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1 AS CIÊNCIAS SOCIAIS E O DEBATE SOBRE A MORTE Andréa Longhi Simões Almeida (CEUNSP) 1 Maria Amélia Feracciú Pagotto (CEUNSP) 2 Ilnah Toledo Augusto(CEUNSP) 3 Fernando de Moura (CEUNSP) 4 Rosa Maria Marciani (CEUNSP) 5 Resumo Este estudo discute o tema da morte a partir da perspectiva das ciências sociais; sabe-se que elas são marcadas por profunda cisão epistemológica causada pelo encontro de tendências teóricas que se constituem num debate quase sempre delimitado por campos opostos e inconciliáveis de compreensão das relações sociais. O processo morte-morrer não escapa a essa característica que não pode, contudo, ser entendida como fragilidade. Pelo contrário, ao observar os processos vitais, a partir de tantos eixos quanto sejam as diferentes visões de mundo dos sujeitos sociais, as ciências sociais contribuem para a fundamentação de criticas, interrogações, reformulações e sistematizações a respeito da morte, sobretudo num contexto em que novas demandas éticas, jurídicas e estatais vem sendo elaboradas pelos diferentes sujeitos sociais em luta permanente. Palavras-chave: Morte. Morrer. Direito. Classes Sociais. 1. A problemática da morte: determinação sócio-cultural do processo morte-morrer Este estudo discute o tema da morte a partir da perspectiva das ciências sociais; sabe-se que elas são marcadas por profunda cisão epistemológica causada pelo encontro de tendências 1 Bacharel em Direito (UNESP); Especialista em Direito Contratual (CEU); Mestre em Direito das Obrigações Público e Privado (UNESP). Leciona Direito Civil e Direito Eletrônico no curso de Direito do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP). Advogada militante. 2 Maria Amélia Ferracciú Pagotto é licenciada e bacharel em Ciências Sociais (Unicamp); Mestre em Sociologia do Trabalho (Unicamp); Doutora em Ciências Sociais (Unicamp). Leciona Sociologia e Antropologia nos cursos de Direito do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceusnp)). Também integra o grupo de pesquisa ‘Educação, Comunidade e Movimento Sociais’ da Universidade Federal de São Carlos (UFScar - Campus Sorocaba). Email: [email protected] 3 Mestre pela Universidade Metodista de Piracicaba, Unimep; Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho; Especialista em Direito Educacional; professora de Constitucional e Internacional da Unimep. 4 Professor da Faculdade de Direito de Salto CEUSNP, advogado criminalista, especialista em Direito Constitucional pela ESDC, email [email protected] 5 Professora de Direito do Trabalho e Estudos Jurídicos Dirigidos (CEUNSP), Legislação aplicada em tecnologia da informação (FATEC ITU) e Mestre em Direito do Trabalho. Advogada militante.

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AS CIÊNCIAS SOCIAIS E O DEBATE SOBRE A MORTE

Andréa Longhi Simões Almeida (CEUNSP)1

Maria Amélia Feracciú Pagotto (CEUNSP)2

Ilnah Toledo Augusto(CEUNSP)3

Fernando de Moura (CEUNSP)4

Rosa Maria Marciani (CEUNSP)5

Resumo

Este estudo discute o tema da morte a partir da perspectiva das ciências sociais; sabe-se que

elas são marcadas por profunda cisão epistemológica causada pelo encontro de tendências

teóricas que se constituem num debate quase sempre delimitado por campos opostos e

inconciliáveis de compreensão das relações sociais. O processo morte-morrer não escapa a essa

característica que não pode, contudo, ser entendida como fragilidade. Pelo contrário, ao

observar os processos vitais, a partir de tantos eixos quanto sejam as diferentes visões de

mundo dos sujeitos sociais, as ciências sociais contribuem para a fundamentação de criticas,

interrogações, reformulações e sistematizações a respeito da morte, sobretudo num contexto

em que novas demandas éticas, jurídicas e estatais vem sendo elaboradas pelos diferentes

sujeitos sociais em luta permanente.

Palavras-chave: Morte. Morrer. Direito. Classes Sociais.

1. A problemática da morte: determinação sócio-cultural do processo morte-morrer

Este estudo discute o tema da morte a partir da perspectiva das ciências sociais; sabe-se

que elas são marcadas por profunda cisão epistemológica causada pelo encontro de tendências

1 Bacharel em Direito (UNESP); Especialista em Direito Contratual (CEU); Mestre em Direito das Obrigações

Público e Privado (UNESP). Leciona Direito Civil e Direito Eletrônico no curso de Direito do Centro Universitário

Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP). Advogada militante.

2 Maria Amélia Ferracciú Pagotto é licenciada e bacharel em Ciências Sociais (Unicamp); Mestre em Sociologia do

Trabalho (Unicamp); Doutora em Ciências Sociais (Unicamp). Leciona Sociologia e Antropologia nos cursos de

Direito do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceusnp)). Também integra o grupo de pesquisa

‘Educação, Comunidade e Movimento Sociais’ da Universidade Federal de São Carlos (UFScar- Campus Sorocaba).

Email: [email protected]

3 Mestre pela Universidade Metodista de Piracicaba, Unimep; Especialista em Direito do Trabalho e Processual do

Trabalho; Especialista em Direito Educacional; professora de Constitucional e Internacional da Unimep. 4 Professor da Faculdade de Direito de Salto CEUSNP, advogado criminalista, especialista em Direito

Constitucional pela ESDC, email [email protected]

5 Professora de Direito do Trabalho e Estudos Jurídicos Dirigidos (CEUNSP), Legislação aplicada em tecnologia da

informação (FATEC ITU) e Mestre em Direito do Trabalho. Advogada militante.

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teóricas que se constituem no debate quase sempre delimitado por campos opostos e

inconciliáveis de compreensão das relações sociais. O processo morte-morrer não escapa a essa

característica que não pode, contudo, ser entendida como fragilidade. Pelo contrário, ao observar

os processos vitais - a partir de tantas visões que possam emanar dos sujeitos sociais que ocupam

lugares diferenciados nas estruturais sociais-, as ciências sociais contribuem para a

fundamentação de criticas, interrogações, reformulações, alargamento das abordagens e novas

sistematizações a respeito do tema da morte.

Nos dias que correm, temas como morte e suicídio assistido, eutanásia e ortotanásia vem

mobilizando amplas parcelas da população. A reivindicação pelo direito de morrer ‘dignamente’,

de se escolher como morrer e, indo mais longe, de se decidir quando por termo a própria vida,

tem gerado conflitos no interior de concepções éticas cristalizadas bem como nos próprios

sistemas jurídicos vigentes.

Países como Holanda6 e alguns estados norte-americanos (EUA) possuem legislação que

garante ao doente o direito de decidir a forma e o momento de morrer. No estado de Oregon, a lei

é intitulada “Morte com dignidade”. Em Washington a eutanásia foi legalizada no ano de 2009.

Mas isso não é regra. O debate está aberto nesse país (EUA) em cujas cortes abundam demandas

que mobilizam religiosos, juristas e sociedade civil.

No Código Penal brasileiro essas práticas são consideradas homicídio. Desligar os

aparelhos que mantém a vida do doente ou deixar de medicalizá-lo seria uma forma de omissão

que resultaria em sua morte. Em que pese essa norma, no âmbito do direito brasileiro o debate

anda muito vivo e ativo. Em projeto de lei 6.715/2009

Já aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos

Deputados, procura-se regular a prática dessas condutas. Ele prevê o acréscimo

de um artigo no Código Penal, o 136-A, com a seguinte redação: "Não constitui

crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar

de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte

iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua

impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão

(ARJONA, 2007).

6 Segundo Luiz Flávio Gomes (2008)... “Foi a Holanda, destarte, o primeiro país democrático que

aprovou a prática da morte boa. Apesar da nossa resistência à morte, que se deve, segundo Mário Vargas

Llosa, à difusão na cultura ocidental da idéia cristã da transcendência e do castigo eterno que ameaça o

pecador, o certo é que existe a ‘boa morte’ (quando o sofrimento afeta profundamente a própria dignidade

humana)”.

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Nesse sentido, o Código de Ética Médica Brasileiro (Resolução CFM n. 1931, de 17 de

setembro 2009), pretende induzir grandes transformações políticas na área,

sem, contudo, negar sua principal contribuição para a sociedade: o reforço à

autonomia do paciente. Ou seja, aquele que recebe atenção e cuidado passa a ter

o direito de recusar ou escolher seu tratamento. Tal aperfeiçoamento corrige a

falha histórica que deu ao médico um papel paternalista e autoritário nessa

relação, fazendo-a progredir rumo à cooperação – abordagem sempre

preocupada em assegurar a beneficência das ações profissionais em acordo com

o interesse do paciente (p. 22-23).

Como se observa, o respeito e o emponderamento do paciente estão nas letras do Código

que se alinha, por sua vez, à Constituição Federal. Refletem a necessidade e a vontade de se rever

a forma de lidar com a morte e estão pondo em questão todo um sistema de crenças tradicionais,

práticas médicas, familiares ou comunitárias; estão desafiando um sistema jurídico que se

configura pela e na tensão entre concepções éticas opostas.

Este artigo tem a modesta pretensão de recolher algumas perspectivas já sistematizadas

sobre o tema e demonstrar como as contradições sociais estão refletidas nos discursos éticos ou

jurídicos sobre o direito de se decidir como morrer.

Se a morte é um acontecimento natural do ponto de vista biológico, as formas de morrer

bem como os discursos e representações sobre elas tem componente social e cultural inegável.

Segundo Menezes (2004, p. 24), o morrer não é apenas um fato biológico. É um processo

construído socialmente que em nada se distingue das outras dimensões do universo das relações

sociais (MENEZES, idem).

O processo que envolve a morte não é apenas clínico. Ele nnvolve relações sociais

complexas as quais, uma vez analisadas, põem em evidência as dificuldades, lutas, contradições e

relações de poder que definem a trajetória social dos grupos, classes ou indivíduos. Por isso, ao

ser tomado como referência de análise tem-se a oportunidade de dissecar tanto as relações de

poder que definem as relações cotidianas como também de compreender em que medida os

poderes institucionalizados, entre eles o Estado, organizam e legitimam as diferentes formas de

morrer e de se lidar com a morte.

2. A morte imita a vida: a determinação de classe dos modos de morrer

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No mundo moderno, a morte e sua sombra nos arrodeiam como notícia, espetáculo ou

ameaça real. Não é forçosa uma associação rápida entre a emergência de uma sociabilidade

construída sobre os pilares de uma violência cuja dimensão é estrutural e a maneira como esse

quadro determina as formas de morrer e de se lidar com a morte. Seja sob o impacto da violência

urbana, seja das formas de controle e domesticação dos corpos que viabilizam os processos de

mercantilização da vida e da morte, a violência marca definitivamente a maneira contemporânea

de se lidar com a morte.

As ciências sociais tem se debruçado sobre as formas de morrer e vem pondo o nu a

extrema diferenciação social que ela revela. Elas atestam, por meio de quase todas as diferentes

metodologias de pesquisa das quais fazem uso, que as formas de morrer refletem as lutas sociais

e suas formas de expressão. A morte imita a vida e não chega da mesma maneira para todos os

segmentos sociais.

Morre-se de fome, ou de opulência, no Brasil como em todo o mundo. Morre-se de

dengue, tuberculose, meningite ou desnutrição, como também se pode morrer em conseqüência

de complicações decorrentes de cirurgias estéticas de alto risco acessíveis às camadas elitizadas

da população consumidora de cuidados médicos e de uma certa concepção de beleza. Morre-se

no trânsito7 como se morre nas filas de espera por cuidados de saúde. Se já não se morria mais de

sarampo o fantasma das doenças infecciosas voltou a avassalar populações inteiras que estão

expostas a condições miseráveis de vida. Da mesma maneira, a intensa circulação da população

trabalhadora - população móvel que acompanha os fluxos do dinheiro e do trabalho - derrubaram

as fronteiras que, de certa maneira, garantiam uma espécie de quarentena na vigência de

epidemias. Junto da circulação do dinheiro e da força de trabalho, viajam, também, vírus letais

como os do ebola e da gripe suína e aviária, para ficar em exemplos muito recentes.

Assim como todas as demais questões vitais, as diferentes formas de morrer e os

mecanismos que as cercam, os discursos e representações sobre elas, são permeados por relações

de poder, disputas de saberes, controle e domesticação dos corpos, práticas e visões de mundo.

São permeados também, e sobretudo, pelas condições materiais de existência da população

trabalhadora, dos excluídos e marginalizados.

7 “Ao longo de 2010, houve exatamente 40.610 vítimas fatais em acidentes de trânsito”, conforme Paulo

Kliass. Carta Maior, 28/12/2011.

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Outra dimensão crucial que deve ser trazida à tona quando se analisa os processos morte-

morrer, diz respeito à forma como as relações capitalistas, ao se apropriarem de quase todas as

manifestações sociais, fizeram do processo morrer uma fonte efetiva de lucro. As instituições

estatais ou privadas especializadas em saúde, cuidados médicos, bem como na regulação da

medicalização, fizeram da morte uma fonte de expansão do mercado capitalista. A lógica do

mercado, em sua voracidade, não poupou a doença nem a morte como fonte de produção de

mercadorias.

O desenvolvimento histórico do capitalismo promoveu profunda transformação nas

formas de vida. As formas tradicionais de existência, com seus rituais e significados,

simbolismos, tabus e preceitos religiosos foram demolidas e paulatinamente enterradas pelos

imperativos de uma nova sociedade voltada para o produtivismo: para a produção do valor. Nas

palavras de Marx:

A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas

veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do

sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados. A burguesia

rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-

as a simples relações monetárias (MARX, s/d, p. 24).

Se existem diferentes compreensões sobre o sentido ou significado da morte, ou se esses

sentidos dependem das circunstâncias nas quais são construídos, proferidos ou como produzem

atitudes, é interessante acompanhar um mapeamento a respeito das definições dadas para a morte.

Ao esclarecer o sentido da morte, Gurgel (2007, p. 60) refere-se à “morte social”, afinal,

os mecanismos de exclusão que levam ao despertencimento em relação a algum grupo produzem

interdições sociais, uma espécie real de silenciamento, negação ou morte. Eles acometem idosos

porque deixam de ser produtivos, ativos, produtores de bens simbólicos ou valores de troca e

deixam de merecer atenção; silenciados, deixam de existir socialmente, logo, estão mortos para a

sociedade. A morte social também acontece para mulheres, crianças ou despossuídos de emprego,

prestígio ou poder. Ela se refere à todos os que perdem papéis e lugar nas estruturas produtivas.

Gurgel (2007) dá ênfase, no entanto, ao que chama de ‘morte clínica’, ou seja, o processo

que leva ao “cessar irreversível da existência” humana. A determinação do exato momento em

que se dá esse cessar irreversível não é consensual. Foi com a Declaração de Harvard (1968), que

definiu o diagnóstico e o certificado de morte encefálica, que se chegou a uma concepção

largamente aceita a respeito de quando a morte acontece.

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Assim, morre-se quando cessam definitiva e irreversivelmente as funções

encefálicas. Trata-se, em princípio, de uma definição bem sucedida do ponto de

vista científico e jurídico. O primeiro porque foi aprovada consensualmente pelo

“auditório universal” (PERELMAN, 1996) dos profissionais da saúde, chegando

a ser adotada, até os dias de hoje, como a definição oficial de vários países do

mundo, inclusive o Brasil. O segundo porque, como observa Singer (1996), essa

ideia alimenta outra: a da utilização dos órgãos dos doadores para fins de

transplantes. Ela resolve, para fins clínicos e jurídicos, a pessoa e o momento

exato para a captação de órgãos (GURGEL, 2007, p. 62).

A definição proposta pela Declaração de Harvard marca o coroamento de uma forma

muito própria de se lidar com a morte na sociedade capitalista. E aqui entramos num território do

debate que merece maiores considerações8.

A apropriação da morte pelo mercado capitalista pode ser reconhecida a partir do que

Gurgel (2007) chama de colonização médica. Conceito alinhado ao de colonização capitalista,

pode ser observado a partir da imposição de silêncio ao doente. Silêncio este que abre as portas

para a maneira moderna de exercitar a medicina. Uma medicina cuja cultura valoriza a resignação

e o silêncio do doente: nada mais desejável do que um ‘bom paciente’, resignado e entregue às

equipes médicas. O sofrimento desse paciente deixa de lhe pertencer; é expropriado pela

medicina para ser apropriado e gerido pelas equipes médicas. Nasce uma forma moderna,

racional, produtiva de lidar com o processo de morrer que flui como os fluxos de um organismo

plenamente sintonizado com o compasso de uma vida regular e mecanizado da sociedade

produtora de bens mercantis. Citando Illich, podemos ler em Gurgel:

a resignação cria a necessidade de expropriação do sofrimento, cujo papel será

desempenhado pela medicina (ILLICH, 1975, p. 127). E assim, tal como a

colonização capitalista, a colonização médica cria um sistema de dependência

fortalecido por aquilo que Thompson (2002, p. 135-144) chamou de “formas

simbólicas”. No caso da colonização médica, essa intervém sobre a capacidade

8 É importante registrar que a Declaração de Harvard enfrenta críticas mas encontra solo seguro para sua

certificação e universalização, entre outras razões porque se coaduna com uma determinada política de

doação de órgãos. Veja-se como Gurgel se posiciona a respeito: “Existem alguns questionamentos sobre a

validade da Declaração de Harvard e dos testes dela decorrentes, em especial no tocante ao teste de

apnéia. No entanto, a ciência massificada dos dias atuais não encontra grandes resistências para impor

suas leis a todas as culturas. Isso acontece, principalmente, com o diagnóstico de morte e morrer

elaborados a partir da Declaração de Harvard, em especial no que diz respeito ao fato de atender às

exigências de captação de órgãos de doador cadáver. Assim, em razão de uma determinada e dominante

concepção científica, somada a uma política de doação e captação de órgãos, influenciada pela idéia de

morte humanista – a morte em prol de ideais superiores e altruístas –, a maioria dos profissionais de saúde

de boa parte do mundo concorda em adotar a Declaração de Harvard como a mais universalmente válida”

(IDEM, 2006, p. 19).

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que o indivíduo tem, por si, de se adaptar ao mundo. Transformado em animal

domesticado e desprovido do alarme da dor, o homem perde a capacidade de

auto-afirmação e de responder por sua transformação biocultural. As políticas

públicas de saúde criam pacientes dependentes do que Illich (1975) chamou de

“empresa médica”, responsável direto por essa resignação, alienando os meios

de tratamento e impedindo que o conhecimento científico seja partilhado, o que

nos revela que a resignação é um tipo de alienação (GURGEL, 2007, p. 67).

Na citação acima, a morte é reconhecida pelo seu caráter biocultural e também político ou

histórico-concreto. O referencial teórico que permite tal abordagem é o que vê nas questões

sociais a expressão da maneira como as formações sociais devem ser analisadas em sua totalidade

e concreticidade ou, seja, a partir de determinações sociais históricas que se constroem na luta

entre sujeitos historicamente determinados. Nunca em abstrato, portanto. A morte deve ser

inserida no mundo real, lugar onde os sujeitos de carne e osso escrevem e constróem sua própria

vida. Não se pode pensar qualquer conceito ou tema de modo abstrato, genérico, desligado da

formação social que o engendra.

Trata-se de entender que “as relações jurídicas, tais como as formas de Estado, não podem

ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do

espírito humano, mas enraízam-se, isto sim, nas relações materiais da vida” (MARX, s/d, p.301).

As relações jurídicas e concepções valorativas que permeiam as relações sociais são produzidas

enquanto os homens travam relações com a natureza e com os próprios homens; é desse processo

real, histórico, concreto que nascem relações de poder, interesses organizados e instituições que

darão as feições particulares a cada formação social. As mediações daí decorrentes expressam

uma filosofia da história. Trata-se de uma história entendida como produto da luta entre os

sujeitos sociais. Luta que move a história e que precisa ser apreendida na particularidade de cada

formação social. Dessas lutas é que despontam as relações jurídicas, bem como os modos de

vida.

Ao se organizar com a finalidade de produzir valores de troca a sociedade capitalista

transformou todas as relações sociais em relações potencialmente permutáveis. A produção de

valores de troca, cabe esclarecer, implica na produção de capital que produz mais capital e que,

para isso, expropria a força de trabalho de sua autonomia, saberes, tempo e todo o tipo de

subjetivação. Nas teias do capitalismo, a humanidade se transforma em produtora de mais valia.

Produzir mais valor é um imperativo que depende da expropriação violenta da dimensão humana

que cada trabalhador individual e ou coletivo traz consigo.

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O processo clínico do qual falamos, e que serve como pano de fundo para o debate atual

sobre a morte, está inserido nessa dimensão social e histórica. Se a ‘colonização médica’ aparece

como uma das formas de expropriação (do desejo, do próprio sofrimento, da autonomia, do

direito de decidir sobre seu tratamento), não se pode, no entanto, falar em plena eficácia de sua

implantação. O debate sobre a morte é vigoroso e tem refletido a crítica e resistência ao

monopólio da medicina como produtora de lucro.

[...] aquilo que Saramago (2005) chamou de “indústria da morte”, por meio da

mercantilização da morte, assentada no que Mitford (1963) chamou de “the

american way of death”, que é a outra face do “the american way of life”. Em

poucas palavras, o “jeito americano de morrer” se transformou praticamente na

única estética da morte a ser aceita e praticada como política pública voltada

para a questão. Tal decisão cria e alimenta essa “indústria da morte”, tanto

cultural quanto política e economicamente, cuja maior característica é ter

transformado a morte num duplo objeto de consumo: material e simbólico, para

o moribundo e para os vivos (GURGEL, 2007, p. 65).

As políticas públicas que regulamentam as práticas médicas concretizam determinados

ângulos e interesses. A morte, então, aparece como processo político que condensa batalha em

torno de visões éticas e culturais sobre ela. Na atualidade, essa batalha é fortemente determinada,

de um lado pela mercantilização da medicina, e de outro, pela resistência a essa visão; no entanto,

há que se superar o teor ahistórico da maior parte dos argumentos e que desprezam as

determinações classistas que modelam vida e morte na sociedade capitalista .

3. Construção histórica da modernidade: sobre ‘a morte da morte’ ...

Analisada por outros intelectuais consagrados, como Phillipe Ariès, Norbert Elias,

Foucault, Thomas, a morte vem sendo alvo de uma reflexão renovada. Para alguns autores, pode-

se mesmo falar numa ruptura em andamento. Segundo Menezes (2004) a partir dos anos 60 os

críticos da sociedade ocidental passaram a denunciar as razões que pudessem explicar o

silenciamento a respeito da morte. Ela teria sido expulsa, subtraída ao universo do homem

moderno. Lembra que a morte teria se tornado o maior dos tabus destronando o sexo de seu lugar

de tabu entre tabus. A morte tornou-se uma obscenidade.

Ariès reconstitui a trajetória que culminou com esse processo e elabora uma periodização

das mudanças do homem medieval em relação à morte. Aos poucos esse homem vai se afastando

da morte. Em tempos remotos, morrer era uma experiência pública e sobre a qual o sujeito tinha

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certo domínio. A morte era anunciada por sinais naturais, lembra Menezes (idem); era,

principalmente, uma experiência familiar e demonstrava a consciência dos homens, dessa época,

acerca do processo natural de dissolução da vida e do desaparecimento das pessoas do convívio

social. A morte era aceita, ainda que não fosse sentida de modo tranquilo. Nos tempos de

epidemias, culpas e medos generalizados e potencializados pela religiosidade, a morte também

intimidava (ELIAS, apud MENEZES, 2004, p. 29). Os rituais que a acompanhavam davam

provas dessa difícil relação do homem tradicional com a morte; não se enfrentava a morte,

apenas; mas, ela era ‘vivenciada’ como momento integrado à experiência vital.

Segundo Elias (2001), os rituais que acompanhavam o processo de morte estruturavam a

personalidade dos indivíduos e constituíam-se em processos educativos sobre o fenômeno da

morte o qual também demandava intenso envolvimento da comunidade, pois era nesse “momento

em que se tomavam decisões importantes, como herança dos bens, ou com quem a viúva viveria

após a morte do marido” (MENEZES, p. 67).

O advento do cientificismo e do racionalismo, no entanto, passou a interferir nessa cultura

e maneira de viver. A visão mecanicista da morte tornou-se a maneira universal de morrer e vem

se cristalizando, com muito maior velocidade, desde o século XVIII quando os hospitais foram se

transformando nos territórios de controle sobre os corpos, mentes, saúde e doença.

Com o desenvolvimento da modernidade, o capitalismo organizou novos modos de vida e

a morte não escapou dessas mudanças. A sociedade tecnológica, regida pelo cronômetro,

disciplinada por códigos de conduta fabris e novos ordenamentos jurídicos, remodelou os

conceitos de saúde, doença, loucura ou bem estar. Como conseqüência, os hospitais assumiram

novo papel, conforme Foucault demonstrou exaustivamente. Ao mesmo tempo, a indústria de

medicamentos, combinada com essa nova feição do cuidado médico, instituiu uma nova

racionalidade médica. Segundo Menezes,

A introdução de mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital

possibilitou sua medicalização, O hospital como instrumento terapêutico surgiu

no final do século XVIII, concomitantemente com a mudança de paradigma que

instituiu a racionalidade anátomo-clinica como fundamento da medicina. A

partir da consolidação da instituição hospitalar - medicamente administrada e

controlada – iniciou-se um processo de medicalização do social, que foi

ampliado no século XIX, sendo extensa e profundamente desenvolvido durante

o século XX. A medicina, seus saberes e suas instituições tornam-se referências

centrais no que se refere à saúde, vida, sofrimento e morte ( 2004, p. 28).

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As inovações tecnológicas da área médica (em especial o respirador artificial), ao

perseguirem a manutenção da vida, provocaram profundas alterações no conceito de morte.

(MENEZES, idem). A medicalização e a hospitalização subtraíram o doente à sociedade. Mas

não só isso: tiram-lhe o poder de intervenção e decisão a respeito de quais cuidados e quais

formas de tratamento lhe cabem. Firmou-se uma era baseada na procura do controle e na crença

da previsibilidade dos encaminhamentos médicos e seus resultados.

Para garantir a previsibilidade foi crucial isolar e silenciar o paciente. Invisível, retirado

do convívio familiar, isolado nos leitos dos hospitais, a solidão torna-se o nome do terror

moderno da morte9. No século XXI, ainda se acredita que o papel da medicina é proteger o

paciente da morte.

Michel Foucault denunciou a prática médica mecanicista e a hospitalização como formas

de controle e esvaziamento dos sujeitos. A prática médica, a medicalização e a institucionalização

dos cuidados médicos domesticaram a morte ao mesmo tempo em que prescreveu a conduta ideal

do doente. O problema criado na modernidade foi o continuo distanciamento entre médicos e

pacientes e a ausência de comunicação sobre o estado deste último. O paciente submete-se

plenamente ao poder clínico.

Nos idos da década de 1960, Glaser e Strauss(1965) investigaram a gestão da morte em

hospitais. Denunciaram o distanciamento das equipes médicas em relação aos pacientes bem

como o ocultamento da proximidade da morte. Para eles, não se tratava de uma atitude

humanizadora mas de uma economia das emoções numa instituição cujo fluxo deve ser

garantido. Esse processo promoveu a ‘desumanização, assujeitamento ou objetificação do

enfermo a do paciente ao mesmo tempo em que aumentou sobremaneira o poder do médico’

(MENEZES, 2004, p. 32-33).

Esse modo ‘moderno’ de lidar com a morte, para Gurgel (idem) reflete as condições e

exigências da sociedade capitalista ocidental. Globalizada a morte, (como a designa o mesmo

autor) produziu-se o que Saramago (2005 apud GURGEL, p. 65) denominou como ‘indústria da

9 Elias (2001) aproxima o isolamento social do moribundo a outros processos de invisibilidade e de

exclusão social, tais como os vividos por presos e torturados nos regimes autoritários ou ditaduras, presos

em campos de concentração, ou conduzidos às câmaras de gás, moradores de rua, pedintes ou bêbadas. O

conceito de solidão inclui uma pessoa que passa a não ter mais significado para as pessoas que estão ao

seu redor, para as quais não faz diferença a sua existência (ELIAS, idem, p. 75 apud Menezes, 2004, p.

35)

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morte’ porque a transformou em fonte de negócios. A morte foi transformada em mercadoria

paulatinamente ao processo de medicalização da vida.

Também configura esse estilo de morte-morrer a universalização da estética norte-

americana que glamourizou a morte cercando-a de novas exigências de consumo e simbolismos.

Para Gurgel, a nova estetização da morte é um processo ao mesmo tempo cultural e econômico

porque "transformou a morte num duplo objeto de consumo: material e simbólico para os

moribundos e para os vivos” (2007, p. 65).

Enquanto negócio o processo morte-morrer reinventa e atualiza a relação do estado e suas

políticas públicas. Como Sousa Santos (2002 apud GURGEL, 2007, p. 65) destacou, o estado

passa a obedecer à lógica da mercantilização

4. ... até a sua ressurreição.

A partir da década de 70 do século XX, surgem novos discursos, lutas e movimentos em

defesa dos direitos dos pacientes. Propondo mudanças nas relações entre doentes e equipe

médica, novos movimentos defendem o direito à dignidade na morte assim como a

regulamentação da eutanásia.

A morte ressurge e deve isso aos pacientes da AIDS, como também às técnicas de

combate às doenças degenerativas como câncer, dores e outros sintomas (GURGEL, 2007) que

prolongaram a vida dos doentes e mantiveram sua lucidez. Passou-se a propagar a noção da ‘boa

morte” com força veementemente crítica às formas racionais de gestão da morte. Também foram

difundidas instruções de como morrer; passou-se a defender que o próprio doente exerça

autoridade para gerir a sua morte (desde que sua lucidez seja avalizada por profissionais), de

modo que sua identidade seja firmada ou reafirmada no momento da morte.

Nos anos 90 do mesmo século, também toma corpo na Inglaterra outro movimento em

defesa da morte natural, que teria

[...] surgido em decorrência do envelhecimento da geração de vanguarda dos

anos 1960, que criou o movimento hippie, buscou a expansão da consciência por

meio de uso de drogas alucinógenas, com o advento da pílula anticoncepcional,

promoveu mudanças nas relações sexuais com o chamado amor livre, e nas

relações de gênero. Foi também a geração a desenvolver movimentos pacifistas,

pela liberdade de expressão e responsável pelas revoltas estudantis dos anos de

1968....Quando os integrantes dessa geração optaram por ter filhos, escolheram e

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divulgaram a prática do parto natural e da amamentação. Mais adiante, criaram o

movimento ecológico no qual se insere o movimento pela morte natural,

condizentes com os ideais vividos anteriormente (MENEZES, 2004, p. 50).

Os princípios fundadores dessa nova concepção são: escuta e cumprimento dos desejos do

moribundo; negociação com a equipe médica sobre suas demandas e vontades; dignidade. A

palavra chave é emponderamento, ou seja, controle sobre o próprio corpo, vida e morte.

(MENEZES, idem, p. 47). Esta nova acepção divulga um novo conceito e práticas médicas

alternativas. O paradigma do cuidar ou paliar vem na contramão do paradigma da cura,

predominante na visão mecanicista da medicina.

Curar e do paliar (GURGEL, 2007) são práticas e conceitos radicalmente distintos.

Enquanto o primeiro, baseado na obstinação terapêutica, produz um profissional neurótico ‘e

incapacitado para tomar decisões de cunho político’ e suas ações diante do doente são tomadas a

partir de estados psicológicos vulneráveis, o paradigma do paliar ou cuidar, ao contrário, liga-se

às formas alternativas de morrer. Mais uma vez, citando Gurgel (idem, p. 78),

Os elementos-chave para a compreensão dessa ética são três: a) “a consciência

da conexão entre as pessoas ensejando o reconhecimento da responsabilidade de

uns pelos outros”; b) “o entendimento de moralidade como conseqüência da

consideração deste relacionamento”; e, c) “a convicção de que a comunicação é

o modo de solucionar problemas”. Desse modo, o paradigma cuidar está

assentado numa teoria da comunicação entre profissional e usuário.

Estas questões merecem um espaço maior do que este artigo, mas servem para comprovar

que as concepções éticas e jurídicas são construídas socialmente, no calor das necessidades

históricas.

5. Conclusão

A proposta deste estudo era a de levantar alguns argumentos sobre o tema da morte a

partir da perspectiva das ciências sociais. Autores que fundamentam a norte como fenômeno

cultural e político e insistiram na necessidade de estudá-la em sua historicidade, foram

resgatados. Uma vez contextualizada como processo talhado pelas determinações da sociedade

capitalista, o processo morte-morrer indicou os desafios que devem pautar os debates jurídicos e

da área da saúde.

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Do que foi exposto e analisado ficou claro que tais debates não podem desconsiderar o

forte controle social – sobre os corpos - exercido por corporações médicas e funerárias. Eles

também não podem ignorar a efetividade de uma ‘indústria da morte’ que vem promovendo a

universalização do ‘jeito americano de morrer’ na medida em que essa indústria divulga e faz

propaganda dessa estética específica, cujo auge está na glamourização e preocupação obstinada

com a assepsia (CASTRO, 1965 apud GURGEL, 2007). É como se o projeto civilizatório do

modo de vida norte-americano apenas se concluísse com a universalização do seu modo de

também significar a morte.

Deu-se ênfase ao argumento segundo o qual as práticas de administrar a doença e a morte,

bem como os simbolismos que expressam esses significados, certificam a adesão cultural em

relação a uma certa perspectiva ética a respeito não apenas da morte, mas da própria vida e sua

finalidade. Sendo assim, a partir dos autores eleitos, pode-se destacar a maneira pela qual os

cuidados médicos, a medicalização e as instituições que regulam a maneira moderna de morrer,

tornaram-se reféns de concepções propagadas por corporações lucrativas cuja finalidade precípua

é a acumulação de dinheiro.

A tragédia disso manifesta-se quando se percebe, que, historicamente, essa finalidade tem

colidido com a ética do respeito à autonomia do doente/moribundo. São perspectivas valorativas

que não tem sido conciliáveis. A maneira moderna de viver fez da morte um ritual asséptico e

isolado do convívio com os vivos. Nesse ritual, os mortos são ‘devolvidos’ como personagens de

um ‘show’ fúnebre promovido por entidades especializadas na ‘espetacularização’ da morte.

Contudo, pode-se perceber que as críticas a essa maneira de morrer não são poucas e nem

superficiais. Movimentos sociais, que cultivam visões alternativas de mundo, estão se

confrontando com interesses que exploram a morte como fonte de lucros. Nesse processo, eles

vem desenhando uma redefinição da própria medicina.

Indo além, é importante destacar, também, as correntes teóricas críticas às políticas

públicas regulatórias do processo de morte alinhadas aos interesses privados dessa indústria.

Desse esforço parece emergir, no caso brasileiro, um novo código de ética médica, bem como

pareceres da justiça que, muitas vezes, entram em choque com o próprio condigo penal. A

tendência em reconhecer o direito da pessoa em decidir como morrer não é pequena e já pode ser

reconhecida pelos operadores jurídicos.

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Mas, resta concluir que a morte será sempre uma questão espinhosa quanto mais venha a

se tornar um tema elitizado e não seja analisado de uma perspectiva mais ampla. Para citar apenas

a situação brasileira, mais de 6 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, o que torna

a vida um pesado fardo a ser levado adiante, e para as quais a morte chega precoce e

covardemente anunciada. Para a imensa maioria da população o desenvolvimento tecnológico

alcançado pela medicina ocidental moderna é absolutamente irrelevante ou inexistente porque

dele estão excluídas. Da mesma maneira, as políticas de ajuste fiscal dos governos vem impondo

pesadas cotas de sacrifícios que atingem apenas as camadas trabalhadoras - que tiveram seus

direitos garantidos constitucionalmente-, mas que são arranhados pelos cortes orçamentários e

desvios de dinheiro público.

Para concluir esta reflexão, frisa-se a crença de que apenas se pode falar com propriedade

sobre a morte quando o sentido da vida for redefinido socialmente em direção a uma igualdade

real e não apenas retórica. Quando bilhões de seres humanos ainda se debatem na luta pela

sobrevivência às condições inóspitas da miséria, da falta de saneamento básico, da informação,

educação, insalubridade, desnutrição, fome e doenças endêmicas, o debate ético-jurídico acerca

da morte precisa evitar o caminho que apenas certifique a banalização da vida da grande maioria

da população do planeta.

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