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Os legados da Copa no Brasil têm que chegar na política também…

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O que trago sobre a Copa e os seus legados para essa provocação não se restringem ao evento em si, partidas e festas. Cabe contextualizar que esse evento iniciou muito antes de 2014 e foi no ano de 2007 quando o Brasil foi escolhido para ser a sede. Já havia entrado para a história desde “junho de 2013”, na Copa das Confederações com as imensas e numéricas manifestações e até o surgimento de lemas, como “Não vai ter Copa”, “Copa para quem”, “Copa sem povo, tô na rua de novo” etc. que podem ser vistos de diferentes maneiras.

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Os legados da Copa no Brasil têm que chegar na política também...

Sérgio Botton Barcellos*

Xingaram a Dilma na abertura da Copa. O Suarez mordeu e tomou suspensão exemplar.

Espanha e Itália saíram na primeira fase. Argélia, Costa Rica e Colômbia fizeram as suas melhores

participações em Copas. O Neymar teve a vértebra fraturada. Brasil levou 7X1 da Alemanha. Teve

excelentes e bons jogos (como Costa Rica X Holanda, por exemplo) e outros nem tanto. Mas, a

Copa do Mundo antes de começar já tinha seus “campeões”, a “artilharia” pesada e seus

“perdedores”. Não nos enganemos.

O que trago sobre a Copa e os seus legados para essa provocação não se restringem ao

evento em si, partidas e festas. Cabe contextualizar que esse evento iniciou muito antes de 2014 e

foi no ano de 2007 quando o Brasil foi escolhido para ser a sede. Já havia entrado para a história

desde “junho de 2013”, na Copa das Confederações com as imensas e numéricas manifestações e

até o surgimento de lemas, como “Não vai ter Copa”, “Copa para quem”, “Copa sem povo, tô na

rua de novo” etc. que podem ser vistos de diferentes maneiras. Esses lemas trouxeram à tona

demandas que foram e ainda estão sendo levantadas por organizações e coletivos sociais (transporte

público, serviços públicos em geral, as remoções causadas pela Copa, o não cumprimento de muitas

das promessas dos “legados” da Copa, a violência policial nos protestos e nas favelas...) mesmo

com a fortíssima repressão e o estado de exceção policial em andamento.

“As pessoas protestaram tarde em relação à Copa do Mundo”? A informação necessária para

formar opinião sobre a Copa foi trazida de modo a fazer com que muitos grupos se deparassem

tardiamente com os efeitos sobre as vidas das pessoas, como: a remoção forçada de mais 250 mil

pessoas, o uso majoritário de verba pública para a promoção do evento; e a forte repressão policial

que permitiu mais uma vez evidenciar a função da polícia na proteção dos interesses da elite

brasileira. E outro aspecto é que com o nível e a parcialidade da mídia brasileira estar bem

informado não pode ser considerado um pré-requisito para poder se expressar politicamente.

Ao longo desse processo o modo como a Copa do Mundo de 2014 foi fomentada, tanto pelo

governo, como pelos meios de comunicação, tentou criar uma falsa polêmica e oposição entre

torcedores X manifestantes. De acordo com os que operam essa divisão, ou você é torcedor, e

portanto não apoia as manifestações que fazem oposição a maneira como a Copa foi construída, ou

você é uma minoria de manifestantes (desconsiderando a forte repressão policial) que não torce e

não vê os jogos da Copa. Contudo, na medida que a Copa ia ocorrendo, ponderações como “Dá pra

gostar de futebol sem ser um alienado?”; “eu torço e gosto de futebol, mas não gosto da FIFA”

foram frequentes.

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Um dos fatos que aconteceu desde junho do ano passado foi que as pessoas se deram conta

do quão contraditória era essa “grande oportunidade” de ter a Copa do Mundo no Brasil e que a

organização do evento foi obscura, mais uma vez reproduzindo um processo de privatização dos

lucros e a socialização dos prejuízos. Lembrando, que não há garantia que os credores irão pagar os

bancos estatais que concederam a maioria dos recursos utilizados para a realização do evento.

Mais um aspecto evidenciado foi a insistência na aplicação do conceito “vira-latas” para

qualquer um que questionasse a forma como estão sendo promovidos os megaeventos no Brasil. O

uso desvairado desse termo parece revelar o quanto o governo, assim como nós enquanto sociedade,

nos conflituamos em uma espécie de vácuo interpretativo. Uma boa parte da base governista e

alguns “neodesenvolvidos” mais exaltados parecem impotentes para decifrar e construir sentidos

que possam dar conta das reivindicações explicitadas desde as manifestações de junho do ano

passado. Desse modo, atuam na promoção de maniqueísmos, de um debate raso politicamente e

esvaziado de utopia. Entretanto, eles mesmos parecem não refletir que talvez o que seja viralatismo

é o governo investir o que investiu com o dinheiro do povo e ainda fazer parceria com a FIFA para

promover algum tipo de evento. Os livros O lado sujo do futebol e o Jogo sujo estão aí para quem

quiser ler. E ficam as questões: O governo vai deixar a FIFA ir embora com os bolsos cheios, “assim

na boa”? A CBF vai continuar do jeito que está?

Porque algo tão querido e estimado pelo povo brasileiro e pelas torcidas visitantes precisaria

de tanta polícia e exército na rua? O governo se equivoca ao não atender as reivindicações históricas

das organizações e movimentos sociais. Parece não perceber o paradoxo que criou para si mesmo,

pois fez melhorias sociais e de indicadores socioeconômicos, mas não promoveu um debate político

franco e de fôlego sobre democracia participativa ao longo desses doze anos de governo. E as

manifestações durante a Copa continuaram pedindo educação, saúde, transporte público digno e de

qualidade, bem como uma segurança pública que proteja o povo e que não militarize as

comunidades, violente manifestantes, mate crianças e jovens pelas ruas e favelas.

Apesar de ocultadas ocorreram diversas manifestações em várias cidades do país durante a

Copa do Mundo. Não ocorreram mais manifestações e não tinham mais pessoas em grande parte

devido a forte repressão policial, o impedimento da concentração de manifestantes, prisão em série

de pessoas por implante de provas e flagrantes forjados, cadastro de manifestantes e buscas de

“suspeitos” nas suas casas. Um grande aparato repressivo foi criado para intimidar e coibir formas

de organização política e pelo visto sem prazo para acabar.

Outra das polêmicas que ocorreu na Copa: “Quem xingou Dilma na abertura da Copa?”

Bom, não foram os manifestantes de junho de 2013, os metroviários demitidos por Alkimin, os

trabalhadores em greve ou as comunidades removidas de suas terras ou casas pelas mega

construções e especulação imobiliária. Bom, estes teriam bons motivos para tal, mas não tinham

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vontade ou dinheiro para estar na Arena São Paulo. Foi a direita? A elite? A burguesia? Certamente

as vaias não vieram dos aliados Paulo Maluf, Sarney, Fernando Collor, Renam Calheiros e Kátia

Abreu. Também não vieram dos empreiteiros que vão encher os cofres das campanhas eleitorais.

Nem os banqueiros que continuam faturando como “nunca antes na história do Brasil”. Muito

menos dos latifundiários agradecidos pela reforma agrária e demarcações de terras empacadas. Tem

um ditado popular, que diz: “Passarinho que dorme com morcego, acorda de cabeça pra baixo”.

A presidenta deve governar para todos (as) brasileiros (as), mas ao não ir para o confronto e

continuar fazendo o número de concessões e agrados que ela faz para as elites em geral, deixa de

fazer política voltada para uma série de demandas sociais reprimidas ao longo da história, como: a

distribuição de renda, a correção do déficit da habitação, o combate efetivo ao extermínio da

juventude negra e pobre, o aumento da qualidade dos serviços públicos e a reforma agrária e

urbana. Embora na última década tenham sido dados passos importantes em algumas destas áreas e

ocorrido diversos avanços nos indicadores sociais, um conjunto de pautas veio à tona junto com as

contradições da Copa. Dilma e o governo vão ter que colocar em ação a promessa da atual

campanha eleitoral, que é ter um projeto de transformação para o Brasil, mas que dessa vez

beneficie efetivamente a maioria da população brasileira.

Depois dessa, não precisa desenhar que os governos precisam consultar a maioria da sua

população (plebiscito?) sobre fazer Copa e Olimpíada ou não no Brasil. Caso o povo decida que sim

e como vai ser, que seja o mais popular e acessível possível. E antes de fazer acordos com a FIFA,

dar 60% da verba publicitária para apenas um grupo de telecomunicações e fazer uma Copa pra

coxinha, gringo e uma fração minoritária da classe média, lembrar qual é a sua maior base política.

Essa Copa além de jogos de alto nível, muitos gols, eficiência de festa para “gringo” e classe

média dos grupos A e B, também deixou seus legados políticos, questões em aberto e desafios,

como:

- Não é algo digno ou soberano para qualquer governo fazer parcerias com a FIFA diante das

inúmeras denúncia s de delitos que a entidade está envolvida e prejudicar a vida de cerca de 250 mil

pessoas com remoções forçadas, promover a gentrificação das cidades sede, além de promover um

estado exceção democrática durante o torneio. Isso não é a derrota do complexo de vira-latas, mas

sim a sua sublimação;

- Debates binários e maniqueístas só levam à despolitização, fora ser um “tiro no pé”. E

outra, nesse discurso insano sobre viralatism o está sendo evidenciado a tentativa de justificar uma

espécie de neocolonialismo em curso;

- A necessidade de outro projeto de segurança pública e policiamento comunitário, o fim

d essa p olícia m ilitar que forja flagrantes, assassina moradores das comunidades e, nitidamente

despreparada, atua em favor de restritos grupos de poder econômico e político;

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- O planejamento urbano das cidades, as taxas imobiliárias e o nosso sistema de mobilidade

não pode ficar refém de megaeventos ou ocasiões consideradas “especiais”;

- Torcemos sabendo que a Copa não era para a maioria da população brasileira. Esporte não

é mercadoria. O Futebol profissional no Brasil tem que ser popularizado, pois a elitização do futebol

afasta a maioria da população dos estádios e do esporte;

- Com a Copa do Mundo no Brasil ficou mais uma vez evidente que eventos e ações de

governo podem ter eficiência e qualidade social. Contudo, essa qualidade e toda a dedicação

política do governo com a Copa do Mundo pode ser igual com o transporte público, com a

educação, a saúde pública e a efetivação das políticas públicas de interesse da população ;

- Após a lesão de Neymar com participação de Zúñiga, esse jogador foi chamado de “preto

safado”, sua filha de “puta” e sua esposa ameaçada de estupro por muit@s brasileiros. Sim, ficou

mais uma vez evidente que o Brasil ainda é um país com diversos grupos sociais racistas, machistas

e dispostos à prática do linchamento. Está mais do que na hora de um intenso debate em nível

nacional e combate dessas práticas;

- Quando, como e aonde vão ser publicizados os pagamentos dos empréstimos concedidos

pelo bancos estatais para a construção dos estádios?;

- A máfia dos ingressos da Copa começou a ser desvelada nessa edição no Brasil. Passou da

hora de uma investigação e auditoria profunda na CBF, bem como a investigação das suas relações

com dirigentes de clubes e os g randes meios de comunicação .

Devem ter mais questões e desafios, mas esses foram os possíveis de serem elaborados nesse

momento e nessa pequena provocação ao debate. Que venham mais e outras.

[…] consiste num tipo de mentira que tem que ser doce a ponto de extasiar, mas,por outro lado suficientemente inalcançável para manter atrelado. Uma saídaviável para a monotonia parece ser o esporte; nele, desejos autênticos fazem-sesentir já na largada; nele encontra refúgio a competição, quase extinta para aspessoas humildes.[...] O boxeador está dentro do ringue, amargando, mas o quemais apanha está do lado de fora das cordas, como espectador. Ele é o verdadeiromestre em aceitar golpes no queixo, em levantar quando soa o gongo. Assim, eleagrada sobretudo àqueles que fazem com que o boneco iludido teime em selevantar (O princípio esperança, Vol.1. BLOCH, Ernest, 2005. p.333).

*Pesquisador e torcedor do futebol sem a CBF e a FIFA. Doutor pelo CPDA-UFRRJ.