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Auxiliob lição 5

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MUDANDO DE RELIGIÃO NO BRASIL. DESTRADICIONALIZAÇÃO, DESINSTITUCIONALIZAÇÃO E DESREGULAÇÃO DA CRENÇA: ESTUDO DA RECOMPOSIÇÃO DA RELIGIÃO A PARTIR DAS

MÚLTIPLAS PERTENÇAS

Alessandro Bartz

Doutorando em Teologia no Programa de Pós-graduação da Escola Superior de Teologia

(PPG-EST), de São Leopoldo/RS, Brasil [email protected]

Resumo: O presente artigo tematiza o movimento religioso a partir da mudança de religião, fenômeno da modernidade, que ganha força através da diversidade e do

pluralismo religiosos, presentes no campo religioso brasileiro. Investiga-se a recusa e a fragilidade de pertença institucional e a desregulação da crença através de novas formas de crer como uma recomposição da religião, em movimentação. Como subsídio empírico, através de estudos de caso, narra-se diferentes trajetórias biográficas de mudança de

pertença religiosa, representações da peregrinação religiosa, em que se define e redefine um novo crer não-institucional, uma composição e recomposição religiosa própria através de bricolagens de crenças. Chama-se a atenção para as múltiplas pertenças marcadas por

“passagens” e a perda de controle e regulação das instituições sobre a produção da crença religiosa, num campo sociorreligioso plural.

Introdução

A mobilidade religiosa aparece com mais nitidez com a diversificação das

alternativas religiosas, resultado da secularização. Hervièu-Léger (2005; 2008) compreende

a crise da modernidade e suas instituições sociais, como fatores desencadeantes do retorno

da religião à sociedade. No campo epistemológico, há um processo de crise dos discursos e

metas-teorias (LYOTARD, 2009). Os processos de individualização e subjetivação religiosos

provocam a destradicionalização, a desinstitucionalização, a desregulação da crença e a

crise da transmissão religiosa. Há um repensar da própria dinâmica do religioso em seu

aspecto institucional na modernidade: “Hoje assistimos ao enfraquecimento das

instituições religiosas e à afirmação de expressões menos institucionalizadas do sentimento

religioso”, provoca Touraine (2007, p. 152-53), refletindo a fragilização das forças

comunitárias que mantém a sociedade.

Estas transformações sociais atingem o campo religioso, movimentando-o, pondo

as instituições e seus discursos legitimantes, controladores do sagrado, em suspensão,

permitindo uma liberdade de circulação pelas tradições religiosas, tanto de indivíduos,

quanto de ideias e crenças. O encontro contemporâneo de novos sujeitos, reunidos em

O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES – Brasil.

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grupos de matizes religiosas distintas, herdeiros de tradições produzidas em locais

distantes, a circulação de pessoas e de crenças promove uma liquidez das instituições

religiosas na modernidade, exigindo novos programas de adequação às exigências

contemporâneas, se estas pretendem oferecer ou manter algum tipo de validade na

produção de sentido para o indivíduo crente, reunido ou não em comunidades religiosas.

As novas formas de pertencer, compreendidas por pertencimentos frágeis ou

móveis, redimensionam os tipos de compromissos e relacionamentos com as instituições

religiosas. Estas, espaços privilegiados para relações substanciais, estão sendo

ressignificadas enquanto lugar de autenticidade para uma vivência religiosa, competindo

com outros movimentos que se apropriam dos bens simbólicos, travestindo-os com

roupagens novas, através da cultura do marketing, que na onda da predominância das

mediações da comunicação e da linguagem, possibilitam o desenvolvimento permanente de

novos produtos, como a literatura, a música, a moda, etc. Essa nova configuração suscita a

obrigação de elasticamento da compreensão do fenômeno religioso, pois as evidências de

diversificação de formas e conteúdos religiosos promovem outros sentidos para as relações

estabelecidas entre essas experiências e o próprio debate da modernidade. Num contexto

em que bens simbólicos e de salvação atravessam fronteiras, dilatados pela globalização,

há uma diversificação das fontes do sagrado, produzindo mudanças nas rotinas instituídas,

onde o indivíduo pode transitar por diversos tipos de cultos e práticas alternativas,

construindo simbioses dicotômicas, do ponto de vista institucional. Portanto, na era do

indivíduo, a modernidade religiosa ou psicológica pode ser interpretada como causadora

da fragmentação das próprias instituições religiosas (BARTZ, 2010).

A tendência de integração, incorporação e junção de elementos de diversas

tradições religiosas ou não, numa atitude de bricolagem, compondo sínteses

personalizadas de crenças com pouca intermediação institucional, oferece uma

contraposição ao sistema racional institucionalmente validado, que tinha a instituição

como abalizadora. Como afirma Hervièu-Léger (2008, p. 60-61):

Essa questão de uma „religião à escolha‟, que pressupõe a

experiência pessoal e a autenticidade de um percurso de conhecimento, ao invés da cuidadosa conformação às verdades religiosas asseguradas por uma instituição, é coerente com o

advento de uma modernidade psicológica que exige, de certa maneira, que o homem se pense a si mesmo como individualidade e trabalhe para conquistar sua identidade pessoal, além de toda identidade herdada ou prescrita.

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Os indivíduos podem cada vez mais mudar de religião, manter e ressignificar

crenças, de acordo com suas próprias necessidades, num processo muito mais rápido e

dinâmico do que a instituição religiosa consegue acompanhar. Como diz Peter Berger:

“[em] sociedades modernas a adesão religiosa se converte em objeto de uma eleição

individual, própria de um sujeito que não incorre em nenhuma sanção social se se afasta

dela, se a muda ou se decide afinal de contas prescindir sem ela” (apud HERVIÈU-LÉGER

2005, p. 268). As igrejas tradicionais, com um papel específico, ligadas a identidades

étnicas ou culturais, estão em crise, buscando formas de se adaptar às novas dinâmicas de

pertencimento e às necessidades exigidas por trajetórias e biografias marcadas por

experiências religiosas complexas. A pergunta que se coloca às instituições produtoras de

religião poderia ser colocada nos seguintes termos: Como dar suporte às necessidades

individualizadas dos sujeitos crentes e ao mesmo tempo formar espaços de comunhão e

coletividade, fazendo frente a um movimento de individualização e subjetivação?

Conforme Lyotard (2009), a própria natureza do vínculo social na pós-modernidade precisa

ser repensada diante de relações pragmáticas e momentâneas, inclusive em relação às

instituições religiosas, que se pautam por relações substantivas, visando ao crescimento

individual do indivíduo crente, ser com potencial relacional e social.

Conforme Hervièu-Léger (2008) as dinâmicas das pertenças na modernidade

religiosa (pós-modernidade?) estão em movimento, ressurgindo figuras religiosas como o

peregrino e, paradoxalmente, o convertido. Estas dinâmicas de abertura e de fechamento

das pertenças podem passar por eixos comunitários, éticos, culturais ou emocionais. Estes

podem cruzar-se na definição e caracterização da pertença na modernidade religiosa.

Diante disso, este artigo pretende refletir a dinâmica do pertencimento, através

de aportes teóricos das ciências sociais da religião e estudos empírico-qualitativos, na

intenção de contribuir para o debate da reconfiguração da crença em tempos pós-

modernos, bem como na discussão dos papéis institucionais na configuração da pertença

religiosa, que a nosso ver, passam a perder o seu lugar, principalmente de produtor

hegemônico de religião, diante da mobilidade religiosa, das novas formas de crer e de

pertencer.

A individualização do crer na modernidade: o peregrino religioso

A diversificação das crenças, o abismo entre crença e pertença, a autonomia da

crença em relação ao estabelecido pelo corpo doutrinal institucional, fazem emergir outros

tipos de pertenças que permitem repensar o panorama religioso contemporâneo, em

movimentação.

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Segundo Danièle Hervièu-Léger (2008, p. 41), a modernidade não pode ser

caracterizada pela indiferença em relação à crença, mas a verdade é que a crença escapa

totalmente “ao controle das grandes igrejas e das instituições religiosas”. O panorama

religioso atual pode ser descrito como de “proliferação incontrolada das crenças”. A autora

chama esse panorama religioso ocidental de “modernidade religiosa” (2008, p. 42), de

tendência à “individualização e à subjetividade das crenças religiosas”, afetando as formas

de experiência, expressão e de sociabilidade religiosas. Há um rompimento entre crença

divulgada e prática obrigatória: “A ruptura entre a crença e a prática constitui o primeiro

índice do enfraquecimento do papel das instituições guardiãs das regras da fé”, uma

“perda da regulamentação”, que aparece na liberdade individual de construir o “próprio

sistema de fé”, estranho a um corpo de crenças institucionalmente válido: “O sign ificado

atribuído a essas crenças e as essas práticas pelos interessados se afastam, geralmente, de

sua definição doutrinal. Elas são triadas, remanejadas e, geralmente, livremente

combinadas a temas emprestados de outras religiões ou de correntes de pensamento de

caráter místico ou esotérico” (2008, p. 41).

Segundo a autora, as crenças se disseminam, conformam-se menos com os

modelos estabelecidos e comandam menos as práticas controladas pelas organizações

religiosas. O campo religioso institucional atual sofre um processo de “desregulação”:

Se a crença e a pertença não „mantêm‟ mais, ou mantêm cada vez menos unidos, é porque nenhuma instituição pode, de forma

permanente em um universo moderno caracterizado tanto pela aceleração da mudança social e cultural como pela afirmação da autonomia do sujeito, prescrever aos indivíduos e à sociedade um

código unificado de sentidos e, menos ainda, impor-lhes a autoridade de normas que dele decorrem. Porque nenhuma delas escapa do confronto com o individualismo [...] (HERVIÈU-LÉGER, 2008, p. 50-51).

Nesse sentido, a autora francesa, expõe a primazia do indivíduo sobre a produção

da crença, o que gera novos desafios às instituições, que em crise, buscam seu lugar num

contexto de individualização da religião. Ela oferece duas metáforas para as pertenças

religiosas na modernidade. O peregrino, fruto de um crer e adesão fluída, e o convertido,

como uma redescoberta da religião. No entanto, ambos são movimentações em torno do

indivíduo. A autora (2008, p. 81) assinala que “distinguir o religioso a partir do movimento,

a partir da dispersão das crenças, da mobilidade de pertenças, da fluidez das

identificações e da instabilidade dos agrupamentos é tarefa difícil”. Este projeto é cheio

de dificuldades, pois a figura do indivíduo religioso é o praticante regular, figura estável e

facilmente identificável. Ele é a referência para o estudo da paisagem religiosa, o modelo

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de fiel em comparação com o praticante ocasional, episódico, festivo ou não-praticante.

Ele serve para avaliar as formas de pertença. O “praticante regular” é a figura típica da

civilização paroquial, período típico do catolicismo, da centralidade do poder paroquial e

pela territorialidade das pertenças comunitárias.

Como figura contraposta a do praticante regular, é a figura do peregrino que

cristaliza a mobilidade, uma característica da modernidade religiosa construída a partir de

experiências pessoais. O peregrino aparece na história das religiões antes do que o

praticante regular, o que pode parecer paradoxal à modernidade. A figura do peregrino

hoje permite a leitura da especificidade da modernidade religiosa:

O peregrino emerge como uma figura típica do religioso em movimento, em duplo sentido. Inicialmente ele remete, de maneira

metafórica, à fluência dos percursos espirituais individuais, percursos que podem, em certas condições, organizar-se como trajetórias de identificação religiosa. Em seguida, corresponde a uma forma de sociabilidade religiosa em plena expansão que se

estabelece, ela mesma, sob o signo da mobilidade e da associação temporária (HERVIÈU-LÉGER, 2008, p. 89).

Os níveis de regulação institucional definem qual o sentido que os indivíduos

interessados atribuem à sua participação. O sentido já é atribuído anteriormente, o que

significa que apesar de um distanciamento do fiel praticante em relação aos significados

maiores, é a fidelidade da prática que caracteriza este praticante e o define em relação

aos demais. Já a prática peregrina é variável, facultativa, permitindo dedicação subjetiva

diferenciada, sendo o sentido produzido pelo realizador. A oposição entre as figuras

engloba ainda regimes de tempo e de espaço religioso. Enquanto um pode ser observado

pela sedentarização da religião, outro adota a prática móvel, outra forma de

espacialização do religioso, permitindo práticas excepcionais, não se inserindo nos ritmos

ordinários da vida religiosa e do tempo de observância. A prática peregrina produz uma

sociabilidade religiosa peregrina, onde a participação é flexível, e a intensidade é fixada

pelo indivíduo.

Ao indivíduo, na modernidade, é imposto a produção de significações através de

sua própria experiência “em função de seus próprios recursos e disposições” (Hervièu-

Léger, 2008, p. 89), Ele deve interpretar estas diferentes experiências, muitas vezes,

contraditórias como dotadas de sentido, o que implica na possibilidade de reconstruir sua

própria trajetória pela meditação de um relato. Ocorre nesse processo a formação de uma

identidade religiosa: isso é, quando a subjetividade, através de uma construção biográfica

e a objetividade de uma linhagem de crença se encontram em uma comunidade na qual o

indivíduo se identifica. Antes de uma incorporação definitiva em uma comunidade, há uma

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operação de bricolagem que permite o ajuste das crenças pessoais à própria experiência.

Esta “religiosidade peregrina” pode ser caracterizada, portanto, antes de tudo, por uma

fluidez dos conteúdos de crença que ela mesma elabora, mas ao mesmo tempo, pela

incerteza das adesões ou pertenças comunitárias às quais pode dar lugar.

Verifica-se que a necessidade de pertença não deriva de uma crença. No caso do

peregrino, a pertença institucional pode ser provisória, o que demonstra o movimento

religioso na modernidade religiosa, em que se propiciam buscas de autenticidade afetiva

nas vivências espirituais incorporadas nas trajetórias pessoais. A maneira como o indivíduo

define e opta por manter a pertença vai depender de como a instituição religiosa tem

condições de atender às necessidades prementes. Por outro lado, as novas concepções

religiosas fragilizam a teologia cristã, promovidas pela penetração de um tipo de teodicéia

característico do oriente (CAMPBELL, 1997), resultado entre outros da proliferação do

mercado esotérico (CHAMPION, 1989). A procura de efeito terapêutico dos grupos

mediúnicos, através da busca de elo com a natureza, exerce grande atração no campo

religioso brasileiro. Tudo isso evidencia fissuras entre os conteúdos doutrinários e práticas

normatizadas, causando inadequação e descompasso entre a norma e a experiência

(FERNANDES, 2009).

O campo religioso brasileiro: transformação e tendências

Caracterizar a modernidade religiosa no Brasil pela desregulação e bricolagem da

crença, múltipla pertença, trânsito religioso de pessoas e de bens simbólicos, ou ainda

pela fragilidade das relações entre fiéis e instituições, numa sociedade pós-tradicional e

pós-institucional, seria deixar-se seduzir por um viés produzido na Europa, sobretudo

francês da sociologia da religião. O processo histórico de formação social e cultural

brasileiro permitiu que a chamada modernidade religiosa, compreendida pela linha de

interpretação exposta acima, já estivesse imbricada em nossa cultura, de matriz religiosa

sincrética (SANCHIS, 2003), num processo que reuniu tradições cristãs, indígenas e

africanas, posteriormente, incorporadas a outras tradições, onde crenças se

movimentavam, sendo incorporadas pela religião dominante, ressignificadas, portanto.

Com a ruptura do monopólio religioso sobre o Estado brasileiro, autores têm

percebido a largada para um quadro de pluralismo e de diversidade religiosa, quando uma

pluralidade de interpretações do mundo diversificou o campo, permitindo que tradições e

denominações religiosas disputassem fiéis e seu enquadramento religioso. De acordo com o

professor Carlos Steil (2001, p. 116), “a pluralidade e fragmentação religiosa, portanto,

são frutos da própria dinâmica moderna. A secularização multiplica os universos religiosos,

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de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da

modernidade”.

Steil (2001, p. 117) observa que as sociedades latino-americanas apresentam

resultados contraditórios em relação à modernidade. Se no campo social o projeto

modernizador malogrou, sendo incapaz de oferecer a toda a população as promessas de

bem-estar social, no campo religioso a modernidade realizou seus objetivos: “as

sociedades latino-americanas se apresentam neste final de milênio com um campo

religioso profundamente transformado e reordenado, onde diferentes formas de expressão

religiosa – institucionais e não-institucionais, tradicionais e novas, permanentes e

efêmeras, fundamentalistas e performáticas, sectárias e ecumênicas – convivem no

contexto de um pluralismo que parece não colocar limites à diversidade” 1.

Ari Oro (1997) lança uma série de características que elucidam a compreensão do

campo religioso brasileiro na modernidade, como a privatização da religião, a bricolagem

da crença, o alargamento das fronteiras, a centralidade da emoção, a experiência místico-

espiritual e a busca de saúde.

As novas configurações da identidade religiosa evidenciam um movimento mais

ampliado frente às tradições religiosas já consolidadas. A composição do universo religioso

soma às práticas religiosas tradicionais arranjos alternativos. Muitos fiéis se comportam

com certa autonomia estratégica, circulando livremente pelas tradições religiosas

existentes, porém, no entanto sem estabelecer vínculos formais com nenhuma delas, ou o

fazem por um momento de crise. Além disso, o tráfico de crenças, através de vivências de

experiências religiosas de tradições não-cristãs, não implica necessariamente em conflito

com as tradições religiosas institucionalizadas, daí a atribuição aos tipos de pertença

encontrados no campo religioso brasileiro de duplo ou múltiplo pertencimento. Por esse

lado, apesar do catolicismo historicamente permear e cimentar o pano de fundo das

crenças religiosas no país, inclusive através da socialização primária, novos movimentos e

práticas religiosas ganham cada vez mais lugar de destaque, imprimindo um conjunto de

1 A diversificação religiosa no Brasil foi atestada pelo último Censo (2000). O Censo identificou, resumidamente, três tendências, a se confirmar ou não, no censo de 2010 (JACOB et al, 2003): decrescimento do catolicismo, aumento de evangélicos pentecostais e neopentecostais e crescimento dos “sem religião”. Apesar de a população brasileira professar em sua grande maioria a religião católica (73%), os evangélicos pentecostais e de missão, os sem religião e grupos de outras religiões apresentam variantes importantes na nova configuração do campo religioso brasileiro. O grupo religioso denominado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de “outras religiões” (entre elas, espiritismo e as tradições afro-brasileiras) encontra terreno fértil no país e suas influências, portanto, não devem ser valoradas pela pouca expressão numérica (3% da população), mas pela transmissão e papel na composição de ideias e das crenças religiosas que perfazem o arcabouço religioso brasileiro. A sociedade brasileira apresenta altos índices de mobilidade e de crenças religiosas principalmente nos grandes centros urbanos (FERNANDES, 2006).

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representações e marcas religiosas nas mais diversas pertenças encontradas no campo

religioso brasileiro.

Através da múltipla pertença, da circulação das pessoas e das crenças por

tradições religiosas, processa-se uma religião individualizada, produtora de sentido

somente ao sujeito crente. Segundo Fernandes (2009), cabe, nesse processo, ao indivíduo

estabelecer uma espécie de “arranjo subjetivo” que tem sentido e plausibilidade para ele

mesmo, em sua trajetória pessoal. Assim, as instituições são postas em suspense,

convivendo com um campo religioso plural, permeado por pertenças e crenças múltiplas.

Por este ponto de vista, a primazia do indivíduo na escolha da religião a ser

seguida, disponível no mercado religioso, evidencia mudanças na própria dinâmica da

sociedade. O sujeito crente, diante de famílias religiosas tradicionais, ao escolher a

própria religião a seguir, rompe com elos e raízes da tradição. A escolha da religião pode

evidenciar descontentamentos com a instituição religiosa recebida como herança, busca de

um lugar religioso em que se adapte melhor às necessidades individuais, ou a convergência

a uma condição social ou individual.

Direções e dados gerais sobre o trânsito religioso2

Segundo Steil (2001, p. 120), o trânsito religioso pode ser definido como o

“deslocamento dos atores religiosos por diversos espaços sagrados e/ou crenças religiosas e

na prática simultânea de diferentes religiões”. O trânsito religioso ocorre entre religiões

institucionalizadas e religiões e sistemas produtores de sentido menos institucionais,

propiciando a mobilidade e a múltipla pertença religiosa.

Ronaldo de Almeida e Paula Montero (2001) no artigo “Trânsito religioso no Brasil”

avaliaram uma pesquisa sobre o “Comportamento Sexual da População Brasileira e

Percepções do HIV/Aids”.3 A pesquisa mostrou que 26% da população brasileira mudou de

religião. A alta taxa de migração religiosa assinala para um paradoxo: apesar de as

diferentes cosmovisões, do ponto de vista das crenças, dos ritos e da lógica interna de

cada religião, apontarem para cultos bastante diferentes entre si, a observação do

comportamento dos frequentadores destes cultos mostra fronteiras pouco precisas devido

à circulação de indivíduos pelas múltiplas alternativas, e da acentuada interpenetração

entre as crenças. Os autores observaram rotas, círculos de movimentação religiosos que

podem contrariar as concepções vigentes de um trânsito religioso aberto, onde todos são

2 Dados reunidos no trabalho sobre trânsito religioso no Brasil. Cf. SINNER, BOBSIN E BARTZ (2012). O artigo está sendo preparado para a publicação. 3 Pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde do Governo Federal. Para isso, entrevistou 3.600 pessoas entre 16 e 65 anos em 169 microrregiões urbanas.

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doadores e receptores. Segundo eles, isso mostra com clareza suficiente os enormes

deslocamentos que estão ocorrendo no campo religioso brasileiro. A “oferta” e a “procura”

da religião continuam fortes e se diversificaram. Neste sentido, os fluxos da mobilidade

religiosa são assimétricos. Almeida e Montero resumiram esses fluxos no seguinte gráfico:

Fonte: ALMEIDA e MONTERO (2001).

A partir dessa figura, que permite muitas leituras, resumidamente depreende-se

que “os católicos” estão perdendo membros em todas as direções, ao passo que as igrejas

pentecostais, além dos chamados “sem religião”, estão entre os grandes ganhadores,

embora estes grupos também registrem perdas, representando, por sua vez, grupos

diversificados ou até difusos (sem religião), com elevada mobilidade interna.

Outro estudo mais completo (FERNANDES, 2006)4, apurou que cerca de 23%, ou

seja, uma de cada quatro pessoas, trocou de pertença religiosa pelo menos uma vez na

vida, ao passo que 68,3% permanecem na mesma religião desde o nascimento. Isto se

aplica de modo igual a homens e mulheres, sendo que o número de homens (23,9%) que

trocou de religião é ligeiramente maior do que o de mulheres (23,1%). De acordo com o

estudo, em termos percentuais só 4% dos católicos trocaram de pertença religiosa, mas,

em números absolutos, isto equivale a 15 milhões de pessoas. Entre os protestantes

históricos, os pentecostais e os membros de “outras religiões”, a proporção de pessoas que

fez essa troca é elevada: 77,2%, 84,6% e 89,3%, respectivamente. Entre as pessoas “sem-

religião”, 5 milhões, o segundo maior grupo em números absolutos, trocou de pertença

4 O levantamento foi feito com 2.870 pessoas, em 23 capitais e 27 outros municípios. Por causa das

disparidades sociais, as respostas da amostra foram ponderadas por “tipos sociais”, de modo que os percentuais subsequentes não correspondem simplesmente ao respectivo número de respostas individuais, mas foram projetados para a totalidade da população de acordo com o método empregado.

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religiosa, passando principalmente para igrejas pentecostais (33,2%) e para a Igreja

Católica (23,1%).

Estudos de caso: pertenças móveis e peregrinação religiosa numa comunidade

tradicional – instituição/individualização do crer

Fundada no Rio de Janeiro por imigrantes alemães há quase dois séculos, a

“Paróquia Evangélica de Confissão Luterana no Rio de Janeiro” sofre as agonias da

fragilização das pertenças, principalmente em relação à membresia antiga, como também

da nova membresia, que não cria compromissos com a comunidade. Sem entrarmos nos

detalhes de suas especificidades históricas, que não é nosso objetivo, a Comunidade

Luterana atuou como uma representação da pátria religiosa, local de reunião dos

emigrantes alemães e teuto-brasileiros, por quase dois séculos. Seus interesses se

concentravam na celebração dos ofícios religiosos como batismo, casamento, confirmação

e o culto.

A comunidade conta com diversos grupos de interesse, de diferentes faixas-

etárias. O momento de reunião mais importante é o culto dominical, que reúne

aproximadamente cem pessoas. Segundo o pastor local, mais de dois terços dos

frequentadores não têm vínculo formal com a comunidade. O pastor apresenta alguns

dons, que o destacam. Nas pregações demonstra grande erudição teológica. O dom musical

– tem vários CDs gravados – atrai diferentes pessoas à comunidade, principalmente nos

concertos públicos e nas celebrações natalinas.

Compondo a comunidade, encontramos duas migrantes de regiões do Norte e

Nordeste do país, casos que podem ilustrar o que denominamos de pertenças móveis ou de

peregrinação religiosa. A relação entre os casos ocorre pela participação na comunidade

luterana, esporadicamente. Apresento-os a seguir5.

O primeiro caso refuta qualquer tipo de vínculo religioso institucional, rejeitando

uma conformação doutrinal. Ela chegou à comunidade luterana pelo viés político, onde

encontrou sustentação às suas aspirações sociais. Começou dali em diante a participar da

vida religiosa da comunidade.

[...] Eu não quis fazer a filiação. Meu espírito é ecumênico. Por isso eu gosto dessa Igreja. Tem fraternidade e é ecumênica, não obriga as pessoas com doutrinação, como eu vejo em outras pessoas. Eu

não tenho cabeça para a doutrina. Toda vez que eu participo de algo doutrinal, eu sinto que estou dividindo. Eu sou da integração

5 Entrevistas realizadas em dezembro de 2009.

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[...] Quando pedem para eu ser de uma religião eu não faço, porque é tão contra o que penso. Eu quero é que as coisas de unam [...] Assim como a Nova Era. Eu gosto muito da Legião da Boa Vontade.

Eles têm uma rádio. Eu ligo o rádio, eles falam do movimento ecumênico. Eles tocam músicas dos católicos, das igrejas evangélicas. Falam do espiritismo, é tudo misturado, acho o melhor barato. Gosto dessa mistura... (mulher, 68, aposentada).

Crente na reencarnação, ela se considera “ecumênica”. A entrevistada já teve

diversas experiências religiosas, inclusive místicas, passando por diversas igrejas (Católica,

Protestantes), movimentos cristãos, neo-esotéricos, espiritismo, xamanismo, misticismo,

orientalismo, adotando práticas na linha New Age, como terapias, rituais de relaxamento,

retiros espirituais, excursão a Machu-Pichu, entre outras práticas que a ajudam a se

aproximar da natureza. No caso desta informante, a adoção de uma única confissão

religiosa e uma linha doutrinária, não lhe parece válida, já que em sua bricolagem da

crença, está recompondo sua religião conforme as experiências vividas junto aos diferentes

grupos religiosos que mantém contato 6.

Como as exigências institucionais de exclusividade e a definição das práticas

religiosas são cada vez mais frágeis, a multiplicidade de crenças, muitas vezes, também

aparece nos relatos individuais. Oneide Bobsin (1997) chama a atenção para o

“subterrâneo religioso” da vida eclesial. O termo subterrâneo religioso chama a atenção ao

mostrar uma perspectiva em que uma variedade de práticas e crenças religiosas

acompanha a membresia das comunidades eclesiais, convivendo lado a lado com as crenças

legitimadas pelo corpo sacerdotal. Entretanto, como práticas domésticas e, muitas vezes,

secretas, não chegam aos ouvidos dos líderes comunitários. O autor (BOBSIN, 1997, p. 278)

alerta para “possíveis causas da existência de uma prática religiosa que, de certa forma,

alimenta-se do discurso oficial da Igreja e aceita a mesma como administradora dos ritos

de passagem, mas não se satisfaz com a produção simbólico-religiosa do clero legítimo,

buscando, assim noutras fontes clandestinas o sentido da vida e respostas para os

mistérios”.

Ainda, outra reflexão que nos parece interessante, é novamente de Hervièu-Léger

(2008, p. 163) quando chama a atenção para a autovalidação do crer na modernidade.

Segundo a autora francesa, os regimes da validação podem ser institucionais, comunitários,

mútuos e auto-validados. Destacamos que a auto-validação do crer pela “certeza

6 Na cidade do Rio de Janeiro dados demográficos da população segundo a pertença religiosa podem revelar a mistura de crenças. Muitas religiões possuem seus maiores índices demográficos nessa cidade. Com um percentual de católicos (61%) menor que a média nacional (73%), índices expressivos de pentecostais, principalmente da Igreja Universal do Reino de Deus e Assembléia de Deus, a cidade apresenta índice de “outras religiões” (8,9%) também superior à média nacional, com destaque ao espiritismo, umbanda, candomblé (JACOB et. al., 2006, p. 146ss).

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subjetiva”, quando o indivíduo é a instância de validação da crença, aponta para um

sujeito que “reconhece apenas para si mesmo a capacidade de atestar a verdade da sua

crença”. No entanto, não podemos ignorar a influência da tradição religiosa herdada, nem

mesmo as novas crenças adotadas na composição do crer do sujeito religioso: “as grandes

religiões – diz a autora – fazem prevalecer, em princípio, um regime institucional da

validação do crer, realizado por instâncias garantidoras da linhagem de fé. Mas, em todos

os casos, autoridades religiosas reconhecidas (padres, rabinos, irmãs, etc.) definem as

regras que são, para os indivíduos, os sinais estáveis da conformidade da crença e da

prática” (2008, p. 160). Deve ser observada esta passagem tensionada da validação pela

autoridade institucional para uma validação em que o indivíduo assume um papel ativo,

cabendo a ele, em última instância, decidir sobre suas crenças. Hervièu-Léger (2008, p.

85-86) parece captar muito bem esta dinâmica religiosa na modernidade. Ela observa que a

obrigação religiosa é uma escolha individual:

De maneira ainda mais interessante, descobre-se que a própria

figura do praticante tende a mudar de sentido: ao mesmo tempo em que ela toma distância em relação à noção de „obrigação‟, fixada pela instituição, ela se organiza em termos de „imperativo interior‟,

de „necessidade‟ e de „escolha pessoal‟. A fonte de obrigação – mas o próprio termo é recusado – é, antes de mais nada, pessoal e „interior‟. A comunidade é importante para „dar apoio‟ ao indivíduo e „incitá-lo à fidelidade‟; mas nem a comunidade, como também a

instituição, que lhe permite „situar-se‟, não podem, no fim das contas, prescrever nada ao fiel.

O segundo caso apresenta o relato de uma fiel neo-pentecostal que, da mesma

forma, encaixa-se no quadro de peregrinação religiosa, de múltiplas pertenças. Mas ao

adotar um rito demarcador da mudança de religião, optando pelo batismo de adulto, são-

lhe propostas algumas definições e práticas regulares, como cura, dons espirituais e

desobsessão, já que a informante participou da Umbanda e agora se define como membro

da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A depoente participa da Igreja Universal há

quinze anos, desde que foi exorcizada e curada da possessão de entidades afro-brasileiras.

Isto não a impede de visitar outras igrejas como a Maranata, Congregacional, Assembleia

de Deus e a Comunidade Luterana referida, pois sua igreja não exige fidelidade de

pertencimento. Ela vive um conflito com o esposo que não gosta da IURD, pela

centralidade que o dinheiro ocupa nessa igreja. O tema da oferta chama a atenção,

evidenciando um quadro de desregularão entre a crença e o discurso institucional. Apesar

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de ela ofertar nos cultos, opta por não dar o dízimo sobre sua renda7 Segundo a

informante, “o dinheiro que a gente dá no fim do mês, os dez por cento, não são para a

igreja, são para o Edir Macedo (líder e fundador da IURD)”. Ela não oferta por causa das

acusações de corrupção por parte da IURD.8 Conta, contudo, que esta igreja não exige o

dízimo dela, pois, segundo ela, “quem tem fé dá. Eu [informante] recebo as mesmas

graças que os outros. Eu tenho fé no meu Senhor. Tudo o que eu peço, eu recebo”.

(mulher, 72, costureira).

Os casos ilustrados expõem novas formas de crer e de pertencer. Do ponto de vista

institucional, essas pertenças frágeis provocam um repensar do papel da instituição, que

passa a adotar atitudes de tolerância para se adaptar às novas exigências individuais. Como

exemplo, a comunidade religiosa criou um grupo de interesse em torno do tema da saúde e

terapia para contentar um grupo interessado. Por outro lado, a comunidade da IURD ignora

a reflexão da fiel, que não paga o dízimo, tolerando a discordância da instrução

doutrinária. Nesse sentido, novas pertenças e formas religiosas evidenciam menos a

eleição individual de um modo doutrinário-teológico, que uma produção da experiência

religiosa própria (SINNER; BOBSIN; BARTZ, 2012). Percebe-se a exigência de flexibilização

institucional – que se adapte a estrutura e trajetória do próprio indivíduo – bem como uma

menor exigência em relação a compromissos formais entre indivíduo e instituição.

Mudando de religião no Brasil: eixos de interpretação

A subjetivação da religião, experimentada como forma de contato pessoal com o

sagrado, na busca por sentido, tornou-se decisiva para a vivência da religião na

modernidade. Autores como Kepel (1991) falam de uma revanche do sagrado, uma reação

ao processo de secularização, ou processos de dessecularização, conforme Berger (2001),

contra a própria teologia que havia se entregado à tese da secularização, mesmo depois da

desconfiança das ciências sociais diante da imprecisão dessa tese (MILBANK, 1995).

Hervièu-Léger (2005) aponta para o revigoramento do religioso diante das promessas não

cumpridas pela modernidade, que paradoxalmente provocaram a incerteza e a falta de

sentido.

A pesquisa de Fernandes (2006), vista anteriormente, busca identificar as

motivações que orientam o trânsito religioso entre denominações e grupos religiosos. Ela

7 O dízimo é cobrado de todos os fiéis, que devem contribuir com 10% de sua renda líquida para a

manutenção da igreja. Esta prática religiosa é amplamente utilizada por setores pentecostais no Brasil. 8 A IURD está envolvida em muitas denúncias de corrupção, repercutidas pela grande mídia brasileira.

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lança quatro eixos de interpretação da mobilidade e migração religiosa: a desfiliação

institucional, a destradicionalização, a noção de conversão e as configurações do

pluralismo. Vamos abordar rapidamente cada um desses eixos, no intuito de oferecer

ferramentas teóricas para o estudo da mobilidade religiosa no Brasil.

Fernandes (2006) questiona se a desfiliação institucional seria também religiosa?

Mesmo que a secularização tenha produzido a diminuição do poder de influência da

religião, práticas e crenças religiosas continuam existindo e pautando a vida social. Tanto

a adesão quanto o abandono de uma religião são acalentados por um tipo de mentalidade

secular onde o que prevalece é a relativização do papel soberano da religião na vida da

sociedade e do indivíduo. Numa época de “religiosidade confrontada”, a liberdade

religiosa abre o leque das ofertas, como dos questionamentos, das críticas e do confronto

com os sistemas estabelecidos, como ficou evidenciado nos casos apresentados.

Como apontado pela pesquisa citada, se o principal motivo para estar numa

religião é “sentir-se bem”, por outro lado, o abandono da religião ocorre principalmente

pela discordância em relação aos preceitos e doutrinas propostos. Seria isto um sinal do

fim da religião entendida como um conjunto de normas e doutrinas e um retorno da magia,

como conjuração dos espíritos, pergunta-se Fernandes. Se olharmos o abandono da

religião, pelo ponto de vista da pertença, não podemos deixar de apontar para a perda de

credibilidade de um sistema religioso ou a possibilidade de adoção de uma fórmula simples

capaz de conjugar flexibilização de normas e desenvolvimento de uma ética particular e

desinstitucionalizada (FERNANDES, 2006).

Mesmo que a modernidade tenha afastado a religião do eixo gravitacional das

decisões, como um código que perdeu seu papel de protagonista de institucionalizador das

cosmovisões, orientador de posições e valores, a religião não assistiu seu potencial

desaparecer, sendo revitalizada, ressignificada, ressemantizada por campos de

religiosidade sem mediações institucionais. Paul Heelas (1996, p. 2) aponta para o processo

de destradicionalização da religião, mas também das esferas em geral, como a da família,

da política, da tradição cultural, em que a autoridade legítima é substituída pelo próprio

indivíduo.

Detraditionalization involves a shift of authority: from „without‟ to

„within‟. It entails the decline of the belief in pre-given or natural orders of things. Individual subjects are themselves called upon to exercise authority in the face of the disorder and contingency which is thereby generated. „Voice‟ is displaced from established sources,

coming to rest with the self.

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Mesmo que a destradicionalização seja vista como uma tendência em definitivo,

de forma radical, há uma visão que aponta para mudanças em torno às tradições, não

necessariamente seu desaparecimento. Mesmo assim, os vínculos externos são perdidos nos

processos de individualização, bem como pelos processos de fragmentação e diversificação

da cultura, da política, do social, etc.

A desregularão religiosa pode ser caracterizada pela diminuição do pertencimento

religioso, mas também pela autonomia do sujeito crente em interpretar e viver a religião

ao modo individual. Ribeiro (2009, p. 80) menciona ainda o crescimento dos “sem religião”

e a “religiosidade difusa”, principalmente entre os jovens, como fatores de desregulação

da crença.

Joanildo Burity (2001, p. 34) define a desinstitucionalização da religião, como uma

“proliferação de igrejas, movimentos e grupos informais, que não mais se prendem aos

protocolos de autorização ou sanção eclesiástica, bem como na difusão/disseminação do

religioso para além das fronteiras reguladas pelas instituições religiosas”. A

desinstitucionalização pode ainda ser caracterizada, de acordo com Hervièu-Léger (2008,

p. 170) como

A perda da força da observância, o desenvolvimento de uma religião

“à la carte”, a proliferação das crenças combinadas a partir de várias fontes, a diversificação das trajetórias de identificação religiosa, o desdobramento de uma religiosidade peregrina: todos esses fenômenos são indicadores de uma tendência geral à erosão

do crer religioso institucionalmente validado.

Para a vivência religiosa, a emoção, o mágico, a experiência íntima com o

sagrado, a catarse são critérios para uma experiência profunda, totalmente à revelia do

papel mediador da instituição religiosa, não prescindindo desta como abalizadora da

experiência (Bauman, 1998). A reinvenção e a bricolagem caracterizam a

desinstitucionalização, sistema em que a crença está à la carte, sujeita a autonomia do

sujeito crente.

No âmbito da religião, como nos demais, a capacidade do indivíduo para elaborar seu próprio universo de normas e de valores a partir de sua experiência singular, tende a impor-se, como vimos,

vencendo os esforços reguladores das instituições. Os crentes modernos reivindicam seu direito de „bricolar‟, e, ao mesmo tempo, o de „escolher suas crenças‟. Mesmo os mais convictos e os mais integrados a uma determinada confissão fazem valer seus direitos à

busca pessoal pela verdade. Todos são conduzidos a produzir por si

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mesmos a relação com a linhagem de crença na qual eles se reconhecem (HERVIÈU-LÉGER, 2008, p. 63-64).

O campo religioso, portanto, representa desafios à interpretação científica,

compreendido por seus estudiosos pelos adjetivos de “fluido, híbrido, sincrético ou

contínuo”. Nesse processo de rápidas idas e vindas entre religiões, parece não haver

incongruências cognitivas na consciência religiosa dos fiéis. Na dificuldade de operar com o

conceito weberiano de “conversão”, especialistas do estudo da religião debatem-se sobre

qual a melhor forma de caracterizar a constante mudança de pertença religiosa.

Deve ser dito que os sociólogos e antropólogos da religião no Brasil, como observa

Frigerio (2007), preferem não usar esta categoria para interpretar a mudança religiosa, por

considerarem-na pouco abrangente no estudo das diversidades de fatores que envolvem a

mudança de religião, assim como o papel ativo do indivíduo. Como exemplo, ao estudar a

mudança religiosa entre pentecostais, Patrícia Birman (1996) defende a mudança de

religião como uma “passagem”, enquanto a antropóloga Clara Mafra (2000) defende o

conceito de “conversão minimalista”, em contraposição ao paradigma paulino de ação

externa, que promove rupturas drásticas, no processo de conversão. O que parece

preocupar às nossas intérpretes do campo religioso brasileiro é a participação do indivíduo

bem como a ausência de radicalismos na mudança de pertença religiosa.

No entanto, autores como o próprio Gooren e Frigerio (2007), que conhecem a

dinâmica religiosa latino-americana, vêm se esforçando em oferecer possibilidades de

interpretação da conversão. Enquanto este defende uma nova interpretação, ao sugerir o

abandono de um ceticismo em relação à conversão, propondo uma “conversão ativa”,

Gooren (2010), por exemplo, dentro do ciclo das carreiras de conversão - pré-afiliação,

afiliação, conversão, confissão e desfiliação – propõe em lugar da visão singular de um ato

único, à compreensão das múltiplas conversões cumulativas e alternadas, para a história

do evento pessoal como um ato que não termina. Mesmo assim, o autor alerta para a não

confusão entre conversão e afiliação, quando não há rupturas de identidade. Hervièu-Leger

(2008), num sentido oposto, aborda a conversão como qualquer mudança de religião. Ela

compreende a conversão num sentido amplo. No entanto, este conceito deve ser

reinterpretado, não abrangendo somente rupturas de identidades, ou narrativas com a

presença de “antes” e “depois”, podendo ser utilizado para designar a redescoberta da

própria tradição religiosa, aumentando os níveis de participação. Do ponto de vista

teológico, Lienermann (2005) adverte para a dificuldade em operar com uma opinião

fechada sobre a conversão à luz de textos neotestamentários, em que a relação entre

Cristo e os seguidores não apresenta estabilidade, como nos relatos em que não se têm

mais notícias sobre os personagens.

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Por tudo isso, conforme Steil (2001), no campo religioso brasileiro os modos de ser

religioso e de definição de pertença institucional ocorrem de modo mais plural, mais

experimental, circunstancial, redefinindo a relação entre o indivíduo e o sagrado. Agora

incorporada pela grande oferta de bens simbólicos, dilatada pela própria globalização, a

fluidez e a diversidade de formas e crenças religiosas promovem posturas e práticas

marcadas pela pluralidade de crenças. Nesse sentido, resta-nos decifrar as diferentes

posturas que emergem sobre o pluralismo religioso. De acordo com Steil (2001, p. 117), do

ponto de vista institucional, o pluralismo

surge muitas vezes como uma ameaça a sua identidade, na medida em que este significa uma perda do controle sobre os sentidos e os

bens simbólicos produzidos em seu interior. Esta ameaça tem dado origem a duas atitudes recorrentes no campo institucional: a afirmação do exclusivismo, que delimitaria o seu universo a um

círculo restrito de adeptos, ou da tolerância, que as abriria para a acolhida em seu interior da fragmentação produzida pela modernidade sobre o campo religioso.

Considerações finais

Segundo Fernandes (2009) a pesquisa científica qualitativa pode ajudar a revelar

os diversos entrelaçamentos e simbioses produzidos pelos indivíduos em seu universo

religioso, principalmente no ambiente urbano, que é a tarefa que nos coube nesse artigo.

A cidade promove movimentos de aproximação com o sagrado e de efervescência religiosa

que podem ser configurados por elos pouco ortodoxos, facilitado pelo encontro de

fenômenos religiosos diferentes num contexto de diminuição das fronteiras e de

desterritorialização da religião. Propomos que os sujeitos religiosos constroem suas auto-

identidades ao negarem a vinculação com uma única religião, o que pode evidenciar a

recusa ou incapacidade de seguir determinadas doutrinas que normatizam as instituições

religiosas. Estes fatores expressam ainda o próprio limite das instituições em ofertar bens

simbólicos que ofereçam sentido aos indivíduos na modernidade.

Nesse processo de autorregulação, as instituições, anota Fernandes (2009), que

não fizerem a passagem da perplexidade para o diálogo, podem perder ainda mais, pois

esta autorregulação da vida faz parte de um movimento em expansão, do cultivo agudo da

individualidade, caracterizada pela auto-validação da experiência individual e dos próprios

sentimentos. Assim, os modos de ser religioso e a definição de pertença ocorrem de modos

múltiplos, redefinindo a relação entre o indivíduo e o sagrado.

Os casos ilustrados mostram uma configuração de identidade religiosa marcada

pela múltipla pertença, junto a um arranjo individual auto-biográfico, em torno de uma

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comunidade religiosa tradicional. Se por um lado, a própria trajetória produz uma negação

da instituição como reguladora do crer, processo que compete unicamente ao indivíduo,

reunindo bens simbólicos bastante paradoxais, de outro lado, também há um arranjo

individual do crer, que na instituição religiosa escolhida, é sintoma de reorganização dos

próprios limites da trajetória do indivíduo. A múltipla pertença evidencia a busca por

entendimentos de si, que produzem dissensões individuais, onde o indivíduo precisa negar

sua história produtora de experiências religiosas através de novos elos reorganizadores da

própria vida, daí a recomposição individual da religião.

Por último, as novas pertenças religiosas abrem brechas para vínculos frágeis, de

crenças desreguladas, onde a instituição contribui com apenas parte da configuração da

crença, demonstrando um movimento em que a exclusividade religiosa já não faz parte da

pertença e da razão da pertença nas grandes cidades. Numa sociedade pós-institucional, as

pertenças se configuram de formas diversificadas, com menor presença de intermediação

das instituições, de acordo com a experiência e predisposição do indivíduo religioso.

Ressurge, assim, com vitalidade, um movimento de peregrinação religiosa, permitindo que

indivíduos, ao reorganizarem suas vidas, redescubram dimensões novas da religião,

compondo e recompondo-a, reconstruindo a promessa de sentido que a modernidade não

conseguiu cumprir.

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