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O demonio do meio dia

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1. A meu pai, que por duas vezes me deu a vida. 2. Sumrio Uma nota sobre mtodo 1. Depresso 2. Colapsos 3. Tratamentos 4. Alternativas 5. Populaes 6. Vcio 7. Suicdio 8. Histria 9. Pobreza 10. Poltica 11. Evoluo 12. Esperana 3. Eplogo Notas Bibliografia Agradecimentos Sobre o autor 5/771 4. Tudo passa sofrimento, dor, sangue, fome, peste. A espada tambm passar, mas as estrelas ainda permane- cero quando as sombras de nossa presena e nossos feitos se tiverem desvanecido da Terra. No h homem que no saiba disso. Por que ento no voltamos nossos olhos para as estrelas? Por qu? MIKHAIL BULGAKOV, O exrcito branco1 5. Uma nota sobre mtodo Escrever este livro foi tudo que fiz nos ltimos cinco anos, e s vezes encontro di- ficuldades para ligar minhas prprias ideias a suas vrias fontes. Tentei dar crdito a todas as influncias nas notas no final do livro e no distrair os leitores com jarges e uma infinidade de nomes tcnicos obscuros no texto principal. Pedi queles cujos casos so utilizados neste livro que me permitissem usar seus nomes verdadeiros, j que nomes reais emprestam credibilidade a histrias reais. Num livro que tem como um dos principais objetivos remover o estigma da doena mental, importante no reforar esse estigma escondendo a identidade de pess- oas deprimidas. No entanto, inclu as histrias de sete pessoas que desejaram ser mencionadas por pseudnimos, e que me convenceram de que tinham um motivo importante para tal. Elas aparecem neste texto como Sheila Hernandez, Frank Rusakoff, Bill Stein, Danquille Stetson, Lolly Washington, Claudia Weaver e Fred Wilson. Nenhum deles uma combinao de diferentes pessoas, e me es- forcei para no mudar nenhum detalhe. Os membros dos Grupos de Apoio s Pessoas com Transtornos de Humor (Mood Disorders Support Groups, MDSG) 6. usam apenas o primeiro nome; eles foram alterados para manter a privacidade dos encontros. Todos os outros nomes so verdadeiros. Deixei que os homens e mulheres cujas batalhas so o tema central deste liv- ro contassem suas histrias. Fiz o melhor que pude para obter deles histrias co- erentes, mas em geral no verifiquei os fatos em seus relatos. No insisti para que toda narrativa pessoal fosse estritamente linear. Perguntam-me frequentemente como encontrei essas pessoas. Alguns profis- sionais me ajudaram com acesso a seus pacientes, conforme assinalado nos agradecimentos. Conheci um enorme nmero de pessoas no dia a dia que ofere- ceram voluntariamente, aps tomar conhecimento de meu assunto, suas prprias copiosas histrias, algumas extremamente fascinantes e que se tornaram por fim fonte daquelas histrias que narro. Publiquei um artigo sobre depresso na revista The New Yorker em 1998 e recebi mais de mil cartas nos meses seguintes.1 Gra- ham Greene certa vez disse: s vezes cogito como que todos os que no escre- vem, no compem ou no pintam conseguem escapar da loucura, da melancolia, do pnico inerente condio humana.2 Acho que ele subestimou amplamente o nmero de pessoas que escrevem de um modo ou de outro para aliviar a melan- colia e o pnico. Respondendo ao meu dilvio de correspondncia, perguntei a certas pessoas, cujas cartas achei especialmente comoventes, se estariam interessa- das em dar entrevistas para este livro. Alm disso, fiz muitas palestras e assisti a inmeras conferncias onde conheci pessoas que recebem assistncia mdica. Nunca havia escrito sobre um assunto a respeito do qual tantos tivessem tanto a dizer, ou sobre o qual tantos tivessem decidido me falar a respeito. as- sustadoramente fcil acumular material sobre depresso. No final, senti que o que faltava no campo dos estudos da depresso era sntese. Cincia, filosofia, lei, psicologia, literatura, arte, histria e muitas outras disciplinas tm se voltado in- dependentemente para a causa da depresso. Muitas coisas interessantes esto acontecendo a muitas pessoas interessantes, e muitas coisas interessantes esto sendo ditas e publicadas portanto, o caos reina. O primeiro objetivo deste livro a empatia. O segundo, que para mim tem sido muito mais difcil de atingir, a 8/771 7. ordem: uma ordem baseada, to estritamente quanto possvel, no empirismo, e no nas generalizaes impetuosas extradas de histrias escolhidas ao acaso. Preciso enfatizar que no sou mdico, psiclogo ou mesmo filsofo. Este um livro extremamente pessoal e no deve ser encarado como nada alm disso. Embora eu oferea explicaes e interpretaes de ideias complexas, este livro no pretende substituir o tratamento apropriado. Em prol da legibilidade, no usei reticncias ou parnteses em citaes de fontes orais ou escritas onde senti que as palavras omitidas ou acrescentadas no mudavam o significado; qualquer pessoa que deseje se remeter a essas fontes deve voltar aos originais, todos catalogados no final deste livro. Citaes sem refern- cias pertencem a entrevistas pessoais, a maior parte realizada entre 1995 e 2001. Usei estatsticas de estudos slidos, sentindo-me muito vontade com aquelas extensamente reproduzidas ou frequentemente citadas. Minha descoberta, de um modo geral, que as estatsticas neste campo so inconsist- entes e que muitos autores as selecionam para construir um conjunto atraente que apoie teorias preexistentes. Por exemplo, encontrei um estudo importante mostrando que pessoas deprimidas que usam drogas quase sempre escolhem es- timulantes; e outro, igualmente convincente, demonstrando que os deprimidos que usam drogas usam invariavelmente opiceos. Muitos autores assumem um ar nauseante de invencibilidade ao utilizar estatsticas: como se algo que ocorre 82,37% das vezes fosse mais palpvel e verdadeiro do que algo que ocorre trs em cada quatro vezes. Minha experincia diz que os nmeros so os que mentem. As questes que descrevem no podem ser definidas com clareza. A declarao mais precisa a ser feita sobre a periodicidade da depresso que ela ocorre com fre- quncia e em geral afeta a vida de todos, direta ou indiretamente. difcil para mim escrever sem preconceito sobre as empresas farmacuticas, porque meu pai trabalhou nesse mercado durante a maior parte de minha vida adulta. Em consequncia disso, conheci muitas pessoas dessa rea. Hoje em dia, moda execrar a indstria farmacutica, afirmando que ela tira vantagem do doente. Minha experincia diz que as pessoas na indstria so to capitalistas quanto idealistas gente interessada em lucro, mas tambm otimista quanto ao 9/771 8. fato de seu trabalho poder beneficiar o mundo, de poder realizar importantes descobertas que levaro algumas doenas erradicao. Sem as empresas que patrocinaram a pesquisa, no teramos os inibidores seletivos da recaptao de serotonina (ISRS), antidepressivos que salvaram muitas vidas. Esforcei-me para es- crever claramente sobre a indstria, j que ela parte da histria deste livro. De- pois de sua experincia com minha depresso, meu pai estendeu o escopo de sua companhia para o campo dos antidepressivos. Sua empresa, a Forest Laborator- ies, agora o distribuidor norte-americano do Celexa [mais conhecido no Brasil como Citalopram].3 Para evitar qualquer conflito explcito de interesses, no mencionei o produto exceto onde sua omisso seria evidente ou prejudicial. Enquanto eu escrevia este livro, perguntavam-me frequentemente se a es- crita era catrtica. No era. Minha experincia est de acordo com a de outros que escreveram sobre esse campo. Escrever sobre depresso doloroso, triste, solitrio e estressante.4 Contudo, a ideia de que eu estava fazendo algo que po- deria ser til a outros era gratificante; e o aumento de conhecimento me tem sido til. Espero que fique claro que o prazer primordial deste livro mais de comu- nicao literria do que libertao teraputica da expresso pessoal. Comecei escrevendo sobre minha depresso; depois, sobre depresso similar em outros; em seguida, sobre diferentes tipos de depresso em outros; e final- mente sobre a depresso em contextos completamente diferentes. Inclu trs histrias de fora dos pases desenvolvidos neste livro. As narrativas de meus en- contros com gente do Camboja, Senegal e Groenlndia foram inclusas numa tentativa de contrabalanar ideias de depresso especficas a uma s cultura que tm circunscrito muitos estudos na rea. Minhas viagens a lugares desconhecidos foram aventuras tingidas de um certo exotismo, e no suprimi a qualidade de con- to de fadas desses encontros. Sob vrios nomes e disfarces, a depresso e sempre foi onipresente por motivos bioqumicos e sociais. Este livro se esfora para abarcar a extenso do al- cance temporal e geogrfico da depresso. Se s vezes parece que a depresso uma aflio prpria da classe mdia do Ocidente moderno, isso se deve ao fato de que nessa comunidade que repentinamente estamos ganhando uma nova 10/771 9. sofisticao no reconhecimento, nomeao, tratamento e aceitao da depresso e no porque temos quaisquer direitos especiais sobre a doena em si. Nen- hum livro pode abarcar a extenso do sofrimento humano, mas espero que indi- car tal extenso ajude a liberar algumas pessoas que sofrem de depresso. Jamais poderemos eliminar toda a infelicidade, e aliviar a depresso no assegura a feli- cidade, mas espero que o conhecimento contido neste livro ajude a eliminar parte da dor para algumas pessoas. 11/771 10. 1. Depresso A depresso a imperfeio no amor.1 Para poder amar, temos que ser capazes de nos desesperarmos ante as perdas, e a depresso o mecanismo desse desespero. Quando ela chega, destri o indivduo e finalmente ofusca sua capacidade de dar ou receber afeio. Ela a solido dentro de ns que se torna manifesta e destri no apenas a conexo com outros, mas tambm a capacidade de estar em paz con- sigo mesmo. Embora no previna contra a depresso, o amor o que tranquiliza a mente e a protege de si mesma. Medicamentos e psicoterapia podem renovar essa proteo, tornando mais fcil amar e ser amado, e por isso que funcionam. Quando esto bem, certas pessoas amam a si mesmas, algumas amam a outros, h quem ame o trabalho e quem ame Deus: qualquer uma dessas paixes pode ofere- cer o sentido vital de propsito, que o oposto da depresso. O amor nos aban- dona de tempos em tempos, e ns abandonamos o amor. Na depresso, a falta de significado de cada empreendimento e de cada emoo, a falta de significado da prpria vida se tornam evidentes. O nico sentimento que resta nesse estado despido de amor a insignificncia. 11. A vida repleta de tristezas: pouco importa o que fazemos, no final todos va- mos morrer; cada um de ns est preso solido de um corpo independente; o tempo passa, e o que passou nunca voltar. A dor a nossa primeira experincia de desamparo no mundo, e ela nunca nos deixa. Ficamos com raiva de sermos ar- rancados do ventre confortvel e, assim que a raiva se dissipa, a depresso chega para assumir seu lugar. Mesmo as pessoas que se apoiam em uma f que lhes pro- mete uma existncia diferente no alm no podem evitar a angstia neste mundo; o prprio Cristo foi o homem dos sofrimentos. Contudo, vivemos numa poca de paliativos crescentes. Nunca foi to fcil decidir o que sentir e o que no sentir. H cada vez menos desconfortos inevitveis para os que tm como evit-los. En- tretanto, apesar das afirmaes entusiasmadas da cincia farmacutica, a de- presso no ser extinta enquanto formos seres conscientes de nosso prprio eu. Na melhor das hipteses, ela pode ser contida e cont-la tudo que os atuais tratamentos para depresso almejam. Um discurso altamente politizado embaralhou a distino entre a depresso e suas consequncias a distino entre como voc se sente e como reage ao que sente. Isso em parte um fenmeno social e mdico, mas tambm o resultado dos caprichos da lingustica ligados s excentricidades do emocional. Talvez a de- presso possa ser descrita como o sofrimento emocional que se impe sobre ns contra a nossa vontade e depois se livra de suas circunstncias exteriores. A de- presso no apenas muito sofrimento; mas sofrimento demais pode virar de- presso. O pesar a depresso proporcional circunstncia; a depresso um pesar desproporcional circunstncia. A depresso se alimenta do prprio ar, crescendo apesar de seu desligamento da terra que a alimenta. Ela s pode ser descrita com metforas e alegorias. Quando perguntaram a santo Antnio no deserto como ele conseguia distinguir os anjos que vinham a ele humildemente dos demnios que vinham sob rico disfarce, ele disse que percebia a diferena pelo modo como se sentia depois que iam embora. Quando um anjo nos deixa, nos sentimos fortalecidos por sua presena; quando um demnio nos deixa, senti- mos o terror. O pesar um anjo humilde que nos deixa com pensamentos fortes e 13/771 12. claros e uma noo de nossa prpria profundidade. A depresso um demnio que nos deixa aterrados.2 Grosso modo, a depresso tem sido dividida em menor (leve ou distmica) e maior (severa). A depresso leve um algo gradual e permanente, que mina as pessoas como a ferrugem enfraquece o ferro. pesar demais para uma causa pequena demais, dor que se apodera das outras emoes e as sufoca. Tal de- presso toma posse do corpo nas plpebras e msculos que mantm a espinha ereta. Fere o corao e o pulmo, tornando a contrao dos msculos involuntri- os mais dura do que precisa ser. Como a dor fsica que se torna crnica, ela ter- rvel no tanto porque intolervel no momento, mas porque intolervel t-la conhecido nos momentos passados e ter como nica expectativa conhec-la nos momentos vindouros. O tempo presente da depresso leve no prev nen- hum alvio porque soa como conhecimento. Virginia Woolf escreveu sobre esse estado com uma clareza soturna: Jacob foi at a janela e parou com as mos nos bolsos. Viu trs gregos de saiote; mastros de navios; gente ociosa ou ocupada, das classes mais baixas, vagando ou an- dando rapidamente, formando grupos e gesticulando. A falta de interesse dessa gente por ele no era a causa da melancolia de Jacob; mas uma convico mais pro- funda no de que ele prprio estivesse solitrio, mas de que todo mundo solitrio. No mesmo livro, O quarto de Jacob, ela descreve que: E uma singular tristeza dominava sua mente, como se tempo e eternidade espreitassem por entre saias e coletes e ela visse pessoas tragicamente a caminho da destruio. Ainda assim s Deus sabe , Julia no era nenhuma tola.3 essa aguda conscincia da trans- itoriedade e da limitao que constitui a depresso leve. Por muitos anos simples- mente acomodada, ela crescentemente submetida a tratamento, enquanto os mdicos lutam com afinco para lidar com sua diversidade. A depresso severa a matria dos colapsos nervosos. Se imaginarmos uma alma de ferro que se desgasta de dor e enferruja com a depresso leve, ento a 14/771 13. depresso severa o colapso assustador de uma estrutura inteira. H dois mode- los para a depresso: o dimensional e o categrico. O dimensional postula que a depresso repousa num continuum com a tristeza e representa uma verso ex- trema de algo que todo mundo j sentiu e conhece. O categrico descreve a de- presso como uma doena totalmente separada de outras emoes, tanto quanto um vrus estomacal totalmente diferente de acidez no estmago. Ambos so verdadeiros. Vai-se pelo caminho gradual ou pelo sbito disparo da emoo para chegar a um lugar que genuinamente diferente. Leva tempo para um edifcio com estrutura oxidada desmoronar, mas a ferrugem est incessantemente trans- formando o slido em p, afinando-o, eviscerando-o. O colapso, por mais ab- rupto que possa parecer, a consequncia cumulativa da decadncia. Contudo, um evento altamente dramtico e visivelmente diferente. O tempo que separa a primeira chuva do ponto em que a ferrugem devora uma viga de ferro longo. s vezes, a oxidao ocorre em pontos to fundamentais que o colapso parece total, mas frequentemente parcial; este trecho entra em colapso, derruba aquele outro trecho, modifica o equilbrio de modo dramtico. Experimentar a decadncia no agradvel, ver-se exposto s devastaes de uma chuva quase diria e saber que est se transformando em algo dbil, que uma parte de si cada vez maior vai pelos ares com o primeiro vento forte, transformando-o em algum cada vez menor. Alguns acumulam mais ferrugem emocional do que outros. A depresso comea do inspido, nubla os dias com uma cor entediante, enfraquece aes cotidianas at que suas formas claras so obscurecidas pelo esforo que exigem, deixando-nos cansados, entediados e ob- cecados com ns mesmos mas possvel superar isso. No de uma forma feliz, talvez, mas pode-se superar. Ningum jamais conseguiu definir o ponto de colapso que demarca a depresso severa, mas quando se chega l, no h como confundi-la. A depresso severa um nascimento e uma morte: ao mesmo tempo a presena nova e o total desaparecimento de algo. Nascimento e morte so graduais, embora documentos oficiais tentem fixar a lei natural criando categorias como legalmente morto e hora do nascimento.4 Apesar das excentricidades 15/771 14. da natureza, h definitivamente um ponto a partir do qual um beb que no es- tava no mundo passa a estar, e um ponto a partir do qual um habitante do mundo deixa de estar nele. verdade que, num determinado estgio, a cabea do beb est aqui e o corpo no; que, at que o cordo umbilical seja cortado, a criana es- t fisicamente ligada me. verdade que o habitante do mundo pode fechar os olhos pela ltima vez horas antes de morrer, e que h um instante entre o mo- mento em que ele para de respirar e o momento em que a morte cerebral de- clarada. A depresso existe no tempo. Um paciente pode dizer que passou certos meses sofrendo de uma depresso severa, mas isso um modo de impor uma me- dida ao imensurvel. Tudo que se pode realmente dizer que a pessoa passou por uma depresso severa e que ela est ou no a vivenciando em determinado mo- mento presente. O nascimento e a morte que constituem a depresso ocorrem simultanea- mente. H pouco tempo, voltei a um bosque em que brincara quando criana e vi um carvalho, enobrecido por cem anos, em cuja sombra eu costumava brincar com meu irmo. Em vinte anos, uma enorme trepadeira grudara-se a essa rvore slida e quase a sufocara. Era difcil dizer onde a rvore terminava e a trepadeira comeava. Esta enrolara-se to completamente em torno da estrutura dos galhos da rvore que suas folhas pareciam distncia ser as da rvore. S bem de perto podia-se ver como haviam sobrado poucos ramos vivos e quo poucos gravetos desesperados brotavam do carvalho, espetando-se como uma fileira de polegares do tronco macio, suas folhas continuando o processo de fotossntese ao modo ignorante da biologia mecnica. Tendo acabado de sair de uma depresso severa, na qual eu dificilmente acolhia os problemas de outras pessoas, me senti cmplice daquela rvore. Minha depresso havia tomado conta de mim como aquela trepadeira dominara o carvalho. Ela me sugou, uma coisa que se embrulhara minha volta, feia e mais viva do que eu. Com vida prpria, pouco a pouco asfixiara toda a minha vida. No pior estgio de uma depresso severa, eu tinha estados de esprito que no recon- hecia como meus; pertenciam depresso, to certamente quanto as folhas naqueles altos ramos da rvore pertenciam trepadeira. Quando tentei pensar 16/771 15. claramente sobre isso, senti que minha mente estava emparedada, no podia se expandir em nenhuma direo. Eu sabia que o sol estava nascendo e se pondo, mas pouco de sua luz chegava a mim. Sentia-me afundando sob algo mais forte do que eu. Primeiro, no conseguia usar os tornozelos, depois no conseguia con- trolar os joelhos e em seguida minha cintura comeou a se vergar sob o peso do esforo, e ento os ombros se viraram para dentro. No final, eu estava comprim- ido e fetal, esvaziado por essa coisa que me esmagava sem me abraar. Suas gavin- has ameaavam pulverizar minha cabea, minha coragem e meu estmago, quebrar-me os ossos e ressecar meu corpo. Ela continuava a se empanturrar de mim quando j parecia no ter sobrado nada para aliment-la. Eu no era suficientemente forte para parar de respirar. Sabia que jamais po- deria matar essa trepadeira da depresso. Assim, tudo que eu queria era que ela me deixasse morrer. Mas ela se apoderara de minha energia. Eu precisaria me matar, ela no me mataria. Se meu tronco estava apodrecendo, essa coisa que se alimentava dele estava agora forte demais para deix-lo cair. Ela se tornara um apoio alternativo para o que destrura. No canto mais apertado da cama, rachado e atormentado por essa coisa que ningum parecia ver, eu rezava para um Deus no qual nunca acreditara inteiramente e pedia libertao. Teria ficado feliz com uma morte dolorosa, embora estivesse letrgico demais at para conceber o suic- dio. Cada segundo de vida me feria. Porque essa coisa drenara tudo que flua de mim, eu no podia sequer chorar. At a minha boca estava ressecada. Eu pensava que, quando nos sentimos muito mal, as lgrimas jorrassem, mas a pior dor pos- svel a dor rida da violao total que chega depois de todas as lgrimas j terem se exaurido. A dor que veda cada espao atravs do qual voc antes entrava em contato com o mundo, ou o mundo com voc. Essa a presena da depresso severa. Eu disse que depresso tanto nascimento quanto morte. A trepadeira o que nasceu. A morte a prpria desintegrao da pessoa, o quebrar dos galhos que sustentam essa infelicidade. A primeira coisa que vai embora a felicidade. No possvel ter prazer em nada. Isso notoriamente o sintoma cardeal da de- presso severa.5 Mas logo outras emoes caem no esquecimento com a 17/771 16. felicidade: a tristeza como voc a conhecia, a tristeza que parecia t-lo conduzido at esse ponto, o senso de humor, a crena no amor e na sua prpria capacidade de amar. Sua mente sugada a tal ponto que voc parece um total imbecil, at para si prprio. Se seu cabelo sempre foi ralo, parece mais ralo ainda; se voc tem uma pele ruim, ela fica pior. Voc cheira a azedo at para si mesmo. Voc perde a capacidade de confiar nas pessoas, de ser tocado, de sofrer. Posteriormente, ausenta-se de si. O que est presente talvez usurpe o que se torna ausente, e a ausncia de coisas perturbadoras talvez revele o que est presente. De um jeito ou de outro, voc menos do que si mesmo e se encontra nas garras de algo esquisito. Com muita frequncia, os tratamentos dirigem-se somente metade do problema: eles enfocam apenas a presena ou apenas a ausncia. necessrio tanto cortar aqueles quinhentos quilos extras de trepadeiras quanto reorganizar um sistema de razes e as tcnicas de fotossntese. A terapia com drogas desbasta foice as tre- padeiras. possvel sentir quando acontece, como a medicao parece estar en- venenando a parasita, de modo que pouco a pouco ela murcha e cai. Sente-se o peso desaparecendo, sente-se como os galhos podem recuperar boa parte de sua curvatura natural. At estar livre da trepadeira, no h como pensar no que foi perdido. Mas, mesmo depois que ela desaparece, possvel que sobrem algumas poucas folhas e razes frgeis, e a reconstruo do eu no pode ser realizada com nenhuma droga existente. Sem o peso da trepadeira, pequenas folhas espalhadas ao longo do esqueleto da rvore tornam-se capazes de prover a nutrio essencial. Mas no bom existir assim. Ningum forte assim. A reconstruo do eu numa depresso e depois dela exige amor, insight, trabalho e, mais do que tudo, tempo. O diagnstico to complexo quanto a doena. Os pacientes perguntam aos mdicos o tempo inteiro: Estou deprimido?, como se o resultado pudesse ser obtido atravs de exame de sangue. O nico modo de descobrir se algum est deprimido escutar e observar a si mesmo, examinar seus sentimentos e pensar sobre eles. Se algum se sente mal sem nenhum motivo durante a maior parte do tempo, est deprimido. Caso se sinta mal a maior parte do tempo com motivo, tambm est deprimido, embora mudar os motivos possa ser a melhor maneira de 18/771 17. avanar, em vez de simplesmente deixar de lado a circunstncia e atacar a de- presso. Se ela o incapacita, ento grave. Se apenas levemente perturbadora, no grave. A bblia da psiquiatria o Manual diagnstico e estatstico de tran- stornos mentais (DSM-IV-TR) define ineptamente a depresso como a presena de cinco ou mais sintomas, numa lista de nove. O problema dessa definio ser inteiramente arbitrria. No h nenhuma razo especial para qualificar cinco sin- tomas como constituindo depresso; quatro sintomas so mais ou menos de- presso e cinco sintomas so menos severos do que seis. At mesmo um s sin- toma desagradvel. Ter verses ligeiras de todos os sintomas pode ser menos problemtico do que ter verses severas de dois sintomas. Depois de passar pelo diagnstico, a maioria das pessoas busca a causa da doena, mesmo que o fato de voc saber por que est doente no tenha nenhuma relao imediata com o trata- mento da doena. A doena da mente uma doena real e pode ter graves impactos no corpo. As pessoas que vo aos consultrios queixando-se de clicas ouvem com frequn- cia as palavras: Ora, no h nada de errado com voc, s est deprimido!. Se a depresso severa a ponto de causar clicas, quer dizer que est realmente fazendo mal e exige tratamento. Se algum se queixa de problemas respiratrios, ningum lhe diz: Ora, no h nada de errado com voc a no ser um enfisema!. Para a pessoa que est sofrendo, doenas psicossomticas so to reais quanto as clicas de algum com intoxicao alimentar. Elas existem no crebro incon- sciente, e muito frequentemente o crebro est enviando mensagens inadequadas para o estmago; portanto, elas existem l tambm. O diagnstico se algo est podre em seu estmago, em seu apndice ou em seu crebro tem importncia na determinao do tratamento e no trivial. No que diz respeito aos rgos, o crebro muito importante, e seu mau funcionamento deve se tratado adequadamente. Costuma-se buscar a qumica para curar as rachaduras entre corpo e alma. O alvio que as pessoas expressam quando um mdico diz que a depresso delas qumica baseia-se numa crena de que h um eu integral existindo atravs do tempo e numa diviso fictcia entre o sofrimento inteiramente justificado e o 19/771 18. sofrimento completamente aleatrio. A palavra qumica parece mitigar os senti- mentos de responsabilidade perante o esgotamento causado pelo fato de no gostarem de seus empregos, de se preocuparem com o envelhecimento, de fracas- sarem no amor, de odiarem suas famlias. Junto com a qumica, vem uma agradvel liberao de culpas. Se seu crebro predisposto depresso, voc no precisa se culpar por isso. Bem, culpe a si mesmo ou evoluo, mas lembre-se de que pr a culpa na coisa em si pode ser entendido como um processo qumico, e que a felicidade tambm qumica. A qumica e a biologia no so fatores estran- hos que se impem ao eu real; a depresso no pode ser separada da pessoa afetada por ela. O tratamento no alivia um distrbio de identidade, trazendo vo- c de volta a alguma espcie de normalidade; ele regula uma identidade mltipla, mudando em um grau menor o que voc . Qualquer um que tenha estudado cincias no ginsio sabe que os seres hu- manos so feitos de elementos qumicos e que o estudo desses elementos e das es- truturas nas quais so configurados chamado de biologia. Tudo que acontece no crebro tem manifestaes e fontes qumicas. Se voc fecha os olhos e pensa com fora em ursos-polares, isso tem um efeito qumico em seu crebro. Se voc sustenta firmemente uma poltica de oposio iseno de impostos para ganhos de capital, isso tem um efeito qumico em seu crebro. Quando voc lembra de algum episdio de seu passado, isso feito atravs da complexa qumica da memria. Milhares de reaes qumicas esto envolvidas na deciso de ler este livro, pegando-o com suas mos, olhando para a forma das letras na pgina, ex- traindo significado dessas formas e tendo reaes intelectuais e emocionais ao que elas transmitem. Se o tempo permite que voc saia de um ciclo de depresso e sinta-se melhor, as mudanas qumicas no so menos especiais e complexas do que as induzidas pela ingesto de antidepressivos. O externo determina o interno tanto quanto o interno inventa o externo. O que bem pouco atraente pensar que, alm de todas as outras fronteiras indistintas, os prprios limites daquilo que nos torna ns mesmos esto fora de foco. No h um eu essencial que permanece puro como um veio de ouro sob o caos da experincia e da qumica. Tudo pode ser mudado, e precisamos entender o organismo do ser humano como uma 20/771 19. sequncia de eus que sucumbem uns aos outros ou escolhem uns aos outros. E, no entanto, a linguagem da cincia, usada na formao de mdicos e, cada vez mais, em textos e conversas no acadmicos, estranhamente perversa. Os resultados cumulativos dos efeitos qumicos do crebro no so bem en- tendidos. Na edio de 1989 do Comprehensive Textbook of Psychiatry [Manual completo de psiquiatria], por exemplo, encontra-se esta frmula til: uma fr- mula da depresso equivalente ao nvel de 3-metoxi-4-hidroxifenilglicol (um composto descoberto na urina de todas as pessoas e aparentemente no afetado pela depresso), menos o nvel de 3-metoxi-4-cido hidroximandlico, mais o nvel de norepinefrina, menos o nvel de normetanefrina mais o nvel de metane- frina; o resultado disso dividido pelo nvel de 3-metoxi-4-cido hidromandlico, mais uma varivel de converso inespecificada; ou, como o Comprehensive Text- book of Psychiatry coloca: Escore tipo-D = C1 (MHPG) C2 (VMA) + C3 (NE) C4 (NMN + MN) / VMA + Co. O resultado final deve ficar entre 1, para pacientes unipolares, e 0, para pacientes bipolares, de modo que, se voc chegar a outro resultado, est fazendo o clculo errado.6 Quanta informao tais frmulas ofere- cem? Como podem se aplicar a algo to nebuloso quanto o estado de esprito? At que ponto uma experincia especfica conduz a um tipo especial de depresso difcil de determinar. Tambm no conseguimos explicar por meio de qual com- binao qumica uma pessoa acaba por responder a uma circunstncia externa com depresso. Nem elaborar o que faz de algum essencialmente depressivo. Embora a depresso seja descrita pela imprensa e pela indstria farmacutica como uma doena de efeito nico, tal como a diabetes, ela no o . Na verdade, surpreendentemente diferente da diabetes. Os diabticos no produzem insulina suficiente, e a diabetes tratada com o aumento e a estabilizao da insulina na corrente sangunea. A depresso no a consequncia de um nvel reduzido de nada que possamos medir. Aumentar os nveis de serotonina no crebro dispara um processo que consequentemente ajuda muitas pessoas deprimidas a se sentir- em melhor, mas no porque tenham um nvel anormalmente baixo de serotonina. Alm disso, a serotonina no tem efeitos salutares imediatos. Pode-se bombear um litro de serotonina no crebro de uma pessoa deprimida e isso no a faz 21/771 20. instantaneamente se sentir nem um pouquinho melhor. Contudo, uma elevao sustentada e de longo prazo do nvel de serotonina tem alguns efeitos que mel- horam os sintomas depressivos. Estou deprimido, mas s qumico uma frase que equivale a Sou assassino, mas s qumico, ou Sou inteligente, mas s qumico. Tudo na pessoa s qumica, caso se pense nesses termos. Voc pode dizer que s qumica, diz Maggie Robbins, que manaco-depressiva. Eu digo que no h nada de s na qumica. O sol brilha forte e isso s qumica tambm, e pela qumica que as rochas so duras, que o mar salgado, que certas tardes de primavera trazem em suas brisas suaves um qu de nostalgia que agita o corao com anseios e devaneios adormecidos pelas neves de um longo inverno. Essa coisa de serotonina, diz David McDowell, da Universidade Columbia, parte da neuromitologia moderna. um conjunto potente de histrias. As realidades interna e externa existem num contnuo. O que acontece, o que voc compreende do que aconteceu e como reage ao acontecimento esto geral- mente ligados, mas um no pressgio dos outros. Se a prpria realidade fre- quentemente uma coisa relativa, e o eu est num permanente estado de fluxo, a passagem de um estado de esprito leve a um estado de esprito extremo equivale ao correr dos dedos sobre um teclado de piano. Assim, a doena um estado ex- tremo de emoo, e pode-se descrever a emoo como uma forma suave de doena. Se todos nos sentssemos para cima e timos (mas no delirantemente manacos) o tempo todo, poderamos produzir mais e ter uma vida mais feliz no mundo, mas essa ideia sinistra e aterrorizante (apesar de que, se nos sentssemos para cima e timos o tempo todo, poderamos esquecer tudo o que h de sinistro e aterrorizante nela, claro). A gripe algo direto: um dia voc no est com o vrus em seu sistema e no outro dia est. O HIV passa de uma pessoa a outra numa frao de segundo isol- ada e definvel. E a depresso? como tentar produzir parmetros clnicos para a fome, que nos afeta vrias vezes por dia, mas que em sua verso extrema uma tragdia que mata suas vtimas. Algumas pessoas precisam de mais comida que outras, h quem viva sob circunstncias de terrvel desnutrio, algumas se en- fraquecem rapidamente e desmaiam nas ruas. Da mesma forma, a depresso 22/771 21. atinge pessoas diferentes de modos diferentes: algumas so predispostas a resistir ou batalhar contra ela, enquanto outras so indefesas em suas garras. Obstinao e orgulho podem fazer com que determinada pessoa atravesse uma depresso que derrubaria outra, cuja personalidade mais suave e condescendente. A depresso interage com a personalidade. Algumas pessoas so corajosas ante a depresso (durante e depois dela), outras so fracas. Uma vez que a person- alidade tambm tem um aspecto fortuito e uma qumica que confunde, pode-se creditar tudo gentica, mas isso seria simples demais. No existe esse negcio de gene do estado de esprito, diz Steven Hyman, diretor do Instituto Nacional de Sade Mental (National Institute of Mental Health, NIMH). apenas uma supersimplificao de interaes muito complexas entre o gene e o meio ambi- ente. Se todos tm a capacidade para algum grau de depresso sob dadas circun- stncias, todos tambm tm a capacidade de lutar contra a depresso em algum grau sob circunstncias diferentes. Geralmente, a luta assume a forma de procura dos tratamentos que sero mais eficazes na batalha. Ela diz respeito a encontrar ajuda enquanto voc ainda est forte o bastante para faz-lo. Diz respeito a valor- izar ao mximo a vida entre um episdio mais severo e outro. Algumas pessoas af- ligidas de forma devastadora por sintomas da depresso conseguem alcanar o su- cesso em suas vidas, e outras so completamente destrudas pelas formas mais suaves da doena. Passar por uma depresso leve sem remdios tem certas vantagens. D a sensao de que possvel corrigir os desequilbrios qumicos atravs do exerccio de sua prpria vontade qumica. Aprender a caminhar sobre brasas tambm um triunfo do crebro sobre o que parece ser a qumica inevitvel da dor, e um modo eletrizante de descobrir o puro poder da mente. Atravessar uma depresso com suas prprias pernas permite evitar o desconforto social associado a rem- dios psiquitricos. Sugere que aceitemos a maneira como fomos feitos, reconstruindo-nos apenas com nossa prpria mecnica interior, sem ajuda de fora. Voltar da depresso gradualmente d sentido prpria aflio. A mecnica interior, contudo, difcil de pr em ao, frequentemente inad- equada. A depresso geralmente destri o poder da mente sobre o estado de 23/771 22. esprito. s vezes a complexa qumica do sofrimento surge de repente porque vo- c perdeu algum que ama, e a qumica da perda e do amor podem levar qum- ica da depresso. A qumica da paixo pode surgir de repente por questes extern- as bvias ou por caminhos que o corao nunca pode revelar mente. Se quisssemos tratar essa loucura emocional, talvez pudssemos faz-lo. Tambm uma loucura adolescentes brigarem com pais que procuraram fazer o melhor pos- svel, mas uma loucura convencional, uniforme o bastante para que a toleremos relativamente bem sem question-la. s vezes essa mesma qumica surge de re- pente por razes externas que, para os padres da maioria, so insuficientes para explicar o grau de desespero que provocam: algum pisa no seu p num nibus lotado e voc sente vontade de chorar, ou l sobre a superpopulao mundial e acha sua prpria vida intolervel. Todos j sentiram em algum momento uma emoo desproporcional em relao a uma coisa sem importncia ou uma emoo sem origem aparente. s vezes a qumica se intromete sem nenhuma razo ex- terna. A maioria das pessoas j teve momentos de desespero inexplicvel, geral- mente no meio da noite ou no incio da manh, antes de o despertador tocar. Se tais sensaes duram dez minutos, so um estado de esprito estranho e rpido. Se duram dez horas, so uma febre perturbadora, e se duram dez anos, so uma doena mutiladora. Frequentemente, a qualidade da felicidade est vinculada sua fragilidade. A depresso, por sua vez, quando se vive uma, parece que nunca vai passar. Mesmo que voc aceite que os humores mudam, que o que sente hoje ser diferente amanh, no pode relaxar com a felicidade como pode com a tristeza. Para mim, a tristeza sempre foi e ainda um sentimento mais poderoso; e, se isso no uma experincia universal, talvez forme a base sobre a qual cresce a depresso. Eu de- testava estar deprimido, mas foi tambm na depresso que aprendi os limites de meu prprio terreno, a plena extenso da minha alma. Quando estou feliz, sinto- me levemente aturdido pela felicidade, como se ela deixasse de usar a parte de minha mente e do meu crebro que quer ser exercitada. A depresso algo a fazer. Minha gana se fortalece e se torna aguda em momentos de perda: posso ver a beleza de objetos de vidro na sua inteireza no momento em que eles escorregam 24/771 23. da minha mo para o cho. Achamos o prazer muito menos prazeroso, a dor muito menos dolorosa do que prevamos, escreveu Schopenhauer. Precisamos em todas as pocas de uma certa quantidade de desvelo, sofrimento ou carncia, como um navio precisa de lastro para manter seu curso correto. Existe uma expresso russa que diz: se voc acorda sem sentir nenhuma dor, porque est morto. Embora a vida no seja apenas dor, a experincia da dor, que especial em sua intensidade, um dos sinais mais seguros da fora da vida. Schopenhauer disse: Imagine essa corrida transportada para uma Utopia onde tudo cresce sozinho e os perus voam de um lado para o outro j assados, onde os amantes se encontram sem qualquer demora e possuem um ao outro sem qualquer dificuldade: em tal lugar certos homens morreriam de tdio ou se enforcariam, outros lutariam e se matari- am, e assim criariam para si mesmos mais sofrimento do que a natureza inflige a eles. [] O polo oposto do sofrimento [] o tdio.7 Acredito que a dor precisa ser transformada, mas no esquecida; contrariada, no suprimida. Estou convencido de que alguns dados sobre depresso baseiam-se na realid- ade. Embora seja um erro confundir nmeros com verdade, esses dados contam uma histria alarmante. Segundo pesquisa recente, cerca de 3% dos norte-amer- icanos uns 19 milhes sofrem de depresso crnica. Mais de 2 milhes deles so crianas.8 A doena manaco-depressiva, geralmente chamada de doena bi- polar porque o estado de esprito de suas vtimas varia da mania depresso, af- lige cerca de 2,3 milhes e a segunda que mais vitimiza mulheres jovens, e a ter- ceira que mais vitimiza homens jovens.9 A depresso como descrita no DSM-IV a principal causa de incapacitao nos Estados Unidos e no exterior para pessoas 25/771 24. acima de cinco anos de idade. Mundialmente, inclusive nos pases em desenvolvi- mento, a depresso responde pela maior parte do conjunto de doenas, calculado segundo mortes prematuras somadas a anos-vida saudveis perdidos para a inca- pacidade, do que qualquer outra doena, exceto as cardacas.10 A depresso ceifa mais anos do que a guerra, o cncer e a aids juntos.11 Outras doenas, do alcool- ismo aos males do corao, mascaram a depresso quando esta a causa;12 se levarmos isso em considerao, a depresso pode ser a maior assassina do mundo. Tratamentos para a depresso esto proliferando agora, mas s metade dos norte-americanos que tm depresso severa j procurou algum dia ajuda de qualquer espcie at mesmo a de um religioso ou de um conselheiro.13 Cerca de 95% desses 50% vo a um clnico geral,14 que geralmente no sabe muito acerca de molstias psiquitricas. Um norte-americano adulto com depresso ter- ia sua doena identificada apenas 40% das vezes.15 No entanto, cerca de 28 mil- hes de norte-americanos um em cada dez esto agora tomando ISRSs (ini- bidores seletivos da recaptao de serotonina a classe de drogas a que pertence o Prozac),16 e um nmero substancial est usando outros medicamentos. Menos da metade dos que tm a doena diagnosticada obter tratamento apropriado. Como as definies de depresso tm se ampliado para incluir cada vez mais a populao em geral, tornou-se cada vez mais difcil calcular uma taxa de mortal- idade exata. A estatstica tradicionalmente fornecida que 15% dos deprimidos finalmente cometero suicdio; esse nmero ainda se sustenta para aqueles com casos extremos da doena. Estudos recentes que incluem depresso mostram que de 2% a 4% dos deprimidos se mataro como consequncia direta da doena.17 Essa cifra ainda assombrosa. H vinte anos, cerca de 1,5% da populao tinha depresso que exigia tratamento; agora 5%; e 10% de todos os norte-amer- icanos vivos agora podem ter expectativa de sofrer um episdio depressivo im- portante durante sua vida. Cerca de 50% vo experimentar alguns sintomas de depresso.18 Os problemas clnicos aumentaram; os tratamentos aumentaram muito mais. O diagnstico est em alta, mas isso no explica a escala desse prob- lema. Os incidentes de depresso esto aumentando nos pases desenvolvidos, es- pecialmente nas crianas. A depresso est ocorrendo em pessoas mais jovens, 26/771 25. aparecendo pela primeira vez quando as vtimas tm por volta de 26 anos, dez anos mais jovens do que h uma gerao;19 desordem bipolar ou doena manaco- depressiva se instalam at mesmo antes. As coisas esto ficando piores. H poucas doenas simultaneamente to sub e sobretratadas quanto a de- presso. Pessoas que se tornam totalmente disfuncionais so por fim hospitaliza- das e provavelmente recebem tratamento, embora s vezes sua depresso seja confundida com as doenas fsicas pelas quais ela se manifesta. Inmeras pessoas, contudo, mal se aguentam em p, apesar das grandes revolues nos tratamentos psiquitricos e psicofarmacuticos, e continuam sofrendo de uma infelicidade ab- jeta. Mais da metade dos que buscam ajuda outros 25% da populao deprim- ida no recebe tratamento algum. Cerca de metade daqueles que recebem tratamento mais ou menos 13% da populao deprimida recebe tratamento inadequado, geralmente tranquilizantes ou psicoterapias insuficientes. Dos que sobram, a metade uns 6% da populao deprimida recebe dosagem inad- equada por uma extenso inadequada de tempo. Isso resulta, portanto, em que cerca de 6% da populao deprimida recebe tratamento adequado. Mas muitas dessas pessoas acabam por abandonar os medicamentos, geralmente devido aos efeitos colaterais. Apenas de 1% a 2% obtm um tratamento timo para uma doena que pode geralmente ser bem controlada, com medicamentos relativa- mente baratos de poucos efeitos colaterais srios, diz John Greden, diretor do Instituto de Pesquisas em Sade Mental da Universidade de Michigan. Enquanto isso, na outra ponta do espectro, pessoas que supem que a alegria seu direito inato engolem uma montanha de comprimidos numa tentativa ftil de aliviar os desconfortos suaves que acometem a todos. J foi bem estabelecido que o advento da supermodelo danificou a imagem que as mulheres tm de si mesmas, estabelecendo expectativas pouco realistas.20 A supermodelo psicolgica do sculo XXI at mais perigosa do que a fsica. As pessoas questionam constantemente suas prprias mentes e rejeitam seus prprios estados de esprito. o fenmeno Lourdes, diz William Potter, que dirigiu a diviso de psicofarmacologia do NIMH nos anos 1970 e 1980, quando as novas drogas estavam sendo desenvolvidas. Quando voc expe um grande nmero de 27/771 26. pessoas ao que elas entendem, com razes para isso, como positivo, voc obtm relatos de milagres e tambm, claro, de tragdias. O Prozac to bem aceito que quase todo mundo pode tom-lo, e quase todo mundo o faz. Ele vem sendo usado em gente com queixas leves que no tolerariam os desconfortos dos antide- pressivos mais antigos, os inibidores de monoamino oxidase (IMAOs) ou triccli- cos. Mesmo se voc no est deprimido, ele pode afastar as fronteiras de sua tristeza, e isso no melhor do que viver com dor? Ns patologizamos o curvel, e o que pode ser facilmente revertido passa a ser tratado como doena, mesmo que previamente tratado como parte da person- alidade ou estado de esprito. Assim que tivermos uma droga para a violncia, a violncia ser uma doena. H muitas nuances de estados entre a depresso a to- do o vapor e uma suave dor acompanhada por mudanas no sono, apetite, energia ou interesse; comeamos a classific-los cada vez mais como doena, porque cada vez mais descobrimos maneiras de melhor-los. Mas o limite entre uma coisa e outra permanece arbitrrio. Decidimos que um QI de 69 constitui um retardo, mas algum com um QI de 72 no est l s mil maravilhas, e algum com um QI de 65 ainda pode se virar;21 dizemos que o colesterol deve ser mantido abaixo de 220, mas se seu colesterol 221, voc provavelmente no morrer disso, e se 219, voc precisa ter cuidado: 69 e 220 so nmeros arbitrrios, e o que chamamos de doena tambm realmente bastante arbitrrio; no caso da de- presso, est tambm num fluxo perptuo. * * * Os depressivos usam a expresso beira do abismo o tempo todo para definir a passagem da dor para a loucura. Essa descrio muito fsica frequente- mente inclui cair no abismo. estranho que tantas pessoas tenham um vocab- ulrio to consistente, porque a beira realmente uma metfora abstrata. Poucos de ns j ultrapassamos a beira de alguma coisa e, certamente, no camos num abismo. O Grand Canyon? Um fiorde noruegus? Uma mina de diamante sul- africana? difcil at encontrar um abismo no qual cair. Quando questionadas, as pessoas descrevem o abismo de modo muito consistente. Em primeiro lugar, 28/771 27. escuro. Voc est se afastando do sol em direo a um lugar onde as sombras so negras. Dentro dele, voc no consegue enxergar, e os perigos esto em toda parte (o abismo no tem nem fundo nem laterais macios). Enquanto voc cai, no sabe o quo fundo pode chegar ou se poderia de alguma forma parar a queda. Es- barra com coisas invisveis repetidamente, at ficar em frangalhos, e mesmo assim seu ambiente instvel demais para voc se agarrar em qualquer coisa. Medo de altura a fobia mais comum do mundo e deve ter sido bem til a nossos ancestrais, j que os que no tinham medo provavelmente encontraram abismos, caram neles e assim eliminaram seu material gentico da espcie. Se vo- c fica beira de um penhasco e olha para baixo, sente-se tonto. Seu corpo no funciona to bem nem lhe permite se afastar com preciso imaculada da beirada. Voc acha que vai cair e, se olhar por muito tempo, cair. Est paralisado. Lembro-me de quando fui com amigos s cataratas Vitria, onde um penhasco despenca diretamente de uma grande altura no rio Zambeze. ramos jovens e de- safivamos implicitamente uns aos outros para tirarmos fotos to prximos da borda do penhasco quanto ousvamos. Ao se aproximar mais da beira, cada um de ns sentiu-se enjoado e paralisado. Acho que depresso no geralmente cair de l (o que faria com que voc morresse logo), mas sim chegar perto demais da borda, alcanar aquele momento de medo em que se foi longe demais, quando a tontura o privou inteiramente de sua capacidade de equilbrio. Nas cataratas Vitria, descobrimos que o intransponvel era uma borda invisvel que ficava ime- diatamente antes do lugar onde o penhasco se precipitava. A trs metros da queda vertical, todos nos sentamos bem. A um metro e meio, a maioria de ns fraque- jou. Num determinado ponto, uma amiga estava tirando uma foto minha e queria enquadrar a ponte para a Zmbia. Pode chegar um pouquinho para a es- querda?, perguntou, e eu obsequiosamente dei um passo para a esquerda al- guns centmetros para a esquerda. Sorri simpaticamente um sorriso que ficou preservado na foto , at que ela disse: Voc est um pouco perto demais da borda. Venha para c. Eu me sentia totalmente confortvel ali e ento, subita- mente, olhei para baixo e vi que ultrapassara o meu limite. O sangue sumiu de meu rosto. Tudo bem, disse minha amiga, e se aproximou de mim com a mo 29/771 28. estendida. A borda do penhasco estava a uns 25 centmetros de distncia, mas mesmo assim tive que ficar de joelhos e deitar de barriga no cho para me arrastar at a terra firme. Sei que tenho um bom senso de equilbrio e que posso facil- mente ficar em p numa plataforma de meio metro de largura; posso at fazer um sapateado de amador, e faz-lo com confiana, sem cair no abismo. Mas no con- segui ficar assim to perto do Zambeze. A depresso apoia-se fortemente num sentimento paralisante de iminncia. Aquilo que voc faz numa elevao de quinze centmetros, voc no consegue fazer quando o cho subitamente se abre revelando uma queda de trezentos met- ros. O terror da queda toma conta mesmo que seja o prprio terror que pode faz-lo cair. O que acontece na depresso horrvel, mas parece muito envolvido pelo que est prestes a acontecer. Entre outras coisas, voc sente que est prestes a morrer. Morrer no seria to ruim, mas viver beira da morte, nessa condio de no estar exatamente caindo no abismo geogrfico, horrvel. Numa de- presso severa, as mos que se estendem para voc esto fora de alcance. Voc no pode se abaixar e engatinhar porque sente que, assim que se inclinar, mesmo afastado da borda, vai perder o equilbrio e mergulhar l embaixo. Ah, algumas imagens do abismo se encaixam: a escurido, a incerteza, a perda de controle. Mas, se voc estivesse de fato caindo incessantemente num abismo, no seria questo de controle, voc estaria sem controle algum. Aqui existe aquela sensao horrvel de que o controle o abandonou quando voc mais precisava dele, ainda que por direito ele devesse ser seu. Uma terrvel iminncia domina inteiramente o momento presente. A depresso foi longe demais quando, apesar de uma ampla margem de segurana, voc no consegue mais se equilibrar. Na depresso, tudo que est acontecendo no presente a antecipao da dor no futuro, e o presente enquanto presente no mais existe. A depresso um estado quase inimaginvel para algum que no a conhece. Uma sequncia de metforas trepadeiras, rvores, penhascos etc. a nica maneira de falar sobre a experincia. No um diagnstico fcil porque depende de metforas, e as escolhidas por um paciente so diferentes das escolhidas por 30/771 29. outro. Nada mudou muito desde que Antonio, em O mercador de Veneza, se queixava: Garanto que no sei por que estou triste; A tristeza me cansa, como a vs; Mas como a apanhei ou contra, Do que feita, ou do que ter nascido, Ainda no sei. A tristeza me fez um tolo tal Que difcil at saber quem sou.22 No faamos rodeios: no sabemos de fato o que causa a depresso. No sabemos de fato o que constitui a depresso. No sabemos de fato por que certos tratamentos podem ser eficazes para a depresso. No sabemos como a depresso abriu caminho atravs do processo evolutivo. No sabemos por que algum fica deprimido em circunstncias que no perturbam outro. No sabemos como a vontade opera nesse contexto. As pessoas prximas aos depressivos tm a expectativa de que eles se recom- ponham: nossa sociedade tem pouco espao para lamrias. Cnjuges, pais, filhos e amigos ficam todos sujeitos a serem eles prprios arrastados para baixo e no querem estar perto de uma dor desmedida. Ningum pode fazer nada a no ser pedir ajuda (se que pode fazer isso) nas mais baixas profundezas de uma grande depresso, mas, uma vez que a ajuda oferecida, ela tambm precisa ser aceita. Todos gostaramos que o Prozac resolvesse o problema, mas, na minha experin- cia, o Prozac no resolve, a no ser que o ajudemos. Oua as pessoas que amam voc. Acredite que vale a pena viver por elas, mesmo que voc no acredite nisso. Busque as lembranas que a depresso afasta e projete-as no futuro. Seja corajoso, seja forte, tome seus remdios. Faa exerccios, porque isso lhe far bem, mesmo que cada passo pese uma tonelada. Coma mesmo quando sente repugnncia pela 31/771 30. comida. Seja razovel consigo mesmo quando voc tiver perdido a razo. Esse tipo de conselho lugar-comum e soa bobo, mas o caminho mais certo para sair da depresso no gostar dela e no se acostumar com ela. Bloqueie os terrveis pensamentos que invadem a mente. Eu ficarei em tratamento para depresso por um longo tempo. Gostaria de poder dizer como aconteceu. No tenho ideia de como me afundei tanto e tenho pouca noo de como levantei a cabea e me afundei de novo, e de novo, e de novo. Tratei a presena, a trepadeira, de todas as maneiras convencionais que en- contrei, e depois trabalhei para consertar a ausncia com o mesmo esforo e a mesma intuio com que aprendi a andar ou falar. Tive muitos lapsos leves, de- pois dois colapsos mentais srios, depois um descanso, depois um terceiro colapso mental e depois alguns outros lapsos. Depois de tudo isso, fao o que tenho de fazer para evitar mais perturbaes. Toda manh e toda noite, olho para os comprimidos na mo: branco, rosa, vermelho, turquesa.23 s vezes parecem uma escrita em minha mo, hierglifos dizendo que o futuro pode ser muito bom e que um dever comigo mesmo viver para v-lo. s vezes sinto como se engolisse meu prprio velrio duas vezes por dia, uma vez que sem essas plulas eu j teria desaparecido. Vou ao terapeuta uma vez por semana quando no estou viajando. s vezes fico entediado com nossas sesses e s vezes, interessado de um modo inteiramente dissociativo. Outras vezes tenho at momentos de epifania. Em parte pelas coisas que aquele homem me disse, reconstru-me o suficiente para poder continuar engolindo meu velrio em vez de viv-lo. Conversamos muito: acredito que as palavras so fortes, que podem esmagar o que tememos quando o medo parece mais terrvel do que o lado positivo da vida. Tenho me voltado, com cada vez mais ateno, para o amor. O amor o outro modo de avanar. Eles pre- cisam atuar juntos: quando sozinhos, os remdios so um veneno fraco, o amor, uma faca cega, o insight, uma corda que rebenta sob o excesso de esforo. Com eles juntos, se voc tiver sorte, pode salvar a rvore da trepadeira. Eu adoro este sculo. Adoraria ter a capacidade de viajar no tempo porque adoraria visitar o Egito bblico, a Itlia da Renascena, a Inglaterra elisabetana, ver o pice dos incas, conhecer os habitantes do Grande Zimbbue, ver como era 32/771 31. a Amrica quando os povos indgenas eram donos da terra. Mas no h outra poca em que eu preferisse viver. Adoro os confortos da vida moderna. Adoro a complexidade de nossa filosofia. Adoro a sensao de transformao grande que paira sobre ns nesse novo milnio, a sensao de que estamos na iminncia de saber mais do que as pessoas j souberam algum dia. Gosto do nvel relativamente alto de tolerncia social que existe nos pases em que vivo. Gosto de poder viajar pelo mundo mais uma vez, e outra, e outra. Gosto que as pessoas vivam mais do que jamais viveram antes, que o tempo esteja um pouco mais do nosso lado do que mil anos atrs. Contudo, defrontamo-nos com uma crise sem paralelo em nosso meio ambi- ente. Estamos consumindo a produo da Terra num ritmo assustador, sabotando a terra, o mar e o cu. A floresta tropical est sendo destruda; nossos oceanos transbordam de dejetos industriais; a camada de oznio diminui. Nunca houve tanta gente no mundo, e no ano que vem haver ainda mais, e no ano depois deste, mais ainda. Estamos criando problemas que afetaro a prxima gerao, e a prxima, e a que se segue a esta ltima. O homem vem mudando a Terra desde que a primeira faca de slex foi modelada de uma pedra e a primeira semente, plantada por um lavrador da Anatlia, mas o ritmo da alterao est fugindo gravemente ao nosso controle. No sou um alarmista ambiental. No acredito que estejamos beira do apocalipse neste momento. Mas estou convencido de que precisamos dar alguns passos a fim de alterar nosso rumo atual para no nos dirigirmos aniquilao. O fato de estarmos sempre desenvolvendo novas solues para tais prob- lemas uma indicao do quanto a humanidade resistente. O mundo continua, assim como a espcie. O cncer de pele est muito mais presente do que cos- tumava pelo fato de a atmosfera nos fornecer muito menos proteo contra o sol.24 No vero, uso loes e cremes com filtros poderosos, e eles colaboram para me manter a salvo. De vez em quando vou ao dermatologista, e ele retira um ou outro sinal maior do que o comum, mandando-o para anlise. As crianas que no passado corriam pela praia nuas esto agora besuntadas de filtros solares. Homens que no passado trabalhavam sem camisa ao meio-dia usam agora camisas e 33/771 32. tentam ficar na sombra. Temos a capacidade de lidar com tal aspecto dessa crise. Inventamos novos caminhos para no ter que passar nossas vidas no escuro. Usando bloqueadores solares ou no, porm, precisamos tentar no destruir o que sobrou. Neste momento, h ainda muito oznio l fora e ele ainda cumpre seu papel moderadamente bem. Seria melhor para o meio ambiente se todos parassem de usar carros, mas isso no vai acontecer a menos que haja uma crise gigantesca. Francamente, acho que antes de haver uma sociedade livre do trans- porte automotivo os homens vivero na Lua. Uma mudana radical impossvel e de muitos modos indesejvel, mas no h dvida de que algum tipo de mudana necessrio. Ao que parece, a depresso est presente desde quando o homem tomou conscincia do prprio eu. Pode ser que ela tenha existido mesmo antes dessa poca, que macacos e ratos e talvez polvos tenham sofrido da doena antes de os primeiros humanoides acharem seu caminho para as cavernas. A sintomatologia de nosso tempo certamente apresenta poucas diferenas da que foi descrita por Hipcrates uns 2500 anos atrs.25 Nem a depresso nem o cncer de pele so uma criao do sculo XXI. Assim como o cncer de pele, a depresso um mal do corpo que aumentou muito em tempos recentes por motivos bastante especfi- cos. importante que no continuemos a ignorar por muito mais tempo a clara mensagem de problemas cada vez mais gritantes. Vulnerabilidades que numa era anterior teriam permanecido indetectveis agora florescem em doenas clinica- mente maduras. Precisamos no apenas aproveitar as solues imediatas para nos- sos problemas correntes, mas tambm buscar conter esses problemas e evitar que dominem nossas mentes. As taxas crescentes de depresso so sem dvida uma consequncia da modernidade. O ritmo da vida, o caos tecnolgico, a alienao das pessoas, o colapso da estrutura familiar, a solido endmica, o fracasso dos sis- temas de crena (religioso, moral, poltico, social qualquer coisa que parecia outrora dar significado e direo vida) tm sido catastrficos. Felizmente, temos desenvolvido sistemas para lidar com o problema. Temos remdios voltados para as perturbaes orgnicas e terapias voltadas para os tumultos emocionais da 34/771 33. doena crnica. A depresso um custo crescente, mas no ruinoso, para nossa sociedade. Temos equivalentes psicolgicos de filtros solares, bons e sombra. Mas ser que temos o equivalente a um movimento ambiental, um sistema para conter os danos que estamos fazendo camada de oznio social? A existncia de tratamentos no deveria fazer com que ignorssemos o problema que est sendo tratado. Temos que ficar aterrorizados com as estatsticas. O que devemos fazer? s vezes parece que a taxa da doena e o nmero de curas esto numa es- pcie de competio para ver qual vai superar o outro. Poucos de ns querem, ou podem, desistir da modernidade de pensamento, assim como no querem desistir da modernidade da existncia material. Mas precisamos comear a fazer pequenas coisas agora para baixar o nvel de poluio socioemocional. Precisamos buscar f (em qualquer coisa: em Deus, no eu, em outras pessoas, na poltica, na beleza ou em qualquer outra coisa) e estrutura. Precisamos ajudar os que so privados de seus direitos civis, cujo sofrimento mina a alegria do mundo para o bem dessas massas e dos privilegiados que carecem de motivao profunda em suas vidas. Precisamos praticar o negcio do amor, e ensin-lo tambm. Precisamos melhor- ar as circunstncias que conduzem a nveis assustadoramente altos de estresse. Precisamos nos manifestar contra a violncia, e talvez contra suas representaes. Isso no uma proposta movida pela emoo; to urgente quanto clamar pela salvao da floresta tropical. Em algum momento, um tempo que ainda no atingimos, mas que acho que atingiremos em breve, o nvel de dano ser mais terrvel do que os avanos que compramos com esse dano. No haver nenhuma revoluo, e sim talvez o ad- vento de diferentes tipos de escolas, diferentes modelos de famlia e comunidade, diferentes processos de informao. Para continuarmos existindo na Terra, teremos que fazer isso. Teremos que encontrar um equilbrio entre o tratamento da doena e a melhoria das circunstncias que a causam. Buscaremos tanto a pre- veno quanto a cura. Na maturidade do novo milnio, espero que salvemos as florestas tropicais deste planeta, a camada de oznio, os rios e correntes, os oceanos, e salvaremos tambm, espero, as mentes e coraes das pessoas que 35/771 34. vivem aqui. Ento controlaremos nosso medo crescente dos demnios do meio- dia nossa ansiedade e depresso. O povo do Camboja vive no compasso de sua tragdia imemorial. Durante os anos 1970, os revolucionrios de Pol Pot estabeleceram uma ditadura maosta nesse pas em nome do que se chamou de Khmer Vermelho. Seguiram-se anos de guerra civil sangrenta, durante a qual mais de 20% da populao foi assassinada. A elite instruda foi eliminada, e os camponeses, regularmente movidos de uma localidade para outra, e alguns deles levados para celas de priso onde eram trata- dos com escrnio e torturados; o pas inteiro vivia num medo perptuo.26 difcil classificar guerras as recentes atrocidades em Ruanda tm sido especialmente devastadoras , mas o perodo Pol Pot foi certamente to terrvel quanto qualquer outro momento e lugar da histria recente. O que acontece com as suas emoes quando voc v um quarto de seus compatriotas assassinado, quando vo- c prprio viveu a dureza de um regime brutal, quando est lutando contra as chances de reconstruir uma nao devastada? Eu queria ver o que acontece aos cidados de um pas ao suportar um nvel de estresse to alto, um grau desesper- ador de pobreza, ausncia quase total de recursos e pouqussima chance de edu- cao ou emprego. Eu poderia ter escolhido outros locais para encontrar sofri- mento, mas no quis entrar num pas em guerra, j que a psicologia do desespero em tempo de guerra geralmente frentica, enquanto o desespero que se segue devastao mais entorpecedor e abrangente. O Camboja no um pas em que uma faco lutou brutalmente contra outra; um pas em que todos estavam em guerra contra todos, no qual todos os mecanismos da sociedade haviam sido com- pletamente aniquilados, no qual no havia restado nenhum amor, nenhum ideal- ismo, nada de bom para ningum. Os cambojanos em geral so afveis e extremamente amigveis com os es- trangeiros que os visitam. A maioria deles fala suavemente, gentil e atraente. difcil acreditar que esse pas adorvel foi o palco das atrocidades de Pol Pot. Cada pessoa que conheci tinha uma explicao diferente para o fato de o Khmer 36/771 35. Vermelho ter ocorrido l, mas nenhuma dessas explicaes fazia sentido, assim como no faz sentido nenhuma das explicaes que justificam a Revoluo Cul- tural Chinesa, o stalinismo ou o nazismo. Tais coisas aconteceram, e retro- spectivamente possvel entender por que uma nao foi especialmente vulner- vel a elas; mas onde se originam tais comportamentos na imaginao humana incognoscvel. A estrutura social sempre muito frgil, mas impossvel saber como ela pde se vaporizar to inteiramente quanto naquelas sociedades. O embaixador norte-americano no Camboja contou-me que o maior problema para o povo khmer que a sociedade cambojana tradicional no tem nenhum mecan- ismo pacfico para resolver conflitos. Se eles tm divergncias, disse, tm que neg-las e suprimi-las totalmente, ou ento puxar suas facas e lutar. Um mem- bro do atual governo cambojano disse que o povo foi subserviente demais a um monarca absoluto por tempo demais e no pensou em lutar contra a autoridade at que j fosse tarde. Ouvi pelo menos uma dzia de outras histrias; continuei ctico. Durante entrevistas com pessoas que haviam sofrido atrocidades nas mos do Khmer Vermelho, descobri que a maioria preferia olhar para a frente. Quando as pressionava a respeito de histrias pessoais, contudo, elas deslizavam para o lamentoso tempo passado. As histrias que ouvi eram inumanas, aterrorizantes e repulsivas. Todo adulto que conheci no Camboja havia sofrido traumas externos que teriam levado a maioria de ns loucura ou ao suicdio. O que haviam so- frido em suas prprias mentes se enquadrava num grau de horrores parte. Fui ao Camboja para me tornar mais humilde diante da dor dos outros e me curvei at o cho. Cinco dias antes de deixar o pas, encontrei-me com Phaly Nuon, candidata por algum tempo ao prmio Nobel da paz, que criara um orfanato e um centro para mulheres deprimidas em Phnom Penh. Ela obtivera um enorme sucesso em ressuscitar mulheres cujas aflies mentais eram tamanhas que outros mdicos as haviam abandonado morte. De fato, o seu sucesso havia sido to grande que a equipe de seu orfanato quase inteiramente formada por mulheres que ela j ajudou e que criaram uma comunidade de generosidade em torno de Phaly 37/771 36. Nuon. Se voc salva as mulheres, dizem, elas por sua vez salvaro as crianas, e assim, traando uma cadeia de influncias, pode-se salvar o pas. Ns nos encontramos numa pequena sala num velho edifcio de escritrios prximo do centro de Phnom Penh. Ela se sentou numa cadeira e eu num pequeno sof do lado oposto. Os olhos assimtricos de Phaly Nuon parecem ver imediatamente atravs de voc e, ao mesmo tempo, dar-lhe as boas-vindas. Como a maioria dos cambojanos, ela relativamente pequena para os padres ociden- tais. Seus cabelos um pouco grisalhos estavam puxados para trs dando um ar de dureza aos contornos de seu rosto. Ela pode ser agressiva defendendo um ponto de vista, mas tambm tmida, sorridente e olha para baixo sempre que no est falando. Comeamos com sua prpria histria. No incio dos anos 1970, Phaly Nuon trabalhava para o Departamento Cambojano do Tesouro e Cmara do Comrcio como secretria, datilgrafa e estengrafa. Em 1975, quando Phnom Penh caiu em poder do Pol Pot e do Khmer Vermelho, ela foi tirada de sua casa com o mar- ido e os filhos. Seu marido foi enviado para um lugar desconhecido, e Phaly Nuon no tinha ideia se fora executado ou continuava vivo. Ela foi colocada para trabalhar no campo com sua filha de doze anos, o filho de trs e o beb recm- nascido. As condies eram terrveis e a comida, escassa, mas ela trabalhava ao lado de seus companheiros, jamais dizendo a eles coisa alguma e nunca sorrindo, nenhum de ns sorria porque sabamos que a qualquer momento poderamos ser mandados para a morte. Aps alguns meses, foi despachada para outra localidade junto com sua famlia. Durante a transferncia, um grupo de soldados amarrou-a a uma rvore e a obrigou a assistir sua filha ser violentada pelo bando e depois as- sassinada. Alguns dias depois, Phaly Nuon foi levada com alguns outros trabal- hadores para um campo fora da cidade. Amarraram suas mos atrs das costas e ataram suas pernas unidas. Depois foraram-na a se ajoelhar e amarraram-na a uma vara de bambu, fazendo com que se inclinasse para a frente num campo lamacento, de modo que suas pernas tivessem que ficar tensas ou ela perderia o equilbrio. A ideia era que, quando finalmente casse de exausto, ela afundaria na lama e, incapaz de se mover, se afogaria. Seu filho de trs anos gritava e chorava a 38/771 37. seu lado. A criana fora amarrada a ela para se afogar na lama quando a me casse: Phaly Nuon mataria seu prprio filho. Ela ento contou uma mentira. Disse que, antes da guerra, trabalhara para um dos membros da cpula do Khmer Vermelho, que fora sua amante e que ele ficaria zangado se ela fosse morta. Poucas pessoas escaparam dos campos de morte, mas um capito que talvez tenha acreditado na histria de Phaly Nuon disse posteriormente que no suportava o som de seus filhos gritando e que as balas que os matariam rapidamente eram caras demais para serem desperdiadas. Ento, ele desamarrou Phaly Nuon e lhe disse para correr. Com o beb num dos braos e o filho de trs anos no outro, ela disparou, adentrando profundamente a selva do nordeste cambojano. Ficou na selva por trs anos, quatro meses e dezoito dias. Nunca dormia duas vezes no mesmo lugar. Enquanto perambulava, colhia folhas e desenterrava razes para alimentar a si e sua famlia, mas a comida era di- fcil de encontrar e outros ceifadores, mais fortes que ela, haviam deixado a terra nua. Gravemente desnutrida, comeou a definhar. O leite de seus seios logo secou, e o beb que ela no pde alimentar morreu em seus braos. Ela e o filho remanescente se agarraram vida com todas as suas foras e atravessaram o per- odo de guerra. A essa altura da narrativa de Phaly Nuon, ns dois j tnhamos trocado nos- sos assentos pelo cho, e ela chorava balanando-se para a frente e para trs, en- quanto eu me sentava com os joelhos sob o queixo e uma das mos no ombro dela, um abrao que seu estado de transe permitia. Ela continuou quase sussur- rando. Depois de a guerra acabar, ela encontrou seu marido que, gravemente es- pancado na cabea e no pescoo, sofreu uma perda significativa de sua capacidade mental. Ela, o marido e o filho foram colocados num campo de fronteira prximo Tailndia, onde milhares de pessoas viviam em abrigos temporrios feitos de lona. Sofreram abusos fsicos e sexuais por alguns dos funcionrios do campo e foram ajudados por outros. Phaly Nuon era uma das nicas pessoas instrudas ali e, conhecendo lnguas, podia falar com os funcionrios encarregados da assistncia. Tornou-se uma parte importante da vida do campo, sendo dada a ela e sua famlia uma cabana de madeira que era considerada luxuosa, em comparao 39/771 38. com o resto. Ajudei em certas tarefas de assistncia naquela poca, lembra. O tempo todo em que andei por ali, vi mulheres em pssimo estado, muitas delas paralisadas, no se moviam, no falavam, no se alimentavam e no davam a mn- ima para os prprios filhos. Vi que, embora tivessem sobrevivido guerra, iam agora morrer de depresso, de um estresse ps-traumtico totalmente incapacit- ante. Phaly Nuon fez um pedido especial aos funcionrios encarregados da as- sistncia e criou em sua cabana uma espcie de centro de psicoterapia. Ela usava a medicina tradicional khmer (feita com propores variveis de mais de cem ervas e folhas) como primeiro passo. Se aquilo no funcionava ou no funcionava suficientemente bem, ela aplicava medicina ocidental quando disponvel, como s vezes ocorria. Eu escondia estoques de quaisquer antide- pressivos que os funcionrios da assistncia conseguissem trazer, disse, e tentava ter o suficiente para os casos piores. Ela levava as pacientes para meditar, mantendo em sua casa um altar budista enfeitado com flores. Conquistava a con- fiana das mulheres para que se abrissem. Primeiro, levava trs horas para que cada mulher lhe contasse sua histria. Depois, fazia visitas de acompanhamento regulares para obter mais detalhes, at que finalmente obtivesse a total confiana das mulheres deprimidas. Eu precisava conhecer a histria que essas mulheres tinham para contar, explicou, porque queria entender bem especificamente o que cada uma tinha que superar. Uma vez que a iniciao fosse concluda, Phaly Nuon prosseguia num sis- tema formulado por ela. Eu o aplico em trs etapas, disse. Primeiro, ensino-as a esquecer. Temos exerccios que fazemos a cada dia, para que a cada dia elas pos- sam esquecer um pouco mais as coisas que jamais esquecero inteiramente. Dur- ante esse tempo, tento distra-las com msica, bordado, tecelagem ou msica, com uma hora ocasional de televiso, com qualquer coisa que parea funcionar, com qualquer coisa que elas me digam que gostam. A depresso est sob a pele, toda a superfcie do corpo tem a depresso logo abaixo de si, e no podemos tir- la fora; mas podemos sim tentar esquecer a depresso mesmo que esteja bem ali. Quando suas mentes esto limpas do que esqueceram, quando aprenderam bem o esquecimento, eu as ensino a trabalhar. Seja qual for o tipo de trabalho que 40/771 39. querem fazer, descubro um modo de ensin-lo a elas. Algumas treinam apenas limpar casas ou cuidar de crianas. Outras aprendem habilidades que possam usar com os rfos, e algumas voltam-se para uma verdadeira profisso. Elas precisam aprender a fazer tais coisas e se orgulhar delas. E ento, quando finalmente j dominaram o trabalho, eu as ensino a amar. Constru uma espcie de anexo e fiz ali um banho a vapor. Agora tenho um simil- ar, s que mais bem construdo, em Phnom Penh. Ento levo-as l para que todas fiquem limpas e as ensino a fazer as mos e os ps umas das outras, e como cuidar das unhas, porque elas se sentem bonitas com isso, e elas querem muito se sentir bonitas. Isso tambm as coloca em contato com os corpos de outras pessoas e faz com que se distraiam de seus corpos para cuidar de outros. Isso as resgata do isol- amento fsico, que uma aflio habitual entre elas, e conduz quebra do isola- mento emocional. Enquanto esto juntas lavando-se e pintando as unhas, comeam a conversar, pouco a pouco aprendem a confiar umas nas outras e, no final de tudo, aprenderam a fazer amigas, de modo que jamais tero que ser to solitrias e to sozinhas novamente. Suas histrias que no contaram para nin- gum, a no ser para mim , elas comeam a cont-las umas para as outras. Phaly Nuon me mostrou depois os instrumentos de sua profisso de psic- loga: os pequenos frascos de esmalte colorido, a sala de vapor, as varetas para em- purrar as cutculas, as lixas de unha, as toalhas. A limpeza e o cuidado consigo e com os outros so formas primordiais de socializao entre os primatas, e essa volta aos cuidados bsicos como uma fora socializante entre os humanos me pareceu curiosamente orgnica. Eu disse a ela que achava difcil ensinar a esque- cer, a trabalhar, a amar e ser amado, mas ela disse que no era to complicado se voc mesmo pudesse fazer essas trs coisas. Contou como as mulheres que ela tem tratado formaram uma comunidade e como se do bem com os rfos de quem tomam conta. H um ltimo passo, ela me disse depois de uma longa pausa. No final, eu lhes ensino o mais importante: que essas trs habilidades esquecer, trabalhar e amar no so isoladas, e sim parte de um enorme todo. a prtica dessas trs coisas juntas, cada qual como parte das outras, que faz a diferena. o mais difcil 41/771 40. de transmitir, ela ri, mas todas passam a entender isso e, quando o fazem, esto prontas para entrar novamente no mundo. A depresso existe agora tanto como um fenmeno pessoal quanto social. Para tratar a depresso preciso entender a experincia de um colapso mental, o modo de ao dos medicamentos e as formas mais comuns de terapia falada (psic- analtica, interpessoal e cognitiva). A experincia uma boa professora, e os trata- mentos correntes foram postos em prtica e testados; mas muitos outros trata- mentos, da erva-de-so-joo psicocirurgia, oferecem uma promessa razovel embora aqui haja mais charlatanismo do que em qualquer outra rea da medicina. Um tratamento inteligente requer um exame atento de populaes especficas: a depresso tem variaes significativas entre crianas, idosos e cada um dos gner- os. Os dependentes qumicos formam uma grande subcategoria prpria. O suic- dio, em suas muitas formas, uma complicao da depresso. fundamental en- tender como a depresso pode ser fatal. Essas questes experimentais levam epidemiologia. Est na moda encarar a depresso como uma queixa moderna, e isso um erro grosseiro que um exame da histria da psiquiatria ajuda a esclarecer. Tambm est na moda pensar sobre a queixa como algo da classe mdia e bastante consistente das manifestaes da de- presso. Isso no verdade. Olhando para a depresso entre os pobres, podemos ver que tabus e preconceitos esto nos impedindo de ajudar uma populao que singularmente receptiva a essa ajuda. O problema da depresso entre os pobres leva naturalmente a uma poltica especfica. Legislamos sobre ideias de doena e tratamento fazendo-as existir e deixar de existir. Biologia no destino. H maneiras de levar uma boa vida com depresso. De fato, pessoas que aprendem com sua depresso podem desenvolver uma pro- fundidade moral que o trofu no fundo da caixa de tristezas. H um espectro emocional bsico do qual no podemos e no devemos escapar, e acredito que a depresso se inclua nesse espectro, perto no apenas da dor, mas tambm do amor. De fato, acredito que todas as emoes fortes ficam juntas, e que cada uma 42/771 41. delas est intrinsecamente ligada ao que comumente pensamos como seu oposto. No momento, tenho conseguido conter a incapacitao que a depresso causa, mas a depresso em si vive para sempre na escrita cifrada de meu crebro. parte de mim. Travar guerra contra a depresso lutar contra si mesmo, e importante saber disso antes das batalhas. Acredito que a depresso s pode ser eliminada se minarmos o mecanismo emocional que nos faz humanos. A cincia e a filosofia devem proceder por meias medidas. Receba bem esta dor, escreveu Ovdio certa vez, pois algum dia ela lhe ser til.27 possvel (embora improvvel, nos tempos presentes) que, atravs da manipulao qumica, possamos localizar, controlar e eliminar o circuito de sofri- mento do crebro. Espero que nunca faamos isso, j que remov-lo significaria aplainar nossas experincias: prejudicar uma complexidade que muito mais valiosa do que o carter doloroso de suas partes. Se eu pudesse ver o mundo em nove dimenses, pagaria um alto preo para faz-lo. Preferiria viver para sempre no nevoeiro do sofrimento a desistir da capacidade de sentir dor. Mas a dor no depresso aguda; amamos e somos amados mesmo sofrendo de uma grande dor e estamos vivos quando a experimentamos. o carter de morto-vivo provocado pela depresso que venho tentando eliminar de minha vida; como artilharia para essa extino que escrevo este livro. 43/771 42. 2. Colapsos Eu s entrei em depresso depois de ter resolvido quase todos os meus prob- lemas. Minha me morrera trs anos antes e eu comeara a me conciliar com isso; estava publicando meu primeiro romance; me dava bem com a minha famlia; emergira intacto de um relacionamento poderoso de dois anos; comprara uma casa bonita; escrevia para a conceituada revista The New Yorker. Quando a vida estava finalmente em ordem e todas as desculpas para o desespero tinham sido ex- auridas que a depresso chegou, dissimulada com suas leves passadas, e estragou tudo. Estar deprimido por ter vivido um trauma ou quando a vida est claramente uma baguna uma coisa, mas sentir-se deprimido quando voc finalmente est distanciado do trauma e sua vida no uma baguna terrivelmente confuso e desestabilizador. Claro que voc est consciente de causas profundas: a perene crise existencial, as dores esquecidas da infncia distante, os leves erros cometidos com pessoas agora falecidas, a perda de certas amizades por sua prpria neglign- cia, o fato de no ser nenhum Tolsti, a ausncia do amor perfeito neste mundo, os impulsos de cobia e falta de caridade que se acham perto demais do corao 43. esse tipo de coisa. Mas agora, ao repassar esse inventrio, eu acreditava que minha depresso fosse um estado racional e incurvel. De um modo fundamentalmente material, no tenho tido uma vida difcil. A maioria das pessoas ficaria bastante feliz com as oportunidades que tive. Passei por algumas pocas melhores e outras piores, para meus prprios padres, mas os mergulhos no foram to fundos a ponto de explicar o que me aconteceu. Se minha vida tivesse sido mais difcil, eu compreenderia minha depresso de modo muito diferente. Na verdade, tive uma infncia razoavelmente feliz com pais que me amavam generosamente e um irmo mais jovem a quem eles tambm amavam e com quem geralmente eu me dava bem. Era uma famlia suficientemente in- tacta para que eu no pensasse em divrcio ou uma batalha entre meus pais, que se amavam muito e, embora discutissem de vez em quando sobre isso e aquilo, nunca questionavam sua absoluta devoo de um pelo outro, por meu irmo e por mim. Sempre tivemos o suficiente para viver com conforto. Eu no era popular na escola primria ou no incio do ginsio, mas no final eu tinha um crculo de amigos com quem me sentia contente. Sempre me sa bem academicamente. Eu havia sido um tanto tmido quando criana, temeroso de ser rejeitado em situaes de grande exposio mas quem no ? Quando no ginsio, eu tinha conscincia de estados de esprito ocasionalmente instveis que, mais uma vez, no pareciam inusitados na adolescncia. Durante meu penltimo ano do ensino mdio, estava certo de que o edifcio em que assistia s aulas (que existia havia quase cem anos) ia desmoronar, e lembro de ter que me encher de coragem con- tra aquela estranha ansiedade dia aps dia. Sabia que isso era estranho e fiquei aliviado quando, aps um ms, a ansiedade passou. Ento entrei na faculdade, onde fui abenoadamente feliz e conheci muitas pessoas que so minhas amigas at hoje. Estudei e curti bastante, acordando tanto para uma nova srie de emoes quanto para o escopo do meu intelecto. s vezes, quando sozinho, sentia-me subitamente isolado, e a sensao no era apenas o so- frimento de estar s, mas medo. Eu tinha muitos amigos. Ento visitava um deles, e geralmente me distraa e esquecia o sofrimento. Era um problema ocasional e no incapacitante. Fui fazer mestrado na Inglaterra e, quando terminei os 45/771 44. estudos, passei de modo relativamente suave para uma carreira de escritor. Fiquei em Londres por alguns anos. Tive um monte de amigos e flertei um pouco com o amor. De muitas maneiras, tudo isso ficou mais ou menos igual. Tenho experi- mentado uma boa vida at agora, e sou grato por ela. No comeo de uma depresso severa, a tendncia olhar para trs procura de suas razes. Cogita-se de onde ela veio, se esteve sempre ali, espreita, ou se chegou to subitamente quanto uma intoxicao alimentar. Desde meu primeiro colapso, passei meses a fio catalogando antigas dificuldades, tais como existiram. Nasci de parto caudal, e alguns autores tm ligado o nascimento de parto caudal a um trauma antigo. Eu era dislxico, embora minha me, que identificou o prob- lema cedo, comeasse a me ensinar modos de compensar o problema desde quando eu tinha apenas dois anos, e isso nunca foi um impedimento srio para mim. Quando criana pequena, eu era falador e descoordenado. Quando pedi a minha me para identificar meu trauma mais antigo, ela disse que caminhar no tinha sido fcil para mim e que, embora minha fala parecesse no ter demandado nenhum esforo, meu controle motor e equilbrio foram atrasados e imperfeitos. Disseram-me que eu caa muito, que s com bastante estmulo tentava ficar ereto. A falta de atividade atltica subsequente determinou minha falta de popularidade na escola primria. Naturalmente, no ser tolerado por meus pares foi decepcion- ante para mim, mas sempre tive alguns amigos e sempre gostei de adultos, que tambm gostavam de mim. Tenho muitas lembranas estranhas e no organizadas de minha infncia re- mota, quase todas felizes. Uma psicanalista com quem me tratei certa vez disse- me que uma tnue sequncia de antigas lembranas que faziam pouco sentido para mim sugeriam que eu sofrera abuso sexual juvenil. Certamente possvel, mas nunca consegui construir uma lembrana convincente ou mencionar outras provas disso. Se algo aconteceu, deve ter sido bastante suave, porque fui uma cri- ana muito observada, e qualquer machucado ou problema teria sido notado. Lembro de um episdio num acampamento de vero, quando eu tinha seis anos, em que fui sbita e irracionalmente tomado pelo medo. Tenho a imagem gravada em minha mente: a quadra de tnis acima, o salo de jantar minha direita e, a 46/771 45. uns quinze metros de distncia, o grande carvalho sob o qual sentvamos para ouvir histrias. De repente, senti que no conseguia me mover. Fui dominado pela sensao de que algo horrvel ia me acontecer, mais cedo ou mais tarde, e que, enquanto eu vivesse, jamais seria livre. A vida, que at ento parecera uma superfcie slida sobre a qual eu pisava, tornara-se subitamente delicada e inse- gura, e comecei a escorregar atravs dela. Se eu ficasse imvel, poderia ficar bem, mas, assim que me movesse, estaria em perigo de novo. A direo a tomar, se para a direita, para a esquerda ou em frente, parecia ter uma importncia vital, mas eu no sabia que direo me salvaria, pelo menos naquele momento. Felizmente sur- giu um conselheiro e disse que eu me apressasse, que eu estava atrasado para a natao. O estado de esprito se rompeu, mas por muito tempo me lembrei dele desejando que no voltasse. Acho que esse tipo de coisa no inusitada em crianas pequenas. Angstia existencial entre adultos, embora dolorosa, geralmente traz consigo uma con- scincia de si fortalecedora. Em contrapartida, as primeiras revelaes da fragilid- ade humana, os primeiros anncios da mortalidade, so devastadores e violentos. Eu vi seus efeitos em meus afilhados e em meu sobrinho. Seria romntico e tolo dizer que em julho de 1969, no acampamento Grant Lake, entendi que um dia morreria, mas tropecei, sem qualquer razo aparente, na minha prpria vulnerab- ilidade, no fato de que meus pais no controlavam o mundo e tudo que acontecia nele, e que tampouco eu poderia control-lo. Tenho uma memria ruim, e de- pois daquele episdio no acampamento passei a ter medo do que se perde ao longo do tempo. Ficava deitado noite tentando lembrar das coisas do dia para poder preserv-las uma aquisio incorprea. Eu dava um valor especial aos beijos de boa-noite de meus pais e costumava dormir com a cabea num leno de papel para recolher os beijos deles se cassem de meu rosto, de modo a guard-los para sempre. Desde o ginsio eu tinha conscincia de um confuso senso de sexualidade, do qual posso dizer que foi o desafio emocional mais impenetrvel de minha vida. Enterrei a questo por trs da sociabilidade de modo a no confront-lo, uma de- fesa bsica que me permitiu atravessar a faculdade. Tive alguns anos de incerteza, 47/771 46. um longo histrico de envolvimentos com homens e mulheres, o que complicava minha relao com minha me em especial. Ocasionalmente, me via tomado por um estado de esprito de intensa ansiedade sem nenhum motivo particular, uma estranha mistura de tristeza e medo jorrando de lugar algum. s vezes ela me dominava nas noites de sexta-feira na faculdade, quando o barulho das festas foradas esmagava a privacidade da escurido. s vezes ela se apoderava de mim quando eu estava lendo ou durante o sexo. Ela aparecia sempre que eu me afastava de casa, e ainda agora acompanha minha partida. Mesmo que eu esteja indo embora apenas pelo fim de semana, tal estado de esprito me invade quando tranco a porta atrs de mim. E geralmente se apoderava de mim quando eu voltava para casa. Minha me, uma amiga e mesmo um de nossos cachorros me saudavam, e eu me sentia to triste que essa tristeza me assustava. Lidava com ela interagindo compulsivamente com as pessoas, o que quase sempre me distraa. Tinha de assobiar uma melodia feliz para sair daquela tristeza. No vero depois do meu ltimo ano de faculdade, tive um pequeno colapso, mas na poca eu no tinha ideia do que era. Estava viajando pela Europa, curtindo o vero que sempre desejara, completamente livre. Fora uma espcie de presente de formatura de meus pais. Passei um ms esplndido na Itlia, depois prossegui para a Frana e em seguida visitei um amigo no Marrocos. Fiquei in- timidado pelo Marrocos. Era como se eu tivesse sido libertado demais de re- stries demais. Eu me sentia nervoso o tempo todo, como me sentia nos bastidores pouco antes de entrar numa pea da escola. Voltei a Paris, encontrei- me com mais alguns amigos e depois fui para Viena, uma cidade que sempre quis- era visitar. No consegui dormir em Viena. Cheguei, instalei-me numa penso e encontrei alguns velhos amigos que tambm estavam l. Fizemos planos para viajar juntos a Budapeste. Samos e tivemos uma noite agradvel. Depois voltei e fiquei acordado a noite toda, aterrorizado com algum erro que eu pensei ter cometido, embora no soubesse qual. No dia seguinte, eu estava tenso demais para enfrentar um caf da manh numa sala cheia de estranhos. Quando sa ao ar livre, me senti melhor, decidi visitar algum museu e cheguei concluso de que provavelmente estava apenas me sobrecarregando. Meus amigos tiveram que ir 48/771 47. jantar com outra pessoa e, quando me contaram isso, senti-me atingido at o mago, como se estivesse ouvindo uma trama de assassinato. Concordaram em se encontrar comigo para um drinque depois do jantar. Eu no jantei. Simplesmente no conseguia entrar num restaurante estranho e pedir a comida sozinho (embora tivesse feito isso muitas vezes antes). Tambm no conseguia iniciar uma con- versa com ningum. Quando finalmente me encontrei com meus amigos, eu es- tava tremendo. Samos, bebi muito mais do que habitualmente e me senti tem- porariamente calmo. Passei outra noite em branco, com uma dor de cabea de rachar e o estmago revirado, preocupando-me obsessivamente com o horrio do barco para Budapeste. Consegui atravessar o dia seguinte e, durante a terceira noite sem dormir, fiquei com tanto medo que fui incapaz de levantar para usar o banheiro. Liguei para meus pais. Preciso ir para casa, eu disse. Eles pareceram mais do que surpresos, j que antes dessa viagem eu negociara cada dia extra, cada local extra, tentando estender ao mximo meu tempo no exterior. Est aconte- cendo alguma coisa?, perguntaram, e s pude dizer que no me sentia bem e que tudo se revelara menos empolgante do que eu previra. Minha me foi solidria. Viajar sozinho pode ser difcil, disse. Pensei que voc encontraria com amigos a, mas mesmo assim pode ser tremendamente cansativo. Meu pai disse: Se quiser vir para casa, use meu carto de crdito para comprar a passagem e venha. Comprei a passage