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José Ernesto Pimentel Filho OS TRIBUNAIS DO IMPéRIO E A JUSTIçA CRIMINAL NO CEARá Esta publicação não pode ser comercializada. GRATUITO UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância ® Este fascículo é parte integrante do Curso Cidadania Judiciária - Fundação Demócrito Rocha I Universidade Aberta do Nordeste I ISBN 978-85-7529-612-7 7

Fascículo 7: Os Tribunais do Império e a Justiça Criminal no Ceará (Cidadania Judiciária)

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Curso de Extensão: Cidadania Judiciária. Realizada pela Universidade Aberta do Nordeste e Fundação Demócrito Rocha. Apoio cultural do jornal O Povo e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. http://fdr.com.br/cidadaniajudiciaria

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José Ernesto Pimentel Filho

Os Tribunais dO impériO e a JusTiça Criminal nO Ceará

Esta publicação

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ObjetivOs DescreverasbasesdeformaçãohistóricadoJudiciáriobrasileiro. ExplicaraformaçãodapolíticacriminalnoBrasilenoCeará,duranteoséculo19. ExemplificarcomoerampráticasjudiciáriasdoBrasilImperial.

sumáriO1. Introdução........................................................................................................................992. Comotudocomeçou...................................................................................................993. BasesescravistasdoEstadobrasileiro...............................................................1014. OJudiciárioImperial................................................................................................. 1025. OCódigoCriminaldoImpério..............................................................................1036. AestatísticacriminalnoImpériodoBrasil....................................................... 1057. EscravidãoeaçõesdeliberdadenoCeará....................................................... 1068. TerradaLuzoudocrime?.......................................................................................1079. Perseguiçãoaohomemsertanejo:livre,violentoeimoral....................... 108Síntese do fascículo.........................................................................................................110Referências..........................................................................................................................111Sobre o autor......................................................................................................................112

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Imperador:Apalavratinhasignificadoprecisonalinguagempolíticaediplomática.Emprimeirolugar,afontedoseupoderédivina,inquestionável.Nocasobrasileiro,ficouestabelecidoqueopoderderivavadaSantíssimaTrindade:Pai,FilhoeEspíritoSanto.Nomundomedieval,aformulaçãoparaopoderdeimpériosetornoupolêmicanafaseáureadoSacroImpérioRomanoGermânico.CarlosMagno(742-814)foraoprimeiroimperadorgermânicoporbençãodeDeusesagraçãodopapanacidadedeRoma.OsimperadoresdoSacroImpériodistinguiametapasdemocráticascomoaeleiçãopelocolégiodepríncipeseaaclamaçãopopularqueconferiambençãodivinaaserreconhecidapelaIgrejaCatólicanacerimôniadesagração.Entretanto,osreisdaeramodernapostulavamoabsolutismoadmitindoasagraçãopapalcomobençãodeDeus,temendoseremexcomungados(CANTOR,1994).NapoleãoBonapartesagrouasimesmoemcerimônia.

1.intrOduçãOAo caminhar em sua cidade, você já deve ter passado em frente a um fórum onde se julgam os conflitos que envolvem in-teresses de pessoas, organizações, insti-tuições ou esferas de governo. Lá você encontra um juiz, as partes envolvidas na disputa, os advogados e os membros do Ministério Público. Todos estão subme-tidos a regras que foram estabelecidas pela lei e pela Constituição.

Ocorre que há situações que são gravíssimas, pois ofendem a socieda-de como um todo e precisam ser ime-diatamente controladas pela polícia, ou denunciadas à justiça pelos promotores de Justiça. São os casos criminais. O Mi-nistério Público não faz parte da justiça hoje em dia. Numa sociedade democrá-tica, ele atua de forma autônoma e livre.

Assim também não existe nenhuma pessoa imune de responsabilidades. O próprio Presidente da República pode ser posto para fora do governo se não agir conforme o julgamento político das pessoas e, uma vez fora do cargo, pode-rá também ser processado num tribunal.

Ao falarmos em justiça não deve-mos nos limitar ao Judiciário e seus tri-bunais. Justiça é um conceito amplo de definição complexa, mas com forte sig-

nificado humano, equivalendo a palavras como verdade e liberdade. A justiça no plano da investigação histórica abrange atos de polícia, conceitos morais sobre o que é certo e que é errado, o controle da justiça pela própria sociedade através do Ministério Público. Enfim, muitos as-pectos do curso humano podem ser cor-relacionados com os fins de justiça.

A sociedade se manifesta de dife-rentes formas, incluindo meios como a opinião pública, as organizações da sociedade civil e dos representan-tes eleitos. Neste sentido, os direitos humanos são a expressão dos senti-mentos mais nobres de justiça. Esses direitos reconhecem de forma radical a igualdade da nossa espécie e até mesmo estamos vendo cada vez mais claramente as suas relações para com o cuidado com a natureza.

Como as instituições de justiça se montaram no Brasil? Como as ofensas graves à lei, os crimes, foram inicialmente identificados, analisados e combatidos? Este trabalho trata de explicar as linhas gerais do desenvolvimento Justiça no ter-ritório brasileiro e com particular foco na história da justiça criminal no Ceará.

2.COmO tudO CoMEÇou...Nos quadros da definição de império trazida pela primeira Carta Magna, o monarca é uma pessoa sagrada e a origem do seu poder é atribuída a uma figura divina. No Brasil, Pedro I se declarou imperador em acordo in-ternacional reconhecido pela Inglater-ra e Portugal, sendo a origem do seu poder atribuída à Santíssima Trindade (BRASIL, PORTUGAL, 1825).

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Bill of Rights:Aprimeiracartadedireitosfoiaprovadaem16dedezembrode

1689.OParlamentodacoroabritânicaconvidavaWilliam(Guilherme)e

Mary(Maria)paraseremsoberanosdaInglaterra,sobcondiçõeselimitesdepodersolenementeproclamados.

Claramente,oParlamentoaderiaaumconjuntoderegrasqueincluíameleições

regulareseliberdadedeexpressãoporpartedosseusmembros,assimcomoodireitoàpetiçãosemretaliaçãopor

partedosmonarcas.Séculosmaistarde,osnorte-americanosclamarampor

umacartadedireitosaseremendadaàConstituição.Asdezprimeirasemendas

enumeravamasliberdadesnãoexplícitasnaConstituiçãoamericana,

comoaliberdadedeculto,aliberdadedeexpressãoparatodososcidadãos,aliberdadedeimprensaeodireitoà

reunião,assimcomoodireitodetereportararmas.

Direito cristão-românico: DerivaessencialmentedodireitocanônicoedoCorpusIurisCivilis.Esteúltimofoiumacompilaçãoencomendadapelo

imperadorJustiniano.OImpérioRomanoviucrescerocristianismo.Portanto,suatradiçãolegalfoiformatadaemnovasbasesdepoisdaaceitaçãodadoutrinacristã.ComooCorpuséumaobradoséculosexto,produzidanoImpérioRomanodoOriente,alisedeuuma

fusãoentreocristianismoeatradiçãodasdecisõesdosforosdaAntigaRoma.

Ajustiçanosseuspropósitosdebemcomumganhouencaixesarticulados,

unindodeumavezportodas,noOcidente,aexigênciasdaleihumana

comosimperativoséticosderealizaçãodobemnasociedade.

Em 1825, o Tratado de Amizade e Aliança entre o Império e o Reino não só impedia o Brasil de receber adesões das antigas colônias portuguesas como ainda D. João VI tomava para si o títu-lo de imperador, passando a haver dois imperadores, um do reino com colônias e o outro do Império sem poder de aliança com as colônias. Sendo Pedro filho de João, não houve impedimentos para que fosse mantido o direito exclu-sivo da coroa aos herdeiros pessoais do imperador Pedro, o que veio a ocorrer com o Pedro II.

Postulando o título de imperador exclusivamente para si e seus sucesso-res, Dom Pedro I quis diferenciar o po-der imperial da tradição reinol, menor. Fechava as portas para reivindicações de futuras dinastias portuguesas no Brasil.

O Estado brasileiro nasce de uma confluência de valores políticos cristãos medievais e a assimilação das tendên-cias de modernização no Ocidente. A Constituição católica e imperial de 1824 (BRASIL, 1824) previa a organização de uma justiça nos moldes da era moder-na, rompendo com a herança colonial. Imprimiu-se à Constituição brasileira uma influência predominantemente francesa, mas não totalmente alheia ao mundo anglo-saxão. Isto significava empreender um sistema de justiça que deveria ser criado e instalado ao longo dos anos seguintes.

Apesar de a Constituição estabe-lecer uma carta de garantias ao modo de um bill of rights, sua tradição se insere no âmbito do direito cristão-românico. Este último pressupõe que a justiça emana do imperador e não há controle independente da legalidade e da ordem jurídica (CANTOR, 1994, p. 309), dando margem a que os juízes viessem a agir com parcialidade e sem responsabilidade, exceto aquela subje-tivamente conferida ao imperador.

No caso brasileiro, a função de con-trole da legalidade era exercida inci-

pientemente por um tribunal adicional independente da primeira e da segun-da instância, o chamado então de Su-premo Tribunal de Justiça. Não se deve confundir esta estrutura sistêmica com a organização do poder judiciário con-temporâneo, pois nem era um tribunal de última instância, nem havia compe-tência de controle de constitucionali-dade no Supremo Tribunal de Justiça daquela época, como há no Supremo Tribunal Federal de hoje. Sua adequa-ção à ordem monárquica nacional era única e formatava um modelo imperial brasileiro que criava uma instância pró-pria com fins de evitar o arbítrio sobre as jurisdições regionais das Relações: “Considerava-se que o envolvimento do Supremo nos casos seria uma espé-cie de terceira instância, não aceitável em termos constitucionais” (LOPES, 2010, p. 94). O seu funcionamento pres-supunha que os mais notáveis juízes provectos estavam fazendo parte do Supremo Tribunal de Justiça, na cidade do Rio de Janeiro. Eles fariam revis-tas e poderiam redigir manifestações de experiência, mas não poderiam se sobrepor às decisões das Relações que tinham a competência final de jul-gar as revistas do Supremo (Decreto 5.618/1874, art. 10, § 1º, 4º).

A carta magna brasileira estava aparentemente inspirada nas nações modernas. Mas a essência da fonte do poder político continuava na trilha do direito românico medieval, que predo-minava entre setores cultos na Península Ibérica. Ali não se admitia a autoridade e responsabilidade de todos e de cada como se traduzia à época pela palavra “povo”. O monarca e a aristocracia es-cravista mandavam.

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mesmo o feto da escrava, como sabe-mos, era tratado como “bem acessó-rio” até 1871. O fim das penas cruéis proclamado na letra da carta magna e a imitação de uma carta de direitos conti-nuariam mera ficção.

Para outros liberais do direito, o escravo era uma pessoa equiparada a coisa por uma ficção legal. Na militância cristã, Cândido Mendes Almeida (PAES, 2010) proferiu discurso em 1871 em que conferia ao escravo a personalidade, sob argumento de que a propriedade do senhor não é relativa ao corpo do escravo, mas a seus serviços. Tratava-se de uma declaração ideológica frente a uma realidade que forma alguma refle-tia a semântica do discurso.

A forma privada do castigo e sua aplicação cotidiana não deixavam de ser polêmica. Uma parte dos historia-dores considera que havia certo espíri-to de moderação no castigo por parte dos senhores, o que significava que o objetivo do latifúndio escravista – cha-mado tecnicamente de plantation - e de outros espaços onde se usava o trabalho escravo não era a exploração exaustiva do recurso humano, mas a sua reprodução, conferindo uma lógi-ca capitalista ao escravismo moderno no Brasil (QUADROS, 2011). A historia-dora Silvia Lara foi talvez uma primeira defensora desta interpretação.

Passíveis de certos direitos, muitos escravos teriam agido na sociedade brasileira com “jogo de cintura” em busca de condições melhores e de li-berdade (QUADROS, 2011). O historia-dor Robert Slenes (1988; 2002) trilha a mesma linha de trabalho, demonstran-do formas de concessão e incentivo de formação de famílias escravas por parte dos senhores. Ainda que recuse o predecessor, esta historiografia acaba reencontrando o caminho trilhado por Gilberto Freyre que ofereceu várias evi-dências de acomodação entre a cultura portuguesa e a africana no Brasil.

3.dOmÍniO dA Lei esCrAvistA sobrE o Estado brasiLEiroO título oitavo da Constituição de 1824 trata das garantias dos direitos civis e po-líticos dos cidadãos. Apesar disso, o que o Imperador e Conselho de Estado im-puseram como direitos fundamentais na Constituição foram palavras sem efeito.

As pessoas escravas que alcançavam a alforria eram chamadas de “forras” ou libertas. Os libertos estavam teoricamen-te incluídos entre os chamados cidadãos, mas a realidade cotidiana e estranhas res-trições ora dita legais, ora processuais, por outro lado, transformavam os habitantes do Império em meros súditos que somen-te votavam se tivessem renda suficiente.

A situação legal dos escravos era pior, sendo os açoites permitidos no Có-digo Penal aprovado em 1830 como direi-to de punição privada (SANTOS, 2012a). A implicação disto é que temos um Es-tado de Direito (dizemos no inglês, um domínio da lei ou rule of law) que autoriza discriminatoriamente um tipo particular de pessoa, o senhor, a açoitar outras pes-soas legalmente, os seus escravos.

Estado de Direito significa a sub-missão à lei e sua existência baseada no senso comum de forma garantir a segurança jurídica das relações inter-pessoais tanto na esfera pública quanto na esfera privada. A expressão “Estado de Direito” está incompleta quando se quer nela alcançar a definição de de-mocracia e direitos humanos. Assim, o domínio da lei – rule of law – se confi-gura em certos momentos da história e em diferentes sociedades do Ocidente como uma realidade em confronto com a democracia. Estado de Direito não é um estágio evolutivo da democracia, não podendo ser encarado como uma situação de transição.

A lei e seus tribunais imperiais no Brasil operaram contrariamente ao re-conhecimento efetivo dos direitos hu-manos. A interpretação dos juristas brasileiros em favor da pessoa humana era pífia e comodista frente ao direito oitocentista vigente à época. Em lugar de reconhecer os direitos naturais da pessoa humana e afirmar suas implica-ções inalienáveis para os direitos civis, o direito consagrava a injustiça nos tribu-nais. Isto não foi feito à margem da lei, mas com base na lei.

O domínio da lei no Brasil imperial igualou-se ao domínio da injustiça de uns contra os outros.

Juristas como Lourenço Trigo de Loureiro e Antonio Joaquim Ribas (PAES, 2010) até podiam interpretar a condição do cativo como pessoa sujei-ta a outra, retirando-se, entretanto, a sua capacidade civil. Ou seja, o escra-vo era considerado uma pessoa, mas equiparado a um incapaz. Isto o dife-renciaria em status em relação àqueles que o pensavam como bem semovente (como um cavalo, por exemplo), na tra-dição das ordens filipinas. Para este or-denamento antigo, o escravo tinha sido considerado coisa.

Na prática, as relações comerciais tratavam o escravo como coisa. Até

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O sociólogo Jacob Gorender (QUA-DROS, 2011) compreendeu a discussão na sua dimensão ideológica, buscando caracterizar os trabalhos dessa nova corrente de historiadores como sendo uma reabilitação da escravidão no Bra-sil. Silvia Lara replicou enfaticamente as críticas para demonstrar que seus estu-dos emergiam das fontes históricas e tinham compromisso com a liberdade: “Ao estudar a escravidão no Brasil, pro-curamos encontrar e ouvir os escravos: não conceitos abstratos, nem arqué-tipos de heróis ou vítimas. Em nossos textos, os escravos, fugitivos e libertos, têm nomes” (QUADROS, 2011). Neste sentido, a compreensão do mecanismo de disciplinamento do escravo e a re-ação à crueldade no âmbito da justiça da época não representam necessaria-mente uma reabilitação da democracia racial aos moldes freyrianos.

O escravo na Constituição brasi-leira não era cidadão. Ele não podia pegar em armas para defender o Im-pério e não eram eleitores. Até 1871, a liberdade por meio da alforria podia ser revogada. O forro ficava juridicamente “eternamente grato” ao senhor que o libertou e a este não podia fazer ingra-tidão, sob pena de recair novamente na condição de escravo.

4.O judiCiáriO iMPEriaLAbaixo do poder executivo, sem com-petência para julgar o monarca ou os conselheiros de Estado, estabelecia-se a formação de um Supremo Tribunal de Justiça, a ser composto por ministros. Foi efetivamente instalado e funcionava na capital do Império do Brasil, o Rio de Janeiro (BRASIL, 1824).

Os ministros do Supremo Tribunal de Justiça poderiam julgar os delitos e as faltas cometidas pelos presiden-tes de província, membros do corpo diplomático, ministros dos tribunais de Relação instalados em províncias e pe-los seus próprios pares. Era também da competência do Supremo Tribunal de Justiça resolver as questões de unifor-mização do sistema, decidindo sobre eventuais conflitos de jurisdição entre os tribunais de Relação.

O Supremo exercia controle consul-tivo de legalidade e estava subordinado ao poder do imperador (BRASIL, 1824). Uma função de revisão no tocante às decisões das Relações estava prevista, entretanto, estava ausente a competên-cia de órgão colegiado de terceira ins-tância. Ele apenas decidia sobre o po-

der de revista das decisões de segunda e última instância.

Se concedesse a revisão, o Supre-mo Tribunal o faria para pronunciar o erro processual – como a inexistência do contraditório, por exemplo – ou a in-justiça notória, relativa ao direito mate-rial. Uma vez efetuada a revisão, voltava o processo para a Relação de origem: “Esta não estava obrigada a seguir o entendimento do Supremo” (LOPES, 2010, p. 93-94).

O controle de constitucionalidade e a jurisprudência foram se impondo pelas atividades do terceiro Conselho de Estado (1841-1889) do Império. Ele informava ao Poder Moderador sobre suas decisões supremas. Dividido em comissões chamadas de “seções”, tinha assembleias gerais chamadas de “ple-no”. Agia assim o Conselho: “Opinava em questões jurídicas, isto é, questões cuja resposta dependia da aplicação imediata de uma norma jurídica pre-existente (constitucional ou legal que fosse)” (LOPES, 2010, p. 116). Desta for-ma, o Poder Moderador mantinha os li-mites constitucionais das leis e chegava a conferir ao Conselho de Estado o po-der vinculante da jurisprudência, embo-ra se negasse à época que a atividade dos conselheiros fosse interpretativa.

O território imperial, dividido em unidades provinciais, deveria ser provi-do de tribunais de Relação com jurisdi-ção multiprovincial. Cabia a eles dar a palavra final nas decisões dos juízes.

A Constituição determinava que os tribunais de Relação fossem instalados conforme as necessidades, sem prever uma homogeneidade relativa à popu-lação ou à divisão administrativa do Império. Em agosto de 1873 (BRASIL, 1873), a Coroa estabelecia por decreto a existência de 11 tribunais de Relação em todo Império. Neste mesmo de-creto, eram criadas ao todo mais sete Relações além das quatro já existen-tes, ficando estabelecido o distrito do

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No relatório do presidente da Província do Ceará de 01 de julho de 1874, o Barão de Ibiapaba transmite com alegria os representantes do legislativo provincial a notícia de que o Ceará agora possui um Tribunal da Relação. A promessa consti-tucional se cumpria para o Ceará. Será o futuro Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

Ceará e do Rio Grande do Norte, fun-cionando com sete desembargadores. O conselheiro Bernardo Machado da Costa Doria foi o presidente (primeiro desembargador da Relação da Forta-leza, como era chamado o Tribunal de Justiça do Ceará nos tempos impe-riais), José Nicolau Costa, procurador da Coroa, e os demais desembarga-dores: Leovegildo de Amorim Filguei-ras, Matheus Casado de Araújo Lima Arnaud, Silverio Fernandes de Araujo Jorge, Manoel José da Silva Neiva e João Carvalho Fernandes Vieira.

As causas eram classificadas en-tre civis e criminais. O juiz que lidava com a conciliação das causas civis era o juiz de paz. Este juiz era eleito, seus atos não eram necessariamente públi-cos. Uma vez não havendo conciliação por árbitros, a decisão em âmbito civil não era recorrível. Para as causas cri-minais, havia os juízes de direito, con-siderados perpétuos. Seus atos deve-riam ser necessariamente públicos em questões criminais.

Os juízes poderiam responder por seus delitos. Embora os juízes de direi-to fossem ditos perpétuos, o imperador tinha o poder de suspendê-los desde que houvesse queixa contra eles e fos-se ouvido o Conselho de Estado. Tanto em causas criminais quanto civis, o juiz atuaria como aplicador da lei sempre acompanhado dos jurados que fariam a declaração do ato criminal. O povo jul-garia em nome do Imperador.

Após o advento da República, a nomenclatura portuguesa foi ficando demasiado arcaica, como as vetustas barbas do imperador. Entretanto, so-mente nos anos 30 se vai ver aparecer outras denominações. O Memorial do Poder Judiciário do Estado do Cea-rá expõe alguns daqueles nomes em quadros. Os desembargadores são mostrados como membros de Corte de Apelação, Tribunal de Apelação, Superior Tribunal do Estado do Ceará e, finalmente, em 1946, consolida-se o termo Tribunal de Justiça.

5.O CÓdiGO CriMinaL do iMPÉrioLogo nos primeiros dias de 1831, vinha a público, em conformidade com as forma-lidades legislativas, o Código Criminal do Império, sancionado em 16 de dezembro de 1830. Foi publicado, pois, alguns me-ses antes da abdicação de Pedro I.

As influências do Código Crimi-nal do Império se fundaram no direito português pombalino e pós-pombalino transmitido pela Universidade de Coim-bra, nos estudos de Jeremy Bentham e no projeto para o Código da Luisiania, redigido por Edward Livingston (AZE-VEDO, 1980; MOORE, 1928). O código francês de 1810 foi o modelo principal. Era um código do Brasil em modelo ocidentalizado por excelência, visando modernizar os tipos penais e as penas.

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NascidonoEstadodeNovaIorque,Edward Livingstonredigiuum

projetodecódigocriminalinspiradonoCódigoCivildeNapoleão

Bonaparteeseutextofoiinspiraçãoparaocódigocriminalbrasileiro.

D.MariaIordenouoprojetodoCódigodeDireitoCriminalportuguêsqueviriaaserestudadoemCoimbraefoiumadasfontesparaoCódigo

CriminaldoImpériodoBrasil.

Seguindo os princípios constitucio-nais, o código declarava a existência da lei enquanto lei escrita que prescrevia o que de fato vinha a ser crime ou delito. A partir dele, o capítulo V das ordena-ções filipinas foi retirado de cena. Fica claro que o novo esforço vinha com o propósito de apagar as imensas confu-sões de sentido criminal que estavam impressas nas ordenações: ausência de equilíbrio e de gradação adequada nas punições em conformidade com sua gravidade; definições obscuras, que as-similavam pecado com crime; existência formal da discriminação entre plebe e pessoas qualificadas conforme o status de nobreza; por fim, penas cruéis e in-famantes que visavam atingir e destruir a pessoa do criminoso, estendendo--se também à sua geração. A pena de morte restaria incongruente com o pró-prio Código e deixaria de ser aplicada nos anos de 1850 em diante (SANTOS, 2012a). O Código, entretanto, visava re-gular a vida de pessoas livres pobres.

Uma interpretação preconceituosa em relação à história das ideias no Brasil confundiu gravemente a compreensão sobre nossa cultura. Especialmente um autor, chamado Roberto Schwarz (1977), tratou a nossa recepção da cultura oci-dental como mera imitação ridícula. In-terpretações similares projetam o sub-desenvolvimento da América Latina em épocas posteriores para realidades de inícios e meados do século 19, quando as condições de produção cultural e as discrepâncias econômicas tinham outra configuração.

O primeiro Código Criminal brasi-leiro impõe os açoites aos escravos e termina por ser uma produção jurídica conforme com a realidade social e o estatuto da escravidão. Seu modelo de conciliação entre ilustração e liberalis-mo foi contrário à promoção da digni-dade humana.

Para compreender a política penal brasileira daquele período não basta

analisar o Código Criminal. Qual a di-ferença entre ser escravo na prisão e ser escravo sob o regime senhorial, por exemplo? Os senhores cultos da época achavam que a pena de galés não inti-midava os escravos, pois o regime es-cravista já era suficientemente duro em seu dia a dia. Assim, os ministros de Es-tado defendiam um regime de punição mais aflitivo na execução da pena-pri-são, restituindo o seu “primitivo carac-ter de trabalho forçado, transformando a existência do condenado em uma vida de fadigas e de privações” – escre-ve o ministro Joaquim Octavio Nebias em 1869. Portanto, tratava-se de fazer retroagir a racionalidade penal até o restabelecimento das penas corporais. O modelo aqui era o trabalho forçado nas colônias penais francesas, mesclado ao regime penitenciário que empreen-dia, sob a matriz das prisões centrais, uma classificação dos presos conforme a gravidade do crime.

De outro lado, as decisões imperiais não foram desfavoráveis apenas aos es-cravos e negros libertos. A política criminal como um todo teve consequências nefas-tas para a vida sertaneja, especialmente no Ceará. Tratava-se de um liberalismo particular que promovia um processo de ocidentalização em bases escravistas. É fundamental compreendermos que o for-mato ocidental era imposto pelo Império como padrão superior de cultura e institu-cionalização. Ele provinha dos países ricos, os Estados Unidos e os países da Europa ocidental, mas não foi bom para a maioria dos brasileiros. As referências culturais vin-das de baixo não foram capazes de derro-tar o modelo estranho ao país.

Configuração: Emverdade,oliberalismofoiempreendidoemdiferentesfacetasecontradições

gritantesnahistóriaocidental.FoiocasodaConstituiçãoamericana

aoterconfiguradoaideiadequeopovoéaorigemdopoder,masnão

conferindoaescravos,mulheresouíndiosoreconhecimentode

quetambémpoderiamfazerpartedopovo.Defato,nãolhesfoi

reconhecidoestedireito,emquepeseassurpreendentesinovaçõesdanovaordemlegalamericanaapartirdotextodaConvençãodaFiladélfia

(PINHEIRO,2010).

Pena de galés:consistiaemtrabalhosforçados,emgeral,emobrase

serviçospúblicos.Oscondenadospermaneciamacorrentadosesujeitos

aoolhareahumilhaçãopúblicaenquantotrabalhavam.Origordestestrabalhoseosmaustratoslevavamaumgrandenúmerodemortesentre

oscondenados.

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Curso Cidadania JudiCiária 105

6.A estAtÍstiCA CriminAL no iMPÉrio do brasiLA circulação de técnicas e inovações no campo da aplicação do direito penal, bem como as influências administrativas e legislativas entre países ocidentais era intensa. Após a era das revoluções, a Eu-ropa conheceram um forte crescimento demográfico. A massa de pessoas po-bres estava livre das obrigações feudais e dos vínculos de coerção senhorial, po-dendo circular territorialmente em busca de condições menos precárias de sobre-vivência. O controle desta população passou a ser equacionado em termos criminais, tanto na esfera do executivo quanto na esfera policial e judiciária.

O Império do Brasil acompanhava vivamente a França e a Inglaterra, mas igualmente a Itália, a Bélgica entre ou-tros, sem esquecer o que se passava nos Estados Unidos. De maneira corrente e natural, os ministros costumavam fazer longas citações em francês para conven-cer da justeza de seus argumentos e para demonstrar o que se passava nas nações mais “avançadas”. O Império mantinha suas raízes de contato com Portugal que se apresentava crescentemente interes-sado no debate criminal, seguindo os demais países europeus nos oitocentos.

A contagem da Secretaria de Ne-gócios da Justiça do Império, em fins dos anos cinquenta, restringia-se à es-fera criminal e não servia senão para afirmar a ineficiência dos meios cientí-ficos de que dispunha o Império para estabelecer o controle social almejado pela corte. Mesmo os relatores da épo-ca reconhecem que os dados por eles

sintetizados não possuíam a validade almejada pelo poder governamental. O diagnóstico repetia-se nos anos sessen-ta e setenta, sem que se pudesse ter um parâmetro mensurável da violência.

Era raro que a síntese se apresen-tasse com base em dados de todas as províncias. Havia sempre os chefes de polícia ou presidentes de Província que tinham faltado no envio de seus mapas. Inicialmente, os dados misturavam in-formações da justiça e da polícia, o que demonstra quão pouco desenvolvida era a organização da Secretaria de Jus-tiça. Somente após fins de 1871, com a Lei 2.033 de 20 de setembro, ocorreu o início da separação da justiça em rela-ção à polícia fazendo com que a esta-tística começasse a ser reestruturada. Diga-se, contudo, que esta reorgani-zação se deu lentamente, provocando diversos embaraços decorrentes das novas exigências e do acréscimo de atribuições para as autoridades judici-árias e administrativas. Assim, em 1875 por exemplo, o ministro não apresen-tou nenhuma estatística dado que o

SAIBA MAIS

Sob a capa de um aparente aprimoramento da racionalidade do sistema, o minis-tro Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque propôs, em 1875, o que chamou de “melhoramento” das penas de galés, juntamente com a manutenção dos postos militares do exército e a criação de colônias para incorporar os indivíduos à agri-cultura e à civilização. A importação dos mecanismos e dispositivos institucionais advindos do Ocidente servia aos propósitos de uma sociedade escravista.

Fonte: Relatório do Ministro e Secretário dos Negócios da Justiça em 1875, Conselheiro Diogo Cavalcanti

de Albuquerque (CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES, on-line)

apuramento dos fatos relativos ao ano de 1873 não estava completo e as in-formações dos presidentes de Província eram deficientes, necessitando revisão.

No Império brasileiro, fazia-se vi-sível a preocupação crescente com a vadiagem e a mendicância, sobretudo, quando se aproximou o último quartel do século. Esta preocupação era tomada em virtude do aprimoramento da experi-ência política do Estado na segunda me-tade do século, que transcende a ação repressiva e busca uma intervenção mais larga e distributiva do poder. Na sua di-mensão econômica, vemos surgir uma preocupação cada vez maior com a or-ganização do trabalho livre e o controle das populações pobres de origem nati-va, europeia e mestiça, que viviam dis-persas pelos interiores do Império. Uma das formas mais agudas do problema as-sumia a forma de ociosidade e resistên-cia física violenta destas populações aos controles impostos tanto pelos senhores rurais quanto pelo poder público, que agia em inteira consonância com os po-deres privados dominantes.

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7.esCrAvidãO e AçÕes de LibErdadE no CEaráA composição social da província era de senhores rurais, pobres do campo e uma “sociedade” instalada na capital. Provi-nha desta as rendas do comércio inter-nacional, especialmente do algodão. Senhores de mentalidade aristocrática conduziam os negócios públicos e pri-vados da província a partir da sua sede, Fortaleza. Ansiavam por algum brilho de polimento que viesse de navio em meio aos produtos importados da França ou da Inglaterra. No fim do século XIX e na virada para o século XX, sobretudo de-pois de 1870, apareciam letrados que dependiam das posições da burocracia imperial, sendo alguns professores de escolas como o Liceu ou a Escola Nor-mal. Uma camada de humildes funcioná-rios públicos formava um escasso estrato intermediário. (PIMENTEL FILHO, 1998)

Nesse ambiente de provincianismo, não havia espaço para o liberalismo ra-dical. A tradição de reconhecimento da autonomia do “povo” e da responsabi-lidade das autoridades públicas era im-pensável. O modelo europeu era imitado nas suas características de autoritarismo e imposição de uma sociedade superior àqueles que deviam se subordinar ao processo civilizatório. Os setores sociais de baixo, tanto na cidade de Fortaleza como os interiores, especialmente os ser-tões, era tratada como plebe ignara, que se não haviam ainda cometido um crime, estavam com um pé nele. Para punir os mestiços, os pardos e toda a gente do sertão, tinha-se criado uma política crimi-nal persecutória que atingia não apenas os bandos armados e assassinos pagos, mas todos aqueles agiam por ciúmes e ímpetos (PIMENTEL FILHO, 1998).

A partir da chamada Lei do Ventre Livre (Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871), o acesso à justiça se abriu para pedidos de libertação dos filhos de pes-soas postas numa condição de escravos. Os senhores não queriam liberar cativos que legalmente estavam livres, gerando o litígio judicial em busca do direito à li-berdade para a descendência. O Ceará conheceu vários processos desta nature-za. Parte dos casos chegava ao Tribunal da Relação do Ceará, para uma decisão em segunda instância. Tais processos judiciais podem ser lidos com todas as suas peças no Arquivo Público do Esta-do do Ceará (COSTA, 2012).

Entretanto, o Tribunal da Relação da Fortaleza era naquele momento um espaço de “boa sociedade” no sentido de que seus valores sopravam a favor do escravismo e da manutenção do status quo. Nisto, leve-se em conta que con-tradições emergem pela determinação de advogados chamados de curadores, posto que assim fossem denominados aqueles que defendiam escravos. Há mais brilho nestes advogados em le-vantar a bandeira da dignidade da pes-

soa humana para seus clientes do que em magistrados e desembargadores da época (COSTA, 2012).

Não há estudos sistemáticos sobre o tema na historiografia cearense. Um estudo ainda incompleto foi conduzido pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da UNIFOR para analisar como eram feitas as decisões na Relação da Fortaleza em relação aos pedidos de liberdade. O pesquisador Leonardo Gadelha Costa (2012, p.120-121) analisa o caso da liberta Rita em luta pelo direito de ser mãe. Aquele processo é um exemplo de como o Judiciário es-tava ainda provido de valores aristocráti-cos, posto que às vésperas da abolição não julgasse as pessoas no pressuposto da dignidade humana e da igualdade do gênero humano. Bem ao contrário, os valores senhoriais imprimiam no deman-dante de um direito a pecha vergonho-sa e humilhante da designação de ser inferior, fato comum no direito europeu pré-moderno. O caso de Rita foi objeto da apelação cível de 1884. Rita queria ver livre o seu filho a quem se impunha condição de prestação de serviços por sete anos para que fosse libertado. Além disso, a filha Maria era obrigada a acei-tar um tutor, que a mãe insistentemente recusava. Todas as suas demandas lhe foram negadas e como parte da argu-mentação se afirmava que Rita era: “[...] mulher liberta, solteira, pobre, miserável e duma vida pouco rígida [...]”. Nas pa-lavras de Leonardo Costa (2012, p. 121):

O que se pode apreender da análi-se do caso em questão é que a escravi-dão continuava a marcar a vida de Rita Maria, haja vista que a sua condição de ser negra, mulher e ex-escrava es-tava presente e era a todo o momento exposta no processo, posto que suas ‘qualificações’ não eram o bastante para que pudesse exercer o seu direito imanente de ser mãe.

Este caso revela as falas de magis-trados que operavam na bússola do

Para RefletirA Constituição de 1824 previa que seriam criados dois códigos: um civil e um criminal. Em 1830, institui-se o Código Criminal do Império e em 1832 o Código de Processo Crimi-nal. Todavia, somente em 1916 foi aprovado o primeiro Código Civil do Brasil. Por que optamos por priorizar um Código Criminal e não aplicamos o mesmo empenho e velocidade para estabelecer um Código Civil?

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Plebe ignara:NaRomaantiga,agrandemultidãodepessoasquenãopossuíamdireitospolíticosenãogozavamdostatusdecidadãoerachamadadeplebe.Apalavra“ignara”significaignorante,semconhecimentoouinculto.Aexpressão“plebeignara”costumavaserusadaparaexpressarnegativamenteasituaçãodograndecontingentedepessoaspobres,“semcultura”,“atrasadas”e“semcondições”oudireitosdeparticipardavidapolítica.Ouseja,expressaaideiadequeporsuaignorânciaeatrasonãodeveriammesmosertratadosdemaneiraigualitáriaouintervirnavidapolítica.

senso comum do escravismo, reprodu-zindo preconceitos e formas de verbais de indignidade contra a parte vulnerá-vel. A justiça estava aquém da realidade do seu tempo, absolutamente rendida ao senhorialismo mais arcaico frente ao que liberalismo em voga entre os con-temporâneos.

Em outros casos, as formalidades dos procedimentos de justiça iam mos-trando o caráter instrumental do direito senhorial do Império, que ignorava a materialidade da questão da liberda-de humana. Este debate era conduzi-do amplamente naqueles momentos, quando já os salões proclamavam a libertação no Ceará (1884). Uns adqui-riam liberdade, outros eram mantidos no cativeiro (COSTA, 2012). A militância pela liberdade teve vitórias, mas ficava patente que o Judiciário era um cami-nho formalista e, sem dúvida, ideologi-camente contaminado.

8.terrA dA LuZ ou do CriME?A paródica vitória sobre a escravidão por intermédio da libertação antecipada de 1884 parecia anunciar que o tempo do progresso chegara enfim. O fato, efusi-vamente comemorado pela maioria dos letrados da capital cearense, significava a inserção da província no panteão na-cional, como promotora da liberdade. A mísera província que não tinha produzi-do nenhum fato marcante nos anos que se seguiram à abolição, teria sua identi-dade colada, desde então, àquela cam-panha humanitária e vitoriosa.

Não teria sido esta a imagem mais adequada ao Ceará, mesmo em perío-

do contemporâneos à abolição de 1884. Correra durante anos na Província, e fora dela, uma percepção bastante divergen-te acerca da identidade cearense: uma terra inóspita, violenta e desordeira.

Quando o governador sampaio estava no combate aos liberais republi-canos do início do século XIX, escreveu que a intenção dos revolucionários “era que a revolução rebentasse nesta Capi-tania primeiro do que em nenhuma ou-tra: a sua posição geográfica, e a menor civilização dos seus habitantes favore-ciam o intento” (NOBRE, 1989, p. 133). A área onde se localiza o Ceará era àqueles tempos ainda uma zona fronteiriça. De um lado, ficava o Grão-Pará e Maranhão e, de outro, a província de Pernambuco, espaços onde a ordem portuguesa pri-meiramente se instalou e garantiu uma maior segurança em domínio territorial. (PIMENTEL FILHO, 1998.)

Passados os conflitos do liberalis-mo radical, a mácula persistia. Agora, não mais ligada apenas à agitação revo-lucionária, posto que estes houvessem já tomado para si a bandeira política da pacificação, como demonstra a gestão de José Martiniano de Alencar no início dos anos de 1830, ao empreender uma dura repressão aos bandidos do sertão e usando o argumento de combate à desordem e ao crime na perseguição ao cel. Pinto Madeira. No desfecho des-se mesmo evento, ocorre a sentença de Pinto Madeira à morte, no ano de 1834. O juiz de Direito, José Victoriano de Maciel, rompeu todas as formalidades e apressou a execução da pena capital para o líder dos insurretos da cidade de Jardim. Foi mais além: negou-lhe tanto o direito de apelar para o júri da capital, quanto o pedido obrigatório de perdão ao Imperador.

Alencar, como a maior autoridade da Província, advertiu o juiz, afirmando que ele acabara de tornar “debalde”, ou seja, inútil, todo o esforço político que tinha em vista o combate ao homicídio e ao

Para RefletirQuando o Tribunal da Relação do Ceará julgava as ações envolvendo o reconhecimento da liberdade para pessoas mantida no cativeiro contra a legislação da época, havia uma tendência dos magistrados em não discutir as questões jurídicas em tor-no do direito à liberdade em face da escravidão. Os casos acabavam sem-pre sendo revolvido pelo julgamento de questões formais, como erros na condução do processo judicial ou pela falta de provas.Por que o Tribunal preferia negar o direito à liberdade por meio de questões processuais e secundárias, sem analisar os direitos de quem lutava pela libertação?

ManuelIgnáciodeSampaioePina,maisconhecidocomogovernador Sampaio,foigovernadorGeraldaCapitaniadoCearáde1812a1820.DepoissetornouViscondedeLançada.FicouconhecidoporcomandarareformaurbanadeFortalezaplanejadaporSilvaPaulet.(PIMENTELFILHO,1998)

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barbarismo. Na advertência escrita, men-ciona a má fama da pequena província: “não foram pessoas do povo, foi Vossa Mercê, foram as autoridades do Crato quem o mataram anárquica e ilegalmen-te, comprometendo assim a própria repu-tação da Província que, por estes e outros factos sanguinolentos, vai talvez adqui-rindo a nota de estupidez e ferocidade”. (NOGUEIRA, 1973, 3v., p. 19.)

O jornal liberal O Cearense, ao co-mentar a morte de um chefe conserva-dor encontrado já em decomposição na estrada que ia até sua propriedade, ape-lava a uma memória consensual acerca da terra local: “Não se poupe o senhor doutor Chefe de policia; expurgue o Ce-ará dessas feras que tem tinto de sangue a nossa história” (O CEARENSE, 1847.)

Quando Tristão de Alencar Araripe (ARARIPE, 1867) escreveu, por volta de meados do século, a primeira história da Província, dedicou um capítulo sobre o “estado material e moral da capita-nia”. Em verdade, fazia ele um balanço do estágio de civilização no Ceará no século 18: vida material, administração, coleta de impostos, ilustração popular e violência coletiva. Referia-se a certo “sistema mental” praticado pelas po-pulações do sertão que faziam a justi-ça ser simplesmente impotente: “Ao roubo e ao furto eles ligavam ideias de infâmia; mas ao crime de homicídio por desafronta a injúrias verdadeiras ou su-

postas nenhum escrúpulo se juntava, antes havia certa ufania nesse procedi-mento”. (ARARIPE, 1867, p. 126) Conta-va, em 1708, no Aquiraz, cerca de 214 pessoas delinquentes, que estavam sol-tas sem punição; calculava pelos regis-tros oficiais mais de mil criminosos no Icó, entre 1735 e 1795. Araripe fornecia uma observação importante para uma visão sobre o sertão que será, poste-riormente, exposta pelo historiador ce-arense Capistrano de Abreu e transcrita por José Honório Rodrigues: “Ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos: a vida humana não inspirava o mesmo acatamento” (RODRIGUES, 1959, p. 15).

Um dos presidentes do Ceará lem-bra à Assembleia, em 1854, o fato de que a Província estava sendo alvo de comentários e notícias – provavelmen-te de jornais de outras províncias – que a incluíam num cenário marcado por homicídios e violências. Ele admitiu, diante da realidade que acompanhava, que a má fama da Província, embora exagerada, tinha certa razão de ser: “Não se passa mês, em que não venha pungir o coração o conhecimento de alguma morte violenta, as vezes acom-panhada de circunstancias atrozes e que só a ferocidade de bárbaros se poderia recear”. (RPP-CE, 1854.)

Os manuscritos que constam no li-vro de registro dos relatórios da Secre-

SAIBA MAIS

Crimes mais comuns no Ceará oitocentista. Cerca de vinte e quatro tipos de deli-tos foram relatados à Assembléia provincial, entre meados dos anos quarenta e o primeiro ano da década de 60 do século 19 conforme segue em ordem alfabética: Aborto, Ajuntamentos ilícitos, Ameaças, Armas defesas ou Uso de armas, Calunias e Injurias, Danos, Desobediências, Entradas em casa alheia, Estupros, Ferimentos, Espancamentos e Ofensas físicas, Furtos, Homicídios ou Morte, Ofensas à moral publica, Perjúrios, Poligamias, Raptos, Reduzir a escravidão pessoas livres, Resis-tências, Responsabilidades, Roubos, Suicídio, Tentativas de morte (leia-se: tentati-va de homicídio), Tiradas de presos ou Fuga de presos, Vadiações.

taria de Polícia da Província, de onde o presidente retirava suas informações, podem ser lidos no Arquivo Público do Estado do Ceará. O chefe de Polí-cia lançou, em 10 de junho de 1860, a seguinte anotação a ser enviada ao Mi-nistério da Justiça: “Este quadro não é lisonjeiro, poucas são as províncias, em que a cifra dos homicídios tanto avulta” (RRSP-CE, 1954, fl. 9v).

E ainda o romance de Manoel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço, escrito por volta de inícios dos anos de 1890, traz como motivo da funda-ção da cidade de Cajazeiras, no século 18, a reunião de delinquentes e vadios dispersos pelas matas e caatingas do interior. Fora esta versão inspirada na criação da vila de Quixeramobim, situ-ada em pleno sertão central do Ceará. Secundino – personagem do romance – exclama, então: “Homem! a coisa no outro tempo era mesmo um terror”. Dona Anginha completa: “- Ainda hoje há tantos que vivem debaixo do canga-ço! Dos Cariris, dos Inhamus, de Pajeú de Flores, e até por aqui mesmo” (PAI-VA, 1995, p. 41).

9.PerseGuiçãO AO HOmem sertAnejO: LivrE, vioLEnto E iMoraLOs conflitos criminais eram quase sempre abordados nos relatórios oficiais da pro-víncia cearense como uma totalidade de dados da justiça criminal justificáveis pelo o atraso da população nativa. Os relatos

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lidade refletiam circunstâncias políticas ou mesmo o brio pessoal no presidente que estivesse à frente da administração. A maioria dos mapas das pequenas ci-dades não era enviada com assiduidade e os registros feitos na Secretaria de Po-lícia eram irregulares e precários.

O livro de Registro dos Relatórios da Secretaria de Polícia do Ceará ao Minis-tério da Justiça, de 01 de janeiro de 1859, traz uma anotação de 27 de fevereiro des-te dito ano, informando que constavam ali vinte e três mapas de crimes julgados em 1857 e que um deles não estava inclu-so nas sínteses estatísticas de 1858, posto que o juiz o tivesse enviado com atraso. A cifra deste descaso era de vinte e um crimes julgados pelo Tribunal do Júri e outro quadro de infração de posturas. O relator diz ainda muito sinceramente que aquele era o relatório geral que lhe tinha sido “possível fazer”.

Esta crítica dos procedimentos de contagem criminal da parte do chefe de Polícia demonstra, contudo, a incessan-te vontade de seguir padrões científicos universais que dessem abrangência e credibilidade às informações. As obser-vações feitas por este agentes do poder estão afinadas com o debate interna-cional em curso. O próprio tema da cri-minalidade extrapolava o ambiente da burocracia judiciária e policial, estando presente em outros campos do sabe.

Para obter um avanço em direção a um patamar técnico desejável, a bu-rocracia provincial seguramente lia os relatórios do Império e documentos franceses. O chefe de polícia Antonio de Brito Souza Gayoso observava, em 1859, sobre a definição mais rigorosa e correta do crime de porte de arma na legislação da França. As autoridades policiais não queriam seguir a risca o sentido dado pelo legislador brasileiro sobre o “uso” de armas defesas que significava, para Gayoso, não somente o uso perigoso da arma, mas o simples porte sem licença de autoridade competente: “crime este

particulares dos crimes eram filtrados e apresentados com a moldura de uma visão senhorial exagerada, que distorcia significados outros que não aqueles de natureza genérica e explicativa.

Os valores e ideais pelos quais a elite empreendia sua leitura da questão criminal estavam perpassados da ideia de vazio de cultura e falta de civilização da população pobre. A falta de letra-mento e de moral cristã eram as princi-pais argumentações.

Via-se predominar em toda a Pro-víncia as formas tradicionais de delito. “Destes crimes – diz o livro de Registro dos Relatórios da Secretaria de Policia do Ceara ao Ministerio da Justiça – os mais frequentes, são os de homicidio, o de ferimentos, o de uzo de d’armas de-fezas e fuga de presos” (RRSP-CE, 1858, fl. 5). De fato, os crimes mais registrados pelo poder provincial eram os ferimen-tos e as agressões físicas, os homicídios e tentativas de homicídio. Faziam pre-sença também os furtos e roubos, as ca-lúnias e injurias, o uso de armas como o bacamarte e a faca, as resistências e de-sobediências, os estupros, os danos, as tiradas e fugas de presos, entre outros.

Pires da Motta reconheceu, em 1854, que com constância se come-tiam assassinatos na Província (RPP-CE, 1854). O presidente João Wilkens de Mattos, cerca de 18 anos depois, as-sombrava-se com a regularidade com que a população preenchia os dias san-tos: “Raro foi o dia em que não se co-meteu um delito” (RPP-CE, 1872).

Diga-se, entretanto, que os regis-tros de crimes apresentados anualmen-te pelos presidentes de Província e che-fes de Polícia do Ceará não fornecem nenhuma segurança quanto à correção dos dados, posto que estavam sujeitos a um poder público instável. Esta insta-bilidade sentia-se logo no fato de se ter, quase a cada ano, um nome diferente à frente do executivo provincial. Os ba-lanços positivos do combate à crimina-

Para RefletirOs relatórios oficiais da Justiça sobre a criminalidade durante a maior parte do século XIX indicam uma convi-vência rotineira com a violência e o crime na sociedade cearense, espe-cialmente no sertão. É possível traçar um paralelo entre a grande presença de morte, vinganças e o uso de armas com o cenário de violência vivido no Estado na atualidade?

OsertãodoCearáestudadonosEstadosUnidos.Em2012,aeditorauniversitáriaStanfordUniversityPresspublicouolivrodahistoriadoraMarthaSantossobotítuloCleasingHonorwithBlood,ouseja,LimpandoaHonracomSangue.OtrabalhoéumestudosobreosertãodoCearáentre1845e1889.Oprimeirocapítulo,“Umbrevemomentodeprosperidade”,éumestudodascondiçõesgeográficaseeconômicasdoCearánoséculo19.ParaMarthaSantos,asautoridadesestataisteriamcontribuídoempropagarumdiscursoqueatribuíaaossertanejosumaviolência“natural”.“Somenterecentemente,oestereótipodosertanejobeligerantetemsidopostoemquestão”–escreveM.SanthosnaIntrodução(SANTOS,2012b).EstaautorarenovalargamenteatradiçãodeestudosbrasilianistassobreoCeará,quejáteveexpoentescomoBillyJaynesChandler,estudiosodafamíliaFeitosanosInhamuns.

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na legislação Francesa é designado pela palavra =porter=” (RRSP-CE, 1858, fl. 8.) Tratava-se de uma definição que impli-cava em enfrentar um costume generali-zado na população.

Na medida em que se atualizavam a respeito do debate criminal interna-cional, os chefes de polícia iam aper-feiçoando a estatística local em acordo com os interesses de Estado.

Tendo por base a complexidade técnica desenvolvida em outras na-ções ocidentais, informavam como es-tavam ampliando as anotações sobre os tipos criminais:

Os ferimentos, como em quase to-das as estatísticas criminais dos países conhecidos, foram os crimes que se deram em maior escala [,] já aparecem em crescido número de armas defesas, que por assim dizer não figuravam an-teriormente nos nossos mapas, o que

prova a atividade empregada nestes últimos tempos para reprimi-los, de conformidade com as ordens expedi-das pelo Governo Provincial, por esta Secretaria. (RRSP-CE, 1858, fl.9v.)

Um crime igualmente grave para o sertanejo-proprietário habitante do Ce-ará e que aparecia raramente mensura-do nos registros oficiais era o furto (ou roubo) de gado. De difícil perseguição pelo Estado, o roubo de bois ou de ca-valos trazia grandes prejuízos aos pro-prietários e os presidentes de Província reconheciam sua impotência diante de tais práticas. Era bem certo que elas eram comuns no sertão e como a Justi-ça pública era omissa, a punição priva-da era a que mais predominava, fazen-do correr chumbos de bacamarte sobre os suspeitos. Apesar destas e de outras precariedades no controle estatístico dos delitos, percebe-se um aumento

sÍntese dO fAsCÍCuLO

Neste fascículo, foi mostrado o surgi-mento das instituições do judiciário na Constituição brasileira de 1824. É pos-sível perceber que ali foram criados tri-bunais de primeira instância, de segun-da instância e um tribunal supremo. Os tribunais de justiça da era republicana, como no caso do Ceará, têm origem nos chamados tribunais de Relação, um termo originário de Portugal. Analisa-se um dos aspectos sociais mais injustos da sociedade brasileira daquela época: a escravidão. Trata-se de um instituto fun-damental para compreensão dos muitos entraves na luta por direitos sociais, po-líticos, econômicos e culturais dos cida-dãos brasileiros, uma vez que eles eram subordinados ao domínio de senhores

tavam o direito de petição e muitas ve-zes apresentavam comportamento racis-ta contras as pessoas de origem africana. Em virtude dessas ilegalidades, os casos poderiam ir para o Tribunal da Relação da Fortaleza, onde o cenário legal não seria tão melhor quanto se esperasse. Apesar disso, houve causas ganhas com o estabelecimento do direito à liberda-de. Os pobres livres do sertão eram tidos por incultos e criminosos. Para estes, foi estabelecida uma política penal que os levava massivamente à justiça, especial-mente por crimes de sangue. O modelo penal de condenação em justiça pouco afetava a população negra no caso da província cearense, já duramente con-trolada pelo poder privado. Os pobres livres eram largamente condenados sob a fama de incivilizados e imorais.

rurais. Os senhores escravistas do regi-me monárquico usavam as ideias euro-peias e americanas para impor circuns-tâncias mais agravantes à população pobre, liberta, aos escravos, indígenas e às mulheres. Muitos dos dispositivos disciplinares criados na Europa serviam perfeitamente para controlar e manter a subordinação das pessoas subalternas. Em se tratando de combate ao crime, as iniciativas da Coroa incluíam a importa-ção de técnicas, instituições e institutos europeus para conter as populações vul-neráveis que eram submetidas aos con-troles do Estado. Isto era feito em nome da civilização ocidental que pregava o monopólio da força física e em nome da religião que pregava a “boa moral”. Na década de 1880, os negros com os seus advogados, os quais exerciam o papel de curadores, começaram a enfrentar os senhores na justiça. Os juízes desrespei-

gradual na eficácia do Estado provincial em combater os crimes tradicionais.

É certo, porém, que os números costumavam estar muito aquém da re-alidade do sertão, onde em muitas si-tuações imperava a faca e o chicote. As perseguições oficiais feitas aos cativos constituíam uma realidade obscurecida numa sociedade escravocrata, como era o Ceará de então. Compondo um índice numérico irrisório de delituosos, os homens de origem africana sofriam os castigos e constrangimentos priva-damente, através do mando dos seus senhores, sem que fosse necessário o suplemento das penas públicas impos-tas pelo Estado monárquico-escravista, que já garantia ao poder senhorial to-dos os recursos violentos diretos.

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Page 16: Fascículo 7: Os Tribunais do Império e a Justiça Criminal no Ceará (Cidadania Judiciária)

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sObre O AutOrJosé ernesto pimentel Filho é professor da Pós-Graduação em Ciências Jurídicas e do Departamento de História da Uni-versidade Federal da Paraíba (UFPB). Fez doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com estágio na Université de Paris I, Panthéon-Sorbonne. Recentemente foi acolhido, com permanência financiada por bolsa da CAPES, na New York Univer-sity, Department of History, NYC, USA, na condição de Visiting Scholar.