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Publico privado saude_angola

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Uma análise da forma como está a desenvolver-se o sector particular da saúde em Angola

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Maurílio Luciano Sabino Luiele

Rio de Janeiro, Janeiro 2014

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O Público e o Privado na Saúde em Angola (1)

O sector particular de saúde com fins lucrativos desenvolveu-se em Angola desde o

início da década de noventa, altura em que foi aprovada a legislação que regulamenta.

Desde essa altura proliferaram pelo país várias unidades privadas de assistência médica

que configuram as diferentes tipologias estabelecidas por lei, que vão desde clínicas de

grande dimensão até pequenos postos médicos e de enfermagem, localizados

geralmente em bairros periféricos, passando por consultórios e centros médicos de

porte médio e com prestação razoável.

Se nos atermos, entretanto, à evolução dos principais indicadores sanitários desde essa

altura, facilmente concluiremos que a entrada do sector privado no “mercado” da saúde

no país, não trouxe benefícios substanciais aos cidadãos, em grande medida, porque o

acesso a estes serviços é ainda muito limitado, dada a incapacidade de muitos em

suportar financeiramente estes serviços. Mesmo entre aqueles que, de algum modo,

podem pagar estes serviços, estes não granjearam suficiente confiança, pois, ainda são

muitos os que recorrem ao estrangeiro em busca de cuidados de saúde, na medida em

que aí encontram uma relação preço/qualidade e custo/benefício bem mais vantajosa.

Neste particular, convém frisar que mesmo a vizinha Namíbia parece oferecer vantagens

comparativas bem maiores em relação a Angola, sendo muitos os angolanos que com

frequência recorrem ao país vizinho em busca de cuidados médicos. Tratam-se não

apenas de residentes em províncias fronteiriças, mas também provenientes de áreas

mais interiorizadas e mesmo de Luanda onde a oferta privada é importante.

Quando analisamos mais atentamente o sector de saúde particular, damo-nos conta

que, surpreendentemente, não emergiu em Angola uma rede de saúde privada com

penetração e actuação considerável. Com efeito, projectos promissores como da Clínica

Privada do Alvalade ou da Clínica Anglodente, para citar apenas estes, parece que

estagnaram em patamares muito aquém das expectativas criadas. A parte de leão

parece ter sido abocanhada por projectos que não se podem considerar propriamente

privados e nem mesmo de parcerias público privadas se pode falar. Estamos a falar de

estruturas surgidas de projectos desenvolvidos por empresas de capitais

maioritariamente públicos como são os casos da Clínica da Endiama, Clínica Girassol e

do caso peculiar da Clínica Multiperfil. Depreende-se que o dinheiro envolvido nestes

projectos é, para todos os efeitos, dinheiro público, embora tenhamos muitas dúvidas

quanto a sua contabilização como tal.

As razões desta estagnação são as mesmas que, grosso modo, têm impedido a

emergência de um sector privado da economia pujante e dinâmico o suficiente para se

tornar no motor da economia e estão relacionadas à imiscuição excessiva do Estado na

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economia que vezes sem conta tende a expandir os seus tentáculos muito além do que

se considera reserva do Estado. Está também relacionado a ocorrência de uma série de

vícios patentes na nossa sociedade tais como corrupção, compadrio e tráfico de

influências que, na verdade, acabam sendo os grandes determinantes das profundas

fissuras sociais que se assistem presentemente e que se repercutem estrondosamente

na economia. Portanto, o ambiente econômico, resultado de medidas de política

econômica pouco claras e, sobretudo, de distorções resultantes de vícios sociais que o

Governo se recusa corrigir ou minimizar, é hostil ao desenvolvimento de um sector

privado capaz de comandar a economia e reservar ao Estado o papel essencialmente

regulador e fiscalizador. Se é certo que em relação à saúde e educação a presença do

Estado é primordial ou até mesmo fundamental, o facto é que, como se vê, mesmo em

relação ao sector de saúde particular, o sector privado tarda a despontar com a força e

dinamismo que se exige. Estas aberrações da nossa economia são reiteradas vezes

denunciadas pelas sucessivas edições do Relatório Econômico do CEIC/UCAN e são

factores importantes quando se consideram as profundas desigualdades sociais e

assimetrias regionais que enfeitam marcadamente o nosso panorama social e

econômico.

Como entender, então, o domínio no sector de saúde particular de projectos suportados

por empresas públicas ou mesmo organismos afectos a órgãos de soberania como é o

caso da Clínica Multiperfil?

A Clínica Multiperfil foi formalmente criada em 2002 por Decreto-Lei nº 33/02 de 14 de

Junho, pelo Conselho de Ministros, para a “prestação de serviço público”. O referido

decreto aprovou também o estatuto da referida clínica como um instituto público

sujeito à superintendência do governo e à prestação de contas à presidência da

República. Por Resolução nº 09/02 de 14 de Junho, o Presidente da República, José

Eduardo dos Santos, conferiu aos Serviços de Apoio ao Presidente da República os

poderes específicos de superintendência da Clínica Multiperfil.

Por sua vez, o Decreto Presidencial nº 181/10 de 20 de Agosto, que aprovou o estatuto

orgânico da Casa Militar do Presidente da República, certificou a Clínica Multiperfil como

organismo dependente e tutelado pela Casa Militar, ao mesmo nível da Unidade de

Segurança Presidencial (USP) e da Unidade de Guarda Presidencial (UGP). Cabe ao

ministro de Estado e Chefe da Casa Militar, general Manuel Hélder Vieira Dias

“Kopelipa”, a tutela efectiva da Clínica Multiperfil (in Maka Angola).

Na discussão do OGE para 2013 o Grupo Parlamentar da UNITA denunciou o facto do

Estado andar insistente e persistentemente a atribuir verbas à MULTIPERFIL, uma clínica

que pratica preços nada módicos. Naquela proposta de orçamento foram atribuídas à

MULTIPERFIL verbas superiores a todas as unidades de saúde estatais, perdendo apenas

para o Hospital Josina Machel. A Multiperfil aparecia com uma verba de cerca de 63

Milhões de dólares, contra 44,7 Milhões para o Hospital Américo Boavida, 34 milhões

para a Maternidade Lucrécia Paím, 22,7 milhões para o Hospital do Prenda, 21 milhões

para o Hospital Pediátrico, 20 milhões para o Hospital Geral Especializado Augusto

Ngangula e 18,5 Milhões de dólares para o Hospital Sanatório de Luanda (DANDA, 2013).

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A questão que se coloca aqui é entender como uma clínica destinada essencialmente a

uma clientela particular e ainda por cima com serviços altamente rentabilizados mereça

dotações orçamentais superiores aquelas unidades efectivamente destinadas ao grande

público? Como é que fica aqui a questão da equidade em saúde tão propalada na política

nacional de saúde?

A Clínica Girassol é na verdade uma subsidiária da SONANGOL, a concessionária estatal

de petróleos que o Estado angolano utiliza para estranhos e diversificados negócios a

ponto dela estender os seus tentáculos ao ramo imobiliário, finanças, telecomunicações,

transportes aéreos e tudo o mais o que se possa imaginar. A Clínica Girassol é de facto

uma obra imponente, sem dúvida a maior unidade do sector particular de saúde, com

capacidades e valências variadas que lhe permitem prestar serviços de saúde de ponta

contando para o efeito com um corpo de profissionais a medida dos desafios. Um dos

grandes diferenciais desta Clínica é o Serviço Home Care que garante de forma

impecável assistência ao domicílio a doentes crónicos e incapacitados.

A questão que se levanta é que ela é ao mesmo tempo a clínica que pratica os preços

mais altos do mercado angolano de saúde, o que a priori, limita sobremaneira a sua

clientela. Mesmo em relação aos funcionários da SONANGOL o atendimento é

condicionado a uma burocracia que, por vezes, compromete o carácter urgente de que

se revestem determinadas situações, levantando inúmeras interrogações por parte

destes beneficiários.

Recentemente eclodiu na Girassol uma crise envolvendo o pessoal técnico e auxiliar.

Segundo se diz, no início do contrato não foram definidos claramente os termos em que

estes funcionários da clínica e seus familiares poderiam ou não ser beneficiários dos

serviços prestados pela clínica. Como consequência muitos deles acabaram usufruindo

dos serviços da clínica para tratamento pessoal ou de familiares, o que é, aliás,

compreensível. Nos últimos tempos o Conselho de Administração, tendo constatado

que os serviços prestados a estas pessoas representavam uma fatia enorme, decidiu

arbitrariamente por cobrar aos funcionários esta factura, com descontos no salário.

Acontece que em alguns casos a factura sobrepassa os cinquenta mil dólares e, para

muitos destes trabalhadores o desconto no salário significaria trabalhar o resto da vida

sem qualquer compensação. Esta medida gerou uma certa agitação entre os

trabalhadores penalizados, que entretanto, vêm-se impossibilitados de lutar pelos seus

direitos, pois, têm sido chantageados com a possibilidade de não serem incluídos no

processo de efectivação que aquela subsidiária da SONANGOL pretende levar a cabo.

Trata-se claramente de uma situação de injustiça laboral que deve ser denunciada em

voz alta e deveria suscitar a devida intervenção do MAPESS. A Girassol pode

perfeitamente oferecer estes benefícios aos trabalhadores, devidamente

regulamentados, sem que isso represente um factor de desequilíbrio das suas contas, É

uma responsabilidade social que ela pode perfeitamente comportar. É o mínimo que se

pode esperar de uma clínica que é afinal sustentada, essencialmente, por fundos

públicos.

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A Clínica da Endiama é deste conjunto a mais antiga e que ocupa uma posição mais

sólida e estável, fruto de uma gestão cuidadosa conseguida pelo seu principal

administrador Dr. Rui Pinto. Até chegar a este nível ela conheceu muitos altos e baixos

mas, pode-se dizer que hoje se encontra estabilizada e até em franco crescimento. É

talvez das clínicas mais prestigiadas de Luanda com uma clientela diversificada que inclui

diversas empresas que oferecem aos seus trabalhadores seguros de saúde. Os preços

praticados também não estão ao alcance de qualquer cidadão que viva exclusivamente

do seu salário, de modo que aqui acaba havendo também uma admissão bastante

selectiva.

Portanto, o que interessa aqui assinalar é que as clínicas que dominam o sector

particular de saúde com fins lucrativos são essencialmente aquelas que são suportadas

por fundos públicos e, entre elas, a Clínica Multiperfil que é mesmo uma unidade

orçamentada, como se pode depreender da descrição acima. Por isso, supõe-se que o

desenvolvimento deste sector obedece a uma medida de política que visa o aumento

de serviços diferenciados de saúde no país com vista a atender demandas crescentes e

diminuir custos com saúde no exterior por via da polêmica Junta Nacional de Saúde.

Contudo, quando olhamos para as formas de acesso a estes serviços vemos claramente

que eles não estão ao alcance da maioria esmagadora dos cidadãos angolanos que,

grosso modo, não podem suportar os custos destes serviços. O caso particular da Clínica

Multiperfil que desvia elevados recursos do OGE para prestar serviços a uns poucos

configura, do nosso ponto de vista, um grave atentado ao princípio de equidade que a

OMS defende como primordial na promoção da saúde e que está reafirmado na Política

Nacional de Saúde aprovada pelo Decreto Presidencial n.o 262/10 de 24 de Novembro.

É nossa convicção que estes recursos melhor investidos (em cuidados primários de

saúde, formação especializada, e mesmo no melhor apetrechamento e reforço

institucional dos hospitais efectivamente públicos) converter-se-iam melhor em ganhos

ampliados para a saúde das populações, sem ferir o princípio de equidade a que nos

referimos. Tendo, no entanto, em consideração, o avultado investimento público neste

sector de saúde particular, por meio das clínicas que acima descrevemos, o Estado

deveria encontrar mecanismos que ampliassem as possibilidades de acesso da

população a estes serviços. Uma das formas seria a obrigatoriedade das empresas em

oferecer seguro de saúde aos trabalhadores e seus dependentes. Uma vez que está em

discussão o projecto de Lei Geral do Trabalho, seria pertinente considerar a

possibilidade de inclusão de uma cláusula com este teor. Também se deveria estudar a

possibilidade de, no âmbito do INSS, se encontrarem formas mutualistas de suportar

custos com saúde para os funcionários públicos, de forma geral. É neste sentido, que

consideramos despropositada a atitude assumida pela Clínica Girassol contra os seus

trabalhadores, pois entendemos que ela dispõe de plenas capacidades para oferecer

este tipo de benefício aos trabalhadores sem grandes constrangimentos.

Creio que, por estas vias, e talvez outras, seria possível rentabilizar melhor os

investimentos que o Estado fez no sector particular de saúde, reinvestir no sector

realmente público e até permitir o crescimento da iniciativa privada com projectos que,

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conjugados com acções no âmbito público, diminuiriam o recurso ao estrangeiro em

busca de cuidados médicos, o que no fundo, acabaria por ser uma forma de diversificar

a estrutura do PIB. Seria um caminho para se ver reproduzido e multiplicado o exemplo

da Pluribus Africa que há cerca de 10 anos iniciou um projecto que permitiu reduzir

drasticamente custos com diálise renal no exterior do país.

Na outra ponta da cadeia devemos situar toda uma série de pequenos centros médicos,

postos médicos ou de enfermagem localizados geralmente em espaços suburbanos aos

quais recorrem geralmente as pessoas mais pobres. A sua importância social é

sistematicamente ignorada pelo Estado que de modo geral confere conotação negativa

a este segmento de prestadores de serviço em saúde. É importante, todavia, analisar o

contributo deste grupo de agentes de saúde na promoção da saúde em Angola, uma vez

que a ele recorrem muitas pessoas que não têm acesso ao serviço público e que não

podem pagar clínicas mais bem situadas no mercado.

A este esforço de análise desta faixa dedicaremos um próximo artigo.

Maurílio Luiele

Rio de Janeiro, Janeiro 2014