilherme Bravo e Joo Vicente
Nascimento Lins, como parte das atividades do Grupo de Trabalho
sobre a Perseguio a Militares. O processo poltico brasileiro
tradicionalmente conservador, operando com a ideia de conciliao, o
que limita as possibilidades do reconhecimento poltico de atores
que estejam situados em campo ideologicamente diverso. Mesmo nos
perodos democrticos perdura certo grau de intolerncia com os que
exibem posies contrrias. Entre os atores historicamente no
reconhecidos ou excludos da participao poltica legtima esto
parcelas de militares, situadas, em especial, entre os militares de
baixa patente. O embrio do que se poderia chamar de perse- guio a
militares ou militares perseguidos localiza-se entre a proclamao da
Repblica e 1930, reunindo oficiais e praas das Foras Armadas, bem
como membros das polcias militares, fossem eles republicanos
histricos ou liberais, agindo como atores coletivos ou individuais
que sofreram, enquanto jovens militares, influncias ideolgicas da
esquerda, como a Revoluo Russa, ou eram nacionalistas e objetivavam
construir um projeto de nao. O projeto de modernizao conservadora
ps 1930 foi respondido por esse grupo de milita- res com diferentes
manifestaes de rebeldia, expressas em dezenas de revoltas nos
quartis entre 1930 e 1932. A conscientizao dos militares passou a
ser indesejada. O elitismo dessa posio gerou, ento, a Doutrina Ges
Monteiro, que emergiu com inegvel influncia nas dcadas
subsequentes. Ela visava erradicar a poltica no Exrcito e
estabelecer a poltica do Exrcito. O significado maior da Doutrina
era que a poltica entre os militares s deveria receber ateno do
Alto Comando. Dois acontecimentos nessa fase teriam importncia para
a formao dos militares: primeiro, a derrota do Levante de 1935, que
teve especial repercusso no meio militar, determinando posies
anticomunistas como poltica de Estado para um conjunto de militares
e, para outros, situados esquerda ou nacionalistas, significando um
reforo de suas concepes legalistas e avessas a golpes. O segundo
acontecimento foi a participao dos militares brasileiros na Segunda
Guerra Mundial. No campo de batalha italiano, um grupo de oficiais,
futuros militares perseguidos, elaborou um documento a favor da
anistia e da redemocratizao intitulado A FEB: smbolo de unio nacio-
nal. O documento foi subscrito por 282 oficiais, a maioria tenentes
e capites, e teve considervel repercusso na imprensa1 . Alguns dos
signatrios viriam a integrar a lista de militares perseguidos ao
longo das dcadas seguintes, como o brigadeiro Rui Moreira Lima,
coronel Kardec Lemme, tenente- coronel Paulo Mello Bastos,
brigadeiro Fortunato Cmara e coronel Paulo Eugnio Pinto Guedes,
havendo os trs primeiros prestado depoimento Comisso Nacional da
Verdade (CNV). Entre 1946 e 1988, o grupo de militares perseguidos
era composto por militares nacionalis- tas, socialistas e
comunistas. Formado por oficiais e praas, esse grupo foi perseguido
de vrias formas: mediante expulso ou reforma; sendo seus
integrantes instigados a solicitar passagem para a reserva ou
aposentadoria; sendo processados, presos arbitrariamente e
torturados; quando inocentados, no sendo reintegrados s suas
corporaes; se reintegrados, sofrendo discriminao no prosseguimento
de suas carreiras. Por fim, alguns foram mortos. Esse grupo
apresenta um nmero expressivo de inte- grantes, sendo a categoria
social que contabilizou maior nmero de violaes de direitos ao longo
do perodo, quando comparadas, proporcionalmente, com outras
categorias. Incluem-se necessariamente
8. 13
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
neste clculo aqueles perseguidos por participar das lutas pelas
grandes causas nacionais, entre 1946 e 1964, bem como os
perseguidos no limiar do processo de redemocratizao, em sua maioria
praas e bombeiros das Polcias Militares. O atual diagnstico da CNV
revela, conforme registrado, um expressivo nmero de milita- res
perseguidos, o qual pode ainda ser ampliado por novas investigaes.
Constata-se, por esse diag- nstico, um total de 6.591 militares
perseguidos (do Exrcito, Marinha, Aeronutica e Foras Policiais),
incluindo nomes de oficiais e praas, bem como de policiais e
bombeiros, atingidos nos anos 1980. Fora Oficiais Praas Total
Aeronutica 150 3.190 3.340 Exrcito 354 446 800 Marinha 115 2.099
2.214 Foras Policiais estaduais 103 134 237 Total de oficiais 722
Total de praas 5.869 Total geral 6.591 Fonte: A principal fonte
desse diagnstico o projeto Brasil: nunca mais, combinado com dados
de militares perseguidos levantados por outros acervos, como o
Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, o Arquivo Nacional/Braslia, o
Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, o Cedem/Unesp, Ana Lagoa/Ufscar,
o Comit Brasileiro pela Anistia/CBA e acervos particulares. Tambm
documentos oficiais, como os Atos Institucionais, processos, IPMs,
documentos desclassificados, os dados de listas de militares feitas
por suas entidades na luta pela anistia, muitas delas em atividade.
Tambm foram consideradas fontes acadmicas e histricas. Nesse
diagnstico foram utilizadas ainda informaes de depoimentos
individuais e Audincias Pblicas de Militares Perseguidos,
realizadas no Rio de Janeiro, So Paulo e Rio Grande do Sul. Salvo
nomes identificados como perseguidos tanto em 1964 como no perodo
entre 1946 e 1964, no se inclui nessa contagem a maioria dos
militares perseguidos durante esse primeiro perodo. Aproximadamente
1.000 militares foram perseguidos entre 1946 e 1964, segundo
testemunhos ver- bais.2 Se somarmos estes aos atingidos em 1964,
teremos um nmero de 7.591 militares perseguidos.3 Corroborando a
grandeza dos nmeros deste levantamento, recorde-se que os militares
so a categoria com o maior nmero de processos encaminhados Comisso
de Anistia.4 A) Os militares e a democracia: 1946-1964 Os militares
foram uma presena constante no processo poltico brasileiro em todas
as eleies presidenciais at 1964. Na Constituinte de 1945, dezenas
de oficiais e praas concorreram a cargos legislativos nas vrias
esferas parlamentares, por diferentes partidos polticos. Entre os
milita- res que futuramente comporiam o grupo dos militares
perseguidos constata-se maioria significativa concorrendo pelo
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, mais restritamente, pelo
Partido Socialista Brasileiro (PSB). Por terem posio poltica e
ideolgica diversa, muitos militares vincularam-se a uma agremiao
conservadora, como a Unio Democrtica Nacional (UDN). Para
compreender-se a questo dos militares perseguidos e da democracia
no perodo de 1945 a 1964, e mesmo depois, h trs pontos decisivos: a
anistia, as tentativas de investigao de crimes rela- cionados ao
Estado Novo e do papel dos militares na criao da Constituio de
1946. Todos remetem problemtica contempornea da construo da
democracia e do Estado Democrtico de Direito. Com o Decreto-Lei no
7.474, de 18 de abril de 1945, Getlio Vargas procurou anistiar ati-
vistas que participaram de crimes polticos desde 1934, podendo os
militares ser beneficiados com a
9. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 14 reintegrao aps
parecer favorvel de comisses de militares. A anistia possibilitou a
libertao de 565 presos polticos, entre eles muitos militares; o
mais famoso era Luis Carlos Prestes, preso havia dez anos.
Componentes ideolgicos permearam essas comisses, induzindo sua
parcialidade. Militares naciona- listas e de esquerda participantes
do Levante de 35 no foram contemplados com anistia. Contudo, os que
participaram do pustch integralista de 1938 tiveram suas pretenses
atendidas pelas comisses militares, criando-se uma lacuna em relao
aos primeiros at a anistia da Constituio de 1988. Quanto investigao
dos crimes atribudos ao Estado Novo, seu adiamento preocupou
parlamentares de origem militar, como o general Euclides Figueiredo
(UDN), que atuou no sentido de ampliar a anistia, visando a que ela
contemplasse os militares perseguidos no perodo, como um teste para
a democracia a ser construda ps-Estado Novo. Por sua iniciativa,
foi instalada em 1946 a Comisso Encarregada de examinar os servios
do Departamento Federal de Segurana Pblica, seguida da Comisso de
Inqurito sobre os atos delituosos da Ditadura, cujo contedo trouxe
tona denncias sobre torturas entre militares. As denncias,
entretanto, no se traduziram em punio. Sobre a participao dos
militares no processo eleitoral, a Carta de 1946 retoma a posio
contida na Constituio de 1934, que garantia maior autonomia para as
Foras Armadas. Em seu artigo 176, ressalta que estas so instituies
nacionais, organizadas com base na hierarquia e discipli- na. O n
grdio da questo seria o artigo 132, cuja interpretao era restritiva
ordem democrtica. Oficiais podiam votar ou ser votados, porm os
praas, at a graduao de cabo, estavam excludos desse exerccio de
cidadania. Em aberto ficava a situao dos que estavam entre a
patente dos cabos e a dos oficiais, havendo a dvida de serem
inelegveis ou serem uma exceo inelegibilidade dos praas.5 A soluo
dessa ambiguidade ficaria a cargo dos juzes nos tribunais, gerando
polmicas nos anos 1960. No perodo subsequente, a democracia
brasileira foi tensionada pela polarizao ideolgica existente a
partir da Guerra Fria. Conflitos internacionais refletiram-se
internamente na poltica brasi- leira e elementos de combusto
somaram-se a esse processo. A fundao da Escola Superior de Guerra
(ESG), com sua Doutrina de Segurana Nacional, de influncia
americana e, mais tarde, francesa, potencializaria exponencialmente
o antagonismo entre os militares e a sociedade. Outro motivo para o
antagonismo no interior das Foras Armadas foi o espectro do Levante
de 1935, ao qual j nos refe- rirmos, que passou a ser uma referncia
no discurso dos militares conservadores. A polmica cassao do PCB,
seguida em 1948 da perda do mandato de seus parlamentares, por
outro lado, provocou uma forte rotao esquerda, por parte dos
militares comunistas. Estes passaram a pregar o assalto ao poder,
expresso no Manifesto de Janeiro de 1948 e no Manifesto de Agosto
de 1950. As lies de 1935 no foram esquecidas pelos militares.
Nacionalistas e esquerdistas as interpreta- riam na dcada de 1960
como uma orientao para adotarem um comportamento legalista. Em
contrapar- tida, os praas comearam a radicalizar suas posies.
Enquanto isso, os militares conservadores iniciavam uma violenta
represso aos militares nacionalistas e de esquerda, em nome do
combate ao comunismo. 1. O Clube Militar e o debate das causas
nacionais O Governo Eurico Gaspar Dutra, reconhecidamente
conservador, no tardou em impor polticas repressivas aos militares
nacionalistas, executadas com um vigor semelhante ao do Estado
Novo6 . A democracia exibia seus limites. Estavam em curso
articulaes golpistas de setores civis e militares, especialmente
vinculados UDN, que seriam uma constante at 1964. Essas articulaes
conviviam com a discusso das teses de militares de esquerda e
democratas e com uma agenda de defesa das causas nacionais como a
campanha O Petrleo Nosso, a da no participao de soldados bra-
10. 15
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
sileiros na Guerra da Coreia e a que se opunha internacionalizao da
Amaznia. Confrontavam-se, na poca, duas correntes antagnicas no
plano poltico e ideolgico: uma nacionalista e de esquerda, outra
adjetivada de entreguista, por advogar a tese da participao dos
capitais estrangeiros no Brasil. Um dos fruns do debate em curso,
com reflexo no somente na caserna, mas tambm na sociedade, passa a
ser o Clube Militar, a partir da eleio de 1950. Tratava-se de um
prembulo das eleies presidenciais que se sucederiam no Brasil e
cujo eplogo se daria com o golpe de 1964. A po- lmica relacionada s
causas nacionais tambm seduzia os praas e marinheiros, que se
organizavam nas vrias associaes de classe, como as Associaes de
Subtenentes da Fora Area Brasileira e do Exrcito, incorporando
segmentos das polcias militares pelo pas. Na Marinha havia um forte
grau de associativismo, pois ali as demandas corporativas por
melhores condies de trabalho no tinham sido equacionadas desde a
Revolta da Chibata, em 1910. Associada a essas demandas havia uma
reflexo sobre o papel dos marinheiros e de sua posio na ordem
democrtica. 2. Perseguio aos militares no perodo democrtico Os
dados relacionados perseguio de militares nesse perodo ainda so
muito precrios. Oficiais e praas ainda aguardam o julgamento de
seus processos de anistia. Um efetivo diagnstico quantitativo
reclama levantamento detalhado. Sabe-se que centenas de militares
foram expulsos das Foras Armadas e que outros tiveram suas
carreiras abortadas. Entre os que continuaram na ativa, alguns
foram permanentemente perseguidos e, afinal, cassados em 1964.
Tendo em vista as divergncias ideolgicas existentes, veiculadas
pela grande imprensa e discu- tidas em associaes de militares, como
no Clube Militar, ou a Casa dos Sargentos do Brasil, as diretorias
dessas entidades passaram a ser perseguidas, sofrendo, inclusive,
uma interveno branca. Seus membros foram designados para servir em
guarnies distantes. Exemplos desses casos so os majores Nelson
Werneck Sodr, designado para servir em Cruz Alta, no Rio Grande do
Sul; Tcito Lvio de Freitas, enviado para So Lus, no Maranho;
Humberto Freire de Andrade, que foi para Aracaju; ou o capito
Joaquim Miranda Pessoa de Andrade, designado para Fortaleza. Todos
foram cassados em 1964. Os Depoimentos esclarecedores,7 publicados
pelo Congresso Nacional, contm o relato de de- zenas de prises de
militares das Foras Armadas no perodo e, particularmente, em 1952,
muitos deles torturados. As denncias foram divulgadas pela imprensa
e no parlamento, e perfazem um quadro revelador sobre a perseguio
havida, oferecendo a possibilidade de um diagnstico sobre a
represso a esse grupo, particularmente queles acusados de serem
comunistas. 2.1. Priso arbitrria de oficiais Nos Depoimentos
Esclarecedores constam denncias relacionadas a oficiais que
sofreram trata- mento que no s violavam direitos e garantias
individuais reconhecidos pela Constituio de 1946, mas tambm
confrontavam o Estatuto dos Militares, configurando um desrespeito
sua condio de militar e s suas patentes.8 A propsito vieram a
pblico as precrias condies de priso do capito Joaquim Incio Batista
Cardoso, oficial com tradio familiar na carreira das armas, que
remonta guerra do Paraguai. Senhor senador Domingos Velasco Venho
presena de vossa excelncia para pedir-lhe que denuncie nao e
combata, da tribuna do Senado, a arbitrarie-
11. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 16 dade que esta
sendo cometida contra o capito Joaquim Incio Batista Cardoso, meu
esposo, que no momento se encontra preso no regimento de reconheci-
mento mecanizado. Est preso h dois meses, esteve durante muitos
dias sujeito a rigorosa incomunicabilidade, e h pouco dias foi
contra ele decretada priso preventiva, pelo auditor Abel Caminha,
apesar do parecer contrrio do promo- tor. Peo a ateno de vossa
excelncia para esse aspecto da questo: a priso preventiva ter sido
decretada contra o parecer da promotoria. A maneira pela qual os
fatos se encadeiam interrogatrios sucessivos, insinuaes descabidas,
incomunicabilidade, 60 dias de priso, priso preventiva contra o
parecer da Promotoria parece indicar a preocupao de arranjos e
combinaes que ve- nham a colocar mal o referido oficial.9 Outra
denncia refere-se ao major Leandro Jos de Figueiredo Junior, membro
da FEB, pre- so pela mesma acusao do capito Joaquim Incio, sem ter
respeitadas suas garantias constitucionais. A carta que encaminha a
denncia termina afirmando que a acusao no fora referenciada por
provas. Venho presena de vossa excelncia, na qualidade de esposa do
major Leandro Jos de Figueiredo Jnior, para por seu intermdio
denunciar nao um fato que considero arbitrrio, ofensivo dignidade
humana e uma ameaa tranquilidade dos lares de todos os militares
[...] E o que mais doloroso: constatei que ele estava fechado a
cadeado, que as janelas do compartimento estavam fechadas a prego,
que no quarto no entrava ar, seno pela bandeira da porta que d para
o corredor interno, e no entrava sol. Constatei ainda que diante
desta porta permanece um soldado armado e que para que seja aberta
preciso formar a guarda (trs solda- dos) de acordo com as
formalidades previstas para abrir o xadrez das praas [...] Este
fato que desejava denunciar: a priso nas condies em que foi feita,
sem qualquer ateno para com a famlia, a permanncia da
incomunicabilidade e o tratamento incompatvel com o oficialato.10
Outra carta-denncia, anloga quanto ao contedo, refere-se ao caso do
capito Joaquim Miranda P. de Andrade, fazendo um alerta para o
risco de ruptura institucional, tendo em vista que aquelas violaes
estavam ocorrendo em um regime democrtico.11 Poucas semanas depois
houve denncias relacionadas priso e incomunicabilidade de outros
oficiais, como Jlio Cezar Machado de Oliveira, sequer denunciado
pela promotoria, em face da ausncia absoluta de provas.12 Em outra
denncia tambm exposto o caso do tenente da Aeronutica Mauro Vinhas
de Queiroz.13 Por fim, grave denncia relaciona violaes havidas na
presena de oficiais americanos que acompanharam os processos e
mesmo as prises. Essa denncia corroborada por relatos de alguns
marinheiros. Em discurso no Parlamento, o senador Domingo Velasco14
afirmaria sobre o marinheiro Jos Pontes de Tavares, preso e
barbaramente torturado: Preso no dia 13 de junho, por ordem do
ministro da Marinha, priso que foi efe- tuada por escolta
constituda de soldados e oficiais da Marinha e do exrcito, civis da
polcia poltica e trs americanos, foi ameaado de morte, barbaramente
espan- cado e amarrado no ato da priso e assim conduzido sob a mira
de metralhadoras e outras armas para a Polcia do Exrcito
(PE).15
12. 17
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
Vtimas da mesma situao de priso arbitrria e sem acusao formal so o
capito tenente Thales Godoy, o major aviador Fortunato Cmara de
Oliveira, heri do Grupo Senta Pua, e o major aviador Sebastio
Dantas Loureiro, combatente na Segunda Guerra. As prises dos
majores Julio Csar Machado e Leandro Jos de Figueiredo Jnior foram
afinal legalizadas pelo Superior Tribunal Militar (STM) e eles
foram formalmente processados. Face ao absurdo jurdico de suas
prises e processos, vrios articulistas escreveram condenando as
violaes de direitos ocorridas. Entre estes artigos destaca-se o do
advogado Sobral Pinto: [...] para que algum possa ser regularmente
processado e preso como indiciado ou autor de um crime contra as
instituies militares do pas, indispensvel que tenha praticado ato
que seja definido como crime pela legislao penal respectiva. Sem
que em inqurito, legalmente instaurado, seja feita a prova de que a
ao im- putada a militar tenha sido declarada, previamente, crime de
natureza militar, este no poder sofrer priso [...] No se concebe,
em regimes constitucionais, como no que predomina no Brasil, que o
poder judicirio ou o poder executivo se insurjam, como acaba de
fazer o Superior Tribunal Militar, contra a lei penal, declarando-
a caduca, insuficiente ou perniciosa. [...] Para manter presos os
oficiais do Exrcito, despreza o texto claro, preciso da lei, e
abraa, imprudentemente, o princpio vago e genrico da periculosidade
das ideias e dos atos. 16 2.2. Prises e torturas de marinheiros e
praas No volume II dos Depoimentos esclarecedores17 v-se oito
cartas, sendo seis coletivas, assinadas por 113 praas da
Aeronutica, Exrcito, marinheiros e fuzileiros navais, alguns civis
ex-funcionrios da Base Area de Natal e duas individuais, uma
assinada por um oficial do Exrcito e outra por um civil, endereadas
presidncia da Associao Brasileira de Defesa de Direitos do Homem
(ABDDH).18 Entre elas h uma carta com denncias detalhadas sobre a
perseguio a militares de baixa paten- te. Nessas cartas h o relato
das terrveis torturas fsicas a que foram submetidos em unidades das
Foras Armadas, bem como torturas psicolgicas, com ameaas de serem
transferidos para as Polcias Militares ou ainda ameaas de submeter
suas esposas e seus filhos a igual tratamento. Os locais das prises
e torturas citados pelos mencionados militares so unidades das
Foras Armadas do Rio de Janeiro, Natal, Salvador, Fortaleza,
Recife, Porto Alegre e, em alguns casos, prises que ocorreram com a
presena de americanos. Citam-se tambm os torturadores e
responsveis. H relatos de toda ordem: humilhaes, agresses,
insultos, que se estendiam, inclusive, a familiares dos presos em
tentativas de visita ou na oportunidade da priso, ainda em suas
residncias. Em protesto, no foram poucos os praas que entraram em
greve de fome como protesto. A brutalidade do ocorrido chama a
ateno e o depoimento do marinheiro Jos Pontes de Tavares,
barbaramente torturado, revelador: Na mesma noite, foi entregue
Polcia Civil (DOPS), onde foi espancado barbaramente por mais de
uma hora, levado nu para uma cela cheia fezes e coberta com p de
serra. Esfregado nesses dejetos, forado, em seguida, a ingerir uma
dose cavalar de leo de r- cino. Permaneceu nesse local sob
espancamentos constantes e purgativos em nmero de seis, at o dia 18
sem comer e sem beber absolutamente nada. No dia 23 redobram-se os
espancamentos e sevcias, sendo praticado consigo fora atos de
pederastia, introduo
13. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 18 no reto de
cassetete, untado de pimenta, e de dedos; foi- lhe esfregado
pimenta nos olhos; cuspiram-lhe dentro da boca; com um alicate
puxaram-lhe o pnis; com um cano de borracha esmagaram lhe os
testculos. Durante tais sevcias de mais de trs horas caiu em estado
de coma. Para recobrar os sentidos jogavam-lhe baldes de gua fria
no corpo. As- sim, sob esse regime, permaneceu at o dia 30 de
junho, sem comer, sem beber. No dia 1o de julho baixou ao Hospital
Central do Exrcito, com o ouvido purgando, sem poder andar, quase
morto. Esteve tambm preso em uma cela do Batalho de Guardas (BG),
onde foi espancado pelo capito Adriano Freire, acompanhado de outro
oficial. Condu- zido no dia 10 de agosto para o Presdio da Marinha,
foi arrastado violentamente para uma solitria pelo sargento
carcereiro Pedro Guanabara de Miranda, que comandava 16 soldados,
todos de baioneta calada. Na solitria, permaneceu at o dia 26 de
setembro de onde foi tirado para um tnel (priso 4). Durante esse
perodo (de 13 de junho a 26 de setembro) esteve debaixo de completa
incomunicabilidade.19 Em outros casos, os presos ficaram
incomunicveis por semanas ou meses e, sem exceo, foram torturados,
como se pode ver nos autos dos processos de 21 marinheiros e
fuzileiros navais. Comum eram o espancamento, a deteno em cela
cheia de fezes, onde muitos permaneciam nus, sem comer e beber, alm
de muitas vezes serem obrigados a tomar leo de rcino. So casos como
o do ex-cabo fuzileiro Israel Militino de Oliveira, onde se
registra: Preso no dia 20 de maio, por ordem do ministro da
Marinha, foi levado para o 1o Batalho de Carros de Combate, onde
passou dez dias incomunicvel. No dia 30 de maio foi conduzido para
a PE, onde foi espancado, humilhado, ameaado de morte, de ser
lanado de uma janela, como aconteceu ao taifeiro Clarindo Pereira
Serpa. Depois foi conduzido para o 1o R.C.G., onde foi espancado a
socos, pontaps, e murros, onde lhe arrancaram a barba j crescida, a
unha, ficando nesse estado de padecimento 29 dias. Levado depois
para o Presdio da Marinha, continuou inco- municvel, sendo
torturado e para evitar maus-tratos, procedeu como os demais,
entrando em rigorosa greve de fome.20 No s o depoente anterior, mas
vrios militares tiveram seus testculos esmagados com alicate e a
barba arrancada. Mesmo quando foram levados ao hospital,
denunciaram a precariedade do tratamento recebido e sesses de
tortura aps o atendimento mdico. Os presos tambm eram levados a
lugares ermos e ameaados de serem empurrados despenhadeiro abaixo.
Eram ameaados de serem jogados de janelas nos locais em que estavam
detidos. O desespero em face das torturas determinou que muitos
fizessem greve de fome por mais de 18 dias. Noutros casos, situaes
de torturas eram agravadas quando os seviciados recusavam-se a
assinar um documento forjado ou quando a denncia pblica no poupava
os torturadores, muitos dos quais foram citados e identificados.
Dentre estes, encontram-se oficiais generais e aspirantes, alm de
grande quantidade de policiais civis21 . Denncias de torturas e
sevcias praticadas na Base Area de Natal, contra sargentos e um
civil no foge regra imposta aos marinheiros e fuzileiros navais.22
Ilegalmente presos, desrespeitados em seus direitos e suas
garantias individuais, tendo inobservada a sua condio de militar,
incomunicveis por se- manas ou meses, os praas descrevem um quadro
de brutalidade e agresses como tapas, pontaps, recluso em armrios,
permanncia nus por vrios dias, privados de alimentao e sono,
queimaduras de cigarro pelo corpo, inclusive no nus. O relato do
terceiro-sargento Antonio Paulo Andreazzi, esclarecedor:
14. 19
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
Novamente preso a 2-VI-52 em Natal, no hangar onde trabalhava,
conduzido com outros para o 16o RI, sob ameaas do major Roberto
Hiplito da Costa, que gritou para a escolta a ordem massacrar;
qualquer coisa responda com cassetete; se for pre- ciso, chumbo na
testa. Nessa unidade, fica incomunicvel, em pequena cela, de onde
retirado para interrogatrio no prprio quartel. Sob ameaa, procuram
impor-lhe que assine documentos pr-fabricados. Entre os
inquisidores est o major Hiplito que tenta estrangul-lo, no
conseguindo levar at o fim seu intento porque houve inter- veno de
outros torturadores, inclusive do tira presente. Entre os presentes
estava o coronel comandante do 16o R.I.A 4; transferido para a
base, prosseguem os inter- rogatrios, acompanhados de
espancamentos, ameaas de morte, palavres de toda ordem. As mais
vrias torturas tm lugar, praticadas pelos majores Hiplito e Souza
Mendes, capito R.I.M Pereira, tenente C.A.B. Cmara e aspirante
Magalhes. Entre as torturas, sofre socos, pontaps, espancamentos
com cassetetes. Nos intervalos, era jogado num armrio calafetado,
saturado de fumaa. Nesses dias conheceu as celas que formariam mais
tarde um agrupamento, construdo, segundo o major Hiplito, conforme
modelo aperfeioado dos campos de concentrao nazista; celas pequenas
1,90 x 0,90 x 1,90, toda de concreto, com portas metlicas,
abafadas, midas e prati- camente sem renovao de ar. Apenas com dois
furos de cinco cm de dimetro no teto. Da s saa para as torturas. A
6-VI volta ao 16o R.I. A 23-VI, novamente conduzido base,
raspam-lhe a cabea e a sobrancelhas e jogam-no nas citadas celas
individu- ais. Diariamente retirado para interrogatrios,
acompanhados de toda sorte de espancamentos e sevicias. Entre as
torturas, uma caracteriza bem o e esprito sdico dos torturadores.
Mantido sentado, ritmicamente o major Hiplito d na cabea com uma
caixa; o aspirante Magalhes bate com uma rgua nas orelhas; o capito
Ivan d nas mos; e o tenente Cmara nos joelhos, por mais de 40
minutos. Depois h um apagar de luzes, seguido de pescoes e pontaps
etc. Tudo isso ao mesmo tempo que rasgada a farda e so arrancadas
as divisas, numa antecipao do ato ilegal do senhor ministro. Tais
foram as torturas, que as pernas ficaram totalmente retesadas.
Tambm foi posto frente a uma forte lmpada. Aps 11 dias volta ao 16o
R.I A 28-VII defini- tivamente transferido para o campo de
concentrao da base area.23 Em algumas ocasies, a priso foi em cela
mida, com alto-falantes ligados, ao que se somava um agravante: o
no pagamento dos vencimentos aos familiares. Os presos denunciavam
que a base area tornara-se um campo de concentrao, com requintados
mtodos de tortura fsica e moral, sendo igual- mente citados os
oficiais envolvidos na tortura. Segundo os presos, esses oficiais
eram indignos de vestirem a farda das Foras Armadas. Ao final, os
presos denunciaram o ato ilegal de sua expulso da corporao.24 Nos
Depoimentos esclarecedores, h denncias correlatas de prises e
torturas na 6 Regio Militar, que inclui os estados da Bahia e
Sergipe, impostas a 30 militares, incluindo oficiais e civis. O
major Joo Teles de Menezes denunciou que foi arbitrariamente preso
e mantido incomunicvel por 49 dias, tendo se deteriorado seu estado
de sade, sem ateno mdica. Nessa ocasio, foram presos seus filhos e
genros e ameaadas sua esposa e filha. Major Joo Teles de Menezes:
preso no dia 15 de agosto de 1952 foi conduzido Bahia e recolhido
ao 19o BC, donde era levado ao Forte do Barbalho para depor
passando de cada vez 3 a 4 dias no forte, jogado numa cova infecta,
antigo depsito de lenha com
15. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 20 um balde onde
deviam ser satisfeitas as necessidades fisiolgicas o qual no era
despe- jado. Acometido de forte infeco intestinal, em consequncia
da alimentao que lhe era dada, no teve tratamento adequado, o que
fez agravar tanto seu estado e sade que, chamado para depor,
debaixo de insultos de baixo calo, perdeu por duas vezes os
sentidos. Certa vez foi levado de madrugada, em uma camionete, a
uma praia, numa nova forma de coao. Seus filhos e genros foram
espancados, tendo um dos filhos fu- gido por ter sido ameaado de
morte. Levaram as ameaas a sua esposa e filha. Passou 49 dias
incomunicvel durante os quais sua debilidade orgnica chegou a um
grau tal que, quando sua famlia pode v-lo, tinha que ser ajudado a
se levantar da cama. Ao ser levado para assinar os depoimentos
disse lhe o coronel Freitas: cheguei a no dar nada pela sua vida. J
comunicvel, ao ser levado para acareaes, as mesmas eram precedidas
da ameaa de que se no confirmasse tudo quanto lhe fosse perguntado
seria posto em situao pior do que a anteriormente. 25 Situao
semelhante est referida na denncia sobre os praas da 6 Regio
Militar, todos em pssimas condies de priso, celas midas e
incomunicabilidade por semanas, at meses. Alm de encarcerados em
condies degradantes, sofrendo tortura psicolgica e
incomunicabilidade, eram ameaados de serem entregues polcia ou
presos com ladres e loucos. Juntando-se a esses procedi- mentos,
sofriam ameaas de fuzilamento. Tambm citada na denncia a falta de
assistncia aos praas quando ficavam doentes e eram transferidos
para hospitais. Ali eram constantemente ameaados de serem
seviciados na presena de suas famlias.26 Em outros casos, militares
presos foram ameaados para assinarem folhas em branco. Em um desses
casos, h denncias de torturas de crianas e mulheres, familiares dos
presos. Noutra opor- tunidade um preso foi assistido por um padre,
a quem informou que as torturas haviam levado um companheiro a
tentar o suicdio. Entre os citados, um civil narra que. ao invocar
a Constituio, ouviu o torturador determinar que no se falasse nessa
prostituta derrotada.27 Outras denncias remetem a 17 civis
torturados na Base Area de Natal, servida por uma maioria de
funcionrios civis. Dezenove sargentos da Aeronutica, membros da
Casa do Sargento do Brasil,28 foram vti- mas de prises ilegais e
ficaram incomunicveis. Eles denunciaram brutalidades, identificaram
tortu- radores e tambm as pssimas condies em que ficaram presos:
celas infectas, sendo constantemente molhados, interrogados sob
tortura e muitos entregues Polcia Poltica. Em Porto Alegre, 12 mi-
litares, que responderam a processos no Rio de Janeiro,29
denunciaram torturas semelhantes. Outra denncia remete a processo
movido contra diretores da Casa do Sargento do Brasil.30 Os casos
de militares torturados reproduzem, portanto, o padro identificado.
Em 1953, algumas sentenas foram proferidas na Justia, mas os casos
de expulso da corpo- rao, particularmente os dos praas da Marinha,
so mais numerosos que os dados disponibilizados. Nesse perodo, por
exemplo, um processo no relacionado nos Depoimentos esclarecedores
indica 30 marinheiros expulsos da Armada.31 O coronel Olmpio
Ferraz, que estava sendo processado, teve o caso encerrado por
sentena do Supremo Tribunal Federal. Noutra deciso, v-se um pedido
de absolvio de vrios policiais militares do Distrito Federal. A
despeito de os 30 militares da Fora Area terem sido absolvidos por
unanimidade na primei- ra instncia, houve recurso da Auditoria da
Aeronutica ao Superior Tribunal Militar. Em decorrncia, 12
militares foram condenados e cinco excludos do processo. Entre os
excludos e absolvidos, havia sargentos expulsos antes de qualquer
julgamento, que ainda no haviam sido anistiados. Houve tambm
oficiais que cumpriram sentena, mas, dada a dimenso de suas penas,
no perderam a patente. Esses,
16. 21
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
contudo, no conseguiram a reintegrao completa e suas promoes foram
pautadas por antiguidade. Uma legislao especfica ento aprovada, a
Lei no 1.507 e a Lei da Reforma de Oficiais, permitia transfe- rir
para a reserva elementos suspeitos, sem qualquer processo judicial.
Quase uma dcada depois, muitos daqueles militares, j na reserva,
seriam includos na lista de militares cassados pelo golpe de
1964.32 3. Os militares perseguidos na defesa da legalidade
democrtica O pas caminhava para um turbulento processo sucessrio,
pautado pelo debate sobre temas nacionalistas, cujo eplogo foram as
vrias tentativas de golpe capitaneadas por setores civis e
militares. Em nova eleio para o Clube Militar, surgiu a Cruzada
Democrtica, expresso militar dos civis partidrios da UDN. A luta
poltica entre as vrias tendncias teria continuidade com o Manifesto
dos Coronis, cujo contedo atentava abertamente contra o governo de
Getlio Vargas, legalmente constitudo. Entre os 80 oficiais
signatrios do Manifesto destacava-se, em primeiro lugar, o coronel
Amaury Kruel, encarregado dos Inquritos Policiais Militares em 1952
e que tambm estaria na linha de frente do golpe militar de 1964. O
clima de rebelio contra Getlio Vargas seguiu seu curso com o
atentado a Carlos Lacerda e o falecimento de um oficial da
Aeronutica, o major Rubens Vaz, que o escoltava. A crise poltica
refletiu-se nos quartis e em vrios comandos navais e redundou na
constituio da comisso de investigao conhecida como Repblica do
Galeo. Seguiu-se um ltimo ato sedicioso, o manifesto assinado por
32 generais. A renncia exigida do presidente teve como resposta o
suicdio de Vargas, adiando, por dez anos, o golpe de 1964. A
democracia brasileira estaria sob a Espada de Dmocles. Em sua
defesa, observa-se a inter- veno dos militares perseguidos no
processo sucessrio, os quais defendiam a legalidade democrtica. Um
dos expoentes dessa posio foi o general Henrique Batista Duffles
Teixeira Lott, oficial nacio- nalista, disciplinado e
disciplinador, que atuara com determinao ao assegurar a posse do
presidente recm-eleito Juscelino Kubistchek, em 1955. frente do
Ministrio da Guerra, Lott teve atuao democrtica, fosse com a recusa
em discriminar oficiais por suspeitas ou aleivosia, fosse
reconhecendo direitos at ento negados aos praas, como a
estabilidade dos sargentos aps dez anos de servio. No vale a pena
rememorar em detalhes os fatos polticos desse momento histrico,
pois so bem-conhecidos. Pouco antes da posse de Juscelino
Kubistchek aconteceria o episdio que resultou na deposio do
presidente em exerccio, Carlos Luz, mais conhecido como o 11 de no-
vembro.33 Registre-se, somente, a atuao de militares e praas das
Foras Armadas em defesa da legalidade democrtica, e a pouco
conhecida interveno de policiais da fora pblica de So Paulo, tendo
frente o general Miguel Costa. Pouco tempo depois, eclodiriam duas
revoltas capitaneadas por oficiais da extrema direita da
Aeronutica, a de Jacareacanga, em 10 de fevereiro de 1956, e a de
Aragaras, em 2 de dezembro de 1959. A articulao contrria a esses
golpistas teve a presena de muitos oficiais legalistas, como o ento
coronel Francisco Teixeira, cassado em 1964, ativo militante na
causa dos militares perseguidos frente da Associao Democrtica e
Nacionalista dos Militares (ADNAM). Com a renncia de Jnio Quadros,
os ministros militares assumiram posio poltica carac- terizada como
sedio, de impedir a posse do vice-presidente, confrontando o prprio
cdigo militar. O golpe foi abortado frente ampla mobilizao popular,
impulsionada pela Campanha da Legalidade, liderada no Rio Grande do
Sul pelo governador Leonel Brizola. Teve a adeso de unidades
militares das trs foras e de algumas corporaes estaduais, como a
Brigada Militar do Rio Grande do Sul e a
17. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 22 Polcia Militar de
Gois, ambas contrrias posio dos ministros. Por fim, teve a adeso do
Comando do III Exrcito. Joo Goulart assumiu o governo aps um acordo
poltico que implementou o parla- mentarismo, sistema de governo que
alcanou curta durao. Nessa ocasio a democracia brasileira expressou
com maior clareza seus limites e suas possi- bilidades;
inicialmente, repelindo as posies de uma maioria de militares
contrria ao posicionamento poltico, anticonstitucional e golpista
de um grupo, pretendendo vetar a posse de um presidente eleito. A
Doutrina Ges Monteiro foi, ento, posta em xeque, j que a revolta
advinda de setores civis, articu- lados com militares, inclua a
presena dos subalternos como ator poltico. Os sargentos
mobilizaram- se em algumas bases areas para impedir que avies de
caa decolassem e bombardeassem o Palcio Piratini no Rio Grande do
Sul, esvaziando pneus ou retirando peas dos avies, e vindo a se
constituir no comando mais ativo de resistncia ao golpe. A
politizao, vista como indesejada por setores da oficialidade,
ganhava impulso no amplo debate sobre as reformas nacionalistas.
Esses militares iriam compor, em grande medida, os cassados e
expulsos a partir do golpe de 1964. O tenente Wilson da Silva, que
posteriormente foi exilado, preso e anistiado, descreveu assim a
situao: Aquele movimento pela defesa do cumprimento da Constituio
foi como um ras- tilho de plvora nos quartis, fazendo aflorar o
sentimento de democracia, ptria, defesa das riquezas brasileiras e
aprofundamento da Petrobras como smbolo da nacionalidade. Por outro
lado, cheirava um visvel rancor com todos que haviam participado
das lutas pelo petrleo. Ns, talvez envoltos na ignorncia dos
tempos, apenas pretendamos fazer os ensinamentos aprendidos na
escola e nos quartis na defesa intransigente dos bens da ptria e da
soberania de seu povo. [...] Da to- dos quantos haviam tomado posio
em 1961 ficaram marcados dentro e fora dos quartis. ramos olhados
como malditos, perigosos. Mas no ns amedrontvamos, passamos a ter
cada vez mais atitudes polticas.34 Vrios oficiais da Marinha, da
Aeronutica e do Exrcito que se mobilizaram em defesa da Constituio
foram presos e depois liberados. Posteriormente, em 1964, foram
cassados. Outros militares no Rio de Janeiro, por no concordarem
com o golpe e no admitirem ser presos, entra- ram na
clandestinidade. Entre os presos por defender a legalidade
democrtica estava o marechal Lott, j na reserva, que lanou um
manifesto nao repudiando a atitude golpista dos ministros
militares. Pilotos de caa recusaram-se a levantar voo para
bombardear o Palcio Piratini e outros foram presos por recusar
cumprir ordens para abater o avio presidencial, conforme dispunha a
Operao Mosquito. Um destes, o tenente Roberto Baere, disse ao seu
comandante: [...] a misso por ns assumida ao entrar para a Fora
Area foi defender a Constituio, e no denegri-la.35 Preso,
incomunicvel por 50 dias, foi expulso da Fora Area. Retornaria,
entretanto, com (a) anistia de 1961, somando-se lista dos cassados
no golpe de 1964. A anistia promulgada em 1961 incorporaria
oficiais presos em favor da legalidade demo- crtica, mas muitos a
recusaram, vendo a punio imposta como uma comenda a ser valorizada.
Um deles, o coronel e historiador Nelson Werneck Sodr, afirmou:
Essa punio foi apagada, depois, por uma das mais monstruosas
anomalias a que as Foras Armadas brasileiras j assistiram: a
anistia, decretada pelo Congresso, em outubro. Nessa medida, ns, os
que batramos em defesa da lei, ramos anis- tiados; os subversivos,
os amotinados continuavam como sendo aqueles que esta-
18. 23
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
vam dentro da lei. Essa ignomnia definia a situao do pas quando o
presidente Joo Goulart assumiu o governo. No consenti que tal punio
fosse cancelada de minhas alteraes. Jamais usei condecoraes, nem
mesmo as referentes aos decnios de servio sem punio. Aquela punio
era a condecorao que me en- vaidecia. No poderia abrir mo dela.36
3.1. Militares versus militares A politizao da sociedade e dos
militares alternaria o cenrio de aparente conciliao exis- tente no
pas, devendo a democracia brasileira responder a novas demandas.
Melhor preparados pro- fissionalmente face s exigncias de formao
exigida para a atividade militar, culturalmente mais evoludos, os
praas, despertaram politicamente a partir dos acontecimentos de
1961. Com o slogan Sargento tambm povo, muitos concorreram s eleies
legislativas de 1963. Alguns tiveram a candidatura sub judice,
outros foram empossados. Houve, ainda, casos de eleitos no
reconhecidos pela justia. A questo produziria enorme tenso na
categoria. O indeferimento, em ltima instncia, no Judicirio, do
mandato do sargento Aimor Zoch veio a ser o estopim para a Revolta
dos Sargentos em Braslia. A Revolta tornou-se pouco conhecida, mas
desafiaria fortemente a hierarquia militar. A revolta significou um
protesto frente ao no reconhecimento de uma cidadania que a
Constituio promulgou e afianou, mas que no era respaldada na
caserna. Rapidamente debelada, com um saldo de dois mortos,
conforme dados do projeto Brasil: nunca mais, teve 502 militares
per- seguidos por participao na revolta, sendo 206 da Aeronutica e
196 da Marinha. Processados na 2 Auditoria do Exrcito, em So Paulo,
s vsperas do golpe de 1964, 19 sargentos foram condenados a quatro
anos de priso. Alguns chegaram a se abrigar e solicitar asilo nas
embaixadas do Uruguai e da Bolvia. Um projeto de anistia foi
aventado, mas no foi efetivado. O movimento dos sargentos no teve o
respaldo da maioria dos militares das Foras Armadas, a despeito de
manifestaes de solidariedade. Muitos oficiais nacionalistas, que
viriam a ser persegui- dos no ps-1964, intervieram militarmente
para abafar a revolta, como o tenente Bolvar Meireles. Condecorado
com a Medalha do Pacificador, nunca recebida em razo do golpe de
1964 nem quando foi, posteriormente, anistiado , ele pondera: Eu
acho que aqueles sublevados tinham que ser presos mesmo. Porque o
fundamental era manter o governo Joo Goulart. E a questo dos praas
de pr, eles tinham que ser mais articulados, mais articulados
politicamente, inclusive eu acho eles tinham dutos para eles
discutirem com o prprio presidente da Repblica. [...] Eu tinha
cumprido uma misso e que exerci sem problema nenhum, sem problema
nenhum. Em virtu- de disso, eu tinha garantido a tranquilidade do
governo democrtico Joo Goulart. Uma coisa voc se sublevar contra um
governo antidemocrtico, Castelo Branco, em seguida; outra, buscar
caminho de sublevao dentro de um governo, que dentro de minha
experincia, minha viso quem foi mais avanado que tivemos.37
Manifestaes de militares, desafiadoras da ordem constituda,
multiplicavam-se. O Clube Militar constitua-se em baluarte do
golpismo, acompanhado, nessa posio, das manifestaes dos de- mais
clubes militares, com reflexos na disciplina das corporaes
castrenses. Durante a comemorao da Batalha do Riachuelo, em 1962,
ocorrera a devoluo de condecoraes por parte de vrios oficiais
que
19. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 24 no concordavam
com a sua outorga a parlamentares e militares nacionalistas, mas
que se destacaram na defesa da legalidade no ano anterior. Naquele
contexto vale a pena recordar o Manifesto de Dezembro de 1963,
subscrito por 30 oficiais, condenando a nomeao do almirante Candido
Arago como comandan- te-geral do Corpo de Fuzileiros Navais. Tambm
se recorde o subsequente Manifesto dos Almirantes, em 28 de maro de
1964, subscrito por 35 oficiais contrrios designao do almirante
Suzano e, mais uma vez, do almirante Arago. Por fim, a Circular
Reservada, datada de 20 de maro de 1964, emitida pelo general
Castelo Branco, recomendava a preparao de um esquema para enfrentar
um golpe de Estado.38 A polarizao poltica em 1964 projetar-se-ia,
mais uma vez, sobre os praas das Foras Armadas. O Movimento dos
Marinheiros, rebelados no Sindicato dos Metalrgicos, seria uma im-
portante fasca para a exploso do golpe de 1964, a autodesignada
revoluo. Revoltados com o des- compromisso da oficialidade em relao
s suas reivindicaes, algumas histricas, includas todas as
reivindicaes por cidadania, tiveram como resposta do Almirantado o
envio de uma tropa de fuzilei- ros. A adeso de parte dessa tropa
aos rebelados resultou numa crise dentro da Marinha, cujo desfecho
foi a nomeao do almirante Paulo Mrio para o cargo de ministro e a
confirmao do almirante Cndido Arago como comandante do Corpo de
Fuzileiros. Uma anistia para os marinheiros chegou a ser aventada,
mas no concedida, em razo do golpe de 1964. Durante os cinco dias
em que Paulo Mrio foi ministro ocorreu uma insubordinao por parte
da oficialidade naval e ele foi ameaado de sequestro. Face ameaa, o
almirante pre- cisou assumir seu posto sob a proteo armada de
alguns oficiais e marinheiros leais, entre estes, militares que
participaram das lutas dos anos 1950 e outros, mais novos, que
atuaram em favor da posse de Joo Goulart, em 1961. O relato do
capito de mar e guerra Paulo Silveira Werneck ao historiador Hlio
Silva esclarecedor: Esse ato desesperado de indisciplina d bem
conta do nvel a que haviam chegado os componentes das foras que
combatiam o governo. Reconheciam os sediciosos que a presena do
almirante Paulo Mrio no Ministrio da Marinha representaria o mesmo
obstculo s suas maquinaes que o desempenhado pelo general Lott, na
crise de 1955, tal o seu fervor na defesa da legalidade. [...] Que
autoridade moral possua tais oficiais, que assim maculavam suas
patentes, numa ao de gangsterismo, para criticar e reprimir
indisciplina dos marinheiros? 39 Passados 50 anos, h vasta
literatura sobre o golpe civil-militar de 1964, suas influncias e
causas, seus autores e o papel de muitos de seus personagens no
curso da histria do pas. H tambm documentos desclassificados que
revelam a conspirao realizada e a participao que nela teve o
governo dos Estados Unidos. Portanto, no cabe retomar os detalhes
daquela operao. Para analisar as violaes e graves violaes de
direitos praticadas contra militares no perodo, tambm no interessa
o relato circunstanciado das aes que fizeram os conspiradores
antecipar o golpe. As cartas estavam marcadas e muitas manifestaes
de suboficiais rebelados foram, inclusive, estimu- ladas por
agentes infiltrados no movimento popular. Saliente-se que a presena
de Joo Goulart numa tradicional comemorao dos sargentos veio ser a
senha para a adeso ao golpe de muitos militares. Ela foi seguida
pela precipitao de um general anteriormente afinado com o
integralismo, Mouro Filho. A consumao do golpe civil-mi- litar foi
operacionalizada no Congresso Nacional, com a declarao de vacncia
da presidncia da Repblica, pelo senador Auro Moura de Andrade, em 9
de abril de 1964, sem qualquer respaldo constitucional. Tentando
legitimar o novo regime, o marechal Castelo Branco foi eleito
indiretamente
20. 25
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para a presidncia da Repblica, em votao quase unnime. A deciso do
presidente Goulart de partir para o exlio desmobilizou a resistncia
de oficiais legalistas e praas, anulando a expectativa de reao
nutrida por setores sociais organizados como sindicalistas,
camponeses e estudantes. Encerra-se, assim, um ciclo histrico,
outro tem incio, indo at a Constituio de 1988. B) Os militares
perseguidos na ditadura: 19641985 Para muitos militares que
participaram do processo de deposio do presidente Joo Goulart, e
tambm para alguns perseguidos, o regime que se iniciava teria curta
durao. Prolongar-se-ia pelo tempo necessrio para uma limpeza e, ao
final, as Foras Armadas retornariam aos quartis, man- tendo, um
olhar tutelar sobre a sociedade.40 Acordos polticos fundamentavam
essa hiptese, pois estava prevista a manuteno e o respeito ao
calendrio eleitoral. Iniciativas para afastar os militares da
poltica no ps-1964, no entanto, no objetivavam somente cassar todos
aqueles que foram perse- guidos, mas tinham o objetivo de
estabelecer mecanismos para abortar iniciativas gestadas no campo
da direita militar. Alguns foram operacionalizados ainda no governo
Castelo Branco, como a Lei de Inatividade. No foram poucos os
episdios conflituosos entre faces militares duros e moderados
relacionados sucesso presidencial, que emergiram aps 1964. Um deles
foi o caso Para-Sar, que teve como expoente o capito Srgio Macaco.
Outro foi a crise que resultou na demisso do general Sylvio Frota,
ou, ainda, o episdio do Riocentro, no limiar da redemocratizao41 .
1. Os militares atingidos pelo Golpe de 1964 e a resistncia inicial
A atuao dos militares perseguidos depois golpe de 1964 foi pautada
por duas perspectivas de interveno, tendo em vista o processo de
redemocratizao. A primeira, pela via da poltica e adota- da pela
maioria dos oficiais e praas, foi construda ao longo dos anos, at a
instalao da Constituinte. A segunda, a luta armada, foi a opo de
menos de 3% dos militares.42 Segundo o Dossi ditadura Mortos e
desaparecidos polticos no Brasil: 1964-1985, houve 360 mortos, alm
de 144 considerados desaparecidos, sendo 27 militares. Somam-se a
este cmputo dez militantes de origem militar.43 A Comisso Nacional
da Verdade (CNV) reveria e ampliaria estes nmeros. Nem todos
militares fo- ram mortos porque optaram pela resistncia armada, em
que pese o fato de muitos oficiais e praas se mobilizarem nesse
sentido, aguardando uma ordem de resistncia que no veio.
Contrariamente ao esperado, a recomendao foi a desmobilizao. Alguns
militares fugiram e se esconderam, outros foram presos. Vrios
partiram para o exlio. Jovens oficiais legalistas, muitos deles em
incio de car- reira, ao se apresentarem em suas unidades, foram
presos, processados e expulsos. Diferentemente do acontecera nas
revoltas de 1935, ou mesmo nos processos de 1952, aps o golpe de
1964 muitos oficiais nacionalistas e comunistas tiveram tratamento
semelhante aos dos subalternos e marinheiros, detidos em prises
comuns e rotineiramente torturados, alguns deles de forma brbara.
Em 1964, a poltica de cassao nas Foras Armadas atingiu centenas de
oficiais e praas. Quanto participao na agenda pela redemocratizao,
a maioria dos militares atuou discretamente nos partidos de oposio.
Muitos oficiais e praas fundaram associaes de militares, tendo em
vista o retorno da democracia e a concesso de uma anistia ampla,
geral e irrestrita, que lhes possibilitasse voltar ativa. A
resistncia inicial ao golpe aconteceu de vrias formas e se estendeu
por dcadas. Um militar que resistiu desde o primeiro momento e
sofreu as consequncias correspondentes foi o tenente-coronel
21. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 26 Alfeu de Alcntara
Monteiro, morto no Quartel Geral da 5 Zona Area, em Canoas (RS). O
coronel Alfeu Monteiro era um oficial nacionalista e legalista que,
na condio de subcomandante, no aderiu ao golpe militar, junto com
vrios de seus subordinados, sargentos e soldados. Na manh de 4 de
abril de 1964 chegou ao quartel o comandante recm-designado da 5
Zona Area, brigadeiro Nlson Freire Lavanere-Wanderley, que
determinou a priso de todos os rebelados. Ao resistir ordem de
priso, o tenente-coronel Alfeu foi fuzilado, vtima de cinco tiros
pelas costas, falecendo no caminho do hospital. Caso de brutalidade
semelhante, com enorme repercusso no Rio Grande do Sul, foi o
assassinato, em 1966, do sargento Manoel Raimundo Soares, militante
do MR-26 Movimento Revolucionrio 26 de Maro. Manoel Raimundo foi
preso e barbaramente torturado, tendo seu corpo sido encontrado por
um pescador, boiando, no rio Jacu. O episdio ficou conhecido como o
caso das mos amarradas. Face repercusso na opinio pblica, o caso
sensibilizou o general Mouro Filho, na ocasio ministro do Superior
Tribunal Militar, que assim analisou o episdio: trata-se de um
crime terrvel e de aspecto medieval, para cujo autores exige
rigorosa punio. Seus autores, no entanto, permaneceram impunes e at
foram promovidos. Exemplo de conduta pessoal, profissional e de
resistncia ao golpe o brigadeiro Rui Moreira Lima, na oportunidade
coronel e comandante da Base Area de Santa Cruz. Oficial legalista
e nacio- nalista, Moreira Lima chegou a sobrevoar a coluna golpista
do general Mouro, admitindo, posterior- mente, que a atacaria se
recebesse ordens. Diante da opo de no resistncia armada ao golpe,
sua conduta motivou uma reao singular: foi o nico comandante que
passou o comando ao sucessor designado, de acordo com o boletim,
pela ordem do dia, tropa formada, sendo, em seguida, preso, e
passando a responder a Inqurito Policial Militar. 1.1. Oficiais
perseguidos No Rio de Janeiro, em razo do nmero de militares
presos, vrios navios de transporte torna- ram-se locais de deteno.
Entres estes destacam-se o Raul Soares, o Princesa Leopoldina e o
Ary Parreira, ancorados na Baa da Guanabara. Nesses navios,
militares permaneceram encarcerados por meses, sob condies de
deteno indignas. Os relatos dos presos, em seu conjunto, revelam
que naqueles locais havia infestao de baratas e ratazanas, pssima
alimentao, incomunicabilidade em condies torturantes. Nas bases
areas e dependncias do Exrcito, utilizadas como lugares de deteno,
a situao no era mui- to diferente. O tratamento indigno a que esses
oficiais foram submetidos, por exemplo, no navio Princesa
Leopoldina, aparece resumido no relato do coronel do Exrcito
Waldemar Dantas Borges: Conto meu caso: fui escoltado por um capito
de corveta equivalente a major , um tenente e um sargento os dois
fuzileiros , todos armados de metra- lhadora de mo. Abriram o
camarote, eu entrei. O corveta me disse: Coronel, tenho ordens para
lhe revistar. Controlei a raiva, olhei para aqueles trs jovens,
vtimas da insensatez, da mesquinhez de seus chefes golpistas e tive
pena. Disse- lhe: Comandante, voc meu subordinado, o fato de estar
preso no me tira as prerrogativas hierrquicas. Mas coronel,
disse-me, sou obrigado e gostaria que o senhor facilitasse. Tive
sorte ser aquele moo menos petulante do que seus co- legas. Pois
bem, disse-lhe, vocs fiquem a na porta. Afastei-me para o fundo do
cubculo, tirei a tnica e joguei-lhe aos ps, depois joguei a camisa
e a grava- ta, depois as calas, os sapatos ele j dizia basta, mas
eu continuava , joguei a
22. 27
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
cueca e, finalmente, as meias. Inteiramente nu, lhe disse: Vocs,
companheiros, no humilharam a mim e sim ao Exrcito em particular, s
Foras Armadas em geral, e acima de tudo, a vocs prprios. Guardem
por toda a vida este degradante quadro e a lio que ele representa.
Os golpistas esto espancando a nobreza dos nossos mais caros e
sagrados princpios, os quais relembro: prerrogativas do posto,
hierarquia, respeito mtuo, esprito de corpo e a s camaradagem.44 A
perseguio conra militares incluiria at oficiais que apoiaram o
golpe de 1964, por exemplo, o general Pery Bevilaqua, ministro do
Superior Tribunal Militar entre 1965 e 1969. Envolveria tambm os
generais Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar; Jair Dantas
Ribeiro, ministro da Guerra; Nelson Werneck Sodr; Euryale de Jesus
Zerbine; o almirante Cndido Arago e o brigadeiro Francisco
Teixeira. A injusta punio aos oficiais estaria estampada nas vagas
acusaes que lhes eram atri- budas, muitas delas, seno a maioria,
pautadas genericamente pelo artigo 7o do Ato Institucional no 1, de
9 de abril de 1964. Sem maior fundamentao, esse mecanismo gerou a
expulso ou refor- ma de centenas de militares, tendo o agravante de
somar-se quase sempre com artigos do Cdigo Penal Militar, alm de
artigos da Lei de Segurana Nacional. Dezenas de oficiais da Marinha
foram, assim, indiciados e expulsos. Alguns foram excludos de IPMs,
mas em seguida demitidos ex. ofcio, sob diferentes argumentos. No
caso do tenente Jos Ribamar Torreo da Costa, expe-se no IPM que
[...] no convindo a se manter na MB um provvel futuro desajustado e
que se viu ligado aos que coope- raram como solapadores da
disciplina. Quanto ao tenente Milton Temer [...] a fim de afast-lo
definitivamente da vida militar, fazendo um bem a ele prprio e
prpria Marinha, dada a sua conhecida condio de um desajustado no
meio naval e o conceito de agitador, que faz dele o encarregado do
CEMO. Por fim, em relao aos capites tenentes Fernando de Santa Rosa
e Luiz Carlos Moreira, apresentou-se o mesmo parecer: [...] em se
tratando de um elemento politizado e com afinidades acentuadas para
a esquerda, julgo no interessar a ele e nem a Marinha Brasileira a
sua permanncia no servio ativo.45 1.2. Marinheiros e praas Entre os
grupos atingidos em 1964, mediante Atos disciplinares, esto os
marinheiros e fuzileiros navais, os sargentos e os cabos da FAB.
Nesses casos a punio no foi associada a motivaes polticas, mas
relacionada quebra de hierarquia e disciplina. Preliminarmente,
1.509 marinheiros e fuzileiros navais foram detidos e expulsos da
corporao por seus comandantes, assim como centenas de sargentos,
muitos deles torturados. Nos casos de praas, a punio era entendida
como expresso de normas da corporao, ou seja, sem qualquer tipo de
relao com as punies revolucionrias contidas nos atos institucionais
e complementares46 . O sargento Almor Zoch Cavalheiro, cuja eleio
fora impugnada pelo Supremo Tribunal Federal, gerando a Revolta dos
Sargentos em 1963, registra em depoimento CNV: Aps indulto, vim
para Porto Alegre como civil, no incio de 1965. Alguns meses em
Porto Alegre tive o apartamento invadido e fui preso novamente por
suspeita de participao numa tal Guerrilha de Ipanema. Fui levado
para a priso da polcia do
23. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 28 Exrcito, a priso
das tocas, onde fiquei por mais de 80 dias, incomunicvel. Foi a
mais repugnante masmorra que conheci. Seu endereo era na avenida
Joo Pessoa. esquina com Duque de Caxias. A priso possua uma pea
grande e uma porta de ferro que acessava um corredor, onde ficavam
as tocas. Era um buraco ao lado do outro, com mais ou menos 1m por
2m, todo pintado de preto por dentro, com cavei- ras brancas no
teto e colcho sujo no cho. Alguns desses buracos, ao invs de porta
de ferro, possuam um tampo que dificultava at para respirar.47 O
fuzileiro naval Paulo Novaes Coutinho relata: Com o advento do
golpe fomos recolhidos ao presdio naval. No dia 9 de abril de 1964
foi publicado o Ato Institucional no 1, ns fomos expulsos a toque
de caixa. No dia 10 de abril, entregues ao camburo da polcia dentro
do quartel. Tiraram nossa farda, passaram piche no peito da gente
para apagar o nome de soldado, e amos ser levados para a
penitenciria Lemos de Brito. Ali no Ministrio da Ma- rinha, os
oficiais do Cenimar brigaram, discutiram com os oficiais da Marinha
e com os policiais. Os delegados nos tiraram de dentro da viatura
policial, ns estvamos expulsos e entregues polcia, nos jogaram
dentro de uma barcaa pequena e nos jogaram no poro do navio Ary
Parreiras, que estava adernado. Adernado um navio que est com o
casco furado totalmente, sem nenhum componente, beliche, nada, e
ficamos ali 30 dias dormindo no casco do navio e comendo uma vez
por dia. Viemos umas trs ou quatro vezes prestar depoimento na
escola naval e ficamos ali e dali fomos tirados e fomos levados
para a Ilha das Flores. L fomos recebidos por um capito da Marinha
chamado Omar Temer, que nos considerou para a segurana mais
perigosos que todos os comunistas reunidos. Fomos colocados l com
cercas eletrocutadas e na hora do almoo a comida era da pior
espcie. Ele vinha andando por cima das mesas de boot s faltando
pisar nos nossos pratos, execrando todos nos. Dali ns samos e fomos
para o poro do navio Custdio de Melo, e ficamos ali. Dali depois de
sete meses de priso samos e amos receber a primeira visita por que
nossos familiares no sabiam que estvamos vivos e fomos receber a
visita na escola naval algemados de mo e para trs [...] Dali samos
nos jogaram num depsito de presos no Alto da Boa Vista, onde hoje o
Corpo de Bombeiros l em cima, dormindo 15 pessoas num quarto de 15
por 30 no cho, um banheiro, aquele banheiro quadrado onde voc tem
que ficar de ccoras fazendo coco e urinando com todo mundo vendo,
dormindo no cho. Dali ns amos para o confessionrio de culpa,
descamos dentro de um camburo da polcia num calor miservel, 28
pessoas at o 2o Tribunal do Jri. J chegvamos l alguns vomitados com
a insolao e ramos obrigados a sair, nos assear, porque o mal cheiro
era grande, coisa de soldado, coisa da ral, eu sou ral, eu sou de
baixa patente no sou nada, ento tenho que falar o que eu sofri, t
dando um depoimento para a Comisso da Verdade. O ento arcebispo do
Rio de Janeiro, aquele famoso que fez a campanha com Deus, pela
Ptria e Famlia, ele foi l ser testemunha de acusao contra os 26
fuzileiros navais que depuseram arma. Ele falou, e props que os
fuzileiros navais fossem fuzilados para lavar com aquele ato a
honra do corpo de fuzileiros navais.48
24. 29
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
O marinheiro Avelino Capitani, que participaria da Guerrilha do
Capara, descrevendo as condies de sua priso depois do golpe,
relatou: Fui preso em Jacarepagu, no Rio de Janeiro. J havia muitos
marinheiros pre- sos. Fui levado para o Ministrio da Marinha, no
quinto andar, onde funcionava o servio secreto e a tortura. Fui
preso noite e comeou o interrogatrio no outro dia tardinha. Em um
dos intervalos do interrogatrio eles me colocaram na cela. Logo
recebi um companheiro, foi a companhia na tortura. Sentou no cho ao
meu lado. No primeiro instante tentei no identificar, procurei no
sa- ber quem era. Mas me parecia muito conhecido. Tinha uma sensao
de conhe- c-lo. De cabea baixa, soltava alguns gemidos esparsos.
Arrisquei uma olhada. Tive dvida, mas me pareceu que era o Geraldo
(nosso querido marujo negui- nho). Falei: Quase no te conheo, te
bateram muito, companheiro. E ele me respondeu: E eu quase no
consigo te reconhecer, estou muito mal. Me parece que tu tambm
ests. Uma luz muito fraquinha clareava um pouco o ambiente.
Conseguiu aguentar?, ele falou baixinho no meu ouvido: J nem sei,
misturei realidade com fantasia.. Com a voz baixa pareciam palavras
sem volta. Seu ros- to estava roxo, mas a verdadeira cor era
indefinida. Ele me disse que meu rosto tambm estava assim. Mas
conclumos que no era um bom momento para se olhar. Um violento
chute nos despertou. A tortura foi estendida por 40 dias. [...] Um
marinheiro no resistiu tortura e se jogou do quinto andar, de onde
funcionava ento o Ministrio da Marinha.49 Antnio Pinto de Souza,
praa da Aeronutica, apresenta tambm o seguinte relato: [...] at,
ento, naquela noite, 31 de maro, ns estvamos dentro da lei, por-
que ns, [...], ainda no tnhamos sido presos e destitudos de seu
salrio. A nos prenderam, naquele dia mesmo, nos jogaram numa cela
na Base Area de Cumbica e, depois, nos transferiram para a PM, em
frente ao Anhembi. [...] ali a ordem era colocar numa B-25. Pra
quem no conhece, aquela B-25 velha, da guerra de 42, [...]. Por
ordem do Castelo Branco nos deixaram de jogar no mar [...]. Nos
levaram para Santos, fizeram um presdio l para ns, [...], no qual
eu fiquei noventa dias na cela. [...] Inaugurei e fiquei at o
final. Fiquei oito meses preso e tinha uma filha que tinha nascido,
[...], que eu fui s v-la depois de nove meses que ela tava, de
idade. [...] A ficamos oito meses, colocaram um capito, [...], que
sabia s fumar um charuto e com duas 45 em cada lado ningum, claro,
subiria por cima dele. Ficava nos interrogando numa canoa, no mar,
de madru- gada, voc sem camisa. Da, [...], abriram um inqurito,
[...], fomos julgados por um tribunal militar, fomos absolvidos por
um tribunal militar, por unanimida- de, e nos retornaram, nos
voltaram ao quartel. E a no teve outro jeito, voc no arrumava
emprego em hiptese nenhuma. Saiu da Aeronutica um ofcio dizendo
que, [...], ns no podamos trabalhar. [...] Eu no tinha como, tinha
trs filhos, felizmente minha mulher era secretria no Mackenzie.
50
25. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 30 1.3. Perseguio
contnua A poltica repressiva imposta aos militares apresentou
outras faces, j que os demitidos passa- ram condio de mortos-vivos
e suas vivas mantiveram o direito de receber somente o montepio,
que compunha uma pequena parte do soldo. Alguns deles procuraram
recompor suas vidas profissionalmente em outras atividades, como
editores, vendedores de livros, professores de cursinho etc., mas
continuaram a ser constantemente vigiados e chamados a depor em
vrios inquritos. Muitos foram presos nesse pe- rodo, alguns fugiram
diante das ameaas; e mesmo aqueles que tinham determinadas
profisses e pode- riam lhes dar continuidade na vida civil sofreram
restries, ou foram impedidos de assumir concursos pblicos em que
foram aprovados51 , como recorda o coronel Ivan Cavalcante Proena.
[...] a Isis, minha mulher, proibida de lecionar, proibida de
exercer a profisso, teve que pedir, eu tambm, pedir pro DOPS, o
nosso atestado de ideologia. Eu trans- crevi o parecer, est no
livro, indeferido, [...], no podemos lecionar. mim, meu agente
cansou, [...] de me perseguir, disse: Olha eu vou lhe dizer quem
que en- trega, [...], e, [...], citou o nome das pessoas da UERJ,
dos dedos duros da UERJ, me deu os nomes deles, professor e aluno,
que deduravam, que insistiam em colaborar contra ns. So coisas
assim, episdios incrveis, e a perseguio foi brava, foi muito
violenta [...] Meu pai estava bem doente e no, [...], como general
do Exrcito, [...], tinha notcia minha, no sabia onde eu estava, se
eu estava vivo, se eu estava mor- to. Mantiveram silncio, assim,
bravo, constrangedor, meu pai, muito mal, morreu algum tempo
depois. [...] Prestei seis concursos, [...], os que eu consegui
prestar, porque bloquearam os concursos tambm, no tomei posse em
nenhum. [...] Tive demonstraes de diretores muito corajosos, que no
aceitaram a visita do DOI- CODI. Eles visitavam os lugares onde eu
estava para mandar demitir, eu tenho no livro, eu cito,
rigorosamente os locais de onde eu fui demitido. No incio, eu dizia
onde eu estava sim, depois acabou esse prurido de dizer, [...]. Eu
ia e no dizia onde estava no, eu passei a no dizer, no adiantou,
[...], porque eles continuaram per- seguindo a gente. At numa vez
ameaaram uma coisa mais violenta, [...], um carro nos fechou,
assim, pra nos pegar, [...], conseguimos escapar [...].52
Igualmente graves foram as perseguies aos aviadores cassados. Aos
oficiais foi negado o direito de atuar em suas profisses por meio
de duas portarias reservadas da Aeronutica. Essa medida atingiu 51
aviadores, entre eles heris de guerra, como o brigadeiro Rui
Moreira Lima e Fortunato Cmara53 . Com tantas prises indignas e
perseguies, o Brigadeiro Rui Moreira Lima chegou a escre- ver um
protesto ao General Mdici, sem qualquer resultado. Como salientou
em depoimento CNV: [...] Vrias vezes eu fui preso e fui ao Supremo
Tribunal com habeas corpus, e mandaram me soltar, fiquei 200 dias
preso.54 Tambm na Marinha do Brasil houve casos de oficiais
cassados impedidos de exercer suas profisses, como o do
primeiro--tenente Carlos Heitor Schueler Reis. Esse oficial relatou
CNV as dificuldades e restries polticas que enfrentou para
conseguir a carta de piloto da Marinha Mercante, especialmente pela
exigncia de Certides Nada Consta, emitidas pelo Superior Tribunal
Militar e pelas Primeira e Segunda Auditorias da Marinha55 . Praas
das trs Armas, marinheiros e fuzileiros expulsos sumariamente das
corporaes tiveram
dificuldadesaindamaiores,umavezque,dispondodeformaoespecficaemsuasarmasdeorigem,tinham
dificuldade em iniciar uma nova profisso56 . O marinheiro Joaquim
Aurlio de Oliveira conta CNV:
26. 31
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
[...] Nesses, [...], 21 anos, nossa caminhada tem sido um rosrio de
perseguies, em que no faltaram prises, demisses de emprego e
vexames imorais que alcanaram at nossas famlias. Em 1974 fui tirado
do meu emprego do servio areo da Cruzei- ro do Sul e jogado na Ilha
Grande, no setor de presos polticos, depois de terem me humilhado
em outros presdios, pondo-me junto com bandidos da mais alta
pericu- losidade. Ao sair do presdio da Ilha Grande apresentei-me
ao meu antigo emprego. Para minha surpresa, fui informado de que
havia sido demitido por justa causa. A Cruzeiro me demitiu por
justa causa. Existia, na lei trabalhista, [...], uma clusula que
diz que, se voc ficar preso por mais de dois anos, a empresa tinha
direito a demitir voc por justa causa. [...] Em 1976 prestei
concurso para a Petrobrs, o que me custou um esforo enorme,
estudando 22 dias, [...], concorrendo com duzentos candidatos. Fui
o nono colocado entre os 17 selecionados, [...]. No entanto, no fui
admitido, nem recebi qualquer comunicao. Em 1978, prestei concurso
para o Me- tr, [...]. Aprovado, minha admisso passou a depender de
uma ltima entrevista, mas meu entrevistador, um oficial, deixou
claro que tinha informaes sobre minha vida e l se foi mais uma
pretenso [...]. No cheguei a ser torturado, mas a minha tortura
foram essas torturas pelas quais eu passei a, nos vexames [...].57
O marinheiro Wanderlei R. Silva, em relato CNV, recorda: Eu servia
na diretoria geral da Marinha e, quando foi o dia 1o de setembro,
na forma- tura, eu fui chamado pelo nome, Wanderlei [...] da Silva
[...]. Ele disse: Olha, o senhor est sendo despromovido por ter
participado no Sindicato dos Metalrgicos. Ento me tiraram uma
divisa, que uma humilhao muito grande [...], e fiquei aguardando
trs meses at desembarcar pro quartel de marinheiros onde eu fui
demitido. [...] Ento pro- curei o comandante [...] e disse: Olha, j
que eu vou ser mandado embora, eu gostaria que vocs me mandassem
embora logo que eu queria ir atrs de emprego, porque tem muita
gente pra ser admitida e ento eu queria logo sair para procurar
emprego. Ele dis- se: Olha, voc no tem que pedir nada, voc ou fica
at [...] a Marinha resolver quando o manda embora ou voc deserta.
Foi a resposta que ele me deu. Fiquei aguardando. Quando foi [...]
31 de dezembro eu fui para o Quartel de Marinheiros e l fui mandado
embora. [...] Eu no tinha onde morar. Eu tinha 22 anos, morava a
bordo. Ento no tinha realmente onde morar. Sa com aquele saco [...]
nas costas, que era a nossa mala, e com uma mo na frente e outra
atrs, sem dinheiro, sem profisso, sem ter para onde ir [...] Essa
perseguio que a Marinha fazia a todos que procuravam um emprego.
[...] Ela dizia que voc era subversivo, era uma pessoa que no tinha
capacidade de viver em grupo, entendeu?, era mais ou menos isso a.
E jogava a pessoa para escanteio. Alguns co- legas se suicidaram,
eu conheo um que se suicidou, o cara no resistiu, ele se
suicidou.58 Belmiro Demtrio, praa da Aeronutica, tambm relatou CNV
as perseguies e amea- as que sofreu: [...] Eles me falavam assim:
Voc subversivo [...], melhor voc morrer, matar voc acabou o
problema, voc descansa e a gente fica livre de voc [...]. Na
metalr- gica Abramo Weber no pude trabalhar. Na viao [...]
canoense, em Canoas, no
27. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 32 pude trabalhar.
Na metalrgica Piratini, em Porto Alegre, no pude trabalhar [...].
Quando eu sa do porto pra fora, da Base Area, nunca me esqueo, o
capito Pi- nheiro, que Deus o tenha no bom lugar, pois ele merece,
[...] disse: Rapaz, cuidado, porque qualquer movimento que voc
fizer a coisa vai ficar preta para o teu lado. Eu entendi que ele
queria dizer que eu ia apagar.59 Face perseguio contnua no Rio de
Janeiro, marinheiros como Luiz Cachoeira e Joo Barroso optaram por
sair da cidade, estabelecendo-se discretamente em So Paulo e em
Salvador, respectivamente.60 Mas a perseguio tambm se estendia aos
familiares, objeto de muitas denncias e relatos61 . No foram poucos
os filhos, esposas e familiares de oficiais e praas que foram
presos, torturados ou violentados. O sargento da Aeronutica Mrio
Mota Rodrigues, atual coronel refor- mado, era pai de duas filhas,
uma delas adotiva, e traz o registro de que, em 1965, sua primeira
filha foi proibida de realizar matrcula em colgio catlico na cidade
de So Paulo, em razo de seu pai ter sido acusado de ser comunista.
Sob a mesma alegao, a segunda filha, ento com 13 anos, perdeu a
condio de adotada. Segue o relato do coronel sobre ela: Minha
esposa pegou a guarda de uma menina chamada Anita, abandonada pelos
pais, em 1965. Ela estava sozinha, vivendo em um barraco nas
imediaes da Via Du- tra. Depois de muita luta e insistncia,
conseguimos adotar a garota, tudo de maneira correta, seguindo
todos os procedimentos previstos pela lei. Encontramos seus pais e
eles passaram a guarda da menina para ns. Matriculamos Anita na
escola e passamos a cri-la como nossa filha, assim como os outros.
Depois de alguns meses, os pais dela apareceram na minha casa para
pedir a guarda de Anita novamente. Quis saber qual o motivo, j que
eram pessoas muito pobres e no tinham condies de cuidar da ga-
rota. Ento, me disseram que no iriam cri-la, e somente estavam
fazendo aquilo por presso de dois agentes do DOPS, que os haviam
procurado e exigido que pegassem a menina de volta. O pai dela
ficou sem jeito, mas acabou falando. Haviam dito que no poderiam
dar a guarda de Anita para mim e minha esposa, pois eu era
comunista e isso causaria problemas para eles. Devolvemos a
menina.62 H tambm o caso de Eugenia Zerbini, filha do general
cassado Euryale de Jesus Zerbini, que foi violentada, aos 16 anos,
quando visitava sua me, a advogada Therezinha Godoy, presa no DOI/
CODI de So Paulo, em 1970.63 No entanto, esse no foi um caso
isolado entre os familiares de militares atingidos e suas mulheres.
Genivalda Maria da Silva, viva do ex-cabo da Marinha, Jos Manoel da
Silva que foi assassinado sob tortura pela equipe do delegado
Fleury, em 8 de janeiro de 1973, e enterrado como indigente , foi
presa pouco depois, sendo torturada e estuprada por soldados do
Exrcito.64 2. Perseguio nas instituies militares de ensino Alguns
analistas militares, bem como acadmicos, entendem que persistem nas
institui- es militares de ensino os mesmos modelo e doutrina quase
oficial, apresentado pelas Foras Armadas, sobre o movimento de
1935, acompanhados da ideologia anticomunista resultante. Essa
insistente leitura dos fatos constitui um obstculo formao
democrtica dos militares, da mesma forma que se deu com aqueles que
j esto formados.65
28. 33
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
Em 1964, pouco tempo depois do golpe, uma poltica persecutria
atingiu o Instituto Tecnolgico da Aeronutica (ITA). Recentemente,
foi desclassificada considervel documentao66 acerca da intensa
vigilncia que se fazia sobre alunos e professores da instituio. Sob
a alegao de prtica de atividades consideradas subversivas, como a
distribuio de jornais e panfletos ou supostas ligaes com grupos
polticos e personalidades, o ITA foi monitorado e investigado.
Assim, foi aberto o Inqurito Policial Militar (IPM), instaurado na
4 Zona Area, para averiguar possveis atividades extremistas, nas
dependncias das instituies da Aeronutica.67 A Academia Militar das
Agulhas Negras (AMAN) foi umas das primeiras unidades a aderir ao
golpe de 1964, antes mesmo de consumada a vitria dos golpistas. Ao
que tudo indica, as instituies militares passaram a ter um
acompanhamento especial, com o objetivo de inibir qualquer reflexo
crtica, poltica ou cultural do novo regime, alcanando alunos e
docentes. A partir de 1967, teve incio na AMAN a instruo de aes de
combate guerra revolucionria e de conferncias, ministradas por
oficiais da Escola de Estado Maior do Exrcito (Esceme), com a cola-
borao de expoentes da extrema direita, a exemplo do deputado Clvis
Stenzel e do bispo Geraldo Sigaud. Na instituio, fatos histricos
como a Coluna Prestes e os movimentos de Canudos e do Contestado
passaram a ser ignorados. Para o coronel Geraldo Cavagnari,
fundador do Ncleo de Estudos Estratgicos da Unicamp, essas
experincias, se devidamente estudadas, poderiam consti- tuir uma
significativa contribuio para a formao dos nossos oficiais.68 O
conjunto de medidas de monitoramento e perseguio atingiu
intelectuais de origem militar, como o general de brigada e
historiador Nelson Werneck Sodr, cujas teses e obras sobre a formao
democrtica dos militares ainda encontram pouca receptividade na
corporao. Segundo o coronel Geraldo Cavagnari, a leitura dos
trabalhos de Sodr uma iniciativa individual dos militares. Para o
general Octvio Costa, finda a era militar, como expresso de poder
poltico, quisera que o Exrcito tambm o descobrisse e o acolhesse
como um de seus maiores pensadores, o grande pensador de Histria
Militar do Brasil e Memrias de um Soldado.69 Na formao da Academia
da Fora Area (AFA), alguns dados ilustram o objetivo de alienar os
cadetes. Pouco antes da decretao do AI-5, em 1968, os cadetes
aviadores Artur Vieira dos Santos, Carlos Alberto Medeiros e
Edmundo de Souza Vieira Jnior organizaram um crculo de leitura e
debates na Escola de Aeronutica, no Campo dos Afonsos. Desligados
sumariamente da FAB, sob a acusao de inaptido para o oficialato,
foram anistiados em 2005, com fundamento em informaes contidas em
documento re- servado do Centro de Informaes de Segurana da
Aeronutica (CISA). O contedo do documento exps a real motivao
poltica que norteou o desligamento do grupo: o Crculo do Livro que
implementaram foi considerado uma espcie de grupo de estudos de
teses marxistas, para cujas hostes tentaram aliciar os cadetes. Um
quarto cadete, Sued Lima, sofreu sucessivas restries em sua
carreira, e foi constante- mente monitorado at solicitar passagem
para reserva, na patente de coronel,70 porque tivera contato com
oficiais cassados. Narrando a perseguio de que foi vtima, Sued Lima
recorda: Em um dia do final de abril de 1983, o Coronel Souza me
convocou ao seu gabinete e me perguntou se eu mantinha algum tipo
de contato com oficiais cassados. Respon- di que sim, que
frequentava socialmente a casa do ento coronel Fortunato Cmara de
Oliveira, amigo de meu pai e que eu conhecia desde criana. Atravs
dele ficara conhecendo o tambm coronel Rui Moreira Lima e o
Brigadeiro Francisco Teixeira. Meu comandante me informou, ento,
que por conta dessas relaes eu fora transfe- rido para Braslia,
para onde deveria seguir de imediato. [...] Em Braslia, fui servir
no Sexto Comando Areo Regional, sob o comando do Major-Brigadeiro
Max Alvim,
29. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 34 confesso
simpatizante de Adolf Hitler, e sob a chefia de um coronel de nome
Ary Pereira Barbosa, agente do CISA e figura detestada por diversos
oficiais que com ele serviram. Passei a ser alvo de uma srie atos
discricionrios, como designao para funes irrelevantes, censuras
pblicas e injustificadas a trabalhos por mim realizados, emisso de
ficha de conceito desabonadora e impedimento para fazer o curso de
Esta- do-Maior da Aeronutica. Em meados de 1984, depois de meses
servindo no Comar, fui convidado por um brigadeiro conhecido para
servir no Estado Maior das Foras Armadas. Pedi audincia ao coronel
Ary e solicitei a ele que me liberasse para seguir para a outra
unidade. Ele me qualificou de ingnuo por no perceber que no sairia
da subordinao funcional a ele enquanto ele no cumprisse a tarefa
que tinha, qual seja a de me destruir profissionalmente. Ato
contnuo, abriu uma gaveta de sua escrivaninha onde guardava um
revlver. Manteve a mo na gaveta e, indignado, retirei-me da sala.
Para a promoo a tenente-coronel, repetiu-se o que j ocorrera quando
da promoo a major: fui colocado no critrio de antiguidade. [...] Em
1998 fui informado de que no seria promovido a brigadeiro e
solicitei passagem para a reserva. Na Escola Naval, assim como na
AFA, tambm se nota a tentativa de ocultar a histria da Marinha do
conhecimento dos alunos. A Revolta da Chibata, clssico livro de
Edmar Morel, gerou desconfiana dos oficiais quanto aos seus
leitores militares no mbito da armada, na oportunida- de em que
apareceu a primeira edio (1959). H relatos de oficiais e
marinheiros que, por terem sido vistos com o livro, adquirido
normalmente nas livrarias, foram estigmatizados como suspeitos.71
Coincidentemente, esses militares foram cassados e expulsos a
partir do golpe de 1964. Ainda hoje o estudo dessa revolta, do
tenentismo na Marinha ou da recente Revolta dos Marinheiros de 1964
no encontrou espao na grade curricular da instituio naval. 3.
Perseguio aos cabos da FAB Atualmente, os cabos da Aeronutica
compem um grupo de militares cuja causa desperta controvrsia. Os
encaminhamentos polticos feitos pela Comisso de Anistia e pelo
Ministrio da Defesa resultaram em um imbrglio jurdico que se
encontra sub judice no Supremo Tribunal Federal. Mesmo entre os
militares perseguidos, de diversas categorias, no h entendimento
sobre essa ques- to: h associaes de militares que defendem os
direitos dos cabos, relacionando-os aos dos grupos militares
vitimados por perseguio poltica, e outras que acreditam tratar-se
de um grupo especfico, cujos direitos devem ser reconhecidos apenas
na esfera administrativa. O nmero de cabos na corporao sempre foi
significativo. Com a fundao da Associao de Cabos da Fora Area
Brasileira (Acafab), no pr-1964, a entidade passou a expressar os
anseios da categoria por melhor formao profissionalizante e
reconhecimento dos direitos de cidadania, como os de casar e votar.
O depoimento concedido CNV e CV/SP, em Audincia Pblica na
Assembleia Legislativa de So Paulo, pelo cabo da Aeronutica Carlos
Eduardo Moreira, cujo processo na Comisso de Anistia ainda no fora
julgado em 2014, e que veio a falecer pouco depois, esclarecedor
desta situao: Tudo com a finalidade de, conseguirmos aquilo que nos
era negado como homens. O direito de ter famlia: no podamos dizer
que ramos casados. No podamos ter filhos.
30. 35
comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014
Isto era degradante, por qu? Votar, nem se falava, era proibido por
lei. Ns sabamos quando entramos que era proibido por lei, mas
constitucionalmente nunca foi negado o direito de um homem ter uma
esposa e ter filhos. Isto a FAB nos negava. Durante a poca do golpe
em 1961 criamos essa sociedade no dia 19 de novembro de 1961, no
dia da Bandeira, para que ns tivssemos como norma seguir a
Constituio do Brasil. Pois ramos todos brasileiros, todos filhos de
pais brasileiros, todos cientes que iramos defender a nossa ptria
dentro de uma Fora Armada legalmente constituda e instituda para
defender nosso pas. [...] Essa era a principal, me emociona, porque
vi que muitas dessas coisas eram negadas como se ns fossemos
animais, que voc prende, castra ou mata e joga no lixo [...]. Ns
ramos gente, queramos progredir, aprender as profisses na
Aeronutica. Queramos ter o direito de ser sargentos e at oficiais
dentro daquela fora armada. [...] Quantos oficiais se formavam,
quantos sargentos saam das escolas e iam aprender conosco, os
cabos, [...] como voar, como consertar um avio, como dirigir um
veculo. Mas ns ramos simplesmente, [...], escravos. Os voos eram
feitos no Brasil por aeronaves militares e aeronaves civis. Em todo
o territrio, havia cabos[...], telegra- fistas que controlavam os
cus do Brasil, para que as naves no cassem. No podiam ter famlia,
viviam nos sertes de todo o territrio nacional, nos ncleos de
proteo ao voo, como se fossem animais. Mas eram responsveis pelos
voos que passavam por todo o nosso territrio. E a fazamos a
pergunta: brigadeiro, por que ns no podemos estu- dar,[...], um
pouquinho mais, ser pelo menos sargentos? Vocs no tm direito. Se no
estiverem satisfeitos, vocs podem pedir licenciamento e cair fora.
[...] Essa era a triste realidade. Um homem que no pode dizer que
homem, no pode dizer que pai, que no pode dizer que tem esposa.
[...] E tem um hospital, [...], na Aeronutica, mas no po- dia levar
minha esposa, no podia levar meus filhos para ser tratado [...].
Passou-se algum tempo, a minha anistia at hoje no foi julgada, mas
me expulsaram da Aeronutica. Acharam algum crime em mim? No. Me
prenderam? Me prenderam, em Santos [...]. Fiquei preso, fiquei sem
poder trocar de roupa sequer. Sem que minha famlia soubesse onde eu
estava, porque eu no tinha famlia [...]. Eu era solteiro, no podia
dizer que era casado. No podia dizer que tinha um filho me
esperando. Esta a situao em que muitos de ns sofremos por uma
ditadura. Muitos, muitos sofreram [...]. 72 Um decreto suspensivo
baixado em 1964 atingiu a recm-formada Acafab e, em seguida, o
Ofcio Reservado no 04, do comando da Fora Area, determinou o
fechamento sumrio da enti- dade, sob a alegao de supostas
atividades subversivas. Outras medidas administrativas, de carter
preventivo, seguiram-se, como a Exposio de Motivos no 138, de
agosto de 1964. A principal medida promulgada pela Fora Area, a
Portaria 1.104/GM cujo objetivo seria, em tese, disciplinar admi-
nistrativamente o quadro de pessoal pretendia de fato abortar
futuras manifestaes polticas ou corporativas, particularmente no
momento de exceo em que fora editada.73 Em 2002, com a da Smula
Administrativa no 2002.07.0003, a Comisso da Anistia teve o mesmo
entendimento, assim exposto: A Portaria no 1.104, de 12 de outubro
de 1964, expedida pelo senhor ministro de estado da Aeronutica, ato
de exceo de naturez