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PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):43-62, 2007 43 Uma Concepção Hermenêutica de Saúde JOSÉ RICARDO C. M. AYRES RESUMO O presente estudo é uma reflexão sobre o conceito de saúde. A tese central do ensaio é que a equivalência de saúde e doença como situações polares opostas de uma mesma natureza de fenômenos, identificados segundo uma mesma racionalidade, é tão limitante para a adequada compreensão dessas duas construções discursivas e das práticas a elas relacionadas, quanto negar as estreitas relações que guardam uma com a outra na vida cotidiana. Com base na Hermenêutica Filosófica, de Hans-Georg Gadamer, e na Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas, procuramos demonstrar que os conceitos de saúde e doença se referem a interesses práticos e instrumentais, respectivamente, na elaboração racional de experiências vividas de processos de saúde-doença-cuidado. Defende-se que o obscurecimento desses distintos interesses decorre da “colonização da nossa experiência vivida” pelas estruturas conceituais das ciências biomédicas. Aponta-se para a necessidade de contrapor, a essa tendência, a reconstrução chamada humanizadora das práticas de saúde, tornando-nos todos, profissionais, serviços, programas e políticas de saúde, mais sensíveis, críticos e responsivos aos sucessos práticos sempre visados por meio e para além de qualquer êxito técnico no cuidado em saúde. Palavras-chave: Conceito de saúde; cuidado em saúde; filosofia; hermenêutica. Recebido em: 05/03/2007. Aprovado em: 30/03/2007.

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Uma Concepção Hermenêutica de Saúde

JOSÉ RICARDO C. M. AYRES �

RESUMO

O presente estudo é uma reflexão sobre o conceito de saúde. A tese central

do ensaio é que a equivalência de saúde e doença como situações polares

opostas de uma mesma natureza de fenômenos, identificados segundo uma

mesma racionalidade, é tão limitante para a adequada compreensão dessas

duas construções discursivas e das práticas a elas relacionadas, quanto negar

as estreitas relações que guardam uma com a outra na vida cotidiana. Com

base na Hermenêutica Filosófica, de Hans-Georg Gadamer, e na Teoria da

Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas, procuramos demonstrar que os

conceitos de saúde e doença se referem a interesses práticos e instrumentais,

respectivamente, na elaboração racional de experiências vividas de processos

de saúde-doença-cuidado. Defende-se que o obscurecimento desses distintos

interesses decorre da “colonização da nossa experiência vivida” pelas estruturas

conceituais das ciências biomédicas. Aponta-se para a necessidade de contrapor,

a essa tendência, a reconstrução chamada humanizadora das práticas de

saúde, tornando-nos todos, profissionais, serviços, programas e políticas de

saúde, mais sensíveis, críticos e responsivos aos sucessos práticos sempre

visados por meio e para além de qualquer êxito técnico no cuidado em saúde.

Palavras-chave: Conceito de saúde; cuidado em saúde; filosofia; hermenêutica.

Recebido em: 05/03/2007.

Aprovado em: 30/03/2007.

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Saúde ou doença?

Se neste exato momento fosse perguntado a você, leitor ou leitora, seestá saudável, o que responderia? Se cada leitor ou leitora que este artigoencontrar se fizer essa pergunta, o que responderá? É impossível saber. Quantosresponderiam que sim, quantos responderiam que não, quantos não saberiamresponder? Difícil estimar. Já o comportamento de uma outra pesquisa,perguntando se o leitor ou leitora estão doentes, talvez fosse um pouco maisprevisível - ao menos com o auxílio da epidemiologia.

É uma hipótese. Essa hipótese, que a um primeiro olhar pode parecerum mero jogo de palavras, está longe de ser banal. Com ela tocamos no coraçãode uma questão muito atual, de ricos significados para algumas reflexõesfundamentais para as práticas de saúde na contemporaneidade, e quepretendemos desenvolver neste ensaio: o rompimento com o pressuposto damútua referência entre as noções de saúde e doença. O que o inocenteexperimento mental acima começa a indicar é que saúde e doença não sãosituações polares, os extremos opostos, positivo e negativo, respectivamente,de uma mesma coisa - no caso, uma mesma experiência. Se fossem, seriaintuitivo admitir que a previsibilidade das respostas às duas perguntas seria, deforma correspondente, simétrica e oposta.

Uma segunda hipótese, desdobrada da anterior, é que não apenas adoença não é o contrário da saúde e vice-versa - ou seja, que não falam damesma coisa, mas também que não falam do mesmo modo. A objetividadeprevisivelmente maior das respostas à pergunta sobre o estar doente dá-nosindícios disso. Imaginando que tivéssemos o resultado da pesquisa sobre a saúde,como compreenderíamos seu significado? De que estariam falando aquelaspessoas que se declararam saudáveis? Em que exatamente difeririam daquelasque se declararam não-saudáveis? De outro lado, não seria difícil compreenderque aqueles que respondem que sim, estão doentes, se referem a dores,limitações, desconfortos, alterações na forma ou função de tal ou qual órgão.Portanto, não é apenas na previsibilidade, mas também na inteligibilidade quesaúde e doença se diferenciam.

O bom senso, contudo, mostra-nos ser fato que, no senso comum, éimpossível dissociar as noções de saúde e doença, que uma noção está sempreremetida à outra. Partindo deste fato e desenvolvendo as hipóteses acima éque pretendemos sustentar a tese central do presente ensaio: fazer equivalersaúde e doença a situações polares de uma mesma coisa, identificadas

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segundo uma mesma racionalidade, é tão limitante para a adequadacompreensão dessas duas construções discursivas e das práticas a elasrelacionadas, quanto negar as estreitas relações que guardam uma com aoutra na vida cotidiana.

Saúde e doença como coisas diferentes

Quando tomamos a situação da pesquisa imaginária acima proposta epercebemos que falar sobre saúde não equivale a falar sobre não-doença efalar sobre doença não equivale a falar sobre não-saúde, rastreamos, por meiode um simples exercício de linguagem, um aspecto prático da maior importância.Importante porque a doença, seus conceitos e seu manejo prático têm ocupadolugar destacado num amplo debate, justamente porque se tende a ver nela anegação do seu contrário, e no grau elevado dessa negação parte susbstantivados males que se quer superar. Com efeito, vivemos hoje no Brasil um processode revisão crítica das tendências tomadas pelas práticas de saúde, crítica que,embora ampla e multifacetada, circula em torno de algumas questões comuns,como a recusa da visão segmentada, que não enxerga a totalidade do pacientee seu contexto; a abordagem excessivamente centrada na doença, não nodoente; a pobreza da interação médico-paciente e o fraco compromisso com obem-estar do paciente (DESLANDES, 2006). É como se disséssemos: olhemosmenos para a doença e então conseguiremos olhar mais para o doente.

Essa forma de equacionar a questão, embora compreensível, pareceter limites práticos evidentes. Antes de qualquer coisa, porque há sempre orisco de dividir falsamente nossos esforços, teóricos e práticos, em sentidossupostamente opostos de uma suposta mesma direção - aqueles voltados paraa promoção da saúde, de um lado, e de outro, aqueles voltados para a prevençãoe o combate à doença. “Satanizar” os desenvolvimentos científico-tecnológicos,o conhecimento fisiopatológico, genético, os conhecimentos sobre a doença,enfim, como um olhar em detrimento do qual se sacrifica o olhar para a saúde,é o principal perigo.

Algumas proposições relativamente recentes tentam fugir dessaarmadilha, ao propor que o olhar para a saúde não significa mudar o olharapenas de sentido, mas sim de direção - isto é, apontam para a necessidade deuma ruptura paradigmática. Não se trata, portanto, de negar, mas de superar omodelo médico tradicional em uma nova visão, na qual haja espaço para

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reconstruir as práticas dando mais atenção à saúde, como nas propostas domovimento da Promoção da Saúde (BUSS, 2003). Tal movimento será, contudo,insuficiente para superar a estéril polarização acima apontada, se não levar asuperação que persegue até o plano mais radical em que se coloca em questãonão apenas o que descrevem, a que se referem os conceitos de saúde e doença,mas também o que significam essas descrições. Do contrário, embora de mododiverso, vamos continuar polarizando “os da doença” e “os da saúde”.

Exemplo disso é a clássica distinção que Stachtchenko e Jenicek (apudBUSS, 2003, p. 35) estabelecem, ao comparar o paradigma da promoção dasaúde com o de prevenção de doenças. O primeiro entenderia a saúde comoum conceito positivo e multidimensional, e para o segundo a saúde seria ausênciade doença. Esse tipo de polarização, por exemplo, obscurece o fato de que aausência ou redução de doença é, efetivamente, um dos indicadores que usamospara avaliar se estamos conseguindo promover saúde. Por outro lado, se nãohouvesse uma referência positiva, algum tipo de valoração, sempremultidimensional, que nos orientasse sobre o que positivamente desejamos emrelação aos nossos modos de andar a vida, não teríamos a concepçãofisiopatológica de doença na qual, ainda hoje, estão radicadas as ciênciasbiomédicas modernas (CANGUILHEM, 1982). A polarização obscurece,portanto, que há uma dimensão positiva de saúde por trás do conceitosupostamente negativo de doença.

Assim, o que está interrogado no título da seção inicial deste ensaio nãoé o primeiro nem o segundo termo da alternativa, é a própria alternativa. É o“ou”. O que se coloca no centro da mudança paradigmática que estamos buscando,seja chamando de humanização da saúde, de promoção da saúde, de medicinacentrada no paciente, ou em outras proposições afins, não é saber qual paradigmaestá centrado na saúde e qual está centrado na doença, mas saber a que sereferem saúde e doença em cada um deles e, mais além, perceber o que se estáefetivamente fazendo ao falar de saúde e de doença em cada um deles.

A conceituação biomédica da doença (CAMARGO JUNIOR, 2005)pode ser caracterizada, sinteticamente, por um conjunto de juízos de caráterinstrumental, orientados normativamente pela noção de controle técnico dosobstáculos naturais e sociais a interesses práticos de indivíduos e coletividades,tendo como base material o conhecimento e domínio de regularidadescausais no organismo (corpo/mente/meio) e, como forma de validação, umasérie bem definida de critérios a priori para o controle das incertezas. Assim

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se configuram, basicamente, nossos conceitos modernos de doença. Mudançasimportantes ocorreram desde as primeiras elaborações mecano-funcionais dosséculos XVII/XVIII (LUZ, 2004) até as atuais soluções probabilísticas doraciocínio causal-controlista nos discursos biomédicos sobre as doenças (AYRES,2002), mas no plano de abstração em que situamos esta reflexão é possívelafirmar que ainda nos situamos fundamentalmente no mesmo regime discursivo1

acima resumido.

Há aspectos nesta definição do discurso biomédico que nos indicampor que nos pareceu tão mais previsível a avaliação dos resultados da pesquisahipotética acerca do estar doente, no exercício proposto no início. Quandorecorremos ao termo doença na linguagem ordinária, já nos colocamos numaárea de discursividade construída com base neste ideal mesmo de previsibilidade,materialidade e controle. Deste caráter instrumental do conceito de doençaadvém parte significativa do valor pragmático deste discurso. Mas e quandofalamos de saúde? Podemos dizer que, ao falar de saúde na linguagem comum,estamos também nos colocando no registro de um discurso orientado por algumtipo de interesse instrumental? Baseiam-se nossos juízos relativos à saúde emalguma preocupação com regularidades causais? Necessitamos de algumcontrole a priori para nos certificarmos, a nós e nossos interlocutores, sobre averdade do que falamos?

É possível que muitos dos que respondessem à pergunta sobre suasaúde o fizessem a partir de um critério negativo, relativo à doença e, nessesentido indireto, recorressem a critérios causal-controlistas: “Não, não estousaudável” (“porque minha glicemia está elevada”; ou “porque tenho o vírusHIV”). Mas outras pessoas hiperglicêmicas ou soropositivas para o HIVpoderiam responder legitimamente que se sentem saudáveis. Inversamente,outros que respondessem não estar saudáveis não estariam, em sua maioria,hiperglicêmicos ou soropositivos. Entre os que respondessem estar saudáveis,seriam esperados e igualmente aceitáveis discursos também substantivamentediversos em suas estruturas e significados: “Sim, estou saudável” (“porque mesinto bem”; “porque sou muito ativo, empreendedor”, “porque consigo fazerminhas coisas”, “porque não dependo de ninguém”, “porque estou feliz”, “porquesou capaz de enfrentar qualquer desafio”, “porque não sinto falta de nada”,“porque tenho apetite para tudo”, “porque tenho paz interior”, “porque sintouma energia boa”, “porque me sinto em harmonia com a vida”, “porque sim,não consigo explicar!”...).

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Se aceitamos que falamos de coisas diferentes quando falamos de saúdee doença - isto é, se dizer que há saúde não é o mesmo que dizer que não hádoença e vice-versa -, a questão agora é compreender as diferenças no modocomo os discursos da doença e da saúde participam do que, na falta de melhortermo, chamamos de paradigma biomédico e das propostas que querem superá-lo. Entendo que o que se recusa no paradigma biomédico - no plano de suaoperação nas práticas de atenção à saúde, é preciso que fique claro - é o modocomo o discurso da doença monopoliza os repertórios disponíveis para o enunciadodos juízos acerca da saúde, a ponto de jogar na sombra todos os discursos dasaúde que não se estruturem pelo raciocínio causal-controlista. Ou seja, não éque falte saúde na discursividade biomédica, ou aspectos positivos na suaconceituação. O problema é a profunda assimetria entre a legitimidade quese confere aos discursos causal-controlistas e outras construçõesdiscursivas relacionadas às experiências vividas de saúde e de doença.Outras elaborações, como as rastreadas acima pelo nosso experimentolingüístico, ou são depreciativamente afastadas por irracionais (como as noçõesmais subjetivas de afetos, sentimentos, desejos), ou são alinhadas de modosistêmico aos raciocínios causal-controlistas da fisiopatologia, comodesencadeantes ou efeitos de regularidades morfo-funcionais - positivos se oenfoque está na normalidade fisiológica, negativos se o foco se volta para osriscos ou a patologias (anormalidades).

Essa assimetria discursiva deixa à margem tudo que não for subordinávelde modo sistêmico ao discurso biomédico, levando as práticas de atenção àsaúde nela baseada a serem entendidas, mais cedo ou mais tarde, como“desumanizadas”, além de se mostrarem tecnicamente limitadas.

Diante deste problema, coloca-se a tarefa de conseguir dar o mesmotipo de tradução objetiva àquelas outras formas de expressão das experiênciasde saúde e doença, a tarefa de expressar positivamente o que devemos entenderpor saúde. Mas, nessa busca, nos vemos presos em profundas dificuldades: Aquais afetos, sentimentos ou desejos devemos atribuir o sinal positivo da saúde?Quem o definiria? Que regularidades objetivas permitiriam apreender e controlaros obstáculos a essas experiências? (AYRES, 2002). A impossibilidade deresponder às perguntas acima sem cair em qualquer tipo de arbitrariedade,idealismo ou mesmo totalitarismo evidencia o segundo aspecto da tese centraldeste ensaio, o de que não só a doença e saúde não falam exatamente damesma coisa, mas que também não falam do mesmo modo. Não basta apenasexpandir os aspectos ou dimensões que se deseja positivar com aquilo que

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dizemos com o conceito de saúde, é preciso dizer de outra forma. A dificuldadede responder às questões acima sem comprometimentos éticos e moraisevidentes prende-se ao fato de que a experiência prática de que falamos quandonos referimos à saúde nos remete a uma outra esfera de racionalidade. É o quevamos desenvolver a seguir.

Saúde e doença como expressão de racionalidades diversas

Para que fique clara a posição aqui defendida, talvez valha a penaretomar questões que ficaram sem resposta no parágrafo anterior. Retomemosnossa pesquisa hipotética. A alguém que tenha respondido à segunda perguntacom um “sim, estou doente”, poderíamos seguir questionando: “Qual doençavocê tem?” Mas não faria sentido perguntar a alguém que tivesse respondidopositivamente ao primeiro inquérito: “Qual saúde você tem?”. Talvezprecisássemos perguntar: “O que você quer dizer com isso?”. Já para alguémdissesse ter uma doença, essa questão pareceria ociosa, ou mesmo absurda:“O que você quer dizer com estar doente? O que você quer dizer com estardiabético? O que você quer dizer com estar infectado pelo HIV?”. Exceto paraalguém que desconhecesse o que denotam esses termos, a pergunta, por suaconotação, não faria o menor sentido. O sentido desses termos já estáamplamente validado e aceito entre os participantes de qualquer diálogo a respeito,já está validado intersubjetivamente. Dito de outra forma, uma racionalidade decaráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogoque o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicosecirculante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alteraçõesmorfo-funcionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraquezaaté a morte. Então é a esse tipo de descrição de fenômenos e de relação deintervenção sobre eles que nos referimos quando falamos em diabetes, porexemplo. O diabetes já se tornou, nesse sentido, um elemento objetivo, um“objeto” sempre à nossa mão.

O leitor pode estar se perguntando por que, então, não logramos fazera mesma coisa em relação à saúde. Acaso não conseguimos positivar o conceitode saúde porque não nos ocupamos o suficiente com aquilo a que chamamosde saúde, para chegarmos a esse mesmo notável nível de consenso? Essa nãome parece a resposta mais convincente, embora em alguns aspectos ela possaser verdadeira. Penso que, ao contrário, é porque estamos sempre, o tempotodo, debruçados sobre a experiência a que nos referimos com a expressão

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saúde, que esta não se deixa positivar como conceito. Saúde não se referea regularidades dadas que nos permitem definir um modo de fazer algo, mas dizrespeito à própria busca de que algo fazer. Estamos sempre em movimento, emtransformação, em devir, e porque somos finitos no tempo e no espaço e nãotemos a possibilidade de compreensão da totalidade de nossa existência, individualou coletiva, é que estamos sempre, a partir de cada nova experiência vivida, emcontato com o desconhecido e buscando reconstruir o sentido de nossasexperiências. O contínuo e inexorável contato com o novo desacomoda-nos ereacomoda-nos ininterruptamente no modo como compreendemos a nós mesmos,nosso mundo e nossas relações. É a esse processo que está relacionada aabertura relativamente grande do sentido da expressão saúde, que encontramoscoletivamente, em diferentes épocas e grupos sociais, e entre os diferentesindivíduos em um dado tempo e local.

Não é, portanto, da ordem do como fazer, segundo interesses e recursosconhecidos, que trata a saúde. É da ordem do quê fazer frente à necessidadede reacomodar-se continuamente, inerente ao estar vivo. É de carátercontrafático essa experiência. A saúde é (re)conhecida a cada vez, enquantoe porquanto se vive. São, portanto, da esfera da razão prática (GADAMER,1997), e não da razão instrumental suas pretensões e exigências de validadediscursiva. Não se trata de encontrar os meios adequados aos fins almejados,mas de decidir, a partir de possibilidades concretamente postas, quais fins almejare quais meios escolher. A experiência da saúde envolve a construçãocompartilhada de nossas idéias de bem-viver e de um modo conveniente debuscar realizá-las na nossa vida em comum. Trata-se, assim, não de construirobjetos/objetividade, mas de configurar sujeitos/intersubjetividades (AYRES, 2001).

Entender que pelos termos saúde e doença estamos nos referindo aconstruções lingüísticas oriundas de esferas diversas de racionalidade em ummesmo campo da experiência humana nos ajuda, de volta, a compreender aafirmação de que esses termos tratam de coisas diferentes e ao mesmo tempoindissociáveis. Pode-se dizer que a objetividade lograda pelos discursosbiomédicos modernos (domínio instrumental da doença) é o produto particularde uma certa racionalidade prática (busca prática da saúde) que conferiuvalidade ética, moral e política a um certo quê fazer e como fazer que se fizerampreponderantes no Ocidente a partir de meados do segundo milênio da EraCristã. A racionalidade instrumental biomédica está enraizada nos horizontesnormativos desse contexto de sociabilidade. Sua relação com a chamadadesumanização prende-se ao fato de que, ao longo de sua história, a aplicação

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dessa instrumentalidade perde de vista os processos de transformação ereconstrução prática de suas bases normativas, absolutizando as relações meios-fins sobre as quais se construiu essa instrumentalidade como o discurso sobresaúde por definição. É a manifestação, no campo da saúde, do movimentotambém vivido em outras esferas da sociabilidade moderna, que Habermas(1988) chama de colonização instrumental ou sistêmica do mundo da vida. Issoposto, a reconstrução das práticas de saúde aponta não apenas para anecessidade de construir novas instrumentalidades, com seus pólos positivos enegativos, mas também reclama a tarefa de resgatar o lugar da racionalidadeprática como origem e destino de qualquer instrumentalidade nessa área. Issosignifica que as dimensões éticas, morais e políticas inexoravelmente presentesnas práticas de saúde (SCHRAIBER, 1997) precisam “sair da sombra” e setornar, a seu modo próprio, parte ativamente presente e valorizada na produçãoe aplicação de conceitos e técnicas.

O instrumental e o prático na busca da saúde

Chega-se aqui à tese que sustenta centralmente este ensaio: areconstrução de conceitos e práticas de saúde tem como tarefa fundamentalliberar nossa capacidade de escolha dos “quê fazer?” em saúde da suacolonização pelos juízos fechados e predeterminados da conceitualidadeinstrumental da biomedicina. Não se trata, portanto, de abandonar tais juízosinstrumentais, mas de recolocá-los a serviço da racionalidade prática, invertendosuas tendências tardo-modernas.

Neste aspecto, nos aproximamos da posição de Lefevre e Lefreve(2004), quando, a propósito dos debates acerca da promoção da saúde, recusamfilosófica e politicamente a busca de alternativas que se coloquem à margemdos discursos e práticas em torno do adoecimento. Defendem a promoção dasaúde como uma “negação da negação”, processo de busca radical dosdeterminantes dos processos de adoecimento e, ao mesmo tempo, do seusignificado como obstáculos ao bem-estar:

[...] enquanto negatividade, a doença tem condições de chamar a atenção e

sinalizar, para o homem, que alguma coisa não vai bem com os indivíduos

ou com as coletividades doentes e que, portanto, é preciso fazer alguma

coisa não apenas para afastar a ameaça que a doença representa mas,

também, para entender a natureza íntima dessa ameaça...” (LEFEVRE;

LEFEVRE, 2004, p. 33-34).

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É também por entender que o instrumentalismo biomédico está emlinha direta com a racionalidade prática, e que, por isso, sinaliza os obstáculos à“Boa Saúde”, identificados contrafaticamente, que julgamos ser fundamentaluma aproximação entre saúde e doença, não ao modo imediatamenteinstrumental de construção de objetos para intervenção, mas ao modo de umahermenêutica (GADAMER, 2004), isto é, de processos interpretativo-compreensivos que elucidem seus significados do adoecer para sujeitos econtextos de intersubjetividade, na procura cotidiana do bem-viver (AYRES,2002).

O que faz a diferença aqui é a presença ativa dos sujeitos, no sentidoforte do termo. Não se trata do propalado “sujeito-alvo” das ações, isto é,indivíduos ou comunidades na estrita condição de substratos da objetivaçãocausal-controlista dos fenômenos do adoecimento; tampouco do sujeito técnicocomo estrito portador dos saberes e instrumentos capazes de identificar etransformar regularidades causais. Trata-se da presença de ambos, usuários eprofissionais, populações e serviços, como portadores de compreensões eprojetos relativos à existência compartilhada, que precisam tomar decisões acercade “Que fazer, ou não fazer?” (Por quê? Para quê?) e “Como fazer” (Com quemeios? Em que medida? A que custos?). Trata-se de uma mudança bastanteradical de posições, expressa de modo simples no esquema abaixo:

O lugar de sujeitos e objetos nos cuidados em saúde

Valorizar a perspectiva hermenêutica no modo de operar o cuidadoimplica assumir que a objetualidade, inerente a qualquer ação de saúde, nãodeve ser o produto de um saber exclusivamente instrumental, provido pelo arsenalcientífico-tecnológico de um profissional ou serviço que se aplica sobre um

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substrato passivo, o usuário ou a população. A objetualidade deve se produzirno encontro entre os sujeitos autênticos que buscam soluções convenientes,sob o ponto de vista de ambos, para a prevenção, superação e/ou recuperaçãode processos de adoecimento. O objeto nesse caso não é o indivíduo ou apopulação, mas algo que se constrói com esses sujeitos, a partir deles. Sob estaperspectiva, a instrumentalidade não é suprimida, nem tampouco suprime apresença subjetiva de qualquer um dos dois lados da relação. Portadores deexperiências e saberes diversos, cada qual com suas próprias sabedorias práticase instrumentais, profissionais/serviços e usuários/populações constituem-se comosujeitos das ações de saúde, pela compreensão dos desafios práticos que ospõem uns diante dos outros e pela necessidade de responderem com autonomiae responsabilidade mútua, segundo as possibilidades configuradas no contextodeste encontro.

O esquema quer ainda assinalar que há evidente assimetria entre ascontribuições de ordem técnica e de ordem prática que cabem a cada um dossujeitos em interação na produção dos objetos de conhecimento/intervenção.Por outro lado, sempre há saberes dessas duas ordens na contribuição de cadaum, ainda que os saberes tecnocientíficos dos usuários/populações sejam maisdifusos, menos rigorosos, e os saberes práticos dos profissionais/serviços sejammais externos, mais aproximativos às experiências concretas sobre as quaissão chamados a intervir. Destaca-se ainda que, quanto mais o cuidado seconfigura como uma experiência de encontro, de trocas dialógicas verdadeiras,quanto mais se afasta de uma aplicação mecânica e unidirecional de saberesinstrumentais, mais a intersubjetividade ali experimentada retroalimenta seusparticipantes de novos saberes tecnocientíficos e práticos.

O enfoque hermenêutico e o cuidado de indivíduos e populações

Ao conduzirmos a reflexão acima para esses planos mais concretos deaplicação ao cuidado de indivíduos e populações, podemos retraduzir a co-presença e inter-relação entre saberes instrumentais e saberes práticos emduas esferas de racionalidade que orientam os interesses que movem as açõesde saúde: êxito técnico e sucesso prático (AYRES, 2001).

Por êxito técnico queremos nos referir à dimensão propriamenteinstrumental da ação - por exemplo, a relação entre o uso de um vasodilatadore a redução do risco de agravos cardiovasculares em um paciente, ou da

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incidência desses agravos numa população. Por sucesso prático queremosremeter à dimensão de atribuição de valor às implicações simbólicas, relacionaise materiais dessas ações na vida cotidiana - por exemplo, o que significa navida de um usuário ou de uma população a identidade de hipertenso, tomarremédios, fazer controles periódicos, ser vítima de um infarto do miocárdio etc.O êxito técnico diz respeito a relações entre meios e fins para o controle dorisco ou dos agravos à saúde, delimitados e conhecidos pela biomedicina. Osucesso prático diz respeito ao sentido assumido por meios e fins relativos àsações de saúde frente aos valores e interesses atribuídos ao adoecimento e àatenção à saúde por indivíduos e populações.

Uma questão que permanece, porém, não discutida, é o problema dabase normativa que dá sustentação à racionalidade prática, isto é, à busca dosucesso prático que vai orientar as escolhas e avaliações sobre os “Que fazer?”nas ações de saúde. Se, conforme foi dito acima, assume-se radicalmente ocaráter contrafático e intersubjetivo do valor saúde, que critérios poderão nosguiar acerca de quais males tomar como objeto, em que sentido interferir sobreeles e quais estratégias e recursos privilegiar para fazê-lo? Se no registro daracionalidade instrumental estas questões ou estão fora de seu campo deproblematização ou já têm definições a priori, de caráter teleológico, no registroda racionalidade prática, há que problematizá-las ativa e continuadamente, coma flexibilidade e dinamicidade possível a cada situação de prática, sob pena deinterditar os encontros intersubjetivos reclamados no cuidado à saúde. Interdição,neste caso, devida não à colonização da racionalidade prática pela racionalidadeinstrumental, mas pela absolutização e generalização indevida de posiçõespráticas particulares (éticas, morais e políticas), como já discutimos acima. Háque ser, portanto, de caráter reconstrutivo e processual esta referência normativa,aberta ao devir e ao compartilhamento, e sempre interessada nos valores easpirações negados pelos processos de adoecimento. A uma tal referêncianormativa chamamos de projetos de felicidade (AYRES, 2001).

Pela expressão projeto de felicidade, queremos nos referir à totalidadecompreensiva na qual adquirem sentido concreto as demandas postas aosprofissionais e serviços de saúde pelos destinatários de suas ações. Por issomesmo, os projetos de felicidade constituem a referência para a construção dejuízos acerca do sucesso prático das ações de saúde, seja no seu planejamento,execução ou na sua avaliação. Não há espaço para explorarmos muitoextensivamente esta complexa proposição, mas será preciso deixar claros ao

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menos alguns aspectos conceituais mais centrais, para que sejam mais bemcompreendidas suas pretensões.

Em primeiro lugar, a idéia de projeto. Largamente tributária da tradiçãoontológico-existencialista que, com nuanças, se desdobra da primeira filosofiaheideggeriana de Ser e Tempo até a hermenêutica filosófica gadameriana(GRONDIN, 1999), a noção de projeto envolve aqui uma compreensão dasituação existencial humana que é a de um “estar lançado”, uma existência quese constrói em e a partir de diversas condições predeterminadas e determinantesda vida humana, desde suas heranças genéticas até suas heranças culturais.Mas o Ser do humano é, ao mesmo tempo, um “ser-para” e “ser-com” que, acada momento (o agora existencial, perene e finito a um só tempo), torna osentido e significado das diversas heranças recebidas (passado) sempredependentes de um apropriar-se ativa e criticamente delas (presente), conformeos interesses de seguir vivendo (futuro).

Esse aclaramento é relevante para chamar a atenção para o fato deque, quando falamos de projeto de felicidade, não se trata de um projeto nosentido da definição de tarefas, recursos e prazos para o alcance de determinadasfinalidades. O projeto, no sentido acima descrito, implica determinantesconhecidos e desconhecidos, determinações causais e não-causais, trabalháveise não-trabalháveis; implica devir, implica uma temporalidade não-linear, não-cumulativa, e uma própria temporalização plástica. Isto é, uma compreensãode passado, futuro e presente como experiências co-existentes e, em sua co-existência, ilimitadamente ressignificadas. Implica também intersubjetividade einteração, que conferem novidade ao que já era sempre nosso, pelo modo comonos reapropriamos continuamente de nossa existência comum.

O mesmo tipo de esclarecimento se faz necessário em relação ao termofelicidade. Também objeto de diferentes abordagens filosóficas, que passampor nomes como Aristóteles, Espinosa e Kant, a felicidade, no sentido que sequer adotar aqui, é uma espécie de sentido último de toda a práxis (GADAMER,2002). Não pode ser delimitada de modo tão positivo quanto a idéia de projeto.Ela é uma idéia reguladora, que se relaciona com uma série de estados oucondições materiais e espirituais, mas não se confunde com eles e não pode sergarantida a priori por nenhum deles. Por outro lado, a felicidade não esgotasuas exigências e potencialidades no alcance de qualquer desses estados oucondições: uma experiência de felicidade que se alcance em um dado momentose buscará, no mínimo, preservar. A experiência da felicidade evidencia, com

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seu devir, outras possibilidades de apropriar-se da existência e, portanto, novasexigências para sua permanência. Ela convive o tempo todo com infelicidades- interesses negados, frustrações, obstáculos, limites, dores, angústias. É para asuperação desses obstáculos que a felicidade vai apontando caminhos para aação. Dito de outra forma, a felicidade é um valor construído com base emexperiências concretas e fundamentais para a vida humana, mas sua concretudeestá mais no seu poder de nos tornar conscientes daquilo que vivenciamoscomo Bem do que na definição do que seja isso.

Outro aspecto a ser destacado é que uma certa situação envolvendosofrimento, dor, limitação, pode representar, para um dado sujeito, o caminhopelo qual se realiza sua busca da felicidade. Na condição de norte existencial aque nos referimos acima, ela expressa uma possibilidade de existência comoser próprio desse sujeito. Não se quer dizer com isso que esta seja uma situaçãoque devamos aceitar passivamente e com a qual devamos nos conformar. Aocontrário, se percebemos esse paradoxo, em nós ou em outros, isso significaque concebemos outras experiências de felicidade negadas naquela experiênciae nos vemos, portanto, compelidos a convidar o outro a alguma transformação.Note-se que, mesmo nessas condições paradoxais em que julgamos que umnorte prático é, por impotência, compulsão ou quaisquer outras razões, arepetição ou manutenção de experiências negadoras da Boa Vida, a busca defelicidade não perde nada de sua positividade existencial (e, por isso mesmo, desua fecundidade compreensivo-interpretativa).

Por fim, cabe chamar a atenção para o fato de que a busca contrafáticae existencial da felicidade remete imediatamente às interações, à dialéticaindividual-coletivo, social-pessoal, público-privado. Não se vive sozinho. Estamossempre com outros, dos quais dependemos e que dependem de nós, em variadosgraus e sentidos. Vivemos na polis. Por isso a felicidade é um idealeminentemente político. A partir de nossas interações, reconstruímos o tempotodo, histórica e socialmente, os conteúdos concretos do que vamos a cada vezentendendo por felicidade.

E como podemos, então, lidar com essa noção de projeto de felicidadeno cotidiano de nossas práticas de saúde? Como buscar essas totalidadescompreensivas para orientar ou avaliar as ações de saúde? Por tudo o quedissemos acima, teve ter ficado claro que não devemos lidar com os projetos defelicidade de indivíduos e populações como se fossem alguma espécie de“planejamento”. Antes que uma “planilha”, onde são fixados metas, recursos e

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estratégias, a idéia que mais se aproxima à do projeto de felicidade é o de umaobra de arte - uma pintura, um poema, uma escultura - pela qual se expressea vida e o aspecto de saúde em questão.

Como autor dessa obra (projeto), o sujeito interessado na ação de saúde(o usuário, a família, a comunidade, uma população) pressupõe que ela seráapreciada por alguém (o profissional, a equipe, o gestor, outros sujeitos comoele). Já se põe, então, em contato consigo mesmo e com o outro ao se expressar.Ao retratar seu projeto de felicidade, trará elementos narrativos que, emboraco-existentes (e porque co-existentes), pressupõem uma história, um sentidopara estarem ali. Cada elemento constrói o sentido do todo retratado e,simultaneamente, recebe deste todo o seu próprio sentido.

Além disso, na expressão do projeto de felicidade, como na produçãodo poema, da pintura, da escultura, misturam-se razão e afetos, luz e sombra, oexplícito e o suposto, o retratado e o não-retratado, o retratável e o não-retratável.O projeto de felicidade é, no modo como se expressa, uma totalidadecompreensiva. Como experiência vivida, o projeto de felicidade é aquilo quemove e identifica as pessoas em seu existir concreto. Como dispositivocompreensivo-interpretativo e referência normativa para as práticas de saúde,o projeto de felicidade é o pano de fundo que confere contornos a identidades,valores, vivências dos sujeitos. É o todo que dá sentido a uma parte, sem que otodo seja absoluto, nem a parte definitiva. Sabe-se que a realidade não estátoda contida ali e que aquela é apenas uma entre outras expressões possíveisda realidade, mas há uma verdade ali que, naquele momento, reclamareconhecimento, compartilhamento e ação.

Em síntese, o que o enfoque hermenêutico da saúde aqui defendidopropõe para a reconstrução humanizadora das práticas de saúde é queprofissionais, serviços, programas e políticas de saúde estejam maissensíveis e responsivos ao sucesso prático de suas ações, isto é, queorientem a busca de êxito técnico de suas intervenções na direção apontadapelos projetos de felicidade dos destinatários de suas ações.

Do conceito à ação: a fusão de horizontes e a hermenêutica no cuidadoda saúde

Como princípio prático-moral, a proposição acima parece bastanterazoável. Como proposta de reconstrução por dentro das ações de saúde, por

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meio de suas técnicas e ciências, há, contudo, muito que pensar e fazer. Oimpacto que o giro hermenêutico produz sobre conceitos e práticas arraigadasé de tensão, estranhamentos e resistências. Muito já tem sido produzido eexperimentado nessa direção, entre as diversas propostas reconstrutivas acimaindicadas, mas são muitas também as dificuldades, de modo que ainda não épossível ter-se um juízo mais consistente sobre os resultados práticos de umaaplicação sistemática e extensiva dessas propostas.

Cabe, de qualquer forma, apontar a relevância de alguns dispositivosno manejo técnico dessas propostas reconstrutivas, já suficientemente evidentena experiência cotidiana dos serviços de saúde. Um elemento que se mostracentral nesse sentido é o diálogo.

Evidentemente não nos referimos aqui ao diálogo como mero recursopara obtenção de informações requeridas pelo manejo instrumental doadoecimento, forma de produzir uma narrativa estruturada segundo esseinteresse, que é o modelo típico da anamnese clássica. O sentido forte de diálogona perspectiva hermenêutica é o de fusão de horizontes (GADAMER, 2004),isto é, de produção de compartilhamentos, de familiarização e apropriação mútuado que até então nos era desconhecido no outro, ou apenas supostamenteconhecido. Não basta, nesse caso, apenas fazer o outro falar sobre aquilo queeu, profissional de saúde, sei que é relevante saber. É preciso também ouvir oque o outro, que demanda o cuidado, mostra ser indispensável que ambossaibamos para que possamos colocar os recursos técnicos existentes a serviçodos sucessos práticos almejados.

Quando se trata do cuidado individual (AYRES, 2004), essa busca defusão de horizontes se dá com o recurso aparentemente simples, mas poucoutilizado, de um perguntar efetivamente interessado no outro e a escuta atentae desarmada frente à alteridade encontrada. Perguntas simples, como “O quevocê acha que você tem?” ou “O que você pensa que pode ser feito por você?”,por exemplo, podem ser um excelente dispositivo para desencadear a fusão dehorizontes entre profissionais e usuários, porquanto permitirá aproximar asracionalidades práticas e instrumentais de que se vai precisar dispor para realizaro encontro cuidador. Mas quantas vezes nos lembramos de fazer perguntasdeste tipo no cotidiano da atenção à saude?

Outras formas de comunicação não-verbal são também relevantes parafacilitar o encontro cuidador. Basta lembrar a força do olhar. Quando olhamospara alguém que busca nossos cuidados, não interessados apenas em enxergar

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regularidades morfo-funcionais - coloração da pele e mucosas, característicasda marcha, ritmo respiratório, etc. - muito nos pode ser dito. Quantos de nós,profissionais de saúde, já não tivemos a experiência de ouvir alguma coisa deum usuário, mas, ao olhar para ele, perceber que ele está dizendo outra coisabem diferente?! Da mesma forma o nosso modo de tocar, nossa postura corporal,nosso gestual, as atitudes de responsabilidade, acolhimento e compromisso quedemonstramos com nossas ações, o ambiente onde nos encontramos, todosesses aspectos devem ser lembrados quando se trata de potencializar o diálogono encontro cuidador.

Mas não é apenas para o encontro entre indivíduos que deve serreclamada a centralidade do diálogo no cuidado. Por outros mecanismos, aindaque em processos certamente mais morosos e menos sutis, é possível enecessário promover a fusão de horizontes entre profissionais e gestores, deum lado, e populações, do outro. Toda a discussão em torno das análises devulnerabilidade e correlativa construção de estratégias para sua redução têmdemonstrado o quanto uma efetiva resposta social, produzida por meio doenvolvimento, escuta e participação ativa dos diversos segmentos populacionaisenvolvidos nos contextos sócio-sanitários em questão, é condição decisiva paraa transformação dos cenários epidêmicos (AYRES et al., 2006). Sensibilizaçãoda opinião pública, pelos meios de comunicação, a potencialização da auto-organização de grupos populacionais específicos, a construção de espaços dereflexão e fornecimento de suporte material para ação desses grupos, a aberturade canais de participação e controle social de serviços e políticas de saúde, aspráticas de discussão de casos, educação permanente e avaliação de serviçospelas equipes multiprofissionais, são exemplos de processos dialógicos nesseplano mais macro, nos quais se espera igualmente que saberes práticos einstrumentais de sujeitos diversos se encontrem e enriqueçam mutuamente,fundindo seus horizontes.

Essa vocação irresistivelmente dialógica dos arranjos tecnológicos docuidado em saúde orientado por um enfoque hermenêutico, seja no planoindividual ou coletivo, corrobora a impossibilidade, que apontávamos acima, debasear em qualquer critério normativo de caráter prático uma definição a prioridos “Que fazer?”. Um diálogo é essencialmente uma interação aberta. O cursode um diálogo pertence tanto a seus interlocutores quanto estes lhe pertencem.Enquanto há diálogo é porque há mais o que saber, é porque há mais a se dizer.Por isso, ao concluir esta reflexão, o máximo a que podemos chegar na procurade uma conceituação de saúde de caráter prático, não subordinada à

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discursividade biomédica, sem tampouco se dissociar dela, é uma proposiçãoao modo de uma descrição procedimental. Uma construção que nos lembre docaráter contrafático, existencial e intersubjetivo da experiência da saúde e quenos aponte caminhos produtivos para manter a fecundidade dialógica de nossaparticipação profissional nessa experiência. É nesse sentido que nos aventuramosa definir saúde como a busca contínua e socialmente compartilhada demeios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processosde adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculosencontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetosde felicidade.

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NOTAS

* Médico sanitarista, Professor Titular no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade

de Medicina da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected].

1 O conceito de discurso e sua aplicação às análises aqui desenvolvidas estão amplamente

apoiados na Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas (1988).

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ABSTRACT

A Hermeneutical Concept of Health

This is a reflection on the concept of health. The central thesis of the essay

is that the assumption of health and disease as opposite polar situations of

a same nature of phenomenon, identified by means of a same rationality, is

as limiting to an appropriate understanding of these two discursive

constructions as it would be the ignorance of their close relationships in

daily life. Based on Hans-Georg Gadamer’s Philosophical Hermeneutics and

Jürgen Habermas’ Theory of Communicative Action, we seek to demonstrate

that the concepts of health and disease are referred respectively to practical

and instrumental interests in the rational elaboration of lived experiences of

the processes of heath-disease-care. We sustain that the darkening of these

distinctions is due to the “colonization of our lives experience” by the

conceptual structures of the biomedical sciences. We stress the need to

oppose to this trend a reconstructive movement, the so called humanization

of health practices, by becoming all of us, professionals, services, programs

and health policies, more sensitive, critical and responsive to the practical

successes always aimed by means and beyond any technical efficacy in

health care.

Key words: Health concept; health care; philosophy; hermeneutics.