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1 29.000 toques (incluindo duas retrancas Tiradentes e Ossadas) TIRADENTES, O HOMEM QUE VIROU MITO Vários mitos foram justapostos na figura de Tiradentes desde a Proclamação da República, quando ele passou a ser considerado herói nacional exemplar. A maioria dos brasileiros acha que ele era um homem pobre (um simples alferes, que na atual hierarquia militar corresponde à categoria de cabo). Também se acredita que ele (mais até que os outros inconfidentes) defendia a criação de uma república e a libertação dos escravos, que ele era o líder da inconfidência, que teria divulgado no Brasil os ideais dos heróis da Independência dos EUA e da Revolução Francesa. Muitos acreditam também que, quando foi enforcado, há 219 anos, no dia 21 de abril de 1792, estava de cabelos compridos e longas barbas, fazendo referência às imagens do martírio de Cristo, como é retratado no quadro de Pedro Américo. Quanto aos outros inconfidentes, a crença geral é que partilhavam as supostas idéias de Tiradentes e, depois de presos e degredados, tiveram os bens confiscados e suas famílias passaram a ser malvistas e marginalizadas, terminando na pobreza. Tudo isso é mito, conforme se pode conferir lendo os três principais livros que existem sobre o assunto nas livrarias: A Devassa da Devassa,do historiador inglês Kenneth Maxwell, publicado em 1973, O Manto de Penélope, do mineiro João Pinto Furtado, publicado em 2002, e A Fortuna dos Inconfidentes, do paulista André Figueiredo Rodrigues, publicado em 2010. As pesquisas se complementam, pois um avança em lacunas deixadas pelos outros. A professora da Universidade de São Paulo Cecília Helena de Salles Oliveira, diretora do Museu Paulista, explica que “Kenneth Maxwell indica que os interesses e objetivos do movimento estavam muito mais articulados a grupos específicos da sociedade mineira do que a uma proposta de separação de Portugal e supressão do regime colonial. A interpretação de Maxwell desfaz a memória de que os inconfidentes seriam heróis que

Tiradentes e inconfidentes

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Faz a resenha dos principais livros publicados no Brasil sobre Tiradentes e a Inconfidência Mineira; mostra que Tiradentes foi mitificado, pois era rico e tinha escravos e era dono de várias lavras de ouro; trata dos bastidores da Inconfidência Mineira e mostra como as mulheres dos inconfidentes tiveram papel preponderante na guarda de seus bens, que acabaram não confiscados

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29.000 toques (incluindo duas retrancas Tiradentes e Ossadas)

TIRADENTES, O HOMEM QUE VIROU MITO

Vários mitos foram justapostos na figura de Tiradentes desde a Proclamação da República, quando ele passou a ser considerado herói nacional exemplar. A maioria dos brasileiros acha que ele era um homem pobre (um simples alferes, que na atual hierarquia militar corresponde à categoria de cabo). Também se acredita que ele (mais até que os outros inconfidentes) defendia a criação de uma república e a libertação dos escravos, que ele era o líder da inconfidência, que teria divulgado no Brasil os ideais dos heróis da Independência dos EUA e da Revolução Francesa. Muitos acreditam também que, quando foi enforcado, há 219 anos, no dia 21 de abril de 1792, estava de cabelos compridos e longas barbas, fazendo referência às imagens do martírio de Cristo, como é retratado no quadro de Pedro Américo.

Quanto aos outros inconfidentes, a crença geral é que partilhavam as supostas idéias de Tiradentes e, depois de presos e degredados, tiveram os bens confiscados e suas famílias passaram a ser malvistas e marginalizadas, terminando na pobreza.

Tudo isso é mito, conforme se pode conferir lendo os três principais livros que existem sobre o assunto nas livrarias: A Devassa da Devassa,do historiador inglês Kenneth Maxwell, publicado em 1973, O Manto de Penélope, do mineiro João Pinto Furtado, publicado em 2002, e A Fortuna dos Inconfidentes, do paulista André Figueiredo Rodrigues, publicado em 2010. As pesquisas se complementam, pois um avança em lacunas deixadas pelos outros.

A professora da Universidade de São Paulo Cecília Helena de Salles Oliveira, diretora do Museu Paulista, explica que

“Kenneth Maxwell indica que os interesses e objetivos do movimento estavam muito mais articulados a grupos específicos da sociedade mineira do que a uma proposta de separação de Portugal e supressão do regime colonial. A interpretação de Maxwell desfaz a memória de que os inconfidentes seriam heróis que lutassem por ideais sem outras pretensões a não ser a defesa da liberdade e da autonomia da colônia.”

A revolta dos inconfidentes foi principalmente provocada pelos excessivos impostos do governo e a iminência de uma cobrança forçada. No apagar das luzes do século 18, o esgotamento das minas pôs fim ao ciclo do ouro de Minas Gerais. Também declinou a mineração de diamantes, as duas principais fontes de renda da capitania. Isso pôs em crise as até então prósperas cidades mineiras que o ouro tinha construído, como Vila Rica (hoje Ouro Preto), Mariana, Barbacena, Sabará, Congonhas do Campo e tantas outras hoje chamadas cidades históricas. Depois de um século de muitas riquezas, em que a corte portuguesa, os donos de terras e garimpos, empreiteiros, fiscais, comerciantes, importadores, ganhavam muito dinheiro, ainda que o contrabando prosperasse, esse lucro foi sendo estancado na base da pirâmide: a produção de ouro das minas e de diamantes estava se esgotando.

Portugal resolveu endurecer: em 1788, diante das acusações e evidências da prática comum de contrabando, um novo governador das Minas Gerais foi nomeado para vir lá de Portugal, Luís Antonio Furtado de Mendonça, visconde de Barbacena, e foi decretada a derrama, a divisão da

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dívida da província com a Metrópole por todos os cidadãos da província. Como a dívida mineira acumulada desde 1762 já somava 538 arrobas de ouro em impostos atrasados, os bens de praticamente toda a população seriam confiscados.

Estava aceso o estopim da Inconfidência Mineira. Como a sociedade estreitamente vigiada pelos representantes da Coroa, os participantes da sublevação resolveram fazer várias reuniões em pequenos grupos, em casas diferentes. Segundo Kenneth Maxwell, as reuniões ocorriam nas casas dos ricos, como o contratante João Rodrigues de Macedo e Francisco de Paula Freire de Andrada, além de militares do alto comando, fiscais, padres, comerciantes e importadores. Nunca os inconfidentes se reuniram todos num mesmo lugar e não deixavam apontamentos escritos.

Analisando os documentos da época, Maxwell conta que uma importante reunião foi feita na casa de Freire de Andrade, estando presentes José Alvares Maciel, cunhado do dono da casa, o padre José da Silva de Oliveira Rolim, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, e Carlos Correia, vigário de São José. Decidiram que, deflagrada a derrama, eles responderiam com um levante armado, em que Tiradentes provocaria a agitação em Vila Rica e cortaria a cabeça do governador. Essas informações foram obtidas a partir de delações e confissões.

Não havia uma diretriz unânime entre os revoltosos. Alguns queriam a independência de Minas, outros, que fosse proclamada a república, mas uma boa parte almejava continuar ligada a Portugal, desde que uma mudança política de relações com a Colônia fosse estabelecida. A maioria defendia a continuidade do regime escravocrata. Praticamente ninguém pensava em termos de Brasil, mas em termos regionias. “A Inconfidência Mineira foi uma revolta de endividados”, diz Maxwell.

Mas o historiador João Pinto Furtado, em O Manto de Penélope, rebate essa perspectiva. Aprofundando as pesquisas de Maxwell ele mostra que vários inconfidentes eram muito ricos e podiam pagar suas dívidas, sendo a revolta basicamente contra o sistema de governo estabelecido por Portugal. Ele conta que movimentos de contestação como a inconfidência mineira (que não chegou a se realizar) não foram novidade na região das Minas: houve os levantamentos da Vila do Carmo, em 1713, os de Sabará, Vila Nova da Rainha e novamente Vila do Carmo, em 1715, os motins de Catas Altas, entre 1717 e 1718, os motins de Pitangui, entre 1717 e 1720, a revelião e Vila Rica, em 1720, a sedição do São Francisco, em 1736, e os levantamentos em Campanha do Rio Verde, em 1746, “entre outros, que confirmam o potencial contestador da população mineira, desde os primórdios da ocupação”. Isso sem falar nos quilombos (aldeias de negros foragidos), que chegaram a 127.

João Pinto Furtado procura separar o que é memória do que é mito e mostra que os inconfidentes eram todos ricos, inclusive Tiradentes, que tinha pelo menos cinco escravos e diversas propriedades, inclusive lavouras e lavras. Ele frisa que os inconfidentes desconheciam a Revolução Francesa, que ocorreu paralela coma época da sedição, e tiveram pouca influência de autores franceses e americanos, pois tinham uma visão política antiquada. A Revolução Francesa de 1789 teve, sim, influência sobre os juízes dos inconfidentes, que consideraram essa sedição mais grave que as anteriores.

Um aprofundamento maior das pesquisas desses dois livros foi feito pelo paulista André Figueiredo Rodrigues, em dozes anos de estudos, consultando até documentos inéditos, como arquivos guardados na Marinha. O livro resultou de uma tese feita para a Universidade de São Paulo sob orientação da historiadora Laura de Mello e Souza e é prefaciado pela historiadora

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Cecília Helena de Salles Oliveira. Rodrigues, que também é especialista em metodologia de pesquisa, também comprovou que Tiradentes era rico, mas mostra que a revolta atingiu todas as classes sociais, incluindo alfaiates (como o mulato Vitoriano Gonçalves Veloso) e agricultores (como João Dias da Mota).

A novidade da pesquisa de Figueiredo Rodrigues é que ele rastreou as posses confiscadas dos inconfidentes e constatou que quase tudo foi desviado de volta para suas famílias ou para funcionários corruptos da Corte. Dos 100 implicados na inconfidência, apenas 25 foram condenados (24 ao degredo e 1 à morte: Tiradentes). Muitos tiveram de pagar para sair da lista de implicados.

O perfil de Tiradentes

Batizado em 1746, Joaquim José de Souza Xavier, o Tiradentes, era filho de pais ricos e nasceu numa fazenda com 35 escravos. Ainda criança ficou órfão de pai e mãe. A família perdeu a fortuna e ele foi criado por um tio, que lhe ensinou o ofício de dentista, para sempre associado a seu nome. Foi dono de uma farmácia de plantas medicinais na qual exercia também a função de dentista. Ingressou nas milícias em 1775, com o posto de alferes. Segundo o comprova Figueiredo Rodrigues, acabou ficando rico com contrabando, empréstimo de dinheiro a juros e fazendas de gado. Associou-se aos inconfidentes e foi o mais indiscreto deles, pois fazia pregações até nos bordéis que costumava frequentar.

Segundo apurou Maxwell, “Silva Xavier parece ter tido especial inclinação pelos abastados contratatantes mineradores imigrantes e tentou associar-se a eles. Quando comandante da patrulha da Mantiqueira, recebera pagamentos de Silvério dos Reis e de Rodrigues de Macedo. Tiradentes era um frequentador assíduo da casa de Abreu vieira, com o qual jogava cartas. Considerava Silvério dos Reis um amigo pessoal.”

Nem Tiradentes, nem seus companheiros de sublevação contavam com um acontecimento: a derrama foi suspensa, esvaziando o movimento. Visando tomar partido do caso, alguns inconfidentes, como Joaquim Silvério dos Reis, amigo de Tiradentes, resolveram trair os companheiros e denunciaram o complô ao governador. Imediatamente instaurou-se uma devassa, que, por meio de interrogatórios, foi incriminando os suspeitos. Eles foram presos e seus bens seqüestrados.

Como aconteceu com os outros inconfidentes, os bens que Tiradentes tinha e que foram requisitados pela Coroa logo foram pleiteados pela família e por um sócio. Figueiredo Rodrigues conta que nesses processos surgiu uma informação interessante sobre Tiradentes, que está sendo tema de um próximo estudo, conforme ele antecipou para o Digesto Econômico: “Em 1786, já quarentão, Tiradentes enamorou-se de uma menina de 14 anos e a engravidou. Tempos depois, flagrou-a com outro homem na cama e se separou da menina. Para que ela pudesse garantir seu sustento, deu-lhe uma escrava com dois filhos. O caso apareceu quando do sequestro de seus bens, pois a mulher exibiu os documentos da separação e de suas razões, requereu a escrava e as crias e foi contemplada.” É preciso ressaltar que, na época, meninas de 14 anos já casavam e era comum, por exemplo, uma menina dessa idade casar com um tio que tivesse enviuvado.

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Com os outros inconfidentes ricos os bens também acabaram escamoteados da Coroa: mediante suborno e brechas nas leis os parentes dos inconfidentes degredados conseguiram passar para seus nomes ou de sócios que se diziam credores boa parte das propriedades e escravos que haviam sido confiscados. Tanto que, dos 615 quilos de ouro em que estavam avaliados os bens dos 25 inconfidentes (o maior montante na posse de uma meia dúzia), apenas 15 quilos chegaram efetivamente à Coroa portuguesa, segundo contabilizou Figueiredo Rodrigues.

Ele cita, por exemplo, a mulher de um dos inconfidentes, Hipólita Jacinta, casada com o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, companheiro do alferes Tiradentes no regimento dos Dragões de Minas. Dona Jacinta “teria provavelmente subornado o funcionário para omitir os bens do sequestrado. Para isso, ela ofereceu ao ouvidor Luís Ferreira de Araújo, “duas vacas paridas.” E mais, entregou para sequestro os bens da sogra e não do marido.O papel das mulheres nesses desvios foi destacado por Figueiredo Rodrigues. Ele conta que entre muitas, Barbara Heliodora, casada com Alvarenga Peixoto, não só continuou com os bem do marido, mas aumentou a produção das terras em oito vezes enquanto ele estava em degredo. Graças à família, o inconfidente José Aires Gomes, o maior proprietário de terras entre eles, também conseguiu salvar grande parte de suas propriedades.

Também por meio de casamentos muitas famílias de inconfidentes iriam se aliar aos círculos de maior prestígio no tempo do Império e em alguns casos até a atualidade. Um exemplo citado por André Figueiredo é o do inconfidente José Aires Gomes. Uma de suas filhas casou com um Cesário Mota, estreitando laços da família com os Andrada, família que continua em destaque até hoje. “O duque de Caxias”, lembra André Figueiredo, “é sobrinho de um inconfidente.”

Aos olhares de Kenneth Maxwell Tiradentes teria uma visão mais ampla que muitos de seus colegas de insurreição, Ele teria chegado a falar em termos de Brasil e não só de Minas Gerais, como destacou o historiador ao ler detalhes das denúncias nos Autos da Devassa mineira: “Silva elogiava a beleza de Minas e apontava seus recursos naturais como os melhores do mundo (...). ‘Livre e republicano, como a América inglesa, o Brasil poderia ser ainda maior’, dizia ele, por ser melhor dotado pela natureza. ‘Criando-se indústrias’, continuava o propagandista, ‘não haveria necessidade de importar mercadorias estrangeiras’. A Freire de Andrade ele afirmou que o Brasil era um país que tinha tudo o que precisava, não tendo necessidade de qualquer outro para subsistir. A razão da pobreza do país, apesar de todas as suas riquezas era ‘só porque a Europa como uma esponja, lhe estivesse chupando toda a substância, e os exelentíssimos generais de três em três anos traziam uma quadrilha, a que chamavam criados, que depois de comerem a honra, a fazenda, os ofícios que deviam ser dos habitantes, se iam rindo deles para Portugal.’”

Mas é certamente necessário separar a oratória da inconfiência das propostas concretas de seus participantes: Tiradentes, fazendo coro com a maioria, por exemplo, não defendia a abolição da escravatura.

André Figueiredo Rodrigues comprova com documentos uma versão menos idealizada de Tiradentes. O historiador prova que Tiradentes tinha minas de ouro e grandes propriedades: “Em 1781, por exemplo, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, comandou a construção do Caminho do Meneses, que atravessa a serra da mantiqueira. Ao verificar as riquezas minerais de ros e córregos da região, solicitou o direito de explorar oitenta datas minerais. Em sua petição afirmou que ‘se acha com fábrica avultada de escravos, sem terras minerais para o poder fazer e no porto e quartel do Meneses se acham terras devolutas.’ No despacho, com data de 22 de setembro de 1781, o escrivão Antônio Tavares da Silva confirmou-lhe a concessão e a medição de 43 datas minerais, localizadas no meio do rio do Porto do Meneses. (...)”

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André Figueiredo conclui: “O exemplo das 43 datas que tiradentes explorava permite constatar que não era um homem com poucas posses, como a historiografia tente a ressaltar.” Sabe-se que em 1757 ele já tinha recebido de herança de sua mãe, de 965$774 réis e que não vivia de seu soldo militar, que era de 142$350 réias anuais.

“A devassa descobriu, um mês após o sequestro de seus bens, que Tiradentes era dono de um sítio com ‘casas de vivenda, senzalas e monjolo, tudo coberto de capim (...), com todos os seus pertences de matos virgens e capoeiras, de aproximadamente 50 quilômetros quadrados, compreendidos em oito sesmarias, na Rocinha Negra, no Porto do Menezes, o que confirma sua ligação com o poder, pois não se podia doar mais que uma sesmaria a uma única pessoa”, escreve André Figueiredo, em A Fortuna dos Inconfidentes.

Diz o historiador: “Tiradentes também tinha fazendas em três sesmarias, que passaram por arrematação do capitão Jerônimo Ferreira da Silva. No século 19, essas terras estarão nas mãos do capitão José de Cerqueira Leite, um dos maiores cafeicultores da Zoa da Mata mineira. Os exemplos das onze sesmarias e das 43 datas exploraas por Tiradentes no Rio das mortes nos permitem inseri-lo entre os grandes proprietários de terras da região, na segunda metade do século 18. O maior potentado da Mantiqueira, o inconfidente e coreonel Joseé Aires Gomes, que tinha mais de 22 fazendas, não possuía a mesma quantidade de terras com título de sesmaria queTiradentes”

De qualquer forma, o comportamento de Tiradentes durante os interrogatórios foi exemplar, pois não entregou nenhum de seus companheiros e acabou por assumir a responsabilidade pelos planos de sublevação. Diz Kenneth Maxwell: “A tranquila dignidade com que Tiradentes enfrentou a morte foi um dos poucos momentos heroicos do fracasso sombrio. Quase um século depois, quando o Brasil implantou a República, ele foi proclamado herói nacional. Essa condição de herói nacional do alferes dos Dragões de Minas não é injustificada: em comparação com o de seus companheiros de conspiração, o comportamento de Tiradentes, ao ser interrogado, foi exemplar, ninguém o sobrepujou em entusiasmo por uma Minas independente, livre e republicana; reclamou para si o maior risco e não há dúvida alguma de que estava disposto a assumi-lo. Conforme dizem ter Claudio Manuel da Costa afirmado, tomara que existissem mais homens desta têmpera! Tiradentes não era um anjo, nenhum homem o é. Mas em uma história particularmente carente de grandes homens, Joaquim José da Silva Xavier impõe-se como uma exceção.”

Depois de ter negado participação na sedição algumas vezes, mas no final ter assumido para si toda a culpa, inocentando os companheiros, foi condenado por crime de lesa-majestade e enforcado no dia 21 de abril de 1792, com a barba e o cabelo raspados. Foi esquartejado e partes de seu corpo colocadas em locais onde fazia suas pregações.

Com respeito a seu comportamento na prisão, em que andava com um crucifixo rezando, o historiador João Pinto Furtado comenta que “segundo Joaquim Norberto de Souza e Silva, referindo-se à metamorfose ocorrida ao longo do processo que culminou com a execução de Tiradentes, as autoridades luso-brasileiras ‘prenderam um patriota e executaram um frade’”.

Segundo o professor André Figueiredo, “nas revisões que têm sido feitas nos livros escolares visando esclarecer o que é história e o que é mito o importante é ressaltar mais como foi construído o mito de Tiradentes (necessidade de ter heróis, por parte da jovem República) do que os detalhes de sua vida pessoal, numa época de valores diferentes dos nossos”.

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As ossadas do Panteão dos Inconfidentes

No ano passado, foram enterrados no Panteão dos Inconfidentes, no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, os restos mortais de três condenados da conjuração mineira que morreram no desterro. Estiveram presentes na cerimônia a presidente Dilma Rousseff, e o governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia. Dilma comparou os inconfidentes aos perseguidos políticos. A presidente também fez questão de visitar os túmulos de Bárbara Heliodora, mulher do inconfidente José de Alvarenga Peixoto, e de Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a Marília de Dirceu, que participaram ou testemunharam a Inconfidência.

O Panteão abrigava 13 ossadas de inconfidentes que foram resgatadas nos anos 1930, por iniciativa do presidente Getúlio Vargas e acordo com o governo português. O trabalho começou em 1932 e em 1936 Getúlio Vargas ordenou que fossem repatriadas as ossadas dos inconfidentes mortos no exílio. Treze ossadas foram identificadas e enterradas no Panteão erigido em 1942 num prédio anexo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Três ossadas, entretanto, que acabaram misturadas, ficaram durante muito tempo no Rio, sob a guarda do governo, e não foram incluídas no Panteão, por falta de identificação. As ossadas foram depois levadas para Minas, mas ficaram aguardando exames.

Como não era possível fazer exames de DNA por causa da deterioração do material, foi preciso recorrer a avançadas técnicas de tomografia, até se chegar na identificação das pessoas pela idade, o que resultou na confirmação das ossadas de três inconfidentes: Domingos Vidal Barbosa (1761-1793), João Dias da Mota (1744-1793) e José de Resende Costa (1728-1798), pai de outro inconfidente com o mesmo nome que está enterrado no Rio.

Resende da Costa e Domingos Vidal foram degredados para Cabo Verde. João Dias Mota foi para a Guiné Portuguesa. Vidal e Dias morreram em 1793; Resende Costa, em 1798. Os três foram enterrrados perto de uma igreja na Vila de Cachéu, na Guiné Portuguesa.

Eles estão entre os 24 nomes associados à Inconfidência Mineira e registrados no Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Agora os restos mortais de 16 deles jazem no Panteão do museu.

O filho de José Resende da Costa, o mais jovem dos inconfidentes, cumpriu pena de degredo por dez anos e voltou ao Brasil em 1803. Morreu em 1841, no Rio de Janeiro, e foi enterrado na Igreja de São Francisco de Paula, da Ordem Terceira dos Mínimos. Teve depois seus restos mortais transferidos para o Cemitério do Catumbi. Não se sabe exatamente onde estão seus restos mortais nesse cemitério.

Os três inconfidentes identificados

José de Resende Costa (1728-1798) – Era capitão do Regimento de Cavalaria Auxiliar da Vila de S. João e fazendeiro em Arraial da Laje, hoje chamado Resende Costa (MG).  No degredo, foi contador e distribuidor forense até 1798, quando morreu. Seu filho, também inconfidente, voltou ao Brasil em 1803. Os fragmentos de ossos permitiram que os cientistas da Unicamp reconstituíssem o rosto de Jose Resende da Costa, que é bastante parecido com o de um seu trineto. “É o único inconfidente a que se chegou a uma imagem aproximada, de quem se tem uma cara”, diz o professor Alexandre Figueiredo Rodrigues, autor de A Fortuna dos Inconfidentes, que conta como a maioria dos bens confiscados dos condenados foi desviada da Coroa..

João Dias da Mota (1744 – 1793) – Nasceu em Vila Rica. Além de fazendeiro, foi capitão do regimento de cavalaria auxiliar da Vila de São João. Amigo pessoal de Tiradentes, hospedou-o várias vezes. Morreu acometido de moléstia epidêmica nove meses depois de chegar no exílio da ilha de Cachéu.

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Domingos Vidal de Barbosa Laje (1761-1793) – Nasceu em Capenduva, de família abastada. Estudou de medicina em Bordéus, na França. Participou de um grupo grupo de estudantes brassileiros que entrou em contato com o líder da independência norte-americana, Thomas Jefferson, pedindo apoio a uma revolta separatista brasileira. O contato foi feito por outro estudante, mas Barbosa Laje voltou para Minas espalhando a novidade do pedido de apoio. Em análise da correspondência de Jefferson, o historiador Kenneth Maxwell aponta outro estudante como autor do contato e diz que o americano não se comprometeu a dar o apoio, chegando inclusive a afirmar que o governo norte americano teria importantes laços econômicos com Portugal.

Os 13 inconfidentes que já estavam no Panteão do Museu da Inconfidência

Inácio José de Alvarenga Peixoto (1774-1793), advogado e dono de terras e escravos, foi um dos líderes intelectuais da conspiração, segundo alguns autores. Também foi renomado poeta. O historiador André Figueiredo Rodrigues apurou que a mulher de Peixoto, Bárbara Heliodora, também poetisa, evitou o sequestro dos bens do marido e os administrou de forma a que passaram a render mais. Alvarenga Peixoto morreu em Angola.

Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Advogado, exerceu magistratura em Portugal e na região das Minas, onde se envolveu m polêmicas políticas. É o maior poeta e escritor do arcadismo brasileiro. Sob o nome idealizado de Dirceu ele eterniza seus poemas a Marília, uma adolescente por quem ele se apaixonou já quase quarentão. No exílio em Moçambique, hospedou-se na casa de um rico traficante de escravos e casou-se com sua filha. Exerceu cargos de procurador da Coroa e Fazenda e o de juiz de Alfândega em Moçambique. Patrono da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras.

João da Costa Rodrigues (1748-?), fazendeiro e dono de hospedaria na estrada velha para o Rio de Janeiro “que vendia a cachaça que pôs muitos a perder”, segundo comenta o historiador João Pinto Furtado. Acusado de ter presenciado reuniões de inconfidentes e portanto estar mancomunado com elas. Tiradentes se hospedava em sua pousada. Morreu em Moçambique e seus restos se achavam sepultados na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Mossurill.

Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1750-1794), coronel, fazendeiro e minerador. Sua mulher, Hipólita Teixeira de Melo Carvalho, é autora do famoso bilhete: “Tiradentes foi preso no Rio. Quem não é capaz para as coisas que não se meta nelas. É melhor morrer com honra que viver em desonra. Quem não reagir será preso. Convoquem a tropa do Serro e faça um VIVA AO POVO!” Há quem diga que ele tenha sido o mais idealista dos inconfidentes, pois era muito rico e não estava preocupado com dívidas nem com a derrama. Morreu em Moçambique.

Salvador Carvalho do Amaral Gurgel (1762-1812). Nasceu em Parati, no Rio de Janeiro, formou-se cirurgião pratico e mudou-se para o Rio de janeiro e depois para Minas, onde trabalhava como cirurgião para uma tropa. Foi acusado de envolver-se com Tiradentes, “que lhe teria emprestado um dicionário de francês para ler as novas teorias revolucionárias da Europa e dos Estados Unidos”. Condenado a degredo perpétuo. Exerceu a cirurgia no exílio. Em 1804 foi para Moçambique para exercer o oficio de cirurgião-mor. Em 1807 já conseguira outros cargos importantes. Morreu em 1812, aos 50 anos. Foi o último dos inconfidentes a morrer na África ocidental.

Vitoriano Gonçalves Veloso (1738-1803), alfaiate, era negro e ex-escravo que tinha conseguido alforria. Era compadre do inconfidente Francisco Antonio de Oliveira Lopes, de Francisco José de Melo e de dona Hipólita Francisca Teixeira de Melo, “a única mulher a participar ativamente do movimento da inconfidência”. Morreu em Moçambique.

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Vicente Vieira da Mota (1733 ou 1735-1798), nasceu em Portugal e veio ainda jovem para o Brasil. Foi capitão da Companhia de Ordenanças de Minas novas e guarda-livros do comerciante João Rodrigues de Macedo, poderoso contratador que aderiu à inconfidência. Foi denunciado por Basílio de Brito. Morreu em Moçambique.

Antônio Oliveira Lopes (1725 ou 1726-1794?), carpinteiro, consta ter sido aliciado por Tiradentes. Era o mais idoso do grupo, com 63 anos quando foi degredado para Macuá, em Moçambique. Seus restos mortais vieram da Capela do Porto Belo em Zambeze.

José Aires Gomes (1734-1794) , grande proprietário de terras dedicadas a agricultura, pecuária, mineração, foi um dos homens mais poderosos de seu tempo. Segundo o historiador André Figueiredo Rodrigues, a família conseguiu reaver os bens confiscados usando várias artimanhas legais. Foi condenado a degredo perpétuo em Moçambique, onde morreu.

Luiz Vaz de Toledo Pisa (1739-1807?) militar, nasceu em Taubaté. Seu irmão, o padre Carlos Correia de Toledo e Melo, também se envolveu com a Inconfidência. Tinha minas de ouro e escravos. Quando foi preso, em 1789, era juiz dos órfãos da vila de São José e também sargento mor do regimento auxiliar de São João Del Rei, comandado pelo coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes. Morreu em Angola e foi sepultado na Igreja dos Remédios.

Domingos de Abreu Vieira (1724-1792), comerciante e tenente-coronel de origem portuguesa, administrava contratos de dízimos. Tinha 65 anos quando foi preso. Foi para o exílio em Angola acompanhado do escravo Nicolau, que o acompanhou por toda a vida. Era solteiro. Ficou pouco tempo no exílio, morrendo logo depois que chegou.

Francisco de Paula Freire de Andrade (1752-1808), filho do 2º conde de Bobadela, foi tenente coronel dos dragões de minas. Realizava reuniões com inconfidentes em sua casa. Foi deportado para Moçambique. Morreu quando viajava de volta ao Brasil.

José Álvares Maciel (1760-1804). Estudou em Portugal e na Inglaterra. Com outros estudantes, fez parte do grupo que procurou Thomas Jefferson pedindo apoio a uma insurgência no Brasil. Era especialista em mineralogia. Tornou-se amigo do governador de Angola e foi dono das mais importantes fábricas de fundição no país. Morreu na cidade de Massangano.

O trabalho

Depois de décadas de abandono burocrático, os ossos dos três últimos inconfidentes do Panteão começaram a ser estudados pelo Museu de Ouro Preto em 1993. O professor de odontologia da Unicamp Eduardo Darude comandou os trabalhos. Ele reclama que teve de gastar dinheiro do próprio bolso nas pesquisas. Mas os resultados foram tão corretos que permitiram a restauração do rosto completo do inconfidente José Resende da Costa.

O julgamento

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A leitura da sentença foi a 18 de abril de 1792 e durou 18 horas, das oito da manhã até depois das duas da madrugada. Tiradentes foi condenado à forca e a ter a cabeça cortada e exibia sobre uma alta estaca, no centro de vila rica. Seu corpo também deveria ser esquartejado e as partes expostas nas vias de acesso à capitania e nos lugares por ele mais freqüentados. “Sua casa em Vila Rica deveria ser destruída e o solo salgado. Freire de Andrade, Álvares Maciel, Alvarenga Peixoto, Oliveira Lopes e Luís Vaz deviam, também, ser decapitados e esquartejados”, conta o historiador Kenneth Maxwell, em A Devassa da Devassa. O mesmo autor continua: “Segundo uma testemunha: ...’então se viu representada a cena mais trágica e cômica que se pode imaginar. Mutuamente pediram perdão e o deram; porém cada um fazia por imputar a sua última infelicidade ao excessivo depoimento do outro. (...)’ Depois de quatro horas de recriminações recíprocas, os presos foram postos sob pesadas correntes ligadas às janelas da sala. Então, dramaticamente como fora planejada, a leitura da carta de clemência da rainha transformou a situação. Todas as sentenças, salvo a do alferes Silva Xavier, foram comutadas em banimento.”

Tiradentes foi enforcado às 11 horas da manhã de 21 de abril de 1792. Pouco depois seria esquartejado.