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A PEDAGOGIA DA MUDANÇA Revisitando a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire para sondar caminhos para a Mudança em Angola Autor: Maurílio Luciano Sabino Luiele Luanda, Fevereiro 2014

Pedagogia da Mudança: revisitando a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire para sondar caminhos para a Mudança em Angola

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Tema apresentado no I Colóquio sobre Reflexões Multidisciplinares no Contexto Angolano do Pós-guerra que teve lugar no dia 1º de Fevereiro de 2014 no ISUP, Luanda

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A PEDAGOGIA DA MUDANÇARevisitando a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire para sondar caminhos para a Mudança em Angola

Autor: Maurílio Luciano Sabino Luiele

Luanda, Fevereiro 2014

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A Pedagogia da Mudança: Revisitando a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire para sondar caminhos para a Mudança em Angola

A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.

A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.

Paulo Freire

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São vários os sinais que evidenciam a instalação em Angola de um regime de cariz

autoritário, que subverteu as relações de poder, de relações democráticas entre

representantes e representados, governantes e governados, para uma relação

autocrática de dominação de uma oligarquia que, valendo-se das vantagens do poder,

distribui entre si a riqueza nacional.

A instalação de um regime desta natureza reveste-se de intencionalidade e, no caso

vertente visa proteger interesses consolidados desta oligarquia que ao considerar para

si, como legítima, a “acumulação primitiva de capital” passou a ter uma consciência

fortemente possessiva que os leva a transformar tudo o que os cerca em objectos do

seu domínio. Ter mais e cada vez mais passou a ser a divisa, mesmo que isso significa

pobreza ou mesmo miséria para a maioria. Já dizia Gandhi: “existem em nosso planeta

recursos suficientes para atender às necessidades de todos, mas, em compensação,

eles não bastarão se o objectivo for satisfazer o desejo de posse, a avidez, a cobiça,

mesmo que seja de alguns.” Afinal, “a miséria material de uns está directamente

relacionada à miséria ética, afectiva e espiritual de outros” (VIVERET, 2013).

Nesta condição, ciclos de excitação e depressão acabam impregnando o universo

político e determinar uma relação obssessiva, quase patológica, com o poder que pode

provocar a destruição da substância do tecido democrático (VIVERET, 2013), pois, para

dar vazão à sanha materialista dos detentores de poder o Estado Democrático e de

Direito se revela como um verdadeiro obstáculo, sendo por isso, necessário subvertê-

lo. De facto, temos vindo a assistir nos últimos anos a uma enormidade de acções que

mais não visam senão desvirtuar o processo democrático em Angola e, com isso,

subverter o Estado Democrático e de Direito.

O processo constituinte que culminou com a promulgação da Constituição de 2010 é

um destes exercícios, carregados de intencionalidade, no sentido de se transformar as

relações de poder de relações democráticas em relações de domínio absoluto que a

oligarquia enriquecida pretende para si. Com efeito, ao pugnar pelo modelo que ficou

conhecido como “atípico” pretendia-se, no fundo, um reforço considerável dos

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poderes presidenciais e a desactivação do valioso sistema de “checks and balances”

entre os diferentes poderes, tão cruciais no Estado Democrático e de Direito. Desta

forma destapava-se a intensão de se consagrar uma Constituição de cunho autoritário,

onde o Legislativo e Judiciário seriam completamente rebocados e solapados pelo

Executivo.

Uma Constituição assim, longe de se constituir no espaço do consenso, passou a ser,

na verdade, o campo de conflitos extremados. Isto deriva do facto da Constituição não

ter sido a “expressão de uma limitação que a maioria impõe a si própria, contra a

voragem das paixões e dos impulsos das maiorias conjunturais”como defende

Hamilton em “O Federalista”. Muito pelo contrário, sobressai nesta Constituição o

abusivo aproveitamento da maioria conjuntural do MPLA para usurpar limites e, por

conseguinte, longe de consagrar uma “dinâmica de diálogo social” capaz de “garantir a

vitória do debate político pacífico sobre a expressão agónica das tensões e conflitos”,

segundo a perspectiva constitucional de Hamilton, a Constituição de 2010 passou a ser

ela própria geradora de conflitos sociais. Com o Tribunal Constitucional atrelado ao

Executivo, com o sistema de “checks and balances”desactivado, deixou de existir um

espaço para a decisão regulada e isenta de disputas acaloradas que emergeriam como

é o caso do contencioso eleitoral.

Está assim instalada uma crise social aberta que examinada à luz do modelo marxista

pode ser descrita como uma contradição entre dominadores e dominados, “enricados”

(para não dizer ricos) e empobrecidos, em última instância entre opressores e

oprimidos, pois, na ânsia de tudo dominar, com o fito exclusivo de manter e ampliar

suas posses, a oligarquia sufoca direitos, restringe liberdades e submete à pobreza

franjas extensas de cidadãos, em suma, oprime, já que pobreza é sofrimento, é

opressão. Reverter esta situação, o que é imperioso, antes que a crise social evolua

para explosão social descontrolada, é sobretudo superar esta contradição, ou seja,

devolver aos dominados poder para que reconquistem a liberdade e o poder efectivo

de participação nos assuntos do Estado, participação esta inviabilizada de várias

maneiras pelo regime dominador/dominante.

Analisada a situação na perspectiva da Constituição confrontamo-nos igualmente com

um grande desajuste entre os direitos consagrados e o corpo institucional edificado

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para garantir esses direitos. A questão é que, a pressão exercida pelo Sr. Presidente da

República no sentido da elaboração da tal constituição atípica acabou resultando numa

obra feita as pressas, sem a devida ponderação, portanto salpicada de grosseiros

defeitos que teriam, certamente, sido evitados se o ambiente constituinte não tivesse

sido conspurcado com este elemento estranho: a imiscuição grosseira do Presidente.

Qualquer crise social deve ser sempre vista numa perspectiva multidimensional, feita

de várias camadas, que são na verdade concêntricas, mas é talvez a geometria do

fractal que melhor ilustra a relação de cada camada com o todo e do todo com cada

parte. A melhor forma de se analisar uma crise social é, portanto, guardar dela uma

visão complexa que procure abarcar tanto quanto possível as infindáveis interações e

retroações entre os diferentes componentes.

Sem perder de vista, entretanto, esta perspectiva complexa da realidade social,

parece-nos que no caso vertente, quando se isolam a dimensão estritamente social e

jurídico-constitucional percebe-se nítidamente a profundidade do fossso social que se

abriu, e que configura a crise, e palpam-se perceptivelmente as oportunidades

embutidas como potências geradoras de mudanças significativas, capazes de

re(in)verter a situação de crise. A grande potência, sem dúvida, é a vocação ontológica

do ser humano para a liberdade que o leva sempre à resistir diante de situações de

sufoco e a encontrar formas para romper os grilhões da opressão.

Nenhum outro autor terá exposto de forma tão explícita esta vocação do ser humano

para a liberdade como o fez Paulo Freire. Na sua perspectiva, esta vocação humana

para a liberdade sobrepõe-se a própria acção de humanizar e, contrapondo esta à

acção contrária argumenta que,

Humanização e desumanização dentro da história, num contexto real,

concreto, objectivo, são possibilidades dos seres humanos como seres

inconclusos e conscientes da sua inconclusão. (E diz mais) se ambas são

posssibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação

dos homens. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na

violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça,

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de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada

(FREIRE, 2005, pág. 32).

Portanto, o que Paulo Freire sustenta é que numa situação de opressão o impulso do

oprimido para a luta é, de certa forma, natural já que a opressão desumaniza sendo,

por isso, contrária ao destino dos homens que é a humanização. Porém, Freire adverte

que,

Esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar

sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem

idealisticamente opressores, nem se tornam, de facto, opressores dos

opressores, mas restauradores da humanidade em ambos (pois entende

que) aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-

se a si e aos opressores (FREIRE, 2005, pág. 33).

Mesmo que este impulso do oprimido esteja latente, ele é muitas vezes reprimido e

não se manifesta espontaneamente na medida em que o conhecimento dos oprimidos

sobre si mesmos, que é fundamental para soltá-lo, encontra-se “prejudicado pela

“imersão” em que se encontram na realidade opressora”. Mesmo que o oprimido se

reconheça em posição contrária ao opressor isto pode não significar que tenha reunido

força interior suficiente para lutar pela superação desta contradição. Antes pelo

contrário, o envolvimento na “engrenagem da estrutura dominadora” pode levar o

oprimido a adaptar-se e acomodar-se à situação e isto leva-o mesmo a desenvolver um

certo temor pela liberdade. Assim, se tornam incapazes de assumir o risco de lutar

pela liberdade temendo também, na medida em que “lutar por ela significa uma

ameaça, não só aos que a usam para oprimir... mas, aos companheiros oprimidos que

se assustam com maiores opressões” (FREIRE, 2005, pág. 38).

O medo que os oprimidos desenvolvem pela liberdade é amplamente explorado pelos

opressores para ampliar a sua acção dominadora. Por isso, instilar o medo entre os

oprimidos é intrínseco à estratégia dominadora que tudo faz para que este medo se

multiplique. Uma das formas de solidificar a acomodação dos oprimidos e anestesiá-

los é a falsa generosidade de que se revestem muitas vezes os agentes opressores. Tal

generosidade deve ser rejeitada pois a sua fonte geradora é a “ordem” social injusta

que aos olhos do opressor interessa perpetuar e ela se “nutre da morte, do desalento

e da miséria” (FREIRE, 2005, pág. 33).

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São, portanto, vários os factores que levam o oprimido a resignar-se apesar da sua

vocação endógena para a liberdade e do reconhecimento consciente da contradição

que o opõe ao opressor. Levá-lo a superar esta contradição requer, no entender de

Paulo Freire, uma “pedagogia que faça da opressão e de suas causas objecto da

reflexão dos oprimidos de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua

libertação” (FREIRE, 2005, pág. 34). Este engajamento se faz necessário porque,

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma

permanente busca. Busca permanente que só existe no acto responsável de

quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por

ela precisamete porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto

ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se

faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão

inscritos os homens como seres inconclusos (FREIRE, 2005, pág. 37).

O que Freire propõe aqui é que a conquista da liberdade implica a transformação

objectiva da situação opressora “combatendo um imobilismo subjectivista que

transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que

um dia a opressão desapareceria por si mesma”. Se a realidade social objectiva é

produto da acção dos homens transformá-la também é sua tarefa histórica. Ora, a

transformação da situação opressora, para ser autêntica, tem que ser iniciativa dos

oprimidos “a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente com os que

com eles em verdade se solidarizam” pelo que “precisam ganhar a consciência crítica

da opressão, na práxis desta busca” (FREIRE, 2005, pág. 41).

Em resumo, encontramo-nos hoje diante de uma situação de crise social engendrada

por uma oligarquia que na ânsia desmedida pelo enriquecimento acirrou a contradição

ricos e pobres, esticando a corda a tal ponto que não deixa a estes últimos outra

alternativa que não seja a transformação desta realidade social objectiva. A acção

para a mudança, é acção libertadora e a liberdade jamais será servida de bandeja pelo

opressor ao oprimido, a liberdade provém de conquista por meio de luta que o

oprimido deve empreender. A condição de oprimido, todavia, engendra o medo e a

auto-demissão que podem tornar o oprimido impotente. É por isso necessário, por

meio de acção pedagógica apropriada, levar o oprimido a reconhecer dentro de si as

forças, enfim, a potência que carrega para empreender a conquista da liberdade.

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Em Paulo Freire, por meio da sua extensa obra, mais particularmente através da

Pedagogia do Oprimido, encontramos vias que esquematizam essa pedagogia

libertadora, estruturando o seu pensamento “numa pedagogia em que o esforço

totalizador da práxis humana busca, na interioridade, retotalizar-se como prática da

liberdade”. Entendo, portanto, que em Paulo Freire podemos encontrar a teoria que

por meio da reflexão acção pode estruturar os caminhos que podem conduzir à

superação da presente contradição social em Angola e assim transformar radicalmente

a situação resgatando de forma sustentada o Estado democrático e de direito.

Referências:

- FREIRE, P.; Pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005

- HAMILTON, A.; MADISON, J.; JAY, J.; O Federalista; Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

- LUIELE, M.; Quatro anos de constituição atípica em Angola – O balanço possível; In: Revista Cibernética, 3.a edição, Janeiro, 2014.

- MORIN, E.; VIVERET, P; Como viver em tempo de crise; Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013.