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Relatorio cnc-volume 2-digital

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  1. 1. COMISSO NACIONAL DA VERDADE RELATRIO Volume II TEXTOS TEMTICOS dezembro / 2014
  2. 2. 2014 Comisso Nacional da Verdade (CNV) Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. COMISSO NACIONAL DA VERDADE Jos Carlos Dias Jos Paulo Cavalcanti Filho Maria Rita Kehl Paulo Srgio Pinheiro Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari Rosa Maria Cardoso da Cunha Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da Comisso Nacional da Verdade B823r Brasil. Comisso Nacional da Verdade. Relatrio: textos temticos / Comisso Nacional da Verdade. Braslia: CNV, 2014. 416 p. (Relatrio da Comisso Nacional da Verdade; v. 2) ISBN 978-85-85142-56-8 (Coleo) ISBN 978-85-85142-58-2 (v. 2) 1. Ditadura militar - Brasil. 2. Violao de direitos humanos. 3. Relatrio final. I.Ttulo. CDD 323.81044
  3. 3. COMISSO NACIONAL DA VERDADE RELATRIO Volume II TEXTOS TEMTICOS Jos Carlos Dias Jos Paulo Cavalcanti Filho Maria Rita Kehl Paulo Srgio Pinheiro Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari Rosa Maria Cardoso da Cunha dezembro / 2014
  4. 4. 7 NDICE APRESENTAO .............................................................................................................................................9 Texto 1 - Violaes de direitos humanos no meio militar ................................................................................11 Texto 2 - Violaes de direitos humanos dos trabalhadores .............................................................................57 Texto 3 - Violaes de direitos humanos dos camponeses ................................................................................91 Texto 4 - Violaes de direitos humanos nas igrejas crists ..............................................................................155 Texto 5 - Violaes de direitos humanos dos povos indgenas .........................................................................203 Texto 6 - Violaes de direitos humanos na universidade ................................................................................265 Texto 7 - Ditadura e homossexualidades ..........................................................................................................299 Texto 8 - Civis que colaboraram com a ditadura ..............................................................................................313 Texto 9 - A resistncia da sociedade civil s graves violaes de direitos humanos...........................................341
  5. 5. 9 Apresentao O presente volume do Relatrio da Comisso Nacional da Verdade contm um conjunto de textos produzidos sob a responsabilidade individual de alguns dos conselheiros da Comisso. Inclusive parte desses textos foi elaborada a partir da atividade desenvolvida por grupos de trabalho constitudos no mbito da prpria Comisso, integrando vtimas, familiares, pesquisadores ou interessados na memria dos temas e das pessoas investigados. Os textos referem-se a violaes de direitos humanos ocorridas em diferentes segmentos, grupos ou movimentos sociais, a exemplo de militares, trabalhadores urbanos e rurais, camponeses, povos indgenas, membros de igrejas crists, homossexuais, docentes e estudantes universitrios. Tambm integram este volume textos que registram a reao de muitos que resistiram ditadura militar a partir de seus ofcios, suas atividades e seu cotidiano, assim como a participao dos civis no golpe e no regime ditatorial, notadamente de empresrios. O conselheiro que redigiu ou supervisionou a produo do texto, os assessores da Comisso e os colaboradores externos que participaram de sua elaborao esto identificados no incio de cada contribuio. Braslia, 10 de dezembro de 2014. COMISSO NACIONAL DA VERDADE
  6. 6. 1 texto violaes de direitos humanos no meio militar
  7. 7. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 12 Este texto foi elaborado sob a responsabilidade da conselheira Rosa Maria Cardoso da Cunha. Pesquisas, investigaes e redao fo- ram desenvolvidas pelos pesquisadores da Comisso Nacional da Verdade Paulo Ribeiro da Cunha, Wilma Antunes Maciel, Guilherme Bravo e Joo Vicente Nascimento Lins, como parte das atividades do Grupo de Trabalho sobre a Perseguio a Militares. O processo poltico brasileiro tradicionalmente conservador, operando com a ideia de conciliao, o que limita as possibilidades do reconhecimento poltico de atores que estejam situados em campo ideologicamente diverso. Mesmo nos perodos democrticos perdura certo grau de intolerncia com os que exibem posies contrrias. Entre os atores historicamente no reconhecidos ou excludos da participao poltica legtima esto parcelas de militares, situadas, em especial, entre os militares de baixa patente. O embrio do que se poderia chamar de perse- guio a militares ou militares perseguidos localiza-se entre a proclamao da Repblica e 1930, reunindo oficiais e praas das Foras Armadas, bem como membros das polcias militares, fossem eles republicanos histricos ou liberais, agindo como atores coletivos ou individuais que sofreram, enquanto jovens militares, influncias ideolgicas da esquerda, como a Revoluo Russa, ou eram nacionalistas e objetivavam construir um projeto de nao. O projeto de modernizao conservadora ps 1930 foi respondido por esse grupo de milita- res com diferentes manifestaes de rebeldia, expressas em dezenas de revoltas nos quartis entre 1930 e 1932. A conscientizao dos militares passou a ser indesejada. O elitismo dessa posio gerou, ento, a Doutrina Ges Monteiro, que emergiu com inegvel influncia nas dcadas subsequentes. Ela visava erradicar a poltica no Exrcito e estabelecer a poltica do Exrcito. O significado maior da Doutrina era que a poltica entre os militares s deveria receber ateno do Alto Comando. Dois acontecimentos nessa fase teriam importncia para a formao dos militares: primeiro, a derrota do Levante de 1935, que teve especial repercusso no meio militar, determinando posies anticomunistas como poltica de Estado para um conjunto de militares e, para outros, situados esquerda ou nacionalistas, significando um reforo de suas concepes legalistas e avessas a golpes. O segundo acontecimento foi a participao dos militares brasileiros na Segunda Guerra Mundial. No campo de batalha italiano, um grupo de oficiais, futuros militares perseguidos, elaborou um documento a favor da anistia e da redemocratizao intitulado A FEB: smbolo de unio nacio- nal. O documento foi subscrito por 282 oficiais, a maioria tenentes e capites, e teve considervel repercusso na imprensa1 . Alguns dos signatrios viriam a integrar a lista de militares perseguidos ao longo das dcadas seguintes, como o brigadeiro Rui Moreira Lima, coronel Kardec Lemme, tenente- coronel Paulo Mello Bastos, brigadeiro Fortunato Cmara e coronel Paulo Eugnio Pinto Guedes, havendo os trs primeiros prestado depoimento Comisso Nacional da Verdade (CNV). Entre 1946 e 1988, o grupo de militares perseguidos era composto por militares nacionalis- tas, socialistas e comunistas. Formado por oficiais e praas, esse grupo foi perseguido de vrias formas: mediante expulso ou reforma; sendo seus integrantes instigados a solicitar passagem para a reserva ou aposentadoria; sendo processados, presos arbitrariamente e torturados; quando inocentados, no sendo reintegrados s suas corporaes; se reintegrados, sofrendo discriminao no prosseguimento de suas carreiras. Por fim, alguns foram mortos. Esse grupo apresenta um nmero expressivo de inte- grantes, sendo a categoria social que contabilizou maior nmero de violaes de direitos ao longo do perodo, quando comparadas, proporcionalmente, com outras categorias. Incluem-se necessariamente
  8. 8. 13 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 neste clculo aqueles perseguidos por participar das lutas pelas grandes causas nacionais, entre 1946 e 1964, bem como os perseguidos no limiar do processo de redemocratizao, em sua maioria praas e bombeiros das Polcias Militares. O atual diagnstico da CNV revela, conforme registrado, um expressivo nmero de milita- res perseguidos, o qual pode ainda ser ampliado por novas investigaes. Constata-se, por esse diag- nstico, um total de 6.591 militares perseguidos (do Exrcito, Marinha, Aeronutica e Foras Policiais), incluindo nomes de oficiais e praas, bem como de policiais e bombeiros, atingidos nos anos 1980. Fora Oficiais Praas Total Aeronutica 150 3.190 3.340 Exrcito 354 446 800 Marinha 115 2.099 2.214 Foras Policiais estaduais 103 134 237 Total de oficiais 722 Total de praas 5.869 Total geral 6.591 Fonte: A principal fonte desse diagnstico o projeto Brasil: nunca mais, combinado com dados de militares perseguidos levantados por outros acervos, como o Arquivo Pblico do Estado de So Paulo, o Arquivo Nacional/Braslia, o Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, o Cedem/Unesp, Ana Lagoa/Ufscar, o Comit Brasileiro pela Anistia/CBA e acervos particulares. Tambm documentos oficiais, como os Atos Institucionais, processos, IPMs, documentos desclassificados, os dados de listas de militares feitas por suas entidades na luta pela anistia, muitas delas em atividade. Tambm foram consideradas fontes acadmicas e histricas. Nesse diagnstico foram utilizadas ainda informaes de depoimentos individuais e Audincias Pblicas de Militares Perseguidos, realizadas no Rio de Janeiro, So Paulo e Rio Grande do Sul. Salvo nomes identificados como perseguidos tanto em 1964 como no perodo entre 1946 e 1964, no se inclui nessa contagem a maioria dos militares perseguidos durante esse primeiro perodo. Aproximadamente 1.000 militares foram perseguidos entre 1946 e 1964, segundo testemunhos ver- bais.2 Se somarmos estes aos atingidos em 1964, teremos um nmero de 7.591 militares perseguidos.3 Corroborando a grandeza dos nmeros deste levantamento, recorde-se que os militares so a categoria com o maior nmero de processos encaminhados Comisso de Anistia.4 A) Os militares e a democracia: 1946-1964 Os militares foram uma presena constante no processo poltico brasileiro em todas as eleies presidenciais at 1964. Na Constituinte de 1945, dezenas de oficiais e praas concorreram a cargos legislativos nas vrias esferas parlamentares, por diferentes partidos polticos. Entre os milita- res que futuramente comporiam o grupo dos militares perseguidos constata-se maioria significativa concorrendo pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, mais restritamente, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Por terem posio poltica e ideolgica diversa, muitos militares vincularam-se a uma agremiao conservadora, como a Unio Democrtica Nacional (UDN). Para compreender-se a questo dos militares perseguidos e da democracia no perodo de 1945 a 1964, e mesmo depois, h trs pontos decisivos: a anistia, as tentativas de investigao de crimes rela- cionados ao Estado Novo e do papel dos militares na criao da Constituio de 1946. Todos remetem problemtica contempornea da construo da democracia e do Estado Democrtico de Direito. Com o Decreto-Lei no 7.474, de 18 de abril de 1945, Getlio Vargas procurou anistiar ati- vistas que participaram de crimes polticos desde 1934, podendo os militares ser beneficiados com a
  9. 9. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 14 reintegrao aps parecer favorvel de comisses de militares. A anistia possibilitou a libertao de 565 presos polticos, entre eles muitos militares; o mais famoso era Luis Carlos Prestes, preso havia dez anos. Componentes ideolgicos permearam essas comisses, induzindo sua parcialidade. Militares naciona- listas e de esquerda participantes do Levante de 35 no foram contemplados com anistia. Contudo, os que participaram do pustch integralista de 1938 tiveram suas pretenses atendidas pelas comisses militares, criando-se uma lacuna em relao aos primeiros at a anistia da Constituio de 1988. Quanto investigao dos crimes atribudos ao Estado Novo, seu adiamento preocupou parlamentares de origem militar, como o general Euclides Figueiredo (UDN), que atuou no sentido de ampliar a anistia, visando a que ela contemplasse os militares perseguidos no perodo, como um teste para a democracia a ser construda ps-Estado Novo. Por sua iniciativa, foi instalada em 1946 a Comisso Encarregada de examinar os servios do Departamento Federal de Segurana Pblica, seguida da Comisso de Inqurito sobre os atos delituosos da Ditadura, cujo contedo trouxe tona denncias sobre torturas entre militares. As denncias, entretanto, no se traduziram em punio. Sobre a participao dos militares no processo eleitoral, a Carta de 1946 retoma a posio contida na Constituio de 1934, que garantia maior autonomia para as Foras Armadas. Em seu artigo 176, ressalta que estas so instituies nacionais, organizadas com base na hierarquia e discipli- na. O n grdio da questo seria o artigo 132, cuja interpretao era restritiva ordem democrtica. Oficiais podiam votar ou ser votados, porm os praas, at a graduao de cabo, estavam excludos desse exerccio de cidadania. Em aberto ficava a situao dos que estavam entre a patente dos cabos e a dos oficiais, havendo a dvida de serem inelegveis ou serem uma exceo inelegibilidade dos praas.5 A soluo dessa ambiguidade ficaria a cargo dos juzes nos tribunais, gerando polmicas nos anos 1960. No perodo subsequente, a democracia brasileira foi tensionada pela polarizao ideolgica existente a partir da Guerra Fria. Conflitos internacionais refletiram-se internamente na poltica brasi- leira e elementos de combusto somaram-se a esse processo. A fundao da Escola Superior de Guerra (ESG), com sua Doutrina de Segurana Nacional, de influncia americana e, mais tarde, francesa, potencializaria exponencialmente o antagonismo entre os militares e a sociedade. Outro motivo para o antagonismo no interior das Foras Armadas foi o espectro do Levante de 1935, ao qual j nos refe- rirmos, que passou a ser uma referncia no discurso dos militares conservadores. A polmica cassao do PCB, seguida em 1948 da perda do mandato de seus parlamentares, por outro lado, provocou uma forte rotao esquerda, por parte dos militares comunistas. Estes passaram a pregar o assalto ao poder, expresso no Manifesto de Janeiro de 1948 e no Manifesto de Agosto de 1950. As lies de 1935 no foram esquecidas pelos militares. Nacionalistas e esquerdistas as interpreta- riam na dcada de 1960 como uma orientao para adotarem um comportamento legalista. Em contrapar- tida, os praas comearam a radicalizar suas posies. Enquanto isso, os militares conservadores iniciavam uma violenta represso aos militares nacionalistas e de esquerda, em nome do combate ao comunismo. 1. O Clube Militar e o debate das causas nacionais O Governo Eurico Gaspar Dutra, reconhecidamente conservador, no tardou em impor polticas repressivas aos militares nacionalistas, executadas com um vigor semelhante ao do Estado Novo6 . A democracia exibia seus limites. Estavam em curso articulaes golpistas de setores civis e militares, especialmente vinculados UDN, que seriam uma constante at 1964. Essas articulaes conviviam com a discusso das teses de militares de esquerda e democratas e com uma agenda de defesa das causas nacionais como a campanha O Petrleo Nosso, a da no participao de soldados bra-
  10. 10. 15 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 sileiros na Guerra da Coreia e a que se opunha internacionalizao da Amaznia. Confrontavam-se, na poca, duas correntes antagnicas no plano poltico e ideolgico: uma nacionalista e de esquerda, outra adjetivada de entreguista, por advogar a tese da participao dos capitais estrangeiros no Brasil. Um dos fruns do debate em curso, com reflexo no somente na caserna, mas tambm na sociedade, passa a ser o Clube Militar, a partir da eleio de 1950. Tratava-se de um prembulo das eleies presidenciais que se sucederiam no Brasil e cujo eplogo se daria com o golpe de 1964. A po- lmica relacionada s causas nacionais tambm seduzia os praas e marinheiros, que se organizavam nas vrias associaes de classe, como as Associaes de Subtenentes da Fora Area Brasileira e do Exrcito, incorporando segmentos das polcias militares pelo pas. Na Marinha havia um forte grau de associativismo, pois ali as demandas corporativas por melhores condies de trabalho no tinham sido equacionadas desde a Revolta da Chibata, em 1910. Associada a essas demandas havia uma reflexo sobre o papel dos marinheiros e de sua posio na ordem democrtica. 2. Perseguio aos militares no perodo democrtico Os dados relacionados perseguio de militares nesse perodo ainda so muito precrios. Oficiais e praas ainda aguardam o julgamento de seus processos de anistia. Um efetivo diagnstico quantitativo reclama levantamento detalhado. Sabe-se que centenas de militares foram expulsos das Foras Armadas e que outros tiveram suas carreiras abortadas. Entre os que continuaram na ativa, alguns foram permanentemente perseguidos e, afinal, cassados em 1964. Tendo em vista as divergncias ideolgicas existentes, veiculadas pela grande imprensa e discu- tidas em associaes de militares, como no Clube Militar, ou a Casa dos Sargentos do Brasil, as diretorias dessas entidades passaram a ser perseguidas, sofrendo, inclusive, uma interveno branca. Seus membros foram designados para servir em guarnies distantes. Exemplos desses casos so os majores Nelson Werneck Sodr, designado para servir em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul; Tcito Lvio de Freitas, enviado para So Lus, no Maranho; Humberto Freire de Andrade, que foi para Aracaju; ou o capito Joaquim Miranda Pessoa de Andrade, designado para Fortaleza. Todos foram cassados em 1964. Os Depoimentos esclarecedores,7 publicados pelo Congresso Nacional, contm o relato de de- zenas de prises de militares das Foras Armadas no perodo e, particularmente, em 1952, muitos deles torturados. As denncias foram divulgadas pela imprensa e no parlamento, e perfazem um quadro revelador sobre a perseguio havida, oferecendo a possibilidade de um diagnstico sobre a represso a esse grupo, particularmente queles acusados de serem comunistas. 2.1. Priso arbitrria de oficiais Nos Depoimentos Esclarecedores constam denncias relacionadas a oficiais que sofreram trata- mento que no s violavam direitos e garantias individuais reconhecidos pela Constituio de 1946, mas tambm confrontavam o Estatuto dos Militares, configurando um desrespeito sua condio de militar e s suas patentes.8 A propsito vieram a pblico as precrias condies de priso do capito Joaquim Incio Batista Cardoso, oficial com tradio familiar na carreira das armas, que remonta guerra do Paraguai. Senhor senador Domingos Velasco Venho presena de vossa excelncia para pedir-lhe que denuncie nao e combata, da tribuna do Senado, a arbitrarie-
  11. 11. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 16 dade que esta sendo cometida contra o capito Joaquim Incio Batista Cardoso, meu esposo, que no momento se encontra preso no regimento de reconheci- mento mecanizado. Est preso h dois meses, esteve durante muitos dias sujeito a rigorosa incomunicabilidade, e h pouco dias foi contra ele decretada priso preventiva, pelo auditor Abel Caminha, apesar do parecer contrrio do promo- tor. Peo a ateno de vossa excelncia para esse aspecto da questo: a priso preventiva ter sido decretada contra o parecer da promotoria. A maneira pela qual os fatos se encadeiam interrogatrios sucessivos, insinuaes descabidas, incomunicabilidade, 60 dias de priso, priso preventiva contra o parecer da Promotoria parece indicar a preocupao de arranjos e combinaes que ve- nham a colocar mal o referido oficial.9 Outra denncia refere-se ao major Leandro Jos de Figueiredo Junior, membro da FEB, pre- so pela mesma acusao do capito Joaquim Incio, sem ter respeitadas suas garantias constitucionais. A carta que encaminha a denncia termina afirmando que a acusao no fora referenciada por provas. Venho presena de vossa excelncia, na qualidade de esposa do major Leandro Jos de Figueiredo Jnior, para por seu intermdio denunciar nao um fato que considero arbitrrio, ofensivo dignidade humana e uma ameaa tranquilidade dos lares de todos os militares [...] E o que mais doloroso: constatei que ele estava fechado a cadeado, que as janelas do compartimento estavam fechadas a prego, que no quarto no entrava ar, seno pela bandeira da porta que d para o corredor interno, e no entrava sol. Constatei ainda que diante desta porta permanece um soldado armado e que para que seja aberta preciso formar a guarda (trs solda- dos) de acordo com as formalidades previstas para abrir o xadrez das praas [...] Este fato que desejava denunciar: a priso nas condies em que foi feita, sem qualquer ateno para com a famlia, a permanncia da incomunicabilidade e o tratamento incompatvel com o oficialato.10 Outra carta-denncia, anloga quanto ao contedo, refere-se ao caso do capito Joaquim Miranda P. de Andrade, fazendo um alerta para o risco de ruptura institucional, tendo em vista que aquelas violaes estavam ocorrendo em um regime democrtico.11 Poucas semanas depois houve denncias relacionadas priso e incomunicabilidade de outros oficiais, como Jlio Cezar Machado de Oliveira, sequer denunciado pela promotoria, em face da ausncia absoluta de provas.12 Em outra denncia tambm exposto o caso do tenente da Aeronutica Mauro Vinhas de Queiroz.13 Por fim, grave denncia relaciona violaes havidas na presena de oficiais americanos que acompanharam os processos e mesmo as prises. Essa denncia corroborada por relatos de alguns marinheiros. Em discurso no Parlamento, o senador Domingo Velasco14 afirmaria sobre o marinheiro Jos Pontes de Tavares, preso e barbaramente torturado: Preso no dia 13 de junho, por ordem do ministro da Marinha, priso que foi efe- tuada por escolta constituda de soldados e oficiais da Marinha e do exrcito, civis da polcia poltica e trs americanos, foi ameaado de morte, barbaramente espan- cado e amarrado no ato da priso e assim conduzido sob a mira de metralhadoras e outras armas para a Polcia do Exrcito (PE).15
  12. 12. 17 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 Vtimas da mesma situao de priso arbitrria e sem acusao formal so o capito tenente Thales Godoy, o major aviador Fortunato Cmara de Oliveira, heri do Grupo Senta Pua, e o major aviador Sebastio Dantas Loureiro, combatente na Segunda Guerra. As prises dos majores Julio Csar Machado e Leandro Jos de Figueiredo Jnior foram afinal legalizadas pelo Superior Tribunal Militar (STM) e eles foram formalmente processados. Face ao absurdo jurdico de suas prises e processos, vrios articulistas escreveram condenando as violaes de direitos ocorridas. Entre estes artigos destaca-se o do advogado Sobral Pinto: [...] para que algum possa ser regularmente processado e preso como indiciado ou autor de um crime contra as instituies militares do pas, indispensvel que tenha praticado ato que seja definido como crime pela legislao penal respectiva. Sem que em inqurito, legalmente instaurado, seja feita a prova de que a ao im- putada a militar tenha sido declarada, previamente, crime de natureza militar, este no poder sofrer priso [...] No se concebe, em regimes constitucionais, como no que predomina no Brasil, que o poder judicirio ou o poder executivo se insurjam, como acaba de fazer o Superior Tribunal Militar, contra a lei penal, declarando- a caduca, insuficiente ou perniciosa. [...] Para manter presos os oficiais do Exrcito, despreza o texto claro, preciso da lei, e abraa, imprudentemente, o princpio vago e genrico da periculosidade das ideias e dos atos. 16 2.2. Prises e torturas de marinheiros e praas No volume II dos Depoimentos esclarecedores17 v-se oito cartas, sendo seis coletivas, assinadas por 113 praas da Aeronutica, Exrcito, marinheiros e fuzileiros navais, alguns civis ex-funcionrios da Base Area de Natal e duas individuais, uma assinada por um oficial do Exrcito e outra por um civil, endereadas presidncia da Associao Brasileira de Defesa de Direitos do Homem (ABDDH).18 Entre elas h uma carta com denncias detalhadas sobre a perseguio a militares de baixa paten- te. Nessas cartas h o relato das terrveis torturas fsicas a que foram submetidos em unidades das Foras Armadas, bem como torturas psicolgicas, com ameaas de serem transferidos para as Polcias Militares ou ainda ameaas de submeter suas esposas e seus filhos a igual tratamento. Os locais das prises e torturas citados pelos mencionados militares so unidades das Foras Armadas do Rio de Janeiro, Natal, Salvador, Fortaleza, Recife, Porto Alegre e, em alguns casos, prises que ocorreram com a presena de americanos. Citam-se tambm os torturadores e responsveis. H relatos de toda ordem: humilhaes, agresses, insultos, que se estendiam, inclusive, a familiares dos presos em tentativas de visita ou na oportunidade da priso, ainda em suas residncias. Em protesto, no foram poucos os praas que entraram em greve de fome como protesto. A brutalidade do ocorrido chama a ateno e o depoimento do marinheiro Jos Pontes de Tavares, barbaramente torturado, revelador: Na mesma noite, foi entregue Polcia Civil (DOPS), onde foi espancado barbaramente por mais de uma hora, levado nu para uma cela cheia fezes e coberta com p de serra. Esfregado nesses dejetos, forado, em seguida, a ingerir uma dose cavalar de leo de r- cino. Permaneceu nesse local sob espancamentos constantes e purgativos em nmero de seis, at o dia 18 sem comer e sem beber absolutamente nada. No dia 23 redobram-se os espancamentos e sevcias, sendo praticado consigo fora atos de pederastia, introduo
  13. 13. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 18 no reto de cassetete, untado de pimenta, e de dedos; foi- lhe esfregado pimenta nos olhos; cuspiram-lhe dentro da boca; com um alicate puxaram-lhe o pnis; com um cano de borracha esmagaram lhe os testculos. Durante tais sevcias de mais de trs horas caiu em estado de coma. Para recobrar os sentidos jogavam-lhe baldes de gua fria no corpo. As- sim, sob esse regime, permaneceu at o dia 30 de junho, sem comer, sem beber. No dia 1o de julho baixou ao Hospital Central do Exrcito, com o ouvido purgando, sem poder andar, quase morto. Esteve tambm preso em uma cela do Batalho de Guardas (BG), onde foi espancado pelo capito Adriano Freire, acompanhado de outro oficial. Condu- zido no dia 10 de agosto para o Presdio da Marinha, foi arrastado violentamente para uma solitria pelo sargento carcereiro Pedro Guanabara de Miranda, que comandava 16 soldados, todos de baioneta calada. Na solitria, permaneceu at o dia 26 de setembro de onde foi tirado para um tnel (priso 4). Durante esse perodo (de 13 de junho a 26 de setembro) esteve debaixo de completa incomunicabilidade.19 Em outros casos, os presos ficaram incomunicveis por semanas ou meses e, sem exceo, foram torturados, como se pode ver nos autos dos processos de 21 marinheiros e fuzileiros navais. Comum eram o espancamento, a deteno em cela cheia de fezes, onde muitos permaneciam nus, sem comer e beber, alm de muitas vezes serem obrigados a tomar leo de rcino. So casos como o do ex-cabo fuzileiro Israel Militino de Oliveira, onde se registra: Preso no dia 20 de maio, por ordem do ministro da Marinha, foi levado para o 1o Batalho de Carros de Combate, onde passou dez dias incomunicvel. No dia 30 de maio foi conduzido para a PE, onde foi espancado, humilhado, ameaado de morte, de ser lanado de uma janela, como aconteceu ao taifeiro Clarindo Pereira Serpa. Depois foi conduzido para o 1o R.C.G., onde foi espancado a socos, pontaps, e murros, onde lhe arrancaram a barba j crescida, a unha, ficando nesse estado de padecimento 29 dias. Levado depois para o Presdio da Marinha, continuou inco- municvel, sendo torturado e para evitar maus-tratos, procedeu como os demais, entrando em rigorosa greve de fome.20 No s o depoente anterior, mas vrios militares tiveram seus testculos esmagados com alicate e a barba arrancada. Mesmo quando foram levados ao hospital, denunciaram a precariedade do tratamento recebido e sesses de tortura aps o atendimento mdico. Os presos tambm eram levados a lugares ermos e ameaados de serem empurrados despenhadeiro abaixo. Eram ameaados de serem jogados de janelas nos locais em que estavam detidos. O desespero em face das torturas determinou que muitos fizessem greve de fome por mais de 18 dias. Noutros casos, situaes de torturas eram agravadas quando os seviciados recusavam-se a assinar um documento forjado ou quando a denncia pblica no poupava os torturadores, muitos dos quais foram citados e identificados. Dentre estes, encontram-se oficiais generais e aspirantes, alm de grande quantidade de policiais civis21 . Denncias de torturas e sevcias praticadas na Base Area de Natal, contra sargentos e um civil no foge regra imposta aos marinheiros e fuzileiros navais.22 Ilegalmente presos, desrespeitados em seus direitos e suas garantias individuais, tendo inobservada a sua condio de militar, incomunicveis por se- manas ou meses, os praas descrevem um quadro de brutalidade e agresses como tapas, pontaps, recluso em armrios, permanncia nus por vrios dias, privados de alimentao e sono, queimaduras de cigarro pelo corpo, inclusive no nus. O relato do terceiro-sargento Antonio Paulo Andreazzi, esclarecedor:
  14. 14. 19 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 Novamente preso a 2-VI-52 em Natal, no hangar onde trabalhava, conduzido com outros para o 16o RI, sob ameaas do major Roberto Hiplito da Costa, que gritou para a escolta a ordem massacrar; qualquer coisa responda com cassetete; se for pre- ciso, chumbo na testa. Nessa unidade, fica incomunicvel, em pequena cela, de onde retirado para interrogatrio no prprio quartel. Sob ameaa, procuram impor-lhe que assine documentos pr-fabricados. Entre os inquisidores est o major Hiplito que tenta estrangul-lo, no conseguindo levar at o fim seu intento porque houve inter- veno de outros torturadores, inclusive do tira presente. Entre os presentes estava o coronel comandante do 16o R.I.A 4; transferido para a base, prosseguem os inter- rogatrios, acompanhados de espancamentos, ameaas de morte, palavres de toda ordem. As mais vrias torturas tm lugar, praticadas pelos majores Hiplito e Souza Mendes, capito R.I.M Pereira, tenente C.A.B. Cmara e aspirante Magalhes. Entre as torturas, sofre socos, pontaps, espancamentos com cassetetes. Nos intervalos, era jogado num armrio calafetado, saturado de fumaa. Nesses dias conheceu as celas que formariam mais tarde um agrupamento, construdo, segundo o major Hiplito, conforme modelo aperfeioado dos campos de concentrao nazista; celas pequenas 1,90 x 0,90 x 1,90, toda de concreto, com portas metlicas, abafadas, midas e prati- camente sem renovao de ar. Apenas com dois furos de cinco cm de dimetro no teto. Da s saa para as torturas. A 6-VI volta ao 16o R.I. A 23-VI, novamente conduzido base, raspam-lhe a cabea e a sobrancelhas e jogam-no nas citadas celas individu- ais. Diariamente retirado para interrogatrios, acompanhados de toda sorte de espancamentos e sevicias. Entre as torturas, uma caracteriza bem o e esprito sdico dos torturadores. Mantido sentado, ritmicamente o major Hiplito d na cabea com uma caixa; o aspirante Magalhes bate com uma rgua nas orelhas; o capito Ivan d nas mos; e o tenente Cmara nos joelhos, por mais de 40 minutos. Depois h um apagar de luzes, seguido de pescoes e pontaps etc. Tudo isso ao mesmo tempo que rasgada a farda e so arrancadas as divisas, numa antecipao do ato ilegal do senhor ministro. Tais foram as torturas, que as pernas ficaram totalmente retesadas. Tambm foi posto frente a uma forte lmpada. Aps 11 dias volta ao 16o R.I A 28-VII defini- tivamente transferido para o campo de concentrao da base area.23 Em algumas ocasies, a priso foi em cela mida, com alto-falantes ligados, ao que se somava um agravante: o no pagamento dos vencimentos aos familiares. Os presos denunciavam que a base area tornara-se um campo de concentrao, com requintados mtodos de tortura fsica e moral, sendo igual- mente citados os oficiais envolvidos na tortura. Segundo os presos, esses oficiais eram indignos de vestirem a farda das Foras Armadas. Ao final, os presos denunciaram o ato ilegal de sua expulso da corporao.24 Nos Depoimentos esclarecedores, h denncias correlatas de prises e torturas na 6 Regio Militar, que inclui os estados da Bahia e Sergipe, impostas a 30 militares, incluindo oficiais e civis. O major Joo Teles de Menezes denunciou que foi arbitrariamente preso e mantido incomunicvel por 49 dias, tendo se deteriorado seu estado de sade, sem ateno mdica. Nessa ocasio, foram presos seus filhos e genros e ameaadas sua esposa e filha. Major Joo Teles de Menezes: preso no dia 15 de agosto de 1952 foi conduzido Bahia e recolhido ao 19o BC, donde era levado ao Forte do Barbalho para depor passando de cada vez 3 a 4 dias no forte, jogado numa cova infecta, antigo depsito de lenha com
  15. 15. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 20 um balde onde deviam ser satisfeitas as necessidades fisiolgicas o qual no era despe- jado. Acometido de forte infeco intestinal, em consequncia da alimentao que lhe era dada, no teve tratamento adequado, o que fez agravar tanto seu estado e sade que, chamado para depor, debaixo de insultos de baixo calo, perdeu por duas vezes os sentidos. Certa vez foi levado de madrugada, em uma camionete, a uma praia, numa nova forma de coao. Seus filhos e genros foram espancados, tendo um dos filhos fu- gido por ter sido ameaado de morte. Levaram as ameaas a sua esposa e filha. Passou 49 dias incomunicvel durante os quais sua debilidade orgnica chegou a um grau tal que, quando sua famlia pode v-lo, tinha que ser ajudado a se levantar da cama. Ao ser levado para assinar os depoimentos disse lhe o coronel Freitas: cheguei a no dar nada pela sua vida. J comunicvel, ao ser levado para acareaes, as mesmas eram precedidas da ameaa de que se no confirmasse tudo quanto lhe fosse perguntado seria posto em situao pior do que a anteriormente. 25 Situao semelhante est referida na denncia sobre os praas da 6 Regio Militar, todos em pssimas condies de priso, celas midas e incomunicabilidade por semanas, at meses. Alm de encarcerados em condies degradantes, sofrendo tortura psicolgica e incomunicabilidade, eram ameaados de serem entregues polcia ou presos com ladres e loucos. Juntando-se a esses procedi- mentos, sofriam ameaas de fuzilamento. Tambm citada na denncia a falta de assistncia aos praas quando ficavam doentes e eram transferidos para hospitais. Ali eram constantemente ameaados de serem seviciados na presena de suas famlias.26 Em outros casos, militares presos foram ameaados para assinarem folhas em branco. Em um desses casos, h denncias de torturas de crianas e mulheres, familiares dos presos. Noutra opor- tunidade um preso foi assistido por um padre, a quem informou que as torturas haviam levado um companheiro a tentar o suicdio. Entre os citados, um civil narra que. ao invocar a Constituio, ouviu o torturador determinar que no se falasse nessa prostituta derrotada.27 Outras denncias remetem a 17 civis torturados na Base Area de Natal, servida por uma maioria de funcionrios civis. Dezenove sargentos da Aeronutica, membros da Casa do Sargento do Brasil,28 foram vti- mas de prises ilegais e ficaram incomunicveis. Eles denunciaram brutalidades, identificaram tortu- radores e tambm as pssimas condies em que ficaram presos: celas infectas, sendo constantemente molhados, interrogados sob tortura e muitos entregues Polcia Poltica. Em Porto Alegre, 12 mi- litares, que responderam a processos no Rio de Janeiro,29 denunciaram torturas semelhantes. Outra denncia remete a processo movido contra diretores da Casa do Sargento do Brasil.30 Os casos de militares torturados reproduzem, portanto, o padro identificado. Em 1953, algumas sentenas foram proferidas na Justia, mas os casos de expulso da corpo- rao, particularmente os dos praas da Marinha, so mais numerosos que os dados disponibilizados. Nesse perodo, por exemplo, um processo no relacionado nos Depoimentos esclarecedores indica 30 marinheiros expulsos da Armada.31 O coronel Olmpio Ferraz, que estava sendo processado, teve o caso encerrado por sentena do Supremo Tribunal Federal. Noutra deciso, v-se um pedido de absolvio de vrios policiais militares do Distrito Federal. A despeito de os 30 militares da Fora Area terem sido absolvidos por unanimidade na primei- ra instncia, houve recurso da Auditoria da Aeronutica ao Superior Tribunal Militar. Em decorrncia, 12 militares foram condenados e cinco excludos do processo. Entre os excludos e absolvidos, havia sargentos expulsos antes de qualquer julgamento, que ainda no haviam sido anistiados. Houve tambm oficiais que cumpriram sentena, mas, dada a dimenso de suas penas, no perderam a patente. Esses,
  16. 16. 21 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 contudo, no conseguiram a reintegrao completa e suas promoes foram pautadas por antiguidade. Uma legislao especfica ento aprovada, a Lei no 1.507 e a Lei da Reforma de Oficiais, permitia transfe- rir para a reserva elementos suspeitos, sem qualquer processo judicial. Quase uma dcada depois, muitos daqueles militares, j na reserva, seriam includos na lista de militares cassados pelo golpe de 1964.32 3. Os militares perseguidos na defesa da legalidade democrtica O pas caminhava para um turbulento processo sucessrio, pautado pelo debate sobre temas nacionalistas, cujo eplogo foram as vrias tentativas de golpe capitaneadas por setores civis e militares. Em nova eleio para o Clube Militar, surgiu a Cruzada Democrtica, expresso militar dos civis partidrios da UDN. A luta poltica entre as vrias tendncias teria continuidade com o Manifesto dos Coronis, cujo contedo atentava abertamente contra o governo de Getlio Vargas, legalmente constitudo. Entre os 80 oficiais signatrios do Manifesto destacava-se, em primeiro lugar, o coronel Amaury Kruel, encarregado dos Inquritos Policiais Militares em 1952 e que tambm estaria na linha de frente do golpe militar de 1964. O clima de rebelio contra Getlio Vargas seguiu seu curso com o atentado a Carlos Lacerda e o falecimento de um oficial da Aeronutica, o major Rubens Vaz, que o escoltava. A crise poltica refletiu-se nos quartis e em vrios comandos navais e redundou na constituio da comisso de investigao conhecida como Repblica do Galeo. Seguiu-se um ltimo ato sedicioso, o manifesto assinado por 32 generais. A renncia exigida do presidente teve como resposta o suicdio de Vargas, adiando, por dez anos, o golpe de 1964. A democracia brasileira estaria sob a Espada de Dmocles. Em sua defesa, observa-se a inter- veno dos militares perseguidos no processo sucessrio, os quais defendiam a legalidade democrtica. Um dos expoentes dessa posio foi o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, oficial nacio- nalista, disciplinado e disciplinador, que atuara com determinao ao assegurar a posse do presidente recm-eleito Juscelino Kubistchek, em 1955. frente do Ministrio da Guerra, Lott teve atuao democrtica, fosse com a recusa em discriminar oficiais por suspeitas ou aleivosia, fosse reconhecendo direitos at ento negados aos praas, como a estabilidade dos sargentos aps dez anos de servio. No vale a pena rememorar em detalhes os fatos polticos desse momento histrico, pois so bem-conhecidos. Pouco antes da posse de Juscelino Kubistchek aconteceria o episdio que resultou na deposio do presidente em exerccio, Carlos Luz, mais conhecido como o 11 de no- vembro.33 Registre-se, somente, a atuao de militares e praas das Foras Armadas em defesa da legalidade democrtica, e a pouco conhecida interveno de policiais da fora pblica de So Paulo, tendo frente o general Miguel Costa. Pouco tempo depois, eclodiriam duas revoltas capitaneadas por oficiais da extrema direita da Aeronutica, a de Jacareacanga, em 10 de fevereiro de 1956, e a de Aragaras, em 2 de dezembro de 1959. A articulao contrria a esses golpistas teve a presena de muitos oficiais legalistas, como o ento coronel Francisco Teixeira, cassado em 1964, ativo militante na causa dos militares perseguidos frente da Associao Democrtica e Nacionalista dos Militares (ADNAM). Com a renncia de Jnio Quadros, os ministros militares assumiram posio poltica carac- terizada como sedio, de impedir a posse do vice-presidente, confrontando o prprio cdigo militar. O golpe foi abortado frente ampla mobilizao popular, impulsionada pela Campanha da Legalidade, liderada no Rio Grande do Sul pelo governador Leonel Brizola. Teve a adeso de unidades militares das trs foras e de algumas corporaes estaduais, como a Brigada Militar do Rio Grande do Sul e a
  17. 17. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 22 Polcia Militar de Gois, ambas contrrias posio dos ministros. Por fim, teve a adeso do Comando do III Exrcito. Joo Goulart assumiu o governo aps um acordo poltico que implementou o parla- mentarismo, sistema de governo que alcanou curta durao. Nessa ocasio a democracia brasileira expressou com maior clareza seus limites e suas possi- bilidades; inicialmente, repelindo as posies de uma maioria de militares contrria ao posicionamento poltico, anticonstitucional e golpista de um grupo, pretendendo vetar a posse de um presidente eleito. A Doutrina Ges Monteiro foi, ento, posta em xeque, j que a revolta advinda de setores civis, articu- lados com militares, inclua a presena dos subalternos como ator poltico. Os sargentos mobilizaram- se em algumas bases areas para impedir que avies de caa decolassem e bombardeassem o Palcio Piratini no Rio Grande do Sul, esvaziando pneus ou retirando peas dos avies, e vindo a se constituir no comando mais ativo de resistncia ao golpe. A politizao, vista como indesejada por setores da oficialidade, ganhava impulso no amplo debate sobre as reformas nacionalistas. Esses militares iriam compor, em grande medida, os cassados e expulsos a partir do golpe de 1964. O tenente Wilson da Silva, que posteriormente foi exilado, preso e anistiado, descreveu assim a situao: Aquele movimento pela defesa do cumprimento da Constituio foi como um ras- tilho de plvora nos quartis, fazendo aflorar o sentimento de democracia, ptria, defesa das riquezas brasileiras e aprofundamento da Petrobras como smbolo da nacionalidade. Por outro lado, cheirava um visvel rancor com todos que haviam participado das lutas pelo petrleo. Ns, talvez envoltos na ignorncia dos tempos, apenas pretendamos fazer os ensinamentos aprendidos na escola e nos quartis na defesa intransigente dos bens da ptria e da soberania de seu povo. [...] Da to- dos quantos haviam tomado posio em 1961 ficaram marcados dentro e fora dos quartis. ramos olhados como malditos, perigosos. Mas no ns amedrontvamos, passamos a ter cada vez mais atitudes polticas.34 Vrios oficiais da Marinha, da Aeronutica e do Exrcito que se mobilizaram em defesa da Constituio foram presos e depois liberados. Posteriormente, em 1964, foram cassados. Outros militares no Rio de Janeiro, por no concordarem com o golpe e no admitirem ser presos, entra- ram na clandestinidade. Entre os presos por defender a legalidade democrtica estava o marechal Lott, j na reserva, que lanou um manifesto nao repudiando a atitude golpista dos ministros militares. Pilotos de caa recusaram-se a levantar voo para bombardear o Palcio Piratini e outros foram presos por recusar cumprir ordens para abater o avio presidencial, conforme dispunha a Operao Mosquito. Um destes, o tenente Roberto Baere, disse ao seu comandante: [...] a misso por ns assumida ao entrar para a Fora Area foi defender a Constituio, e no denegri-la.35 Preso, incomunicvel por 50 dias, foi expulso da Fora Area. Retornaria, entretanto, com (a) anistia de 1961, somando-se lista dos cassados no golpe de 1964. A anistia promulgada em 1961 incorporaria oficiais presos em favor da legalidade demo- crtica, mas muitos a recusaram, vendo a punio imposta como uma comenda a ser valorizada. Um deles, o coronel e historiador Nelson Werneck Sodr, afirmou: Essa punio foi apagada, depois, por uma das mais monstruosas anomalias a que as Foras Armadas brasileiras j assistiram: a anistia, decretada pelo Congresso, em outubro. Nessa medida, ns, os que batramos em defesa da lei, ramos anis- tiados; os subversivos, os amotinados continuavam como sendo aqueles que esta-
  18. 18. 23 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 vam dentro da lei. Essa ignomnia definia a situao do pas quando o presidente Joo Goulart assumiu o governo. No consenti que tal punio fosse cancelada de minhas alteraes. Jamais usei condecoraes, nem mesmo as referentes aos decnios de servio sem punio. Aquela punio era a condecorao que me en- vaidecia. No poderia abrir mo dela.36 3.1. Militares versus militares A politizao da sociedade e dos militares alternaria o cenrio de aparente conciliao exis- tente no pas, devendo a democracia brasileira responder a novas demandas. Melhor preparados pro- fissionalmente face s exigncias de formao exigida para a atividade militar, culturalmente mais evoludos, os praas, despertaram politicamente a partir dos acontecimentos de 1961. Com o slogan Sargento tambm povo, muitos concorreram s eleies legislativas de 1963. Alguns tiveram a candidatura sub judice, outros foram empossados. Houve, ainda, casos de eleitos no reconhecidos pela justia. A questo produziria enorme tenso na categoria. O indeferimento, em ltima instncia, no Judicirio, do mandato do sargento Aimor Zoch veio a ser o estopim para a Revolta dos Sargentos em Braslia. A Revolta tornou-se pouco conhecida, mas desafiaria fortemente a hierarquia militar. A revolta significou um protesto frente ao no reconhecimento de uma cidadania que a Constituio promulgou e afianou, mas que no era respaldada na caserna. Rapidamente debelada, com um saldo de dois mortos, conforme dados do projeto Brasil: nunca mais, teve 502 militares per- seguidos por participao na revolta, sendo 206 da Aeronutica e 196 da Marinha. Processados na 2 Auditoria do Exrcito, em So Paulo, s vsperas do golpe de 1964, 19 sargentos foram condenados a quatro anos de priso. Alguns chegaram a se abrigar e solicitar asilo nas embaixadas do Uruguai e da Bolvia. Um projeto de anistia foi aventado, mas no foi efetivado. O movimento dos sargentos no teve o respaldo da maioria dos militares das Foras Armadas, a despeito de manifestaes de solidariedade. Muitos oficiais nacionalistas, que viriam a ser persegui- dos no ps-1964, intervieram militarmente para abafar a revolta, como o tenente Bolvar Meireles. Condecorado com a Medalha do Pacificador, nunca recebida em razo do golpe de 1964 nem quando foi, posteriormente, anistiado , ele pondera: Eu acho que aqueles sublevados tinham que ser presos mesmo. Porque o fundamental era manter o governo Joo Goulart. E a questo dos praas de pr, eles tinham que ser mais articulados, mais articulados politicamente, inclusive eu acho eles tinham dutos para eles discutirem com o prprio presidente da Repblica. [...] Eu tinha cumprido uma misso e que exerci sem problema nenhum, sem problema nenhum. Em virtu- de disso, eu tinha garantido a tranquilidade do governo democrtico Joo Goulart. Uma coisa voc se sublevar contra um governo antidemocrtico, Castelo Branco, em seguida; outra, buscar caminho de sublevao dentro de um governo, que dentro de minha experincia, minha viso quem foi mais avanado que tivemos.37 Manifestaes de militares, desafiadoras da ordem constituda, multiplicavam-se. O Clube Militar constitua-se em baluarte do golpismo, acompanhado, nessa posio, das manifestaes dos de- mais clubes militares, com reflexos na disciplina das corporaes castrenses. Durante a comemorao da Batalha do Riachuelo, em 1962, ocorrera a devoluo de condecoraes por parte de vrios oficiais que
  19. 19. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 24 no concordavam com a sua outorga a parlamentares e militares nacionalistas, mas que se destacaram na defesa da legalidade no ano anterior. Naquele contexto vale a pena recordar o Manifesto de Dezembro de 1963, subscrito por 30 oficiais, condenando a nomeao do almirante Candido Arago como comandan- te-geral do Corpo de Fuzileiros Navais. Tambm se recorde o subsequente Manifesto dos Almirantes, em 28 de maro de 1964, subscrito por 35 oficiais contrrios designao do almirante Suzano e, mais uma vez, do almirante Arago. Por fim, a Circular Reservada, datada de 20 de maro de 1964, emitida pelo general Castelo Branco, recomendava a preparao de um esquema para enfrentar um golpe de Estado.38 A polarizao poltica em 1964 projetar-se-ia, mais uma vez, sobre os praas das Foras Armadas. O Movimento dos Marinheiros, rebelados no Sindicato dos Metalrgicos, seria uma im- portante fasca para a exploso do golpe de 1964, a autodesignada revoluo. Revoltados com o des- compromisso da oficialidade em relao s suas reivindicaes, algumas histricas, includas todas as reivindicaes por cidadania, tiveram como resposta do Almirantado o envio de uma tropa de fuzilei- ros. A adeso de parte dessa tropa aos rebelados resultou numa crise dentro da Marinha, cujo desfecho foi a nomeao do almirante Paulo Mrio para o cargo de ministro e a confirmao do almirante Cndido Arago como comandante do Corpo de Fuzileiros. Uma anistia para os marinheiros chegou a ser aventada, mas no concedida, em razo do golpe de 1964. Durante os cinco dias em que Paulo Mrio foi ministro ocorreu uma insubordinao por parte da oficialidade naval e ele foi ameaado de sequestro. Face ameaa, o almirante pre- cisou assumir seu posto sob a proteo armada de alguns oficiais e marinheiros leais, entre estes, militares que participaram das lutas dos anos 1950 e outros, mais novos, que atuaram em favor da posse de Joo Goulart, em 1961. O relato do capito de mar e guerra Paulo Silveira Werneck ao historiador Hlio Silva esclarecedor: Esse ato desesperado de indisciplina d bem conta do nvel a que haviam chegado os componentes das foras que combatiam o governo. Reconheciam os sediciosos que a presena do almirante Paulo Mrio no Ministrio da Marinha representaria o mesmo obstculo s suas maquinaes que o desempenhado pelo general Lott, na crise de 1955, tal o seu fervor na defesa da legalidade. [...] Que autoridade moral possua tais oficiais, que assim maculavam suas patentes, numa ao de gangsterismo, para criticar e reprimir indisciplina dos marinheiros? 39 Passados 50 anos, h vasta literatura sobre o golpe civil-militar de 1964, suas influncias e causas, seus autores e o papel de muitos de seus personagens no curso da histria do pas. H tambm documentos desclassificados que revelam a conspirao realizada e a participao que nela teve o governo dos Estados Unidos. Portanto, no cabe retomar os detalhes daquela operao. Para analisar as violaes e graves violaes de direitos praticadas contra militares no perodo, tambm no interessa o relato circunstanciado das aes que fizeram os conspiradores antecipar o golpe. As cartas estavam marcadas e muitas manifestaes de suboficiais rebelados foram, inclusive, estimu- ladas por agentes infiltrados no movimento popular. Saliente-se que a presena de Joo Goulart numa tradicional comemorao dos sargentos veio ser a senha para a adeso ao golpe de muitos militares. Ela foi seguida pela precipitao de um general anteriormente afinado com o integralismo, Mouro Filho. A consumao do golpe civil-mi- litar foi operacionalizada no Congresso Nacional, com a declarao de vacncia da presidncia da Repblica, pelo senador Auro Moura de Andrade, em 9 de abril de 1964, sem qualquer respaldo constitucional. Tentando legitimar o novo regime, o marechal Castelo Branco foi eleito indiretamente
  20. 20. 25 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 para a presidncia da Repblica, em votao quase unnime. A deciso do presidente Goulart de partir para o exlio desmobilizou a resistncia de oficiais legalistas e praas, anulando a expectativa de reao nutrida por setores sociais organizados como sindicalistas, camponeses e estudantes. Encerra-se, assim, um ciclo histrico, outro tem incio, indo at a Constituio de 1988. B) Os militares perseguidos na ditadura: 19641985 Para muitos militares que participaram do processo de deposio do presidente Joo Goulart, e tambm para alguns perseguidos, o regime que se iniciava teria curta durao. Prolongar-se-ia pelo tempo necessrio para uma limpeza e, ao final, as Foras Armadas retornariam aos quartis, man- tendo, um olhar tutelar sobre a sociedade.40 Acordos polticos fundamentavam essa hiptese, pois estava prevista a manuteno e o respeito ao calendrio eleitoral. Iniciativas para afastar os militares da poltica no ps-1964, no entanto, no objetivavam somente cassar todos aqueles que foram perse- guidos, mas tinham o objetivo de estabelecer mecanismos para abortar iniciativas gestadas no campo da direita militar. Alguns foram operacionalizados ainda no governo Castelo Branco, como a Lei de Inatividade. No foram poucos os episdios conflituosos entre faces militares duros e moderados relacionados sucesso presidencial, que emergiram aps 1964. Um deles foi o caso Para-Sar, que teve como expoente o capito Srgio Macaco. Outro foi a crise que resultou na demisso do general Sylvio Frota, ou, ainda, o episdio do Riocentro, no limiar da redemocratizao41 . 1. Os militares atingidos pelo Golpe de 1964 e a resistncia inicial A atuao dos militares perseguidos depois golpe de 1964 foi pautada por duas perspectivas de interveno, tendo em vista o processo de redemocratizao. A primeira, pela via da poltica e adota- da pela maioria dos oficiais e praas, foi construda ao longo dos anos, at a instalao da Constituinte. A segunda, a luta armada, foi a opo de menos de 3% dos militares.42 Segundo o Dossi ditadura Mortos e desaparecidos polticos no Brasil: 1964-1985, houve 360 mortos, alm de 144 considerados desaparecidos, sendo 27 militares. Somam-se a este cmputo dez militantes de origem militar.43 A Comisso Nacional da Verdade (CNV) reveria e ampliaria estes nmeros. Nem todos militares fo- ram mortos porque optaram pela resistncia armada, em que pese o fato de muitos oficiais e praas se mobilizarem nesse sentido, aguardando uma ordem de resistncia que no veio. Contrariamente ao esperado, a recomendao foi a desmobilizao. Alguns militares fugiram e se esconderam, outros foram presos. Vrios partiram para o exlio. Jovens oficiais legalistas, muitos deles em incio de car- reira, ao se apresentarem em suas unidades, foram presos, processados e expulsos. Diferentemente do acontecera nas revoltas de 1935, ou mesmo nos processos de 1952, aps o golpe de 1964 muitos oficiais nacionalistas e comunistas tiveram tratamento semelhante aos dos subalternos e marinheiros, detidos em prises comuns e rotineiramente torturados, alguns deles de forma brbara. Em 1964, a poltica de cassao nas Foras Armadas atingiu centenas de oficiais e praas. Quanto participao na agenda pela redemocratizao, a maioria dos militares atuou discretamente nos partidos de oposio. Muitos oficiais e praas fundaram associaes de militares, tendo em vista o retorno da democracia e a concesso de uma anistia ampla, geral e irrestrita, que lhes possibilitasse voltar ativa. A resistncia inicial ao golpe aconteceu de vrias formas e se estendeu por dcadas. Um militar que resistiu desde o primeiro momento e sofreu as consequncias correspondentes foi o tenente-coronel
  21. 21. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 26 Alfeu de Alcntara Monteiro, morto no Quartel Geral da 5 Zona Area, em Canoas (RS). O coronel Alfeu Monteiro era um oficial nacionalista e legalista que, na condio de subcomandante, no aderiu ao golpe militar, junto com vrios de seus subordinados, sargentos e soldados. Na manh de 4 de abril de 1964 chegou ao quartel o comandante recm-designado da 5 Zona Area, brigadeiro Nlson Freire Lavanere-Wanderley, que determinou a priso de todos os rebelados. Ao resistir ordem de priso, o tenente-coronel Alfeu foi fuzilado, vtima de cinco tiros pelas costas, falecendo no caminho do hospital. Caso de brutalidade semelhante, com enorme repercusso no Rio Grande do Sul, foi o assassinato, em 1966, do sargento Manoel Raimundo Soares, militante do MR-26 Movimento Revolucionrio 26 de Maro. Manoel Raimundo foi preso e barbaramente torturado, tendo seu corpo sido encontrado por um pescador, boiando, no rio Jacu. O episdio ficou conhecido como o caso das mos amarradas. Face repercusso na opinio pblica, o caso sensibilizou o general Mouro Filho, na ocasio ministro do Superior Tribunal Militar, que assim analisou o episdio: trata-se de um crime terrvel e de aspecto medieval, para cujo autores exige rigorosa punio. Seus autores, no entanto, permaneceram impunes e at foram promovidos. Exemplo de conduta pessoal, profissional e de resistncia ao golpe o brigadeiro Rui Moreira Lima, na oportunidade coronel e comandante da Base Area de Santa Cruz. Oficial legalista e nacio- nalista, Moreira Lima chegou a sobrevoar a coluna golpista do general Mouro, admitindo, posterior- mente, que a atacaria se recebesse ordens. Diante da opo de no resistncia armada ao golpe, sua conduta motivou uma reao singular: foi o nico comandante que passou o comando ao sucessor designado, de acordo com o boletim, pela ordem do dia, tropa formada, sendo, em seguida, preso, e passando a responder a Inqurito Policial Militar. 1.1. Oficiais perseguidos No Rio de Janeiro, em razo do nmero de militares presos, vrios navios de transporte torna- ram-se locais de deteno. Entres estes destacam-se o Raul Soares, o Princesa Leopoldina e o Ary Parreira, ancorados na Baa da Guanabara. Nesses navios, militares permaneceram encarcerados por meses, sob condies de deteno indignas. Os relatos dos presos, em seu conjunto, revelam que naqueles locais havia infestao de baratas e ratazanas, pssima alimentao, incomunicabilidade em condies torturantes. Nas bases areas e dependncias do Exrcito, utilizadas como lugares de deteno, a situao no era mui- to diferente. O tratamento indigno a que esses oficiais foram submetidos, por exemplo, no navio Princesa Leopoldina, aparece resumido no relato do coronel do Exrcito Waldemar Dantas Borges: Conto meu caso: fui escoltado por um capito de corveta equivalente a major , um tenente e um sargento os dois fuzileiros , todos armados de metra- lhadora de mo. Abriram o camarote, eu entrei. O corveta me disse: Coronel, tenho ordens para lhe revistar. Controlei a raiva, olhei para aqueles trs jovens, vtimas da insensatez, da mesquinhez de seus chefes golpistas e tive pena. Disse- lhe: Comandante, voc meu subordinado, o fato de estar preso no me tira as prerrogativas hierrquicas. Mas coronel, disse-me, sou obrigado e gostaria que o senhor facilitasse. Tive sorte ser aquele moo menos petulante do que seus co- legas. Pois bem, disse-lhe, vocs fiquem a na porta. Afastei-me para o fundo do cubculo, tirei a tnica e joguei-lhe aos ps, depois joguei a camisa e a grava- ta, depois as calas, os sapatos ele j dizia basta, mas eu continuava , joguei a
  22. 22. 27 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 cueca e, finalmente, as meias. Inteiramente nu, lhe disse: Vocs, companheiros, no humilharam a mim e sim ao Exrcito em particular, s Foras Armadas em geral, e acima de tudo, a vocs prprios. Guardem por toda a vida este degradante quadro e a lio que ele representa. Os golpistas esto espancando a nobreza dos nossos mais caros e sagrados princpios, os quais relembro: prerrogativas do posto, hierarquia, respeito mtuo, esprito de corpo e a s camaradagem.44 A perseguio conra militares incluiria at oficiais que apoiaram o golpe de 1964, por exemplo, o general Pery Bevilaqua, ministro do Superior Tribunal Militar entre 1965 e 1969. Envolveria tambm os generais Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar; Jair Dantas Ribeiro, ministro da Guerra; Nelson Werneck Sodr; Euryale de Jesus Zerbine; o almirante Cndido Arago e o brigadeiro Francisco Teixeira. A injusta punio aos oficiais estaria estampada nas vagas acusaes que lhes eram atri- budas, muitas delas, seno a maioria, pautadas genericamente pelo artigo 7o do Ato Institucional no 1, de 9 de abril de 1964. Sem maior fundamentao, esse mecanismo gerou a expulso ou refor- ma de centenas de militares, tendo o agravante de somar-se quase sempre com artigos do Cdigo Penal Militar, alm de artigos da Lei de Segurana Nacional. Dezenas de oficiais da Marinha foram, assim, indiciados e expulsos. Alguns foram excludos de IPMs, mas em seguida demitidos ex. ofcio, sob diferentes argumentos. No caso do tenente Jos Ribamar Torreo da Costa, expe-se no IPM que [...] no convindo a se manter na MB um provvel futuro desajustado e que se viu ligado aos que coope- raram como solapadores da disciplina. Quanto ao tenente Milton Temer [...] a fim de afast-lo definitivamente da vida militar, fazendo um bem a ele prprio e prpria Marinha, dada a sua conhecida condio de um desajustado no meio naval e o conceito de agitador, que faz dele o encarregado do CEMO. Por fim, em relao aos capites tenentes Fernando de Santa Rosa e Luiz Carlos Moreira, apresentou-se o mesmo parecer: [...] em se tratando de um elemento politizado e com afinidades acentuadas para a esquerda, julgo no interessar a ele e nem a Marinha Brasileira a sua permanncia no servio ativo.45 1.2. Marinheiros e praas Entre os grupos atingidos em 1964, mediante Atos disciplinares, esto os marinheiros e fuzileiros navais, os sargentos e os cabos da FAB. Nesses casos a punio no foi associada a motivaes polticas, mas relacionada quebra de hierarquia e disciplina. Preliminarmente, 1.509 marinheiros e fuzileiros navais foram detidos e expulsos da corporao por seus comandantes, assim como centenas de sargentos, muitos deles torturados. Nos casos de praas, a punio era entendida como expresso de normas da corporao, ou seja, sem qualquer tipo de relao com as punies revolucionrias contidas nos atos institucionais e complementares46 . O sargento Almor Zoch Cavalheiro, cuja eleio fora impugnada pelo Supremo Tribunal Federal, gerando a Revolta dos Sargentos em 1963, registra em depoimento CNV: Aps indulto, vim para Porto Alegre como civil, no incio de 1965. Alguns meses em Porto Alegre tive o apartamento invadido e fui preso novamente por suspeita de participao numa tal Guerrilha de Ipanema. Fui levado para a priso da polcia do
  23. 23. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 28 Exrcito, a priso das tocas, onde fiquei por mais de 80 dias, incomunicvel. Foi a mais repugnante masmorra que conheci. Seu endereo era na avenida Joo Pessoa. esquina com Duque de Caxias. A priso possua uma pea grande e uma porta de ferro que acessava um corredor, onde ficavam as tocas. Era um buraco ao lado do outro, com mais ou menos 1m por 2m, todo pintado de preto por dentro, com cavei- ras brancas no teto e colcho sujo no cho. Alguns desses buracos, ao invs de porta de ferro, possuam um tampo que dificultava at para respirar.47 O fuzileiro naval Paulo Novaes Coutinho relata: Com o advento do golpe fomos recolhidos ao presdio naval. No dia 9 de abril de 1964 foi publicado o Ato Institucional no 1, ns fomos expulsos a toque de caixa. No dia 10 de abril, entregues ao camburo da polcia dentro do quartel. Tiraram nossa farda, passaram piche no peito da gente para apagar o nome de soldado, e amos ser levados para a penitenciria Lemos de Brito. Ali no Ministrio da Ma- rinha, os oficiais do Cenimar brigaram, discutiram com os oficiais da Marinha e com os policiais. Os delegados nos tiraram de dentro da viatura policial, ns estvamos expulsos e entregues polcia, nos jogaram dentro de uma barcaa pequena e nos jogaram no poro do navio Ary Parreiras, que estava adernado. Adernado um navio que est com o casco furado totalmente, sem nenhum componente, beliche, nada, e ficamos ali 30 dias dormindo no casco do navio e comendo uma vez por dia. Viemos umas trs ou quatro vezes prestar depoimento na escola naval e ficamos ali e dali fomos tirados e fomos levados para a Ilha das Flores. L fomos recebidos por um capito da Marinha chamado Omar Temer, que nos considerou para a segurana mais perigosos que todos os comunistas reunidos. Fomos colocados l com cercas eletrocutadas e na hora do almoo a comida era da pior espcie. Ele vinha andando por cima das mesas de boot s faltando pisar nos nossos pratos, execrando todos nos. Dali ns samos e fomos para o poro do navio Custdio de Melo, e ficamos ali. Dali depois de sete meses de priso samos e amos receber a primeira visita por que nossos familiares no sabiam que estvamos vivos e fomos receber a visita na escola naval algemados de mo e para trs [...] Dali samos nos jogaram num depsito de presos no Alto da Boa Vista, onde hoje o Corpo de Bombeiros l em cima, dormindo 15 pessoas num quarto de 15 por 30 no cho, um banheiro, aquele banheiro quadrado onde voc tem que ficar de ccoras fazendo coco e urinando com todo mundo vendo, dormindo no cho. Dali ns amos para o confessionrio de culpa, descamos dentro de um camburo da polcia num calor miservel, 28 pessoas at o 2o Tribunal do Jri. J chegvamos l alguns vomitados com a insolao e ramos obrigados a sair, nos assear, porque o mal cheiro era grande, coisa de soldado, coisa da ral, eu sou ral, eu sou de baixa patente no sou nada, ento tenho que falar o que eu sofri, t dando um depoimento para a Comisso da Verdade. O ento arcebispo do Rio de Janeiro, aquele famoso que fez a campanha com Deus, pela Ptria e Famlia, ele foi l ser testemunha de acusao contra os 26 fuzileiros navais que depuseram arma. Ele falou, e props que os fuzileiros navais fossem fuzilados para lavar com aquele ato a honra do corpo de fuzileiros navais.48
  24. 24. 29 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 O marinheiro Avelino Capitani, que participaria da Guerrilha do Capara, descrevendo as condies de sua priso depois do golpe, relatou: Fui preso em Jacarepagu, no Rio de Janeiro. J havia muitos marinheiros pre- sos. Fui levado para o Ministrio da Marinha, no quinto andar, onde funcionava o servio secreto e a tortura. Fui preso noite e comeou o interrogatrio no outro dia tardinha. Em um dos intervalos do interrogatrio eles me colocaram na cela. Logo recebi um companheiro, foi a companhia na tortura. Sentou no cho ao meu lado. No primeiro instante tentei no identificar, procurei no sa- ber quem era. Mas me parecia muito conhecido. Tinha uma sensao de conhe- c-lo. De cabea baixa, soltava alguns gemidos esparsos. Arrisquei uma olhada. Tive dvida, mas me pareceu que era o Geraldo (nosso querido marujo negui- nho). Falei: Quase no te conheo, te bateram muito, companheiro. E ele me respondeu: E eu quase no consigo te reconhecer, estou muito mal. Me parece que tu tambm ests. Uma luz muito fraquinha clareava um pouco o ambiente. Conseguiu aguentar?, ele falou baixinho no meu ouvido: J nem sei, misturei realidade com fantasia.. Com a voz baixa pareciam palavras sem volta. Seu ros- to estava roxo, mas a verdadeira cor era indefinida. Ele me disse que meu rosto tambm estava assim. Mas conclumos que no era um bom momento para se olhar. Um violento chute nos despertou. A tortura foi estendida por 40 dias. [...] Um marinheiro no resistiu tortura e se jogou do quinto andar, de onde funcionava ento o Ministrio da Marinha.49 Antnio Pinto de Souza, praa da Aeronutica, apresenta tambm o seguinte relato: [...] at, ento, naquela noite, 31 de maro, ns estvamos dentro da lei, por- que ns, [...], ainda no tnhamos sido presos e destitudos de seu salrio. A nos prenderam, naquele dia mesmo, nos jogaram numa cela na Base Area de Cumbica e, depois, nos transferiram para a PM, em frente ao Anhembi. [...] ali a ordem era colocar numa B-25. Pra quem no conhece, aquela B-25 velha, da guerra de 42, [...]. Por ordem do Castelo Branco nos deixaram de jogar no mar [...]. Nos levaram para Santos, fizeram um presdio l para ns, [...], no qual eu fiquei noventa dias na cela. [...] Inaugurei e fiquei at o final. Fiquei oito meses preso e tinha uma filha que tinha nascido, [...], que eu fui s v-la depois de nove meses que ela tava, de idade. [...] A ficamos oito meses, colocaram um capito, [...], que sabia s fumar um charuto e com duas 45 em cada lado ningum, claro, subiria por cima dele. Ficava nos interrogando numa canoa, no mar, de madru- gada, voc sem camisa. Da, [...], abriram um inqurito, [...], fomos julgados por um tribunal militar, fomos absolvidos por um tribunal militar, por unanimida- de, e nos retornaram, nos voltaram ao quartel. E a no teve outro jeito, voc no arrumava emprego em hiptese nenhuma. Saiu da Aeronutica um ofcio dizendo que, [...], ns no podamos trabalhar. [...] Eu no tinha como, tinha trs filhos, felizmente minha mulher era secretria no Mackenzie. 50
  25. 25. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 30 1.3. Perseguio contnua A poltica repressiva imposta aos militares apresentou outras faces, j que os demitidos passa- ram condio de mortos-vivos e suas vivas mantiveram o direito de receber somente o montepio, que compunha uma pequena parte do soldo. Alguns deles procuraram recompor suas vidas profissionalmente em outras atividades, como editores, vendedores de livros, professores de cursinho etc., mas continuaram a ser constantemente vigiados e chamados a depor em vrios inquritos. Muitos foram presos nesse pe- rodo, alguns fugiram diante das ameaas; e mesmo aqueles que tinham determinadas profisses e pode- riam lhes dar continuidade na vida civil sofreram restries, ou foram impedidos de assumir concursos pblicos em que foram aprovados51 , como recorda o coronel Ivan Cavalcante Proena. [...] a Isis, minha mulher, proibida de lecionar, proibida de exercer a profisso, teve que pedir, eu tambm, pedir pro DOPS, o nosso atestado de ideologia. Eu trans- crevi o parecer, est no livro, indeferido, [...], no podemos lecionar. mim, meu agente cansou, [...] de me perseguir, disse: Olha eu vou lhe dizer quem que en- trega, [...], e, [...], citou o nome das pessoas da UERJ, dos dedos duros da UERJ, me deu os nomes deles, professor e aluno, que deduravam, que insistiam em colaborar contra ns. So coisas assim, episdios incrveis, e a perseguio foi brava, foi muito violenta [...] Meu pai estava bem doente e no, [...], como general do Exrcito, [...], tinha notcia minha, no sabia onde eu estava, se eu estava vivo, se eu estava mor- to. Mantiveram silncio, assim, bravo, constrangedor, meu pai, muito mal, morreu algum tempo depois. [...] Prestei seis concursos, [...], os que eu consegui prestar, porque bloquearam os concursos tambm, no tomei posse em nenhum. [...] Tive demonstraes de diretores muito corajosos, que no aceitaram a visita do DOI- CODI. Eles visitavam os lugares onde eu estava para mandar demitir, eu tenho no livro, eu cito, rigorosamente os locais de onde eu fui demitido. No incio, eu dizia onde eu estava sim, depois acabou esse prurido de dizer, [...]. Eu ia e no dizia onde estava no, eu passei a no dizer, no adiantou, [...], porque eles continuaram per- seguindo a gente. At numa vez ameaaram uma coisa mais violenta, [...], um carro nos fechou, assim, pra nos pegar, [...], conseguimos escapar [...].52 Igualmente graves foram as perseguies aos aviadores cassados. Aos oficiais foi negado o direito de atuar em suas profisses por meio de duas portarias reservadas da Aeronutica. Essa medida atingiu 51 aviadores, entre eles heris de guerra, como o brigadeiro Rui Moreira Lima e Fortunato Cmara53 . Com tantas prises indignas e perseguies, o Brigadeiro Rui Moreira Lima chegou a escre- ver um protesto ao General Mdici, sem qualquer resultado. Como salientou em depoimento CNV: [...] Vrias vezes eu fui preso e fui ao Supremo Tribunal com habeas corpus, e mandaram me soltar, fiquei 200 dias preso.54 Tambm na Marinha do Brasil houve casos de oficiais cassados impedidos de exercer suas profisses, como o do primeiro--tenente Carlos Heitor Schueler Reis. Esse oficial relatou CNV as dificuldades e restries polticas que enfrentou para conseguir a carta de piloto da Marinha Mercante, especialmente pela exigncia de Certides Nada Consta, emitidas pelo Superior Tribunal Militar e pelas Primeira e Segunda Auditorias da Marinha55 . Praas das trs Armas, marinheiros e fuzileiros expulsos sumariamente das corporaes tiveram dificuldadesaindamaiores,umavezque,dispondodeformaoespecficaemsuasarmasdeorigem,tinham dificuldade em iniciar uma nova profisso56 . O marinheiro Joaquim Aurlio de Oliveira conta CNV:
  26. 26. 31 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 [...] Nesses, [...], 21 anos, nossa caminhada tem sido um rosrio de perseguies, em que no faltaram prises, demisses de emprego e vexames imorais que alcanaram at nossas famlias. Em 1974 fui tirado do meu emprego do servio areo da Cruzei- ro do Sul e jogado na Ilha Grande, no setor de presos polticos, depois de terem me humilhado em outros presdios, pondo-me junto com bandidos da mais alta pericu- losidade. Ao sair do presdio da Ilha Grande apresentei-me ao meu antigo emprego. Para minha surpresa, fui informado de que havia sido demitido por justa causa. A Cruzeiro me demitiu por justa causa. Existia, na lei trabalhista, [...], uma clusula que diz que, se voc ficar preso por mais de dois anos, a empresa tinha direito a demitir voc por justa causa. [...] Em 1976 prestei concurso para a Petrobrs, o que me custou um esforo enorme, estudando 22 dias, [...], concorrendo com duzentos candidatos. Fui o nono colocado entre os 17 selecionados, [...]. No entanto, no fui admitido, nem recebi qualquer comunicao. Em 1978, prestei concurso para o Me- tr, [...]. Aprovado, minha admisso passou a depender de uma ltima entrevista, mas meu entrevistador, um oficial, deixou claro que tinha informaes sobre minha vida e l se foi mais uma pretenso [...]. No cheguei a ser torturado, mas a minha tortura foram essas torturas pelas quais eu passei a, nos vexames [...].57 O marinheiro Wanderlei R. Silva, em relato CNV, recorda: Eu servia na diretoria geral da Marinha e, quando foi o dia 1o de setembro, na forma- tura, eu fui chamado pelo nome, Wanderlei [...] da Silva [...]. Ele disse: Olha, o senhor est sendo despromovido por ter participado no Sindicato dos Metalrgicos. Ento me tiraram uma divisa, que uma humilhao muito grande [...], e fiquei aguardando trs meses at desembarcar pro quartel de marinheiros onde eu fui demitido. [...] Ento pro- curei o comandante [...] e disse: Olha, j que eu vou ser mandado embora, eu gostaria que vocs me mandassem embora logo que eu queria ir atrs de emprego, porque tem muita gente pra ser admitida e ento eu queria logo sair para procurar emprego. Ele dis- se: Olha, voc no tem que pedir nada, voc ou fica at [...] a Marinha resolver quando o manda embora ou voc deserta. Foi a resposta que ele me deu. Fiquei aguardando. Quando foi [...] 31 de dezembro eu fui para o Quartel de Marinheiros e l fui mandado embora. [...] Eu no tinha onde morar. Eu tinha 22 anos, morava a bordo. Ento no tinha realmente onde morar. Sa com aquele saco [...] nas costas, que era a nossa mala, e com uma mo na frente e outra atrs, sem dinheiro, sem profisso, sem ter para onde ir [...] Essa perseguio que a Marinha fazia a todos que procuravam um emprego. [...] Ela dizia que voc era subversivo, era uma pessoa que no tinha capacidade de viver em grupo, entendeu?, era mais ou menos isso a. E jogava a pessoa para escanteio. Alguns co- legas se suicidaram, eu conheo um que se suicidou, o cara no resistiu, ele se suicidou.58 Belmiro Demtrio, praa da Aeronutica, tambm relatou CNV as perseguies e amea- as que sofreu: [...] Eles me falavam assim: Voc subversivo [...], melhor voc morrer, matar voc acabou o problema, voc descansa e a gente fica livre de voc [...]. Na metalr- gica Abramo Weber no pude trabalhar. Na viao [...] canoense, em Canoas, no
  27. 27. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 32 pude trabalhar. Na metalrgica Piratini, em Porto Alegre, no pude trabalhar [...]. Quando eu sa do porto pra fora, da Base Area, nunca me esqueo, o capito Pi- nheiro, que Deus o tenha no bom lugar, pois ele merece, [...] disse: Rapaz, cuidado, porque qualquer movimento que voc fizer a coisa vai ficar preta para o teu lado. Eu entendi que ele queria dizer que eu ia apagar.59 Face perseguio contnua no Rio de Janeiro, marinheiros como Luiz Cachoeira e Joo Barroso optaram por sair da cidade, estabelecendo-se discretamente em So Paulo e em Salvador, respectivamente.60 Mas a perseguio tambm se estendia aos familiares, objeto de muitas denncias e relatos61 . No foram poucos os filhos, esposas e familiares de oficiais e praas que foram presos, torturados ou violentados. O sargento da Aeronutica Mrio Mota Rodrigues, atual coronel refor- mado, era pai de duas filhas, uma delas adotiva, e traz o registro de que, em 1965, sua primeira filha foi proibida de realizar matrcula em colgio catlico na cidade de So Paulo, em razo de seu pai ter sido acusado de ser comunista. Sob a mesma alegao, a segunda filha, ento com 13 anos, perdeu a condio de adotada. Segue o relato do coronel sobre ela: Minha esposa pegou a guarda de uma menina chamada Anita, abandonada pelos pais, em 1965. Ela estava sozinha, vivendo em um barraco nas imediaes da Via Du- tra. Depois de muita luta e insistncia, conseguimos adotar a garota, tudo de maneira correta, seguindo todos os procedimentos previstos pela lei. Encontramos seus pais e eles passaram a guarda da menina para ns. Matriculamos Anita na escola e passamos a cri-la como nossa filha, assim como os outros. Depois de alguns meses, os pais dela apareceram na minha casa para pedir a guarda de Anita novamente. Quis saber qual o motivo, j que eram pessoas muito pobres e no tinham condies de cuidar da ga- rota. Ento, me disseram que no iriam cri-la, e somente estavam fazendo aquilo por presso de dois agentes do DOPS, que os haviam procurado e exigido que pegassem a menina de volta. O pai dela ficou sem jeito, mas acabou falando. Haviam dito que no poderiam dar a guarda de Anita para mim e minha esposa, pois eu era comunista e isso causaria problemas para eles. Devolvemos a menina.62 H tambm o caso de Eugenia Zerbini, filha do general cassado Euryale de Jesus Zerbini, que foi violentada, aos 16 anos, quando visitava sua me, a advogada Therezinha Godoy, presa no DOI/ CODI de So Paulo, em 1970.63 No entanto, esse no foi um caso isolado entre os familiares de militares atingidos e suas mulheres. Genivalda Maria da Silva, viva do ex-cabo da Marinha, Jos Manoel da Silva que foi assassinado sob tortura pela equipe do delegado Fleury, em 8 de janeiro de 1973, e enterrado como indigente , foi presa pouco depois, sendo torturada e estuprada por soldados do Exrcito.64 2. Perseguio nas instituies militares de ensino Alguns analistas militares, bem como acadmicos, entendem que persistem nas institui- es militares de ensino os mesmos modelo e doutrina quase oficial, apresentado pelas Foras Armadas, sobre o movimento de 1935, acompanhados da ideologia anticomunista resultante. Essa insistente leitura dos fatos constitui um obstculo formao democrtica dos militares, da mesma forma que se deu com aqueles que j esto formados.65
  28. 28. 33 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 Em 1964, pouco tempo depois do golpe, uma poltica persecutria atingiu o Instituto Tecnolgico da Aeronutica (ITA). Recentemente, foi desclassificada considervel documentao66 acerca da intensa vigilncia que se fazia sobre alunos e professores da instituio. Sob a alegao de prtica de atividades consideradas subversivas, como a distribuio de jornais e panfletos ou supostas ligaes com grupos polticos e personalidades, o ITA foi monitorado e investigado. Assim, foi aberto o Inqurito Policial Militar (IPM), instaurado na 4 Zona Area, para averiguar possveis atividades extremistas, nas dependncias das instituies da Aeronutica.67 A Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) foi umas das primeiras unidades a aderir ao golpe de 1964, antes mesmo de consumada a vitria dos golpistas. Ao que tudo indica, as instituies militares passaram a ter um acompanhamento especial, com o objetivo de inibir qualquer reflexo crtica, poltica ou cultural do novo regime, alcanando alunos e docentes. A partir de 1967, teve incio na AMAN a instruo de aes de combate guerra revolucionria e de conferncias, ministradas por oficiais da Escola de Estado Maior do Exrcito (Esceme), com a cola- borao de expoentes da extrema direita, a exemplo do deputado Clvis Stenzel e do bispo Geraldo Sigaud. Na instituio, fatos histricos como a Coluna Prestes e os movimentos de Canudos e do Contestado passaram a ser ignorados. Para o coronel Geraldo Cavagnari, fundador do Ncleo de Estudos Estratgicos da Unicamp, essas experincias, se devidamente estudadas, poderiam consti- tuir uma significativa contribuio para a formao dos nossos oficiais.68 O conjunto de medidas de monitoramento e perseguio atingiu intelectuais de origem militar, como o general de brigada e historiador Nelson Werneck Sodr, cujas teses e obras sobre a formao democrtica dos militares ainda encontram pouca receptividade na corporao. Segundo o coronel Geraldo Cavagnari, a leitura dos trabalhos de Sodr uma iniciativa individual dos militares. Para o general Octvio Costa, finda a era militar, como expresso de poder poltico, quisera que o Exrcito tambm o descobrisse e o acolhesse como um de seus maiores pensadores, o grande pensador de Histria Militar do Brasil e Memrias de um Soldado.69 Na formao da Academia da Fora Area (AFA), alguns dados ilustram o objetivo de alienar os cadetes. Pouco antes da decretao do AI-5, em 1968, os cadetes aviadores Artur Vieira dos Santos, Carlos Alberto Medeiros e Edmundo de Souza Vieira Jnior organizaram um crculo de leitura e debates na Escola de Aeronutica, no Campo dos Afonsos. Desligados sumariamente da FAB, sob a acusao de inaptido para o oficialato, foram anistiados em 2005, com fundamento em informaes contidas em documento re- servado do Centro de Informaes de Segurana da Aeronutica (CISA). O contedo do documento exps a real motivao poltica que norteou o desligamento do grupo: o Crculo do Livro que implementaram foi considerado uma espcie de grupo de estudos de teses marxistas, para cujas hostes tentaram aliciar os cadetes. Um quarto cadete, Sued Lima, sofreu sucessivas restries em sua carreira, e foi constante- mente monitorado at solicitar passagem para reserva, na patente de coronel,70 porque tivera contato com oficiais cassados. Narrando a perseguio de que foi vtima, Sued Lima recorda: Em um dia do final de abril de 1983, o Coronel Souza me convocou ao seu gabinete e me perguntou se eu mantinha algum tipo de contato com oficiais cassados. Respon- di que sim, que frequentava socialmente a casa do ento coronel Fortunato Cmara de Oliveira, amigo de meu pai e que eu conhecia desde criana. Atravs dele ficara conhecendo o tambm coronel Rui Moreira Lima e o Brigadeiro Francisco Teixeira. Meu comandante me informou, ento, que por conta dessas relaes eu fora transfe- rido para Braslia, para onde deveria seguir de imediato. [...] Em Braslia, fui servir no Sexto Comando Areo Regional, sob o comando do Major-Brigadeiro Max Alvim,
  29. 29. 1violaesdedireitoshumanosnomeiomilitar 34 confesso simpatizante de Adolf Hitler, e sob a chefia de um coronel de nome Ary Pereira Barbosa, agente do CISA e figura detestada por diversos oficiais que com ele serviram. Passei a ser alvo de uma srie atos discricionrios, como designao para funes irrelevantes, censuras pblicas e injustificadas a trabalhos por mim realizados, emisso de ficha de conceito desabonadora e impedimento para fazer o curso de Esta- do-Maior da Aeronutica. Em meados de 1984, depois de meses servindo no Comar, fui convidado por um brigadeiro conhecido para servir no Estado Maior das Foras Armadas. Pedi audincia ao coronel Ary e solicitei a ele que me liberasse para seguir para a outra unidade. Ele me qualificou de ingnuo por no perceber que no sairia da subordinao funcional a ele enquanto ele no cumprisse a tarefa que tinha, qual seja a de me destruir profissionalmente. Ato contnuo, abriu uma gaveta de sua escrivaninha onde guardava um revlver. Manteve a mo na gaveta e, indignado, retirei-me da sala. Para a promoo a tenente-coronel, repetiu-se o que j ocorrera quando da promoo a major: fui colocado no critrio de antiguidade. [...] Em 1998 fui informado de que no seria promovido a brigadeiro e solicitei passagem para a reserva. Na Escola Naval, assim como na AFA, tambm se nota a tentativa de ocultar a histria da Marinha do conhecimento dos alunos. A Revolta da Chibata, clssico livro de Edmar Morel, gerou desconfiana dos oficiais quanto aos seus leitores militares no mbito da armada, na oportunida- de em que apareceu a primeira edio (1959). H relatos de oficiais e marinheiros que, por terem sido vistos com o livro, adquirido normalmente nas livrarias, foram estigmatizados como suspeitos.71 Coincidentemente, esses militares foram cassados e expulsos a partir do golpe de 1964. Ainda hoje o estudo dessa revolta, do tenentismo na Marinha ou da recente Revolta dos Marinheiros de 1964 no encontrou espao na grade curricular da instituio naval. 3. Perseguio aos cabos da FAB Atualmente, os cabos da Aeronutica compem um grupo de militares cuja causa desperta controvrsia. Os encaminhamentos polticos feitos pela Comisso de Anistia e pelo Ministrio da Defesa resultaram em um imbrglio jurdico que se encontra sub judice no Supremo Tribunal Federal. Mesmo entre os militares perseguidos, de diversas categorias, no h entendimento sobre essa ques- to: h associaes de militares que defendem os direitos dos cabos, relacionando-os aos dos grupos militares vitimados por perseguio poltica, e outras que acreditam tratar-se de um grupo especfico, cujos direitos devem ser reconhecidos apenas na esfera administrativa. O nmero de cabos na corporao sempre foi significativo. Com a fundao da Associao de Cabos da Fora Area Brasileira (Acafab), no pr-1964, a entidade passou a expressar os anseios da categoria por melhor formao profissionalizante e reconhecimento dos direitos de cidadania, como os de casar e votar. O depoimento concedido CNV e CV/SP, em Audincia Pblica na Assembleia Legislativa de So Paulo, pelo cabo da Aeronutica Carlos Eduardo Moreira, cujo processo na Comisso de Anistia ainda no fora julgado em 2014, e que veio a falecer pouco depois, esclarecedor desta situao: Tudo com a finalidade de, conseguirmos aquilo que nos era negado como homens. O direito de ter famlia: no podamos dizer que ramos casados. No podamos ter filhos.
  30. 30. 35 comissonacionaldaverdade-relatrio-volumeii-textostemticos-dezembrode2014 Isto era degradante, por qu? Votar, nem se falava, era proibido por lei. Ns sabamos quando entramos que era proibido por lei, mas constitucionalmente nunca foi negado o direito de um homem ter uma esposa e ter filhos. Isto a FAB nos negava. Durante a poca do golpe em 1961 criamos essa sociedade no dia 19 de novembro de 1961, no dia da Bandeira, para que ns tivssemos como norma seguir a Constituio do Brasil. Pois ramos todos brasileiros, todos filhos de pais brasileiros, todos cientes que iramos defender a nossa ptria dentro de uma Fora Armada legalmente constituda e instituda para defender nosso pas. [...] Essa era a principal, me emociona, porque vi que muitas dessas coisas eram negadas como se ns fossemos animais, que voc prende, castra ou mata e joga no lixo [...]. Ns ramos gente, queramos progredir, aprender as profisses na Aeronutica. Queramos ter o direito de ser sargentos e at oficiais dentro daquela fora armada. [...] Quantos oficiais se formavam, quantos sargentos saam das escolas e iam aprender conosco, os cabos, [...] como voar, como consertar um avio, como dirigir um veculo. Mas ns ramos simplesmente, [...], escravos. Os voos eram feitos no Brasil por aeronaves militares e aeronaves civis. Em todo o territrio, havia cabos[...], telegra- fistas que controlavam os cus do Brasil, para que as naves no cassem. No podiam ter famlia, viviam nos sertes de todo o territrio nacional, nos ncleos de proteo ao voo, como se fossem animais. Mas eram responsveis pelos voos que passavam por todo o nosso territrio. E a fazamos a pergunta: brigadeiro, por que ns no podemos estu- dar,[...], um pouquinho mais, ser pelo menos sargentos? Vocs no tm direito. Se no estiverem satisfeitos, vocs podem pedir licenciamento e cair fora. [...] Essa era a triste realidade. Um homem que no pode dizer que homem, no pode dizer que pai, que no pode dizer que tem esposa. [...] E tem um hospital, [...], na Aeronutica, mas no po- dia levar minha esposa, no podia levar meus filhos para ser tratado [...]. Passou-se algum tempo, a minha anistia at hoje no foi julgada, mas me expulsaram da Aeronutica. Acharam algum crime em mim? No. Me prenderam? Me prenderam, em Santos [...]. Fiquei preso, fiquei sem poder trocar de roupa sequer. Sem que minha famlia soubesse onde eu estava, porque eu no tinha famlia [...]. Eu era solteiro, no podia dizer que era casado. No podia dizer que tinha um filho me esperando. Esta a situao em que muitos de ns sofremos por uma ditadura. Muitos, muitos sofreram [...]. 72 Um decreto suspensivo baixado em 1964 atingiu a recm-formada Acafab e, em seguida, o Ofcio Reservado no 04, do comando da Fora Area, determinou o fechamento sumrio da enti- dade, sob a alegao de supostas atividades subversivas. Outras medidas administrativas, de carter preventivo, seguiram-se, como a Exposio de Motivos no 138, de agosto de 1964. A principal medida promulgada pela Fora Area, a Portaria 1.104/GM cujo objetivo seria, em tese, disciplinar admi- nistrativamente o quadro de pessoal pretendia de fato abortar futuras manifestaes polticas ou corporativas, particularmente no momento de exceo em que fora editada.73 Em 2002, com a da Smula Administrativa no 2002.07.0003, a Comisso da Anistia teve o mesmo entendimento, assim exposto: A Portaria no 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo senhor ministro de estado da Aeronutica, ato de exceo de naturez