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INTRODUÇÃO I-O TEMA Na série dos três diálogos que documentam a evolução de uma teoria platónica do amor, O Banquete ocupa um lugar central e é talvez a obra onde o conceito de amor se liga mais conscientemente a uma experiência existencial concreta. O primeiro destes, o Lisis, não passa ainda de uma indefinida tentativa (aparentemente frustrada) de identifi- car philia t= eras) com o desejo do Bem I; essa tentativa só adquire significado preciso n'O Banquete, quando, ao analisar as causas de eras e os seus efeitos, Platão reconhece a raiz puramente humana donde parte: o amor ao Bem não é senão uma consequência do instinto de imortalidade que os homens vivem em maior ou menor dimensão, e em esperança de o satisfazer, o seu amor pelo Bem não teria qualquer realidade. 1 Sobre este carácter antecipatório do Lisis cf. FRIEDLÂNDER lI, pp. 101-104 e F. OLIVEIRA, Platão. Lisis, esp. 39-44. O ponto de referência fundamental sobre o elo de ligação entre o Lisis, o Banquete e o Fedro é ainda La théorie platonicienne de I' amour de L. ROBIN 1900) - sem prejuízo de outros contributos posteriores, entre os quais os de Th. GOULD, Platonic Love (1963), de K. BÜCHNER, Eros und Sein (1965), de -. BRES, La psychologie de Platon, e, mais recentemente, de A.W. PRICE, Love Friendship in Plato and Aristotle (1989). 9

O banquete - Platão

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INTRODUÇÃO

I-O TEMA

Na série dos três diálogos que documentam a evolução de umateoria platónica do amor, O Banquete ocupa um lugar central e é talveza obra onde o conceito de amor se liga mais conscientemente a umaexperiência existencial concreta. O primeiro destes, o Lisis, não passaainda de uma indefinida tentativa (aparentemente frustrada) de identifi-car philia t= eras) com o desejo do Bem I; essa tentativa só adquiresignificado preciso n'O Banquete, quando, ao analisar as causas de erase os seus efeitos, Platão reconhece a raiz puramente humana dondeparte: o amor ao Bem não é senão uma consequência do instinto deimortalidade que os homens vivem em maior ou menor dimensão, e

em esperança de o satisfazer, o seu amor pelo Bem não teria qualquerrealidade.

1 Sobre este carácter antecipatório do Lisis cf. FRIEDLÂNDER lI, pp. 101-104e F. OLIVEIRA, Platão. Lisis, esp. 39-44.

O ponto de referência fundamental sobre o elo de ligação entre o Lisis, oBanquete e o Fedro é ainda La théorie platonicienne de I' amour de L. ROBIN

1900) - sem prejuízo de outros contributos posteriores, entre os quais os deTh. GOULD, Platonic Love (1963), de K. BÜCHNER, Eros und Sein (1965), de

-. BRES, La psychologie de Platon, e, mais recentemente, de A.W. PRICE, LoveFriendship in Plato and Aristotle (1989).

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Será incompleto, pois, acreditar num puro idealismo platónico; oamor ao objecto «ideal», quer se chame Bem, quer se chame Belo, ou

implesmente eidos (como no Fedro), supõe igualmente um jogo deforças reais, uma tensão que reparte o homem entre o que é e o quepretende ser e, nesse aspecto, a experiência de amor platónico é idênticaà de tantos outros homens que lutam por uma certa espécie de transcen-dência. O Banquete situa-se precisamente no ponto em que tal experiên-cia se revela mais próxima dos homens, não só pela objectividade deuma análise que os estudos de Freud vieram confirmar 2, mas igual-mente pela valorização do elemento afectivo, melhor dizendo, erótico,que ainda no F edro se reconhecerá essencial. A partir do F edro, é certo,a importância do amor decai gradualmente, à medida que uma visãointelectualista da vida se sobrepõe na filosofia platónica; mas o própriofacto de recorrer ainda à linguagem do amor, seja mesmo comometáfora, significa que Platão não esqueceu de todo o alcance e aprofundidade dessa experiência e que, embora transformada, ela conti-nua, de uma forma ou outra, unida à sua filosofia 3.

II - O SYMPOSION E A SUA PROJECÇÃO SOCIAL E LITERÁRIA

O Banquete de Platão, tal como o de Xenofonte (onde igualmenteSócrates é a principal personagem), testemunha, no século IV a.c., odesenvolvimento de um género literário, denominado «simpótico»,cujas origens remontam talvez ao século V a.C. Uma primeira observa-ção que se impõe é definir o que para os Atenienses significava umsymposion: esta prática compreendia, com efeito, duas partes, à seme-lhança dos modernos banquetes - o deipnos, «jantar», e o potos,

2 Embora, como realça F.M. CORNFORD (<<The Doctrine of Eros in Plato'sSymposium», p. 78, secundado por Th. GOULD, op.cit., pp. 13-15), Platão parta depressupostos inversos aos de Freud: a sexualidade humana como tal não é a fonte detodo o agir humano, mas apenas uma das formas de concretização de um impulsomais vasto a que caberá, na realidade, a designação de eros - a aspiração ao Bem e àimortalidade (vide 205a-e). O que não impede a existência de importantes pontos decontacto entre as duas doutrinas, como aliás CORNFORD e GOULD reconhecem,em particular no que poderia chamar-se «uma teoria de sublimação platónica». Essaconfluência está na base de vários estudos recentes de teor psicanalítico sobre a obraplatónica, de que é exemplo a obra já citada de Y. BRES.

3 Cf. Y. BRES, op.cit., pp. 269-273.

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bebida» -, contituindo a última o symposion propriamente dito, istoé, o momento em que os convivas se organizavam para beber e esco-lhiam centros de interesse para ocupar o tempo. Escapa-nos, porém, natradução de um termo como banquete, o valor educativo e o estímuloultural que presidiam a este género de reuniões e explicam desde cedo

a ua integração na literatura. Os diálogos de Platão e Xenofonte são, aesse respeito, um documento de extraordinário interesse para nós, pois aeles devemos sobretudo a descrição pormenorizada dos costumes eregras a que os symposia obedeciam 4.

Sabe-se que a passagem do jantar à bebida era acompanhada delibações, preces e cânticos; seguidamente, fixava-se um programa,estabelecendo-se não só o modo como beber, mas também os assuntosque regulariam a conversação; um presidente velava pela execução doprograma - papel que neste diálogo será primeiro desempenhado porFedro, «o pai do assunto», e mais tarde por Alcibíades. Por outro lado,era costume o dono da casa proporcionar aos seus hóspedes espec-táculos variados e divertidos em que intervinham a tocadora de flauta, adançarina, ou mesmo uma companhia de artistas, como sucede emXenofonte. O ambiente geral caracterizava-se pela boa disposição eliberdade, não raro terminando em orgia.

Note-se que, no Banquete de Platão, a tocadora de flauta é despe-dida após o jantar e se aceita a proposta de beber moderadamente, o queparece não corresponder bem ao uso dos banquetes, como Alcibíadesvirá demonstrar. Mas a razão é plausível: os convivas já no dia anteriorse tinham reunido e estavam, pois, saciados, tanto de bebidas como dedivertimentos, pode supor-se. As circunstâncias são, neste aspecto,diferentes das que Xenofonte nos apresenta, e não se estranha oambiente ordeiro e sério em que a reunião decorre, até à aparição deAlcibíades. Platão antecipa, nesta primeira parte do diálogo, uma ima-

4 Sobre a função social e educativa que os gregos atribuíam aos banquetes eua associação tradicional a eros (particularmente ao eros masculino), bem

documentada na lírica arcaica, podem ver-se as breves mas valiosas páginas consa-_ das ao tema por W. JAEGER, Paideia, pp. 670-677. Em ROEIN, pp. XII-XVIII,encontra-se coligida a principal informação dos autores antigos no que respeita àsnormas que habitualmente regiam os banquetes. O contributo mais recente sobre osaspectos rituais, educativos, políticos e artísticos, ligados aos symposia, bem como o_ blema das origens e da diversidade de paradigmas temporais e geográficos, é oconjunto de estudos reunidos em Sympotica. A Symposium on Symposion, ed. by O._ amA Y (1990).

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gem dos tais banquetes organizados a que se dedica grande parte doslivros I e 11das Leis: as «normas simpóticas» (671c) são uma tentativade associar a alegria do thiasos dionisíaco à ordem e ao rigor apolíneo,criando o clima próprio no qual poderão desenvolver-se os belos discur-sos e a emulação 'para a verdade. Essa tentativa, aliás, não foi apenasteórica; a realização de banquetes estava prevista na legislação daAcademia e sabe-se que, pelo menos alguns séculos após a morte dePlatão, ainda se comemorava com um symposion a data do seu ani-versário -7 de Novembro 5.

5 Tem interesse referir que, exactamente mil e duzentos anos depois de essecostume se ter perdido, com a retirada de Porfírio (séc, III) de Alexandria, Lourençode Médicis, o grande impulsionador do movimento neoplatónico da Academia Flo-rentina, resolveu reatar a antiga tradição, promovendo, em 7 de Novembro de 1468, arealização de um banquete, a fim de comemorar a data do nascimento (e também damorte) de Platão. Para esse efeito, foi nomeado anfitrião Francisco Bandini, quereuniu, em Careggi, nove convivas «platónicos», cinco dos quais, após a leituraintegral do Banquete, «representaram» as personagens do diálogo, retomando edesenvolvendo os tópicos de cada discurso.

Dessa reunião parece ter surgido um dos mais importantes e extensos comen-tários à obra, o De Amare, de Marsílio Ficino, composto provavelmente entre 1470 e1474. Juntamente com a Theologia Platonica, do mesmo autor, e a sua versão latinado Corpus Platonicum, o De Amare constitui um marco fundamental na história domovimento renascentista; é sobretudo através desta obra que o neoplatonismo seintegra na cultura europeia - até aí mais ou menos marcada pela influência deAristóteles e seus comentadores -, operando a característica fusão do pensamentoantigo com a doutrina cristã. O grande número de edições que em toda a Europa sefizeram no século XVI, bem como os diálogos sobre o amor e obras de teor análogoque se lhe seguiram, de fonte indiscutivelmente ficiniana (entre elas contam-se osDialoghi d' Amore, de Leão Hebreu, judeu português radicado em Itália), prova bem alarga repercussão que a obra teve e de que, entre nós, a lírica camoniana é umexemplo significativo.

Para um estudo sobre o neoplatonismo de Ficino, veja-se a introdução aoCommentaire SUl' le Banquet de Platon de Marsile Ficin, por Raymond Marcel, Paris,1956; sobre Leão Hebreu, consulte-se a obra de Joaquim de Carvalho, Leão Hebreu,Filósofo. Para a História do Platonismo no Renascimento, e o estudo de Pina Martins«Livros Quinhentistas sobre o Amor», Arquivos do Centro Cultural Português I(1969). Quanto ao problema da influência (directa ou indirecta) de Marsílio Ficino nalírica de Camões, veja-se Pina Martins, «Camões et Ia Pensée platonicienne de IaRenaissance», in Visages de Luís de Camões, Paris, 1972.

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A darmos crédito à tradição, que afirma ter sido O Banqueteexpressamente composto para festejar a fundação da Academia, em

~ a. C.; 6 teremos de ver nesta obra a primeira manifestação de umgrama cultural e educativo que sobreviveu à própria Academia.

III - ESTRUTURA DRAMÁTICA ENARRATIVA

.4.) Prólogo, apresentação de personagens e interlúdios

Muitas vezes se tem insistido no carácter eminentementedramático dos diálogos platónicos: a escolha dos cenários, a caracteri-zação de personagens, etc., tudo isso revela, de facto, em Platão umatendência inata para o drama, que a influência de Sócrates terá desviadono sentido da filosofia. A este respeito, O Banquete pode considerar-sea obra mais representativa: nela não apenas entram em jogo elementosdramáticos, mas todo o contexto lembra em si um drama, com a suaestruturação bem definida em prólogo, episódios (ligados por inter-lúdios) e epílogo 7. O tema, por outro lado, presta-se a uma maiorvariedade cénica do que no conjunto dos outros diálogos, decorrendotoda a acção em volta do banquete oferecido pelo tragediógrafo Ágatonquando saiu vencedor com a sua primeira peça (416 a. C.).

6 O estabelecimento desta data aproximada baseia-se em especial na interpreta-ção de duas referências históricas contidas n'O Banquete - a alusão ao domínio dosIónios pelos Bárbaros (vide 182a), assegurado pela Paz do Rei, de 387/6 a. C., e àdestruição de uma cidade arcádia (certamente Mantineia) em 385 a. C. Teríamosassim dois anacronismos abruptos relativamente à data dramática da obra (416 a.Ci),o que não está fora da dimensão irónica que Platão cultiva nos seus diálogos (paraoutros exemplos, cf. W.K.C. GUTHRIE IV, p. 52). A análise de outros aspectos deconteúdo não deixa de pesar nesta interpretação dos dados mencionados: tantoO Banquete como o Fédon (provavelmente os primeiros do conjunto dos diálogoschamados do «período rnédio»), parecem reflectir, embora em formas divergentes,um eco muito próximo da primeira viagem de Platão à Sicília (387 a.Ci); no caso doO Banquete, a afeição apaixonada que o jovem Díon, cunhado do tirano Dionísio deSiracusa, terá nele despertado. Para uma discussão mais alargada, veja-se BURY,pp. LXVI-LXVIII; ROBIN, pp. VIII-XII; DOVER, Phronesis 10 (1965) 1-20.

7 A confluência de vários aspectos da linguagem e da realização dramática(quer da tragédia quer da comédia) nos diálogos platónicos encontra-se modelar-mente documentada em D. TARRANT, Journal of Classical Studies 85, pp. 82 sqq.Na mesma linha de orientação pode citar-se, entre outros, o persuasivo ensaio de J.RENDALL, Plato. Dramatist ofthe Life ofthe Reason.

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o prólogo põe-nos perante uma elaborada forma de apresentação,que faz derivar de uma conversa entre amigos o enredo dramático daobra. Apolodoro, um dos discípulos de Sócrates, é a principal persona-gem do diálogo inicial, assumindo o papel de narrador da «tal reunião»que tanto parece interessar os amigos, e onde Sócrates e outras persona-gens se teriam distinguido com os seus discursos sobre o amor. A nar-rativa não é, porém, directa; baseia-se numa anterior, feita por outrodiscípulo, Aristodemo, que assistira a essa mesma reunião. Esta cir-cunstância permite, sem quebra de verosimilhança, limitar a narraçãoaos aspectos essenciais, àquilo que, no dizer de Apolodoro, «pareceumais digno de menção», ao mesmo tempo que se salvaguarda a veraci-dade das informações recebidas com o testemunho de que o próprioSócrates as confirmara. Mas não foi apenas uma necessidade artísticade seleccionar que determinou esta original e complexa introdução àobra. O espaço de tempo que medeia entre a realização fictícia dobanquete (416 a. c.) e a narrativa de Apolodoro - já próxima, tantoquanto podemos supô-lo, do ano em que Sócrates foi condenado(399 a. C.) - cria uma intencional sobreposição de planos, passado epresente, que condensam, no ambiente fácil e despreocupado da narra-tiva, a tragédia da sua condenação 8. Apolodoro, o discípulo que noFédon se mostra mais visivelmente afectado com a morte do Mestre 9, éa personagem ideal para criar essa atmosfera própria e sugerir, na quasefanática devoção que demonstra pelas «palavras da filosofia» e emespecial por Sócrates, os dois objectivos essenciais da obra: o elogio dafilosofia e a reabilitação do Mestre que dedicou toda a sua vida aoserviço dos Atenienses, ensinando-lhes o que era a virtude.

O prólogo reparte-se ainda por mais dois momentos, estes jáincluídos na narrativa de Aristodemo - o primeiro, compreendendo oencontro de Aristodemo com Sócrates a caminho da casa de Ágaton, e osegundo, os episódios que antecedem a realização dos discursos. Dessediscípulo, que Apolodoro refere como um «homem baixito, sempredescalço», pouco mais conhecemos, além da sua apaixonada dedicaçãopelo Mestre, que a narrativa do diálogo corrobora. Quanto a Sócrates,desde o encontro com Aristodemo se desenham os principais traços dasua caracterização: o desprezo pelo bem-estar material, os «êxtases» a

8 Cf. FRIEDLÃNDER III, pp. 3-5.9 Apolodoro «chora como uma criança» e soita gritos tais que é necessário

Sócrates, já depois de ter ingerido o veneno, mandá-Ia calar (1 17d).

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que A1cibíades aludirá mais demoradamente e sobretudo a típica eiro-neia ou «fingimento», que os interlocutores tomam por insolência, sãoaspectos tão evidentes ao longo do diálogo que não se torna necessárioexplicá-Ios.

O imprevisto domina todo o movimento cénico, por vezes comnota acentuadamente cómica. Assim, o convite endereçado porSócrates a Aristodemo, a surpresa deste quando chega a casa de Ágatone verifica que Sócrates se deixara ficar para trás, o aparecimento deste,já a meio do jantar, e finalmente o «processo de sabedoria» que Ágatonlhe instàura, invocando o juízo de Dioniso (deus do vinho) - tudo issoprepara o ambiente de fantasia e boa disposição em que os discursosirão suceder-se. Como figuras centrais sobressaem, nesta descrição,Ágaton e Sócrates. O confronto entre ambos tem função específica nodiálogo: no primeiro, é o ideal aristocrático que se define por excelên-cia, um conceito de arete, «mérito», cujo valor se mede pelos aplausosda multidão e pelo triunfo social; no segundo, é o ideal da arete autên-tica que se impõe por si, sem necessitar do apoio do vulgo. A sentençade Dioniso só poderá, pois, decidir-se em favor de Sócrates, e é atravésde A1cibíades, já ébrio, que tal sentença se confirma (215d-e).

O momento escolhido para apresentar as restantes personagens(à excepção de Alcibíades) é a altura em que, terminado o jantar, osconvivas põem à discussão a norma que deverá adoptar-se na bebida.Estas personagens, aliás históricas e bem conhecidas no meio ateniense,são já familiares dos diálogos platónicos. Fedro, o primeiro orador,figura no Protágoras (315c) como discípulo de Hípias, e dá o nome aum dos principais diálogos de Platão, intervindo nele, à semelhança doque aqui acontece, como «pai do assunto»; característico é o gosto pelamitologia e pela retórica, e ainda o cuidado pela saúde, que n'O Ban-quete se traduz pela fácil adesão à proposta de beber moderadamente.Sobre Pausânias, em compensação, poucos mais dados temos, além dasreferências do Protágoras e de Xenofonte (Banquete VIII, 32); sabe-seque era erastes, «amante», do poeta Ágaton e um dos mais convictosdefensores da pederastia. Erixímaco, o médico, que Platão nomeia aolado de Fedro, no Protágoras, entre os ouvintes de Hípias, representaaqui o ponto de vista da medicina; as suas intervenções demonstramuma preocução típica de moderação, não isenta de certa pedantaria. Emexcelente contraste com ele surge Aristófanes, o «servidor de Dioniso eAfrodite», no dizer de Sócrates; a vivacidade e ironia do comediógrafo,que tanto visam ridicularizar os preceitos solenes de Erixímaco como apretensa superioridade do «amor viril» entre Ágaton e Pausânias, con-

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densam o elemento humorístico da primeira parte, aliviando a monoto-nia dos primeiros discursos. Nada faz lembrar o antigo rancor que asalusões do Fédon (70b-c) e sobretudo da Apologia (l8d, 19c) teste-munham, dando Aristófanes como um dos principais responsáveis pelacondenação de Sócrates: e, se não fosse o conhecimento das obras, a suapresença aqui nada teria de estranho para nós.

Um aspecto moderno desta caracterização é ser o diálogo a revelarpor si as personagens, prescindindo de qualquer apresentação formal eorientando todo o movimento cénico; o objectivo da conversa encami-nha-se naturalmente, desde a resolução de «beber consoante a vontade»à proposta de elogio do Amor, feita por Erixímaco em nome de Fedro.O mesmo efeito artístico distingue os interlúdios, ou seja, as pausas queestabelecem transição entre os discursos. O primeiro é assinalado peloepisódio cómico dos «soluços», que obrigam Aristófanes a recorrer aoauxílio do médico e a pedir-lhe que fale na sua vez; daí se origina umatroca de gracejos que se continua no interlúdio seguinte e quebra asensação de fastio que a longa exposição de Pausânias deixara nosouvintes. O terceiro e o quarto interlúdios retomam o «debate sobre asabedoria», iniciado no prólogo entre Ágaton e Sócrates, com nítidavantagem deste último; a oposição entre aparência e verdade desempe-nha um papel fundamental em ambos, mas sobretudo no quarto, onde seoferece uma crítica global dos discursos precedentes, preparando ter-reno para uma nova perspectiva de amor, mais verdadeira, que Sócratesvirá revelar. O quinto interlúdio é o mais longo e artisticamente o maisimportante, pois introduz uma nova personagem - Alcibíades - ecom ela uma completa alteração das normas antes estabelecidas: depoisda exposição densamente abstracta de Sócrates, a vinda imprevista deAlcibíades marca o regresso ao real, à atmosfera própria do symposion,onde a liberdade de expressão e a «verdade» do vinho triunfam sobretodas as convenções.

A coroação de Ágaton, logo suplantada pela coroação de Sócrates(o mesmo de quem, no entanto, Alcibíades se diz vítima ...), confere aoepisódio um simbolismo muito especial, que só encontra correspondên-cia quando, mais adiante, Alcibíades se propõe substituir o elogio aEros pelo elogio de Sócrates. Num e noutro caso, é o triunfo da filosofiaque se representa e, num aspecto muito particular, a reabilitação deSócrates, sobre quem os Atenienses fizeram recair a responsabilidadedos desastres políticos de Alcibíades.

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Os discursos

~Tãonos alongaremos muito na análise dos discursos, cujas princi-_ z ; dificuldades de interpretação foram anotadas.

O discurso de Fedro caracteriza-se pela preocupação de seguir umo bem definido, de que os tópicos essenciais são a natureza do deus

E os) e os seus benefícios. As citações, a evocação e o tratamento arbi-, -o dos mitos são lugares-comuns da retórica do tempo, que curiosa-te vemos aqui associados a uma concepção de vida profundamenteuída dos ideais homéricos: para Fedro, o Amor não representanas um símbolo de antiguidade, mas ainda o estímulo mais eficazconduzir os homens à virtude, inspirando-lhes a coragem de

realizar belos feitos e oferecer a vida, como nos exemplos apontados dete e Aquiles.Essa perspectiva idealista é compensada no discurso do orador

seguinte, Pausânias, que dá propriamente início a uma discussão moraltema com a definição de duas espécies de amor: celeste (o amorre) e popular (o amor vil). Reproduzindo um conceito tradicionalcírculos aristocráticos atenientes, Pausânias distingue a pederastia

mo a forma mais nobre do amor, o «amor isento de excesso», que nãorem outro fim senão aperfeiçoar a alma do amado, educando-o no seuai lato sentido 10. Alguns pontos de contacto com a doutrina plató-- a dos primeiros diálogos são a tal ponto sensíveis que se tomousível supor, por parte de Platão, um propósito de relembrar aqui

-elhas teorias; mas, apesar da subtileza dos raciocínios (aliás, não- entos de paradoxos e contradições, ao gosto da época), o relativismooral, a estreita subordinação às leis e às normas sociais viciam toda a

argumentação, mostrando à evidência a superficialidade dos princípios

10 Sobre o enraizamento da pederastia na mentalidade grega e em particular noscírculos aristocráticos, vide M.H.E. MEIER e L.R. de POGEY CASTRIES, L' his-toire de l' amour grec e K. DOVER, Greek Homossexuality (um breve resumo, comincidência sobretudo na linguagem erótica de Platão, encontra-se no estudo intro-dutório deste último autor em Plato. Symposium, pp. 3-5). J. BREMMER, um dostudiosos que, juntamente com DOVER, mais se tem consagrado a este tema, aduz

uma perspectiva interessante (talvez contestável) da pederastia como sobrevivênciade antigos ritos de iniciação sexual masculina, praticados pelos Indoeuropeus: videArethusa 13, pp. 279-298 e a comunicação «Adolescents, Symposion and Paede-rasty» em Sympotica, pp. 135-148.

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que a regem e a profunda distância moral que separa esta noção de«amor pelos jovens» daquela que Platão defende, nomeadamente noEutidemo, e retoma no Banquete e no Fedro.

Mantendo a mesma linha de orientação marcada por Pausânias -a distinção entre o bom e o mau Eras -, Erixímaco traz uma novadimensão do amor como princípio que se estende a todo o Universo. É amedicina que serve de ponto de partida para demonstrar em tudo aexistência de um duplo Eros, concretizado ora na harmonia ora nodesequilíbrio dos elementos físicos que se opõem, e cuja conciliação setoma possível mediante uma techne, ou seja, o conhecimento específicode uma arte. Alcméon, com a sua teoria dos humores, Empédocles, coma sua visão do mundo, altemadamente regido pela Amizade e pelaDiscórdia, e mesmo Heraclito, apesar da inconsistente crítica que lhe éfeita, condicionam o fundamento ecléctico do discurso, onde sobressai,no entanto, como nota original, a necessidade de uma techne e umconceito de moderação que, para além da medicina, se alarga aos maisvastos domínios, desde a música à adivinhação.

Com Aristófanes, penetramos numa esfera de sonho e idealidadeonde a dynamis, «poder», do amor se liberta de todas as suas implica-ções sociais ou cosmológicas, para encontrar na humana physis a suaorigem remota e verdadeira. Nesta «comédia em miniatura» 11 seexprime a mais original e poética definição de amor como «saudade deum antigo estado» que os seres actuais, reduzidos a metades, em vãotentam refazer. O mito, pelo qual se representa a natureza humana esuas mutações, não é apenas uma obra-prima de invenção e fantasiacómica, mas ainda a melhor prova de um raro talento para imitar estilose caracteres que Platão pôs ao serviço da sua arte; nada há neste discursoque se não revele marcadamente aristofânico, desde a liberdade dostermos e imagens, quase a tender para um obsceno típico de comédia, àintenção satírica que transparece na paródia da evolução de sexos, e, emespecial, no pretenso elogio do «amor viril». Todavia, a flagranteimpressão de estarmos escutando o autor das comédias não apaga,numa análise mais profunda, o que há também de genuinamenteplatónico no discurso: a aparição de Hefesto, o deus ferreiro, com a suapromessa de um «além feliz» aos verdadeiros amantes, identifica essasaudade do todo com o místico anseio de um mundo ideal onde a almapré-natal existira e que, graças ao amor, poderá de novo alcançar.

11 A expressão é de Bury, p. XXX.

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em a força dramática de Aristófanes, o discurso de Ágaton traduzesmo propósito de evasão ao real através do mito e da criação.ca. Com ele regressamos ao conceito de Eras divindade, que o

r exalta acima dos outros deuses pela sua «beleza» e «virtude».umeração das qualidades físicas e morais do deus constituem otivo dominante do discurso, onde não é difícil adivinhar um

- 3 do intuito de auto-elogio: nessa «delicadeza» e «boa aparência»Eros, na excelência dos seus dotes poéticos, vemos insinuar-se uma

gem idealizada do próprio Ágaton, em irónica conformidade com oo satírico que Aristófanes dele nos deixou nas Mulheres Que

-_ 'ebram as Tesmofárias (vide especialmente v. 192). Apesar daeza formal da composição e da justeza de um plano que adiante

es louvará, as ideias revelam-se pobres de conteúdo, sem que or pareça interessadó em criar mais do que uma simples sugestão dee imagens, artisticamente combinados, ao estilo de Górgias.

o quarto interlúdio inicia um novo acto no drama, elevando asctivas «comuns» do amor, que até aí víramos representadas, ao

o da filosofia. Com o seu discurso, originalmente marcado pelotivo da verdade, Sócrates não apenas se propõe revelar eras na suadeira natureza, mas ainda demonstrar como esse conhecimento se

- damenta numa procura. O diálogo com Ágaton, e do mesmo modo ata conversa entra Sócrates e Diotima, não tem, pois, outra finali-senão definir as bases em que essa procura deverá assentar,ando, por outro lado, a síntese do método dialéctico e do expositi-

. que no F edro se discute mais demoradamente 12. A noção de Eraso relativo a algo, como desejo de (epithymia), que tende à posse das

12 Fedro 27Ic-272b. É difícil determinar a porção de sinceridade ou de jogoico que cabe a este protesto de Sócrates. M. STOCKES, p. ex., consegue basear

.4 a ua análise do discurso na intencional refutação aos argumentos aduzidos por- n (Pia to ,s Socratic Conversations, pp. 114-182; cf. também a valorização, em

os de «verdade», dos cinco primeiros discursos, proposta por Y. BRES, op. cit.,• -45-246). Mas, apesar de tudo o que possa haver de erístico e dramático no

o apresentado pela «personagem» Sócrates, não é menos certo, como nota...3L..<c.<...1-.J' rs., que todo ele anuncia «um novo tipo de comunicação filosófica» (Platon

, die Schriftlichkeit der Philosophie, p. 257). Sobre esta mudança de orientaçãodiálogos onde se expande a teoria das Formas, e o sentido construtivo daslusões que procura atingir, aparentemente em contraste com o carácter refutativo

- diálogos elêncticos, vide lTRINDADE SANTOS, O paradigma identitativo naepção platónica do saber, pp. 216-218.

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«coisas belas e boas», vai-se fixando, através do processo dialéctico, noconceito de «intermediário» (ou, miticamente falando, de um daimon,«génio») - elo de ligação entre o humano e o divino. Essa revelaçãoexprime-se, simbolicamente, através do discurso de uma lendáriaprofetisa, Diotima de Mantineia, o que não apenas permite a Sócratessalvaguardar a.habitual profissão de ignorância como ainda sugerir acrença numa inspiração divina, que assiste à filosofia.

Desenvolvendo-se ao longo de uma conversa com um Sócratesjovem, que aqui ironicamente assume o papel de discípulo, a exposiçãode Diotirna orienta-se segundo o esquema antes definido por Ágaton: anatureza de Eros e os seus efeitos sobre os homens. A realidadecontraditória de Amor anuncia-se com o mito do seu nascimento, ondesimultaneamente Platão atinge uma das mais belas e sugestivas criaçõesartísticas - Eros, filho de Penia, a Pobreza, e de Poros, o deus Enge-nho, resume em si as qualidades antitéticas que opõem os seus progeni-tores: é por um lado pobre, o que equivale a dizer indigente e ignorante;por outro lado é rico, herdando do pai a sabedoria e o engenho que olevam a superar o estado natural de Pobreza, sua mãe; ainda, o facto deser concebido no dia do nascimento de Afrodite determina a suanatureza essencial como um «apaixonado do Belo». Ao longo destapersonificação vemos significativamente confluir em Eros aquelesmesmos traços satíricos que criaram em volta de Sócrates uma aura deexcentricidade, e fizeram dele uma figura digna de comédia, comoacontece nas Nuvens: a esse Eros descalço, mal pronto, dormindo ao arlivre e ocupando todo o tempo em filosofar, não falta sequer o epíteto desophistes,«sofista», que ali é uma grave acusação, mas, neste contexto,simples jogo humorístico a partir do sentido originário de sophistest= sophos, «sábio»).

Com a análise dos efeitos de eros sobre os homens, retoma-se oprocesso dialéctico, antes interrompido. Precisando a noção de amor,cuja relação com o Belo e o Bem vagamente se apontara, Diotima faráver, na raiz desse impulso, um instinto de Imortalidade, comum àespécie mortal, que apenas o «artifício» da geração toma possívelsatisfazer. Belo e Bem, nesta mais larga definição, representam, não jáobjecto de «posse», mas sim o meio em que eros actua, permitindo queo indivíduo se perpetue, física ou espiritualmente, em outros seres.O desenvolvimento é determinado por uma gradual aproximação deambos os planos, o concreto e o simbólico, subentendendo «geraçãopelo corpo» e «geração pelo espírito» manifestações divergentes, etodavia idênticas, do mesmo amor pela Imortalidade. Com a nova (eúltima) definição de eros - o desejo de gerar no Belo -, atingimos o

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~~C deste processo, ao longo do qual vemos sobressair, acima dos1IIc::::::e.::lS comuns, que procuram pelo corpo a realização desse instinto,"codes que são fecundos «segundo o espírito», gerando e dando à luz"'_-'-O mais imortais» 13.

_-ote-se, porém, que, até chegarmos aos chamados «mistérios1íi:::::::OiS>~ a relação do ser vivo à Imortalidade se compreende sempre~:.::!1~1ll0S de participação, excluindo a possibilidade de posse: sobrevi-",~:::ja pela espécie, pela fama ou pelo pensamento noutro indivíduo,

- são mais do que formas de maior ou menor participação, sem queIIz~nn suficientes para tomar o homem, por si, imortal. Será precisoIcr;;::;:arrnos nos mistérios últimos, cuja natureza revelada Diotima ex-.~s.çlITlente acentua, para que a verdadeira via nos seja indicada. Em~s::::eii:aligação com a doutrina do Fédon, da Républica e do Fedro, a

- alta forma de Imortalidade anuncia-se aqui como resultado de uma.1!c;a~alascensão, que orienta a alma do Belo sensível ao Belo meta-li:.s:.:u e ao Bem, através da educação filosófica 14. Na prática de «amar.JlIiX~[lllente os jovens» se distingue o estímulo vital deste processo.~:::::a::an·vo,em que se recortam duas fases fundamentais: a de discípulo e

- mestre. Ao longo delas, o filósofo vai apreendendo, pelo amor, aeza dos corpos, depois, a beleza das almas e dos conhecimentos,

..op.c-:-i·'<>ndo-sea cada passo de um «belo objecto» para outro, onde lhe:..possível gerar e produzir novos logoi, sucessivamente profundos e- ecidos, pelos quais a sua ânsia de Imortalidade se firma. É aelação do Belo - o ser divino, simples e imutável - que culminadialéctica ascendente do sensível ao inteligível. Pela sua contem-~ão e posse, o filósofo não só alcança gerar a verdadeira virtude, mas.... assegura uma imortalidade que lhe advém como prémio do seuço 15.

- Os sucessivos deslizes e consequentes mudanças de definição são analisados". GOLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, pp. 225-234.- À imagem do que sucede na República, esta dialéctica ascendente, assumida

::ém como processo educativo, tem um suporte não apenas ético e místico, como'T"'_''-<I.ll.l·c,o.Sobre as visíveis influências de Parménides na concepção da Forma

- Oca (eidos, idea) e sua relação com o conhecimento, veja-se J. TRINDADE- -OS, op. cit., esp. 241-255.

"É neste fecho do discurso de Sócrates que grande número de comentadoresa ponte para a doutrina da imortalidade pessoal, tal como os diálogos afins aoe a apresentam (nomeadamente o Fédon, a República e o Fedro). Mas, com

_"BE (El pensamiento de Platon, pp. 230-231) não nos parece que tal doutrina• reconhecível no Banquete: a alma não é por natureza imortal, apenas «participa»

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A esta perspectiva ideal de eras como filosofia vem sobrepor-seuma visão mais humana, que A1cibíades logo de início insinua, aosubstituir o elogio ao deus pelo elogio a Sócrates. Cómico e verdade,sustidos pela emoção do vinho, entrelaçam-se de maneira incon-fundível nesta confissão pessoal, onde o propósito de vingança serevela contraditoriamente como louvor ao homem «divino» (daimo-nios), que soube entender, na sua plena dimensão espiritual, o amorpelos jovens. Não obstante a «desordem» das ideias, reconhece-se umplano bem definido: todo o discurso se baseia no contraste entre oexterior de Sileno - a sua insolência (hybris), o excesso de tempera-mento erótico - e o interior, onde se descobre uma inata sabedoria.Através desta caracterização, que deliberadamente contrasta um novoperfil satírico com o que Aristófanes havia desenhado nas Nuvens,ressaltam, como nota profundamente pessoal, o domínio de si mesmo ea eironeia, bem patentes na cena de sedução. Essa aparência não obsta,porém, ao fascínio de uma superioridade moral que ainda, noutroaspecto, fazia de Sócrates um ser único entre todos. As palavras deA1cibíades testemunham até que ponto a «missão divina», que se referena Apologia, foi entendida por Sócrates, insinuando o erro de se vernele um corruptor da juventude e o responsável pelos actos políticosdesse discípulo, que expressamente afirma não ter querido seguir osseus conselhos.

C) Epílogo

Põe fim à série dos discursos um novo grupo de desordeiros, queinstaura desta vez a anarquia total. Aristófanes, Ágaton e Sócrates são

da imortalidade, com tudo o que de precário essa participação subentende. O queserá, pois, esta imortalidade do filósofo? No seguimento das premissas anteriores,será difícil discordar da sua interpretação como «uma eternidade de espírito, oposta àimortalidade individual» (e.g. Y. BRES, op.cit., p. 272). Sem procurarmos aqui umajustificação para o desvio óbvio de uma das doutrinas platónicas mais insistente-mente defendidas nos diálogos afins (e poderia sê-lo tão-só o papel dramático que opar Sócrates/Diotima desempenha neste contexto cénico ...) convirá lembrar aspróprias dificuldades que o conceito platónico de imortalidade pessoal levanta, nasua frágil associação à teoria da metempsicose: vide a análise de L CROMBIE, AnExamination oi Plato's Doctrines I, pp.303-325, esp.314; cf. a discussão desteponto na minha Introdução ao Fédon (Coimbra, Livraria Minerva,21988, pp. 22-24,n.l).

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os únicos que ainda de madrugada se conservam acordados. Este últimotenta convencer os outros dois convivas de que «aquele que tem a artede poeta cómico tem igualmente a arte de poeta trágico» 16. E final-mente ao romper da manhã, quando aqueles adormecem, Sócratesafasta-se, acompanhado de Aristodemo, para o Liceu, e aí inicia um diaigual a tantos outros, comprovando essa excepcional karteria, «resis-tência», que o discurso de Alcibíades tão nitidamente evidenciara.

O epílogo deixa-nos pois, como tema de meditação, um novoconceito estético de tragédia e de comédia, cujo alcance só devidamentese compreende associando o Banquete ao Fédon: a visão cómicado herói, no primeiro dos dramas, completa-se na visão trágica dosegundo. E assim a mimesis, «imitação», que à luz da Républica nãopassa de forma degradada do conhecimento, cópia de outras cópias(597e-599a), readquire a sua dignidade e o seu valor educativo quando,posta ao serviço da filosofia, se unifica nas representações distintas deuma mesma realidade superior.

16 Segundo R. ADRADOS, Platão põe aqui de parte o seu conceito de drama'como mimesis, «imitação» - conceito que levaria inevitavelmente a uma condena-ção idêntica à da República ou à defesa da imposição de uma censura, como nas Leis.Na esteira de KRÜGER, o paradoxo socrático explicar-se-ia por uma progressivaindistinção entre género cómico e género trágico, que a comparação entre os discur-sos de Aristófanes e de Ágaton evidenciaria. Esta dedução não parece, contudo,esclarecedora. Como ROBIN (p. VIII) creio que a chave mais provável do paradoxoestará no confronto entre o Fédon e o Banquete, obras que de facto se interligam«como uma tragédia e uma comédia, mas postas em cena, uma e outra, pela Filoso-fia». Breve, mas penetrante, é também a observação de C. J. ROWE em Plato,pp. 151-152: o que distingue o homem dotado de techne (<<arte»),é a sua «capacidadepara os opostos». Tal como o homem verdadeiro e bom (agathos) do Hipias Menor éo que é capaz de fazer mal e mentir, assim também o poeta que sabe representar aface trágica da vida deve saber representar a sua face cómica.

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FIGURAS DO DIÁLOGO

A) do Prólogo:

APOLODORO UM DOS COMPANHEIROS

B) da Narrativa:

ARlSTODEMOSÓCRATESÁGATONFEDROPAUSÂN!ASEroxíMAcOARlSTÓFANESALCIBÍADES

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APOLODOROQuanto às informações que vocês pretendem, julgo que estou em

boa forma para as dar... Ainda anteontem, por acaso, vinha eu de minhacasa, em Faléron, quando um conhecido meu me avistou de costas e meinterpelou de longe, em tom de gracejo: «Olha, o homem de Faléron!Tu aí, Apolodoro ... E se esperasses por mim?»

Eu parei e fiquei à espera.E vai ele: «Para te ser franco, Apolodoro, ainda há instantes que

andava à tua procura, pois desejava que me informasses do convívioque reuniu Agaton, Sócrates, A1cibíades e todos os outros que estive-ram presentes no festim. Que espécie de discursos sobre o amor fizerameles? Houve já quem me contasse - um indivíduo que tinha, por suavez, ouvido uma narrativa a Fénix, filho de Filipe, e me assegurou deque tu estavas também a par. Mas o certo é que não soube dizer-me nadade jeito! Conta-me tu, portanto, já que és a pessoa mais indicada paratransmitir as palavras do teu amigo ... Mas antes, diz-me: assististetambém ao tal convívio ou não?»

Comentei: «Estou a ver que esse teu narrador não te disse mesmonada de jeito, se pensas que o tal convívio de que me pedes informaçãofoi há tão pouco tempo que eu pudesse ter assistido ...»

«Foi a ideia com que fiquei», confirmou ele. ,«Como, Gláucon?» l exclamei. «Não sabes que Agaton já não

mora em Atenas há muitos anos e que, por minha parte, ainda não

r;_

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I Deve tratar-se aqui, tal como sucede com Fénix, filho de Filipe, a seguirmencionado, de uma personagem desconhecida ou mesmo imaginária: há quemprocure, no entanto, identificá-Ia com o irmão de Platão ou com o seu tio-avô. pai deCármides, ambos personagens familiares nos diálogos platónicos.

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decorreram três anos desde que comecei a andar com Sócrates e meesforço, em cada dia, por conhecer a fundo as suas palavras e os seusactos? Antes, vogava por aí ao sabor da corrente, convicto, como-estava, de me ocupar de coisas úteis - e era mais digno de compaixãoque ninguém! Precisamente como tu agora, que achas toda e qualqueractividade preferível à filosofia ...»

«Vamos, não troces», atalhou ele, «e diz-me lá quando é que sedeu esse convívio.»

Esclareci então: «Foi quando Ágaton saiu vencedor com a suaprimeira tragédia, éramos nós ainda crianças. Mais concretamente, foino dia a seguir ao das celebrações que ele promoveu com os seuscoreutas em acção de graças pela vitória.» 2

«Então já deve ter sido há muito tempo!», comentou Gláucon.«Mas quem é que te fez a narrativa? Foi mesmo Sócrates?»

Repliquei: «Não, por Zeus! Foi o mesmo que a contou a Fénix, umtal Aristodemo da tribo cidateneia, um homem baixito, sempre des-calço ... Esse sim, assistiu ao convívio, como apaixonado que era deSócrates - e, salvo erro, dos mais fervorosos à altura! Claro quedepois não deixei de inquirir Sócrates sobre uns quantos pormenores danarrativa de Aristodemo e em todos eles recebi a confirmação do quelhe havia escutado.»

«Vamos», incitou ele, «porque não ma contas a mim também?Fora de dúvida, a estrada que leva à cidade é tão própria para falar comopara se ouvir enquanto se caminha ...»

E assim lá fomos nós, estrada fora, ocupados neste tema de con-versa, de modo que, como dizia de início, me encontro em boa forma.E, se vocês me requerem para fazer essa narrativa, é mesmo dever meufazê-Ia: no que me diz respeito, sempre que se proporciona ocasião paraconversar sobre filosofia, seja eu ou outro qualquer a falar, ninguémimagina a alegria que sinto, para além do proveito que delas esperotirar! Trate-se, porém, de outro género de conversas - sobretudo essasque vocês, homens ricos e negociantes, costumam ter - e eis-meinvadido por um mal-estar profundo. Mais: tenho pena de vocês e dosvossos amigos, convictos, como estão, de se ocuparem de algo quevalha a pena quando as vossas ocupações nada valem! De mim podem

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2 Era costume em Atenas o vencedor organizar festas em acção de graças, queconsistiam sobretudo nos epinícios ou «cantos de vitória». Por vezes eram os coreu-tas ou os amigos que tomavam essa iniciativa.

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Sempre o mesmo, Apolodoro! Sempre a desfazeres em ti e em todaa gente! Até dá ideia de que, na tua opinião, todos nós, à excepção deSócrates, não passamos de uns infelizes - a começar em ti mesmo.Onde terias tu arranjado esse epíteto de «temo», ainda estou para saber.O certo é que nas tuas conversas te mostras sempre assim: agressivopara contigo e com toda a gente, salvo Sócrates.

também vocês achar que nasci sob uma má estrela ... e acho que julgamcerto. Mas eu a vosso respeito não acho, tenho a certeza! 3

COMPANHEIRO

APOLODORO

Meu excelente amigo! É isso então que ressalta das ideias que faço ea respeito de mim e dos outros? Que perdi o juízo e estou apanhado detodo?

COMPANHEIRO

Não vale a pena, Apolodoro, estarmos agora a discutir por causadisso ... Vamos, não fujas ao assunto e conta-nos lá que discursos é quese fizeram.

APOLODORO

Pois bem, foram mais ou menos deste teor... Ou melhor, vou tentar 174fazer-vos a narrativa desde início, tal como a ouvi a Aristodemo.

Narrativa de Aristodemo

Contou, pois, Aristodemo que encontrou Sócrates ainda fresco dobanho e com umas luxuosas sandálias nos pés, coisa que nele era rara.E perguntando-lhe onde ia assim todo ataviado, respondeu-lhe ele:

- Jantar a casa de Ágaton! Ontem escapei-me dele, durante ascomemorações da vitória, pois as multidões intimidam-me. Mas com-

3 Os amigos de Apolodoro, tanto Gláucon como aqueles a quem se dirige nomomento do diálogo, são apenas «amadores» da filosofia; os discursos filosóficospoderão intelectualmente seduzi-Ios, mas não desviá-Ios da sua esfera de interesses,essencialmente «prática». Entre a vida filosófica (cada vez mais tendendo para uma

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prometi-me a estar hoje presente. Por isso me ataviei assim, paraaparecer belo em casa de um homem belo ... Quanto a ti, que dizes àideia de aparecer no jantar sem convite?

- Cá por mim - respondeu - é como mandares.- Acompanha-me então - decidiu Sócrates. - Vamos virar às

avessas o provérbio e dizer que «aos jantares de um homem de bemaparecem os bons espontaneamente» 4. Aliás, é provável que tenhasido Homero a virar às avessas o provérbio e até a fazer pouco dele ...O facto é que, depois de apresentar Agamémnon como um homem deexcepcional valor na guerra e Menelau como «um fraco guerreiro», põe

c Menelau a aparecer sem convite à mesa de Agamémnon, na altura emque este propiciava os deuses com um festim. Foi, portanto, o homemsem méritos a aparecer no jantar de um homem emérito ...

Replicou-lhe Aristodemo: - Quem sabe? Talvez o que dizes nãose aplique a mim e seja antes, como em Homero, uma pessoa insignifi-cante a aparecer sem convite no festim de um homem insigne ... Se me

d levares, vê, pois, a justificação que vais dar porque, por mim, não meresigno a dizer que chego sem convite: digo que sou teu convidado!

- «Os dois, avançando um a par do outro» 5, decidiremos então oque convirá dizer - rematou Sócrates. - Vamos!

Conversando mais ou menos nestes termos, puseram-se a cami-nho. A dado momento Sócrates, embrenhado em qualquer reflexão 6,

e deixou-se ficar para trás e, ao ver que Aristodemo estava parado à sua

theoria) e a vida dos negócios, nota-se um distanciamento progressivo; e o desprezode Sócrates em relação às coisas exteriores - como a riqueza, por exemplo(cf. 219c) -, levado ao exagero pelos Cínicos, deve ter contribuido decisivamentepara esse distanciamento.

4 Conhecemos duas formas desse provérbio: «as pessoas de bem vão esponta-neamente aos jantares dos homens vis» e «as pessoas de bem vão espontaneamenteaos jantares dos bons». Platão deve ter este em vista, pois imediatamente a seguirironiza o uso que Homero dele faz em relação a Menelau, noutros pontos retratadocom um «fraco guerreiro» (Ilíada XVII, 588). Note-se que no referido episódio daIlíada não há qualquer malícia da parte de Homero, pois Menelau vai ter comAgamémnon para o consolar no momento em que este, já desanimado, pensa desistirda luta (II, 408 sqq.).

A alteração ao provérbio pressupõe um jogo de palavras entre o nome deÁgaton e o adjectivo agathos, «bom».

5 Verso da Ilíada (X, 224) que se tomou proverbial.6 Este hábito de recolhimento ou concentração nas situações mais inesperadas

devia ser um traço bem característico do Sócrates real, que o discurso de A1cibíadesretoma. Aristófanes recorre igualmente a este motivo para caricaturar Sócrates nasNuvens.

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espera, ordenou-lhe que fosse andando. Quando este chegou a casa deÁgaton, encontrou a porta aberta e, segundo referiu, aí se passou umacena com o seu quê de cómico. Um dos criados que estavam lá dentroveio de imediato ter com ele e conduziu-o à sala onde se encontravamos outros convivas, que ele surpreendeu já quase no jantar. Ágaton,logo que o vê, exclama:

- Em boa hora chegas, Aristodemo. para jantar connosco! Sevieste por outro motivo, guarda-o para depois. Ainda ontem, justa-mente, andei à tua procura para te convidar, mas não consegui encon-trar-te. Mas Sócrates? Como é isso arranjado que não o trazes contigo?

Só então (contava Aristodemo) ao voltar-me para lodos os lados,dei conta de Sócrates não vinha atrás. Disse. por fim:

- Mas era mesmo com Sócrates que eu devia vir. pois foi elequem me convidou para o teu jantar!

- Quanto a ti - replicou Ágaton -. tudo bem. ~1as ele. onde semeteu?

- Ainda não há instantes que vinha atrás de mim; também eu 175estou admirado e me pergunto onde se terá metido:

- Vamos, rapaz! - ordenou Ágaton a umdescobres Sócrates e o trazes para cá. Quanto a ti. .tala-te aí, ao lado de Erixímaco.

Veio então um criado lavar-lhe os pés paraEntretanto, eis que aparece o outro com a notícia dese tinha acolhido no pátio de um dos vizinhos erecusando-se a ir por mais que ele o chamasse.

- Estranho, o que me contas! - comentou Ãgaron, - E tudesistes assim da empresa? Não voltas a chamá-lo?

- Nem pensar - interveio Aristodemo. - Deixem-no em paz. bÉ já um hábito muito dele: de vez em quando afasta-se para onde calhae aí fica especado. Mas, pelos meus cálculos. deve estar já a chegar. Nãoo perturbem, deixem-no sossegado!

- Assim faremos então, se achas melhor - concordouÁgaton. - Quanto a nós, rapazes, vamos ao nosso festim. Tragam-nostudo o que quiserem, uma vez que ninguém vos está a vigiar - coisa,de resto, que eu nunca fiz ... Façam, de coma, pois, que eu e estesamigos somos vossos convidados e sirvam-nos o jantar de modo amerecer os nossos elogios. c

Em seguida começaram a jantar. Sócrates, entretanto, nada deaparecer! Ágaton ainda propôs várias vezes mandá-Ia buscar mas Aris-todemo não deixava. Ei-lo, enfim, que aparece, não com tanto atrasoquanto era costume: de facto, estavam, quando muito, a meio de jantar.

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festa de ontem. Vejam lá, pois, qual será a forma mais aprazível debebermos.

- Tens muita razão, Pausânias - acudiu Aristófanes -. em nomentalizares de algum modo para uma certa tolerância na bebida: eutambém fui dos tais que ontem se encharcaram ...

A estas intervenções seguiu-se a de Erixírnaco, filho de Acúmeno:- Bem vindas, as vossas palavras! Só me falta consultar aqui a opiniãode um de vocês ... Ágaton, que tal te sentes de forças para beber?

- Muito mal - respondeu ele -, também eu não me sinto com cforças.

- Que belo achado, dá ideia, não só para mim como para Aristo-demo, Pedro e para todos estes que aqui estão, se vocês, os maisvalentes na bebida, renunciam por hoje! Nós, já não admira: fomosempre fracos ... Quanto a Sócrates, está fora de causa: é igualmentebom nas duas modalidades e tanto lhe faz que adoptemos esta comoaquela regra 10. E já agora, que nenhum dos presentes parece comgrande disposição para beber em excesso, talvez não seja inoportunodizer-vos com franqueza o que penso sobre o hábito de embriaguês. dA meu ver, aí está uma coisa que a medicina prova à evidência, ou seja,que a embriaguês só traz malefícios às pessoas. E, por minha parte, nemdesejaria ir muito além na bebida nem o aconselharia a quem quer quefosse, especialmente quando ainda se tem a cabeça pesada da véspera 11.

- Não há que ver! - atalhou Pedro de Mirrinunte. - Pela parteque me toca, costumo seguir sempre os teus conselhos, sobretudoquando se trata de medicina. E os demais, se forem pessoas de juízo,não deixarão hoje de fazer o mesmo.

Ao ouvi-lo todos concordaram, é claro, em não fazer do convívio edessa noite uma competição de bebidas e em beber apenas consoante avontade.

- Muito bem - comentou Erixímaco. - Uma vez que está esta-belecido que cada um beba apenas o que quiser, sem coacções nenhu-mas, a minha proposta seguinte é que se mande passear a tocadora de

10 Neste passo define-se o respectivo grau de resistência ao vinho em cadaconviva: enquanto Pausânias, Aristófanes e, sobretudo, Ágaton e Sócrates são consi-derados «fortes» (no fim vemos que apenas estes três últimos conseguem aguentar-sede pé), Fedro, Erixímaco e Aristodemo incluem-se entre os fracos; de facto, Fedro eErixímaco escapam-se, logo que o banquete ameaça degenerar em orgia, e Aristo-demo cedo adormece, para só acordar de madrugada.

II O pendantismo científico é um dos traços mais evidentes na caracterizaçãode Erixímaco.

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flauta que entrou há momentos: ela que toque para si ou para a,mulheres da casa, se lhe aprouver. E quando a nós, aproveitemosconvívio de hoje para discursos. Mas que género de discursos? Esto,disposto a sugerir-vos um tema, se vos interessa.

Toda a gente se declarou interessada e o incitou a apresentar a SD-

sugestão. Prosseguiu então Erixímaco:- Começo por dizer, como na Melanipe de Eurípides: «não sã.

minhas estas palavras» 12, mas aqui do nosso Fedro. A toda a hora ~momento aí está ele a encher-me os ouvidos com os seus queixumes«Não é impressionante, Erixímaco, como vemos por aí os poetascomporem hinos em honra dos mais variados deuses, e em honra deAmor, um deus tão antigo e ilustre, nenhum desses poetas ilustres deagora lhe faz sequer um encómio? Mesmo os bons autores de prosa, sete dignares reparar neles, aí os tens a escrever elogios de Héracles e deoutros deuses, como o nosso excelente Pródico 13. E isto ainda não é cmais extraordinário: às minhas mãos até já veio parar um livrinho deum desses talentos onde o sal era exaltado até às nuvens por causa dasua utilidade! E outras ninharias que tais podes ver a cada momentoenaltecidas. Nisso sim, aplicam eles todo o seu zelo; trate-se, porém deAmor, e verás que até ao dia de hoje ainda nenhum homem ousoudirigir-lhe um cântico condigno. E assim se põe de lado um deus tãopoderoso ...» Ora, eu acho que Fedro tem razão nos seus queixumes epor isso, ao mesmo tempo que pretendo apaziguá-lo com este contri-buto, acho também que a ocasião presente é a ideal para nós, que aquiestamos presentes, celebrarmos o deus. Se estiverem todos de acordo.uma boa maneira de passar o tempo será aplicá-Ia em discursou.A minha opinião, aí a têm: cada um de nós deverá apresentar umdiscurso de elogio ao Amor, o mais belo que lhe for possível, seguindopela direita. O primeiro a falar será naturalmente Fedro, já que ocupa oprimeiro lugar e já que é ele, também, o pai da ideia.

- Ninguém vai votar contra a tua proposta, Erixímaco - apoiouSócrates. - Não seria decerto eu a rejeitá-Ia, eu que faço profissão de

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12 Eurípedes escreveu duas peças com este nome. A citação pertence à Meia-nipe Sábia (fr. 488 Nauck).

13 Sofista contemporâneo de Sócrates, que se distinguiu no campo da sino-nímia. Foi também autor de uma alegoria (resumida em Xenofonte, Mem. 2.1.21-34em que Héracles é posto perante a escolha do Vício ou da Virtude. A referênciaseguinte parece aplicar-se ao orador Polícrates.

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nada mais saber a não ser de amor. .. 14 Tão pouco Ágaron ou Pansâniassuponho. E muito menos Aristófanes, que consagra todo o seu tempo aoserviço de Dioniso e de Afrodite! 15 Nem qualquer destes que tenho ediante dos olhos ... E muito embora nós, os que ocupamos os último:lugares, não fiquemos em igualdade de circunstâncipor satisfeitos se aqueles que nos precederem falaremdevem. Fedro que comece, portanto, o seu panegírico ehora!

Todos os outros se manifestaram de acordo com a interveSócrates e secundaram o seu incitamento. Com respeito aoque cada um fez, é claro que Aristodemo não reteve todos os pormeno-res, como também eu não retive tudo aquilo que ele me contou,Cingindo-me, porém, ao essencial e aos oradores que me parecemais dignos de menção, passo a referir-vos os discursos apresentado-por cada um deles.

Foi portanto Fedro, como digo, o primeiro a apresentar o seudiscurso, começando mais ou menos por afirmar que «o Amor era umgrande deus, um deus extraordinário aos olhos dos homens como dodeuses, por muitos e variados motivos, entre os quais avultava o da suaorigem.»

Efectivamente - prosseguiu - as honras de que goza devem-se bao facto de se incluir entre os deuses mais antigos 16, e a prova é que nãoteve pais nem há poeta ou prosador algum que fale deles. Hesíodo, porexemplo, diz que primeiro surgiu o Caos,

....... depoisa Terra de vasto seio, suporte inabalável de tudo e o Amor ...

14 Para esta afirmação, cf. Lísis 204c e Pedra 257a. De facto, no BaIU[U6

Sócrates revela-se como a personificação do verdadeiro erastes, «amante».15 A alusão a Dionisio e a Afrodite é ambígua: Sócrates não só tem em vis

arte do comediógrafo (Dionisio é também o deus do teatro) como ainda' .ironicamente a sua propensão para a bebida e para os prazeres sensuais.

16 Este ponto de vista será mais adiante contrariado por Ágaron,que vê .mente em Eras o mais jovem dos deuses (cf. 195b). Fedro apoia-se na micitando, num alarde de erudição sofística, não só poetas como Hesíodo (cf. Ti116 sqq.) e Parménides (fr. 13 Diels), mas ainda prosadores: é o caso de A,autor do século V a. c., que escreveu várias genealogias baseadas em H '

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E com Hesíodo concorda Acusilau, que também diz que a segui:ao Caos vieram estes dois, a Terra e o Amor 17. Por sua vez Parménidesao falar da Geração, afirma:

... pensou primeiro no Amor antes de todas as divindades. 18

c E assim em variadas fontes há acordo em reconhecer que o Amo:se conta entre as divindades mais antigas. Ora, é em virtude desseestatuto que dele nos provêm os maiores benefícios.

Por minha parte, pelo menos, não posso imaginar um bem com-parável ao do jovem que desde cedo possui um amante digno, ou ao deamante que encontra um amigo igualmente digno. Mais, é essencial queos homens que se dispõem a viver uma vida plenamente bela secapacitem deste facto: nem a nobreza de parentesco, nem os cargos deprestígio, nem a riqueza nem qualquer outra coisa são capazes de

d inspirar feitos tão belos como o amor. E em que me baseio para o dizer?Concretamente, na vergonha de cometer acções vis e na emulação queas acções belas suscitam. Sem estes dois requisitos não é possível c.qualquer Estado ou a qualquer indivíduo realizar algo de belo e gran-dioso. E por isso vos asseguro: todo o homem que ama, se é apanhadocometer qualquer vileza ou a sofrê-Ia da parte de alguém, sem sedefender por cobardia - nem à vista de seu pai nem dos seus camara-

e das nem de outra pessoa qualquer se sentirá tão mal como na presençado seu amado! E a respeito deste último observamos exactamente omesmo: é sobretudo na presença do seu amante que se envergonha.quando supreendido em qualquer vileza.

Assim, se houvesse processo de constituir um Estado ou umexército só de amantes e de amados, que organização melhor poderiaencontrar-se? 19 Homens como estes, afeitos a repudiarem toda a espé-

17 A citação de Hesíodo (Teogonia 116, 117, 120) no passo assinalado temlevantado suspeitas sobre a autenticidade dos vs. 118-119 que Platão parece ignorar.bem como Aristóteles em Metafísica 984a 27; de resto, a referência ao Tártaro(v. 119) seria neste contexto deslocada. Mas dado que todos os mss. apresentam osdois versos e outros autores também os citam, parece que não há razão para duvidarda sua autenticidade (cf. M. L. West, Hesiod Theogony, Oxford, 1966, pp. 193-195)_

18 Alguns autores supõem que o sujeito de «pensou» é a Geração personificada:Plutarco, por sua vez, fala em Afrodite (Amatores 756 sqq.). Mas pode igualmentepensar-se na Justiça (cf. fr. 8 Diels, vv. 13-15) que, como Simplício afirma, faznascer o amor (frs. 39 e 18 Diels).

19 A noção homérica de are te, que se limita exclusivamente ao indivíduo, ealargada à esfera da polis. Atenas, com a sua multiplicidade de interesses, difícil-

36

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cie de vileza, a emularem entre si na honra e a exercitarem-se em pelejas 179uns com os outros, mesmo em pequeno número, seriam, por assimdizer, capazes de vencer o mundo inteiro! E a razão é que o amanteaceitaria mais facilmente desertar das fileiras ou largar as armas à vistade qualquer outra pessoa do que do seu amado: na presença deste,preferiria mil vezes morrer! Quanto a deixar para trás o seu amado e nãoo socorrer em caso de perigo ... não há homem nenhum tão fraco a quemo próprio Amor não inspire actos de bravura e não torne igual aos bbravos por natureza. Em suma, o que diz Homero a respeito de algunsheróis, que «o deus lhes insufla coragem» 20, esse dom concede-oespontaneamente o Amor aos amantes. Mais ainda, apenas os queamam - e refiro-me não apenas aos homens mas às mulheres tam-bém - se dispõem a morrer por outrem.

Justamente Alceste, a filha de Pélias 21, oferece um testemunhoclaro desta afirmação a todos os Helenos. Ela foi, de facto, a única cpessoa que se dispôs a morrer na vez do marido, muito embora o pai e amãe dele fossem ainda vivos: o amor que ela dedicava ao maridosuperou em tanto a amizade dos próprios pais, que estes mais pareciamuns estranhos em relação ao filho, aparentados, quando muito, denome ... E ao proceder como procedeu, o seu gesto afigurou-se de umatal beleza, aos olhos dos homens como até aos dos deuses, que umprivilégio limitado a bem poucos, entre tantos que avultaram pelo

mente julgaria realizável um tal programa; mas Fedro deve ter em vista as cidadesdóricas. Efectivamente, em 371 a. C. (seis anos depois da data provável da composi-ção do Banquete), o «batalhão sagrado de Tebas» vem provar que as concepções deFedro não eram tão alheias ao seu tempo como poderia parecer.

20 Citação da llíada X, 482 (cf. XV, 262). Note-se que Fedro se contradiz maisadiante (l79d), apresentando Orfeu como exemplo do homem cobarde, «que não tevea coragem de morrer por amor». Com este passo, compare-se o testemunho deAlcibíades a respeito de Sócrates (220e), que se recusa a abandoná-I o ferido nabatalha e não só consegue salvar-lhe as armas mas também a vida.

21 A lenda em que Fedro se baseia, e que foi dramatizada por Eurípides, refereque, chegando o momento de Admeto morrer, ApoIo pediu às Parcas a graça de lheprolongarem a vida, se alguém se oferecesse para tomar a sua vez. Alceste consente,mas é ressuscitada por Héracles, que no próprio dia do funeral se acolhera em casa deAdmeto que, embora inconsolável com a morte da esposa, não quis deixar de cumprirpara com ele os deveres da hospitalidade. Em Eurípides, vemos que apesar do amorpelo marido e pelos filhos, que doutro modo ficariam desamparados, o que moveAlceste é a consciência de que, pela glória, será recompensada pelo seu sacrifício.Assim também Sócrates interpreta o seu gesto e o de Aquiles, atribuindo-os ao amorda glória que é, em última análise, amor da imortalidade (vide Alceste 292, 324;cf. Banquete 208d).

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d número e pela beleza dos seus feitos, lho concederam os deuses a el,que a sua alma regressasse do Hades. E concederam-no, levados ~admiração que o seu gesto lhes suscitou. Tal é, pois, o apreço quepróprios deuses manifestam pela dedicação e pela virtude que o éL

inspira.Já a Orfeu, o filho de Eagro 22, mandaram-no embora do H2._

sem conseguir o seu objectivo, e em vez de lhe entregarem, em carrosso, a mulher que ele tinha vindo buscar, lhe mostraram apenas _fantasma dela. É que lhes pareceu cobarde a sua atitude (coisa nart:de resto, num tocador de cítara ...), visto que não teve a coragemsacrificar a vida por amor, como fez Alceste, e preferiu servir-seartimanhas para entrar vivo na Hades. E eis a razão por que os deusecastigaram e lhe destinaram a morte às mãos de mulheres.

Pelo contrário a Aquiles, o filho de Tétis, testemunharam o -;apreço enviando-o para as ilhas dos Bem-Aventurados 23, e eis porq_embora prevenido por sua mãe de que o esperava a morte, se mata-Heitor, e de que, em caso contrário, havia de regressar à sua tem.acabar os seus dias na velhice, optou sem hesitação por ir em socorro ~seu amante Pátroc1o e vingá-lo 24; ou seja, não apenas escolheu morpor ele como também segui-lo na morte. Daí que os deuses, tocacpela mais funda admiração, o tenham honrado de uma forma :..:.especial, correspondendo ao elevado apreço que aquele mostrara pcseu amante.

É uma tolice o que Ésquilo apregoa, ao falar de Aquiles coeamante de Pátroc1o ... Aquiles, cuja beleza excedia não apenas a .:

e

180a

22 Fedro altera os dados da lenda: o dom que eleva Orfeu acima dos ouc:homens - a música - e lhe abre as portas do Hades é, segundo ele, a causa da s.;desgraça; os deuses não se deixam enganar pelos seus cantos comoventes, antes vêe:neles uma prova de cobardia. Cf. República 399a: todos os modos musicaisexcepção do frígio e do dório, são criticados por amolecerem os espíritos. Note-sque no Laques 118d, só é aceite o modo dório. Depois da tentativa inútil P'~recuperar Eurídice, Orfeu foi despedaçado pelas mulheres da Trácia, que assim >vingaram do seu desprezo por elas.

23 Outras variantes da lenda situam Aquiles na ilha de Leuce e ainda D-

Campos Elísios. Píndaro cita duas versões do mesmo mito: nos vv. 79-83 da _Olímpica diz-se que Aquiles habita nas Ilhas dos Bem-Aventurados; a IV Nemeia (,-49-50) localiza-o numa ilha do Ponto Euxino (Leuce). Vide Maria Helena da RocePereira, Concepções Helénicas de Felicidade no Além, Coimbra, 1955, pp. 34-35.

24 Veja-se a profecia de Tétis (mãe de Aquiles) em lliada IX, 410-416. ~-canto XVITI decide-se a escolha de Aquiles (121-126).

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Pátroclo como a de todos os outros guerreiros juntos! Sendo, de resto,muito mais novo, conforme testemunha Homero, pois não tinha aindabarba 25. Ora, se não restam dúvidas de que os deuses avaliam ao maisalto grau essa forma de mérito que se associa ao amor, não é menoscerto que a admiram e apreciam ainda mais nas suas recompensasquando é o amado que dá mostras de afeição pelo seu amante do que nocaso inverso 26. Efectivamente, o amante tem em si algo de mais divinodo que o amado, é a divindade que o inspira. E por isso os deusconcederam maiores honras a Aquiles do que a Alceste. ao enviá-lopara as ilhas dos Bem-Aventurados.

Aí está, por minha parte, o que tenho a declarar-vos sobre o Amor:ele é não só o mais antigo e venerável dos deuses como o que tem maispoder para levar os homens a alcançar o mérito e a felicidade, tanto navida como após a morte.

b

cTal foi, mais ou menos, o discurso de Fedro, de acordo com o meunarrador. Seguiram-se-lhe alguns outros de que não estava já bemlembrado, pelo que os pôs de parte, passando a referir-me o discurso dePausânias. Eis as suas palavras:

- Não me parece lá muito feliz, Fedro, essa simplicidade comque o tema nos é lançado e se reclama de nós um panegírico do Amor!Estaria bem, claro, se houvesse apenas um deus Amor, mas não é ocaso. E visto que não há apenas um, o caminho mais correcto é definirpreviamente a qual dos Amores convém dirigir os nossos elogios. Vouassim tentar corrigir a tua falta, quero dizer: procurar, antes de mais,definir a espécie de Amor que devemos elogiar e fazer em seguida umelogio condigno da sua divindade 27.

É bem conhecido de todos nós que não há Afrodite sem Amor. Sehouvesse, portanto, uma só Afrodite teríamos também um só Amor.Mas o facto é que há duas e, como tal, necessariamente dois Amores ...Sim, porque a existência das duas deusas nem tem discussão! Uma, amais antiga e que não teve mãe, é filha do Céu - e eis a Afrodite que

d

25 Cf. Ésquilo, Mirmidões, fr. 228 Mette, e Iliada XI, 786.26 Esta distinção entre erastes, «amante», e paidika, «amado», será mais demo-

radamente debatida no discurso de Pausânias.27 Seguindo as boas regras da retórica, Pausânias estabelece, como primeira

condição, a necessidade de definir o objecto do discurso; Ágaton e Sócrates farão omesmo (l95a, 199c; cf. infra, Fedro 237c).

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e

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designamos também de celeste; a outra, a mais recente, é filha de =:e de Dione - e eis a Afrodite a que chamamos popular 28. A se+exactos, portanto, impõe-se, que chamemos popular ao Amoracompanha esta última, e demos ao outro a designação de celeste. :se é certo que todos os deuses têm direito ao nosso louvor, cabe-nosentanto, delimitar o âmbito específico das suas competências. É, ai:.-o que se passa em toda e qualquer a actividade: nenhum acto, CoIlSrado em si e por si mesmo, é belo ou vil, tal como as nossas ocupa;de agora - beber, cantar, conversar. .. -, nenhuma delas têm pc-mesmas qualquer beleza. O que determina essa qualidade num acteseu modo de realização: se o realizamos de forma bela e digna.resulta belo; em caso contrário, vil. Assim acontece quando amarnem toda a espécie de amor é bela e digna de elogios, mas apenas ao;que nos incita a amar com nobreza.

Ora bem: o amor correspondente à Afrodite popular 29, ccpopular que é, no seu pleno sentido, deixa ao acaso as consequên:dos seus actos. E tal é, justamente, o amor em que se comprazerrpessoas vulgares: pessoas, antes de mais, a quem é indiferente apainarem-se por mulheres ou por rapazes; em segundo lugar, que arr__neles os corpos de preferência às almas e essas mesmo, só as rr.destituídas de inteligência que conseguem encontrar! Na verdade, tL

o que procuram é a satisfação dos impulsos, sem se importarem corque é ou deixa de ser digno. Daí que o seus actos, inteiramente dita-pelo acaso, possam resultar umas vezes bem e outras vezes, mal 30. E:porquê: na origem desta espécie de amor está a deusa que é, de longemais recente das duas e que participa, pelo nascimento, de ambossexos - o feminino e o masculino. Quanto ao amor da deusa celeste -ela é, antes de mais, a deusa que não participa do sexo feminino rr..tão-só do masculino (e aí têm vocês o amor pelos jovens ...) e que aledisso, por ser a mais antiga e venerável, não conhece o excesso.

b

c

28 As duas variantes da lenda sobre a origem de Afrodite reflectiam-se no eu,em Atenas havia um templo dedicado a cada uma delas. A Afrodite pander(popular) devia primitivamente ter sido considerada como divindade protectora L

demoi e das hetairiai; porém, nos fins do século V, já tem atribuições idênticas às _Vénus meretrix em Roma.

29 A Afrodite popular representa o amor excessivo, que conduz à violêr.:(hybris), como foi precisamente o amor de Zeus por Dione.

30 Com esta descrição do «amor popular» compare-se o discurso de Lísias õ

primeiro discurso de Sócrates no Fedro.

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nova ou velha, verá aí motivo de condenação. A causa, a meu ver, é quedeste modo, se poupam ao esforço de persuadir os jovens, dado que nãsão capazes de exprimir-se. Já na Iónia e em muitas outras regiões-

c todas as que estão sob o domínio dos Bárbaros - a norma condena eprática. Entre os Bárbaros, nomeadamente, o regime da tirania con-denou-a ao mesmo descrédito a que vota também o culto da sabedoriaa ginástica: não convém aos govemantes, suponho eu, que os seussúbditos acalentem pensamentos elevados e muito menos amizadesuniões fortes como só o amor, acima de tudo, costuma inspirar. .. Eslição, de resto, aprenderam-na à sua custa os tiranos atenienses, pois fio amor de Aritogíton por Harmódio e a amizade deste pelo amante quederrubaram o seu poder 33.

Em resumo, onde as instituições condenam a afeição de um joved por um amante, a situação mantém-se por defeito dos seus responsá-

veis - tanto os govemantes, com a sua ambição, como os súbditocom a sua cobardia. Mas também onde a norma aprova sem reservas talprática, a causa está na estreiteza de vista daqueles que a instituiram..

Aqui em Atenas a norma vigente é de longe mais interessante.embora, repito, menos fácil de entender. De facto 34, se dermos crédito àvoz corrente, que afirma que é mais honroso amar à vista de todos doque às ocultas, e amar em especial os que se distinguem pelo nasci-mento e pelo mérito, ainda quando fisicamente menos dotados; se repa-rarmos no estímulo extraordinário que o amante recebe de toda a gente.

e como se a sua atitude nada tivesse de desonrosa; na glória que lhe trazum sucesso amoroso enquanto, por outro lado, um fracasso o despres-tigia; ou ainda na liberdade que a norma lhe concede, quando inicia umaconquista, de se gabar das suas extravagâncias, extravagâncias queninguém teria a coragem de cometer, se a sua intenção e os seuesforços não visassem exclusivamente este fim, sob pena de incorrernas mais severas críticas [da filosofia]. .. Sim, porque a supor que um

183a indivíduo, na mira de obter dinheiro, cargos ou qualquer posição de

33 É tradicional a associação entre a pederastia, a filosofia e a ginástica, por umlado, e a democracia por outro. Note-se que foi uma questão de ciúmes e não um idealde liberdade que levou Aristogíton e Harmódio em 514 a. C. a assassinar Hiparco.filho do tirano ateniense Pisístrato; Harrnódio morreu no próprio local e Aristogítonfoi condenado à morte. Depois da queda definitiva da tirania, em 510 a. c., ambosforam consagrados como heróis da democracia. O incidente é relatado por TucídidesVI, 54, e I, 20.

34 Longo anacoluto; a conclusão da frase está em 183e: «a partir destes factosnão faltaria, claro, quem supusesse ...»

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influência, se prestava a assumir junto de outro atitudes que por via deregra o amante tem para com o amado - a requestã-lo com súplicas erogos, a pronunciar juramentos solenes, a dormir à sua porta. enfim, asubmeter-se a uma escravidão tal que nenhum escravo a aceitaria --lá estariam, tanto os amigos como os inimigos, para o impedir deproceder assim: estes, a verberarem-lhe a lisonja e o servilismo: aque-les, a repreenderem-no e a envergonharem-se por ele. Mas no amantetodas estas extravagâncias são perdoáveis, as normas não desacreditamo seu procedimento, antes parecem aceitá-Ia como sinal de máximadistinção. E o mais espantoso - pelo menos o vulgo assim o diz - éque apenas esse logra o perdão dos deuses quando quebra os seusjuramentos, pois, como reza o ditado, «juras de amor não têm valor» ...Por aqui se vê que tanto os deuses como os homens outorgam ao amanteliberdade plena, como aliás o confirma o norma vigente entre nós.

A partir destes factos não faltaria, claro, quem supusesse que osinal máximo de distinção, no nosso Estado, é amar os jovens ouoferecer a sua afeição a um amante... Entretanto, quando os paisproibem os filhos de ter conversas com amantes e transmitem expressa-mente essa ordem aos preceptores encarregados de os vigiarem 36, osjovens da mesma idade e os camaradas não deixam de criticar se vêemalguma coisa do género, e nem os mais velhos impedem as suas críticasnem os repreendem por falar sem razão. Vendo os factos por esteprisma, não faltaria também quem supusesse que tal hábito é aquiencarado como sinal da máxima infâmia ...

Ora, em meu entender, o que se passa é o seguinte: como ficou ditode início, o amor não tem uma natureza simples, bela ou feia em simesma: é belo, se realizado com beleza, e feio, se realizado com vileza.Vileza, é quando se concede uma afeição indigna a um homem indigno;e nobreza, quando se concede uma afeição digna a um homem de bem.E por indigno entendemos justamente esse amante popular, que prefereo amor do corpo ao amor da alma, e não guarda constância porque o

35 Esta descrição assemelha-se bastante, como observa Goul (Platonic Love,Londres, 1963, p. 28), às descrições helenísticas e romanas das atitudes extravagan-tes de um jovem que procura obter o amor de uma jovem. Compare-se este passo como Fedro 250a, onde Platão descreve, em termos idênticos, os efeitos do «delírioamoroso».

36 O preceptor (paidagogos) era o escravo a quem os pais confiavam os filhos,desempenhando funções idênticas às de um aio. O seu papel na educação das criançasé salientado, e. g., no Protágoras 325c.

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c

d

e

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objecto a que se prende não é também constante: logo ao passar a flcjuventude, objecto da sua paixão, «evola-se e desaparece» 37, reneg.;as suas muitas promessas e discursos. Pelo contrário, aquele que _alguém pela beleza do seu carácter, esse permanece fiel pela vida -:

184a porque se funde com o que é constante. São portanto, estes, qr-nossas instituições visam pôr à prova, para averiguar com jus-aqueles a quem se deve conceder afeição e aqueles a quem se crecusá-Ia. E com este fito se recomenda a uns que persigam e a otque se defendam, a fim de ajuizar, nesta competição, a qual das duastegorias pertencem tanto o amante como o amado 38. Esta, a verdaderazão por que se condena todo o jovem que se deixa seduzir desde 1(';sem dar tempo ao tempo - que, na generalidade dos casos, se afig,um excelente juiz; como se condena também todo aquele que se de,seduzir a troco de dinheiro ou de influências políticas, seja por faltacoragem, com receio de sofrer represálias, seja por falta de es..-

b pulos em aceitar dinheiro ou cargos políticos como recompensa. 8::tivamente, não é de crer que qualquer destes motivos ofereça segura=e estabilidade, nem tão pouco que daí possa resultar uma amizanobre!

As nossas instituições deixam, por conseguinte, um único carnho ao jovem que pretende dar a sua afeição a um amante dentro -preceitos da honra. E ei-Ios: tal como no amante uma escravic,

c livremente assumida é olhada sem servilismo ou sombra de vile;assim também se deixa ao jovem uma única forma de escravic,voluntária e isenta de vileza - a que tem em vista exclusivamentevirtude. Estes são de facto os preceitos que nos regem: se um indivíc.,consente em ficar ao serviço de outrem porque espera, por intermécdele, aperfeiçoar a sua sabedoria ou em qualquer outra forma de v'uma livre-servidão como esta não implica desonra nem servilisn.Por conseguinte, é necessário que estes dois preceitos se conjuguem-

37 Cf. Ilíada II, 71. A superioridade do «amor da alma» sobre o amor ffsic;como se vê, uma ideia corrente nos círculos aristocráticos atenienses, que PI~aproveitou para tema de discussão em grande parte dos seus diálogos. Com epasso, compare-se, por exemplo, o primeiro discurso de Sócrates no Fedro 0'_Alcibiades L

38 As duas categorias são a do eras ouranios, «amor celeste», e do cpandemos, «amor popular», de que Pausânias fez menção no início do discurO passo seguinte refere-se às circunstâncias em que parece mal um jovem deixar-seduzir: o argumento invocado é que daí não pode nascer uma amizade geneAmizade, philia, é precisamente o sentimento que distingue o amado em relação _erastes, «amante».

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o que rege o amor pelos jovens e o que rege o amor pela sabedoria 39 e dpelas demais formas de virtude - quando o resultado em vista é digni-ficar e dar beleza à afeição de um jovem pelo seu amante.

Suponhamos, pois, que o amante e o amigo convergem na mesmaintenção e observam, de parte a parte, as normas respectivas: aqueleretribui a afeição que o amigo lhe concede, pondo-se ao seu serviço emtudo o que é justo servi-Io; este, por sua vez, secunda em tudo o que é dejustiça as vontades daquele que o encaminha na sabedoria e na virtude.E se um tem os meios de lhe incutir a sabedoria e as demais virtudes, e eo outro necessita de uma formação completa e de conhecimentosvariados - é quando estes dois preceitos convergem no mesmo fim, esó nessa circunstância, que a afeição de um jovem pelo seu amanteganha beleza e dignidade 40. De outro modo, nunca! E eis uma circuns-tância em que nem sequer é vergonha sofrer uma traição, ao passo queem todas as outras a vergonha tanto recai sobre o que é enganado comosobre o que não é... Se um jovem, por exemplo, na mira de obter 185adinheiro, dá a sua afeição a um amante que julga rico e acaba enganadoe de mãos vazias, ao descobrir-se que o amante é pobre, a vergonha nãoé por isso menor: aos olhos de todos, não há dúvida de que se revelou talcomo realmente era, capaz de entregar-se por dinheiro fosse a quemfosse - e isso não é bonito. Na mesma ordem de ideias, se umjovem seafeiçoa a um amante que julga virtuoso, com o único fito de seaperfeiçoar, estimulado pela sua amizade, e acaba também enganado, bao descobrir-se a vileza e falta de princípios do sujeito - eis, todavia,uma traição que lhe dará prestígio! 41 Porque também ele, aos olhos de

39 Philosophia, que traduzimos por «amor da sabedoria», tem aqui o valoraproximado de sophia e não significa um sistema de vida como se define, e. g., emRepública VI, 498a.

40 Para o valor tradicional deste conceito, compare-se a observação de Marrouem Histoire de I'Éducation dans I'Antiquité, Paris, 61965, pp. 67-68: «para umGrego ... a paideia realiza-se pela paiderastia», não podendo nem a família nem aescola constituir os quadros tradicionais da educação. Mais adiante, continua omesmo autor: «A educação, paideia, reside essencialmente nas relações profundas eestreitas que uniam pessoalmente um jovem espírito a outro mais velho, que erasimultaneamente o seu modelo, o seu guia e iniciador.»

41 O que há de contraditório nesta noção não é, como supõem alguns autores(cf. R. G. Bury, The Symposion of Plato, Cambridge, repr. 1969 - daqui em diantecitado só como Bury), que se ponha a possibilidade de o amante quebrar os seusjuramentos. Pausânias pensa, certamente, no «amante popular» de quem semelhantecomportamento não se estranha; o que se toma paradoxal é que o autor qualifique deprestigiante uma circunstância que, aos olhos da multidão, passaria sempre pordesonrosa, quaisquer que fossem as intenções ...

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c

todos, deu provas do que realmente era, mostrando que todointeresse, fosse por quem fosse, estava na virtude e no desejo _aperfeiçoar. E aí está o que excede em beleza tudo o mais. Porquesombra de dúvida, toda a beleza reside aí: numa afeição que se cc-em vista da virtude!

Este é, portanto, o Amor da deusa celeste; o Amor também cede tanta valia quer na vida do Estado quer na vida privada, pois ::força que impele tanto a amante como o amado a porem na virtuc-o seu zelo. As outras espécies de amor pertencem à outra de.,popular. E é tudo, Pedro - concluiu - o que, assim de mome;me oferece dizer em honra do Amor.

d

Chegando Pausânias à pausa (como vêem, também eu aprenc,os mestres a arte das isologias ...) 42, era a vez, declarou Aristoder;Aristófanes fazer o seu discurso. Aconteceu, porém, que, fosse -;comido demais, fosse por qualquer outro motivo, começou de f:::-com um ataque de soluços. E como não estava em condiçóediscursar, dirigiu-se então ao médico, que se encontrava justame;leito a seguir:

- Não tens outro remédio, Erixímaco! Ou me fazes para; :soluços ou falas na minha vez, até que me passem ...

Respondeu-lhe este: - Até ambas as coisas! Para já, ofere;para falar na tua vez, e tu falarás na minha quando esse ataque te r-Entretanto, enquanto faço o meu discurso, retém a respiração ---largos momentos: pode ser que os soluços se dignem assim para:não for ainda dessa, gargareja com água; e se mesmo assim persistrentão agarra numa dessas coisas com que se pode esfregar o L-provoca um espirro. Se fizeres isto uma ou duas vezes, eles paran:: _por mais fortes que sejam ...

- Não atrases mais o teu discurso - interrompeu AristófazePor minha parte, vou já fazer o que me aconselhas.

e

186aComeçou então Erixímaco: - Inevitavelmente, já que Paus--

apesar de um tão belo começo, não soube concluir o seu discurso ;:devia, entendo eu que me compete a mim procurar-lhe um de:,.-='=

42 Alusão irónica ao estilo de Pausânias; é característico do seu discz-emprego de jogos de palavras, como Apolodoro diz ter aprendido, além ~figuras de retórica ensinadas pelos sofistas (paronomásias, aliterações, COrI"Q-;>:--cias rítmicas de frases e períodos).

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adequado. Que o Amor seja de duas espécies, eis uma distinção, a meuver, bem feita. Todavia, longe de limitar-se às almas dos homens e terpor objecto a beleza humana, há uma imensidade de outras coisas que omotivam e outros seres onde se manifesta - nos corpos de todos osseres vivos, nas plantas nascidas da terra e, a bem dizer, em tudo o queexiste! 43 Esta observação devo-a, creio, ao exercício da minha arte, a bmedicina. É ela que me mostra até que ponto este deus é grande eadmirável e como o seu poder se estende a tudo, quer no âmbito dohumano quer no do divino. Vou, pois, iniciar o meu discurso a partir damedicina para que também eu preste as honras à minha arte.

É um facto que a natureza dos corpos encerra este duplo Amor, jáque a saúde e a doença são, reconhecidamente, dois estados não sódiversos como dissemelhantes. E o que é dissemelhante ama e aspira aoque é dissemelhante. Temos, assim, um amor específico do estado desaúde e outro, do estado de doença 44. Ora bem, esse princípio quePausânias ainda há pouco enunciava, que é belo afeiçoar-se aos homensde bem e aos desregrados, vergonhoso, se aplica também à realidade cdos corpos: é belo, e deve-se até cultivar a afeição pelos elementos bonse sãos de cada corpo (e a isto se chama praticar medicina) enquantopelos maus, pelos que provocam doença, é vergonha fazê-Ia, e hámesmo o dever de hostilizá-Ios, se se pretende agir como um profis-sional.

Efectivamente, a medicina, para falar em termos genéricos, nãoconsiste senão na ciência dos fenómenos de amor do corpo relativos àrepleção e à vacuidade. Quem neles saiba distinguir o bom do mauamor, esse é o médico por excelência 45. E bem assim, aquele que opera dmudanças no sentido de substituir um amor por outro e que sabe comoinspirar amor entre elementos que o não possuem e por natureza oreclamam ou, em caso inverso, estirpá-lo onde ele esteja implantado-esse será o bom prático; dele se espera, justamente, que esteja habi-

43 Erixímaco segue, neste ponto, as doutrinas pitagóricas, e em especial deEmpédocles, sobre a constituição do universo, altemadamente regido pelo princípioda discórdia (Neikos) - o mau Eros - e pelo da amizade (Philotes) - o bom Eros.Cf. Empédocles, fr. 17 Diels, vv. 19-20,28-29.

44 Do ponto de vista médico, o estado de saúde corresponde ao bom Eros e oestado de doença ao mau Eros; a definição de saúde como harmonia de humoresfísicos pertence às escolas ocidentais de medicina, representadas sobretudo porAlcméon, de Crotona.

45 Como observa Bury, neste passo há uma distinção implícita entre medicinacomo pura ciência, episteme, e medicina como arte, techne. O mesmo aconteceráadiante, quando se falar na música (I 87c-d).

47

Page 37: O banquete - Platão

litado a criar amizade entre os elementos mais hostis do corpo e .:a amarem-se entre si. Ora acontece que os elementos mais hostique se opõem de modo absoluto, como o frio e o quente, o ame..-

e doce, o seco e o húmido, e assim por diante; e foi exactamente ~ciência de implantar entre eles o amor e a concórdia que cantepassado Asclépio (asseveram-nos os nossos poetas e eu a.piamente!) se tomou o fundador da nossa arte 46.

Assim a medicina, como digo, pertence inteiramente ao é.187a deste deus, tal como acontece com a ginástica e a agricultura. Q_

música, é evidente a qualquer pessoa, mesmo numa análise supeque se rege pelos mesmos princípios das artes que citei - comeHeraclito pretenda dizer, embora os termos em que se exprime clonge de serem claros: «O que é Uno», diz ele, «discorda e co~consigo mesmo, tal como a harmonia do arco e da lira». Claro c.tem pés nem cabeça afirmar que uma harmonia «discorda» c .consiste de elementos discordantes ... 47 Porém, talvez a sua in:

b fosse dizer que ela resulta, isso sim, de elementos inicialmente L

dantes - o agudo e o grave - que depois entraram em acordo g:_arte da música. Está visto que enquanto o agudo e o grave estiver-discordância não há lugar para qualquer harmonia, dado que harrr;consonância e esta, por sua vez, uma espécie de acordo. Ora, um ::.proveniente de partes que discordam e enquanto discordam é co.,não pode haver! Como, por sua vez, toda a parte discordante qi.-chega a acordo é insusceptível de harmonização. E o mesmo vale:ritmo, pois também ele se constitui a partir de elementos inicial=-discordantes - o rápido e o lento - que posteriormente chega-

c acordo.

46 Homero já se refere a Asclépio (filho de Apoio e de uma morta:citando-o simplesmente como «médico ilustre»; só mais tarde se generalizo,culto e foi reconhecido como divindade protectora da medicina. O santuár:famoso de Asclépio era em Epidauro, onde acorriam milhares de doentes L

rança de se curarem. O Plutos de Aristófanes faz uma excelente e pormen.':descrição satírica das cerimónias realizadas no templo, a fim de obter a c-doentes - neste caso, Pluto, o deus cego (vv. 656-741).

47 Erixímaco deturpa em dois aspectos a afirmação de Heraclito (fr. 51 =.primeiro, restringindo-a à música - na verdade, a oposição do arco e da lirasenão uma imagem do que se passa no universo; segundo (o que é mais graveaceitando a ideia de luta e de oposição simultânea, que constitui precisan.efundamento da concepção heraclitiana do universo. Para um confronto mais ~norizado entre o sentido do fr. 51 de Heraclito e a interpretação que lhe dá Brix+veja-se Guthrie, A History of Greek Philosophy, Cambridge, 1965, vol. lI, p~-442.

48

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Ora, à imagem do que atrás vimos com a medicina, também aqui aconcórdia entre todos estes elementos é obra de uma arte, a da música,que implanta o amor entre eles e os leva a conciliarem-se entre si. Peloque também a música vem a ser, no âmbito da harmonia e do ritmo,uma ciência de fenómenos de amor.

Claro que distingui-los na estrutura em si da harmonia e do ritmonão levanta problemas de maior, pois não é a esse nível que o duploAmor se manifesta. Mas quando há necessidade de utilizar a harmonia e do ritmo em proveito dos homens, seja para criar (chama-se a issocomposição), seja para interpretar correctamente melodias e ritmos jácriados (o que tem o nome de educação musical), então sim, surgemproblemas que só um bom prático sabe resolver. E eis-nos chegados aoponto de partida: é aos homens comedidos, até mesmo para fomentarcomedimento naqueles que o não possuam, que importa dar a nossaafeição e assegurar o seu amor - e esse é o amor nobre, o amor celeste, efilho da Musa Urânia. Quanto ao da Musa Polírnnia, o amor popular,importa aplicá-Io com cautela aos elementos a que se aplica, de modo acolher daí o fruto do prazer sem implantar excessos de qualquerordem ... 48 Precisamente, na nossa profissão, uma das principais tarefasé tirar partido dos apetites que se ligam à arte da culinária, por forma acolher deles o prazer sem risco de doença 49. E assim, tanto na músicacomo na medicina como nas demais artes, quer da esfera do humanoquer na do divino, importa salvaguardar, na medida do possível, estesdois Amores, pois ambos existem!

E passemos agora à sucessão das estações do ano, dado que este 188aduplo Amor também nelas intervém largamente. Se acaso reina o Amorcomedido entre os elementos de que há pouco falava - o quente e ofrio, o seco e o húmido -, se eles se conjugam numa mistura harmo-niosa e equilibrada, eis que se proporciona aos homens, tal como aosanimais e às plantas, um ano de abundância e de bem-estar, sem riscosde qualquer dano. Porém, se prevalece o Amor tirânico no suceder das~stações, os estragos e os danos são inúmeros. É então que as pestes bencontram terreno favorável, bem como muitas outras e variadas doen-

48 O desejo de manter continuidade em relação ao discurso de Pausâniasexplica que Erixímaco tenha escolhido os nomes destas duas musas, Urânia ePolímnia, para simbolizar, como Pausânias fizera em relação ao amor, uma oposiçãoentre a música que eleva o espírito, de natureza sagrada, e aquela que se destina aagradar à multidão.

49 Para uma crítica a este conceito de medicina, vide Górgias 500d-50Ib;confronte-se esta pretensa moderação, sophrosyne, com Fédon 68e-69a.

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ças, que atingem quer animais quer plantas: as geadas, o gra.ferrugem do trigo - eis outros tantos resultados da tiraniadesregramentos amorosos que tais elementos geram entre sijustamente se ocupa a ciência que, a par das estações do ano, emovimento dos astros e daí recebe o seu nome - a astronomia

Mas vamos mais longe: as várias espécies de sacrifícios, os -a cargo da adivinhação (que constitui especificamente o meio de _

c e homens comunicarem entre si), que outra finalidade têm, a nãpreservação e a cura destes dois Amores? Porque é exactamentetoda a espécie de impiedade encontra terreno favorável: quando (comedido deixa de ser alvo de estima, de homenagem e de ver-

.em cada acto e é o outro que impera nas atitudes, tanto para com:(vivos ou defuntos ...) como para com os deuses. À adivinhaçã:tanto, cabe também uma função de vigilância e cura no que res;estes dois Amores; e nessa medida é igualmente a obreira da arentre os deuses e os homens, graças ao conhecimento de toefenómenos de amor humanos que entram no âmbito da lei divir.,piedade 50. A tal ponto, em suma, se revela vasto e imenso - r:dizendo, universal- o poder do Amor, em todas as suas man.:ções! Mas é o Amor que se orienta para as obras boas, que se cone-

d na moderação e na justiça, tanto entre os homens como entre os deo que detém o máximo poder: só ele nos dá acesso à felicidade ple:ele nos torna capazes de convivermos em boa amizade uns cr :outros e com os nossos superiores, que são os deuses! 51

E eis, pois, o meu elogio ao Amor. É natural que também eu :-e por omissão - em todo o caso, não, seguramente, por vontade L

Mas ... se alguma lacuna deixei, cabe-te a ti, Aristófanes, preenc;A menos que tenhas em vista louvar o deus noutro estilo e nessecomeça, uma vez que os soluços já te passaram.

189a Segundo Aristodemo, tomou então a palavra Aristór;dizendo: - Sim, já passaram! Mas não sem que antes lhe tenha _cado a receita do espirro. Por sinal, até me espanta que o estacequilíbrio de um corpo exija cócegas e ruídos destes, como é o cas

50 A associação de eros com a adivinhação, e o papel de intermediáric -deuses e homens, é um motivo aliás platónico; aparece no discurso de Sócrates202e-203a) e em diálogos posteriores ao Banquete, como o Fedro e o Timeu.

51 Ao contrário do que acontece no discurso de Sócrates (212a), a aspira,obter a amizade dos deuses parece antes derivar aqui de uma razão de conveniêz,não de um impulso espontâneo de amor pela divindade.

50

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espirro ... O certo é que os soluços me passaram de todo, mal comecei aespirrar! 52

Replicou-lhe Erixímaco: - Amigo Aristófanes, vê lá o que fazes!Provocares o riso no momento em que te preparas para falar é obri-gares-me a ficar de sentinela ao teu discurso, não vás por aí dizer balguma gracinha que te impeça depois de falar em paz ...

Rindo-se, Aristófanes concordou: - Tens razão, Erixímaco: douo dito por não dito. Mas, por favor, não te ponhas aí de sentinela, pois oque eu receio, naquilo que tenho intenção de dizer, não é provocar o riso(coisa que até seria proveitosa e bem conforme à minha Musa ...) massim o ridículo!

- Julgas então - comentou Erixímaco - que te escapas assimcom essa? Muito pelo contrário! Toma tento e põe-te na pele de alguémque terá de prestar contas das suas palavras. Pode ser que assim, se meapetecer, te deixe em paz! c

Para ser franco, Erixímaco - começou Aristófanes -, tenho emvista falar num estilo bem diverso do teu e do de Pausânias. Efectiva-mente, dá-me ideia de que as pessoas não pressentem, nem de longe,qual seja o poder do Amor! Porque, se fosse esse o caso, não deixariamde lhe consagrar os templos e os altares mais sumptuosos e de lheoferecer os sacrifícios de maior valia ... Ora nada disto se passa hoje,nenhuma destas homenagens lhe é prestada, embora ele as mereça maisdo que ninguém. É ele, de verdade, o deus mais amigo dos homens 53, daquele que os previne e cura dos males que, uma vez debelados, já nãosão obstáculo à suprema felicidade da espécie humana! Vou, pois,tentar iniciar-vos no mistério do seu poder, e vocês serão os mestres quehão-de, por seu turno, transmiti-lo a outros ...

Antes de mais, importa que fiquem a conhecer a natureza humanae as suas mutações. Pois a nossa antiga natureza não era tal como hoje esim diversa. Para começar, os seres humanos encontravam-se reparti-dos em três géneros e não apenas em dois - macho e fêmea - comoagora: além destes, havia um terceiro que partilhava das características ede ambos, género hoje desaparecido, mas de que conservamos ainda o

52 A terceira das receitas prescritas por Erixímaco. Aristófanes ridiculariza anoção de philia, «amizade», em que, segundo Erixímaco, assenta o equilíbrio docorpo.

53 Comparação implícita com Prometeu, que roubou o fogo a Zeus para salvaros homens. Prometeu é, entre os Gregos, um símbolo tradicional de philanthropia.

51

Page 41: O banquete - Platão

~distinto,zs .2:IEl:.::Iísticas do

çado ao

nome. Era ele o andrégrac ~embora reunisse.macho e da fêmea:descrédito ...

Em segundo lUg2I". Z ~ .R .:::ma ~ mr::-:J era inteira eglobular, com as COSIaS e ~~!JIII.""::s.'. m_ .,..-;.....~ ~o mãos

190 e igual número de pernas; s.:h_ = ? • J H'tw. ~ -,:::res, igual-zinhas uma à OUITa: n::m;a uun:::z. .=-:::::1 -=E"-s:M as faces,colocadas em sentido cp::si::. ~ Dr'I--7 ;i~~ .?Iritais emnúmero de dois; e tudo o :c:2i ~ L lIEIr .m;nr:.~ =:laginar-se.Caminhavam erectos, i:L~ ~ ~ ~ ~ ~..!l:S em que odesejassem. Porém .. qtI3D3c as . • • I ~ ..::e .:c;;;:-=r a toda abrida, faziam-no às ~~JAIIJ.1l!C::'_os equilibristas, até re~. nos seus membros,círculo 55.

Quanto à origem desrestzês 5 • =-tb o macho foi inicialm

Lua, a espécie que retambém a Lua partilhaserem globulares, tanto eks C'aIlI:'

com os seus progennOra estes seres eram o..~

além disso, de uma iIneI::sz M"N __contra os deuses. O ~a respeito deles, isto é. ~ 1i""'!!I:H _ ~

os deuses 56.

a ;O, ti sacas, ei-la:.~ C:::. :- erra; e da

do quefacto de

~i~lhança

~b::::::::te~Lência e,nspirartambém

~: ,ti r;3l de atacar

54 Aristófanes.satirizar as ideias cienrffices Q~Peri diaites, p. 28 sq.',existência de um gé«masculino» .

55 Empédocles faz= /'b;;:;.". ~ 7 x:!; _-4i «seres com. dupla face e duplo peito-, ~ bj:ngr' 'lIIr.ll[ -.. :!C'!" --=r~ :::omens, que«não têm órgãos sexuais ~~~:: ~ ar l/:!::" 11 + "=-••~s:!::zinda, comoAristófanes, «constituídos ~ , ,_, E:' ~ : ~ .::0:."",,"=.=:i: destes seresencontra-se igualmente ~~,:Ir e :....,::;-S:;. ~ ~L 62 Diels).Friedlânder (Plato, Lon.....~ ~c:. ~~.'"I:~ :.:::EL~~ ~ provávelinfluência de Empédoc:n ,~Smwnw « ;ar l:=;:::;.~; mas acomparação dos te.• 56 Vide Odisseia XL ~ ~é relacionável com a ~ azo I'..:c:c z

Page 42: O banquete - Platão

Então Zeus e as demais divindades puseram-se a deliberar o que chaviam de fazer deles e viam-se em sérios apuros: suprimir a raça efulminá-la com o raio, como tinham feito aos Gigantes, nem pensar(isso era suprimir também as homenagens e os sacrifícios que lhes advi-nham dos humanos ...); mas tolerar por mais tempo a sua insolência-também não! Depois de muito matutar, Zeus, por fim, lá se decide:«Parece-me», anunciou, «que arranjei processo de continuar a haverhomens e acabar de vez com a sua arrogância: é enfraquecê-los, Agora dmesmo vou dividi-los ao meio um por um; deste modo, não só hão-deficar mais fracos como também sairemos beneficiados, graças aoaumento de número. Por enquanto, podem caminhar erectos sobre assuas duas pernas; porém, se virmos que mesmo assim persistem na arro-gância e se recusam a dar-nos tréguas, então», declarou, «volto a dividi--los ao meio e passam a andar só sobre uma perna ... ao pé-coxinho!»

Dito e feito. Pôs-se a cortar os homens às metades, exactamentecomo se cortam sorvas para as pôr em conserva [ou como se faz aos eovos com um cabelo] 57. À medida que os ia cortando, encarregavaApolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfícieamputada, na ideia de que os homens se tomariam mais humildes com oespectáculo da sua própria amputação diante dos olhos. E ordenouainda que os sarasse das restantes feridas. Apolo tratava, pois, de lhesvirar o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para a parte agoradesignada por ventre, apertava-a com toda a força, à maneira de bolsasprovidas de cordões, em volta de uma única abertura que deixou mesmono meio do ventre - justamente o que hoje chamamos umbigo. Ali-sou-lhes ainda numerosas rugas que ficaram e modelou-lhes o peito 191com um instrumento do género dos que usam os cordoeiros paraaplanar as rugas do coiro em volta da forma. Todavia, deixou-Ihes umastantas, mesmo na região do ventre e do umbigo, como lembrança do seuantigo estado 58.

Ora, quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cadametade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e esten-dendo as mãos em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravamdo que a fundir-se num só ser! Começaram, assim, a sucumbir à fome e

57 Supõe-se que se aluda aqui a um jogo de carácter amoroso praticado pelosconvivas, talvez relacionável com a adivinhação através dos ovos.

58 Alusão à teoria da reminiscência. Note-se que é o único passo do Banqueteonde Platão se socorre da reminiscência para explicar a natureza (physis) do homem ea origem do amor (cf. Yvon Bres, La Psychologie de Platon, Paris, 1968, pp. 167--168).

53

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b à inacção geral, porque se recusavam a fazer fosse o que fosse uma sema outra; e sempre que uma das metades morria, a que ficava procuravaao acaso outra sobrevivente a que juntar-se, fosse a metade de um sercompletamente feminino (o que agora chamamos uma mulher) fosse ade um ser masculino. Deste modo, a raça ia desaparecendo ...

Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício emuda-lhes para diante os órgãos genitais - até aí, efectivamente, era naparte exterior que se encontravam, processando-se as funções de gerar e

c dar à luz, não de uns para outros, mas por intermédio da terra, àsemelhança do que acontece com as cigarras 59. Ao mudar-lhes, pois, osórgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humanapassasse também a efectuar-se de uns para outros, mediante tais órgãos- na fêmea, por intermédio do macho. E eis o que tinha em vista: seacaso o acoplamento se desse entre homem e mulher, o resultado seriaprocriarem e prepetuarem a espécie; se entre dois varões, haveria pelomenos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o desejo, poderiamvoltar às suas tarefas e interessar-se por outros aspectos da vida. Dessa

d época longínqua data, sem dúvida alguma, a implantação do amor entreos homens - o amor que restabelece o nosso estado original e procurafazer de dois um só, curando assim a natureza humana.

Cada um de nós não passa, pois, de uma téssera humana 60,

divididos, como estamos, em metades, à semelhança dos linguados 6\; eé a sua própria metade, ou téssera, que cada um infatigavelmenteprocura. Em consequência, todos os homens que resultam do corte deum ser misto (o mesmo que em tempos era chamado andrógino) sógostam de mulheres. É deste género que descende a maior parte dos

e adúlteros, bem como todas as mulheres que gostam de homens - semesquecer as adúlteras! Por outro lado, todas as mulheres que resultam

59 Para esta noção de «geração espontânea», cf. Eliano, História dos Animais lI,22. As imagens da natureza animal são frequentes nas obras de Aristófanes e umareferência concreta às cigarras encontra-se em Cavaleiros 1331 - aí, como símboloda liberdade de Atenas.

60 Dava-se o nome de symbolon (téssera), à metade de um dado que o dono dacasa repartia com seu hóspede para que mais tarde eles dois ou os seus descendentespudessem reconhecer o laço de hospitalidade que os unia. Para a importância destelaço entre os Gregos, veja-se por exemplo, o episódio de Glauco e Diomedes no cantoVI da llíada (vv. 119 sqq.).

61 Reminiscência de dois versos da Lisistrata, de Aristófanes. Às propostas deLisístrata para fazer cessar a guerra, responde Mirrina: «e eu, ainda que devesseparecer um linguado, estaria disposta a cortar-me ao meio e dar metade de mimmesma» (vv. 115-116; cf. 131-132).

54

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do corte de um ser feminino não ligam praticamente aos homens evoltam-se de preferência para as mulheres: e aí estão as «comadrinhas»a ilustrar a descendência do género ... Finalmente todos os que resultamdo corte de um ser masculino só andam atrás de homens, e mesmo depequenos, como pequenas postas que são de um er viril, revelam o seufraco por homens e comprazem-se em estarem deitados a seu lado,abraçados a eles ...

E eis justamente os adolescentes e os rapazes de maior valor, os 192que possuem, cem por cento, uma natureza viril. Há quem diga que não,que não passam de uns desavergonhados, ma é má-língua: se fazem oque fazem, não é por falta de vergonha mas porque a sua ousadia, a suacoragem e virilidade os impele a afeiçoarem- e ao que lhes é seme-lhante. E eis uma boa prova: ao atingirem a maturidade, só os indi-víduos desta têmpera se revelam homens para a política ... Entretanto,uma vez chegados à idade viril, dedicam-se a amar o jovens e, com brespeito a casamento e a filhos, o interesse que manifestam deve-seapenas a uma imposição da norma e não a uma tendência naturalporque, por si, facilmente se remediariam solteiro vivendo na com-panhia uns dos outros. Em suma, um indivíduo desta espécie vem a darum amante ou um amigo de homens, afeiçoado, corno é empre, ao quetem a mesma origem que ele.

Ora bem, sempre que um amante (um amante em entido lato e nãoapenas o amante de jovens!) encontra essa mesma metade que lhepertence, eis que de súbito os assalta uma estranha impressão deamizade, de parentesco 62, de amor, enfim; e a tal ponto que já não caceitam, por assim dizer, separarem-se um instante que seja! Esses sãojustamente os que permanecem juntos durante toda a ua vida - muitoembora não soubessem sequer dizer-vos o que esperam, em concreto,um do outro ... Não passa decerto pela cabeça de ninguém que sejameramente a união dos sentidos a causa do seu afã e do prazer quesentem em estar juntos; visivelmente, é a alma de cada um que aspira aalgo mais, algo que ela não sabe exprimir mas que adivinha e deixa ddiscretamente insinuar-se ...

62 No Lisis 221e-222a, Sócrates tenta, em último lugar, explicar philia ou eraspor um sentimento de parentesco que aproxima duas almas; só aparentemente noLisis a tese é rejeitada, e mesmo Sócrates, mais adiante, não a rebate propriamente,limitando-se a encaminhá-Ia num sentido ético, pondo, como exigência fundamental,que «o todo» a que se refere Aristófanes seja o Bem (cf. 205e).

55

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e

Imaginemos, por exemplo, que Hefesto chegava junto deles comos seus utensílios e, ao vê-los deitados no mesmo leito, perguntava:«Que é que vocês, criaturas, pretendem um do outro?» E, perante oembaraço deles, voltava a perguntar: «Não será a isto que vocês aspi-ram - a identificarem-se o mais possível um ao outro, de forma a nãomais se separarem noite e dia? Se é essa a vossa aspiração, estoudisposto a fundir-vos e soldar-vos numa só peça, de tal modo que emvez de dois, passem a ser um só. E assim vos será dado ter uma únicavida enquanto viverem, como se fossem uma só pessoa; e como uma sópessoa hão-de continuar lá na Hades, depois de morrerem, levados poruma única morte! Mas vejam lá se é a isto que vocês aspiram e se estedestino vos apraz ... 63»Perante uma tal promessa, estamos certos de quenão haveria uma pessoa sequer capaz de a recusar ou de exprimiroutro desejo! Bem pelo contrário, toda a gente ficaria convicta de terescutado, nem mais nem menos, o seu anseio de sempre: reunir-se efundir-se no ser amado, por tal forma que ambos passassem a ser umasó pessoa. E qual a origem deste anseio? Precisamente, como vimos, o

. facto de que a nossa primitiva natureza assim era e nós constituíamosentão um todo. Ora, é essa aspiração ao todo, esse busca incessante, quetem o nome de amor.

Se antes, como digo, éramos um só, agora, devido aos nossoserros, estamos reduzidos pelo deus à dispersão, tal qual os Arcádios oforam pelos Lacedemónios 64; e se não mostrarmos comedimento paracom os deuses, é de recear que sejamos de novo divididos e fiquemospor aí girando, exactamente como essas figuras esculpidas nos baixos--relevos das estrelas, serradas segundo a linha do nariz, à maneira desimples contras senhas 65... Eis, pois, o motivo por que cada homemdeve incitar plenamente os outros à veneração pelos deuses, se deseja-mos, por um lado, escapar a esse perigo e, por outro, obter os benefíciosa que o amor nos conduz, no seu papel de guia e general. Que ninguémlhe desobedeça (todo aquele que desobedece aos deuses aborrece ...),

193

b

63 O verdadeiro absurdo da situação está apenas sugerido: no lugar dos taisamantes poder-se-iam sem custo imaginar Ares e Afrodite, mulher de Hefesto, o deusferreiro, que este surpreendeu em adultério, lançando em volta deles uma malha tãofina e simultaneamente tão forte que, ao acordar, não conseguiram separar-se.A generosidade de Hefesto resulta, assim, duplamente cómica. A descrição doepisódio está em Odisseia VIII, 266-366.

64 Referência ao dioicismo de Mantineia, dispersão que foi imposta por Espartaem 38S a. c.; trata-se de um anacronismo relativamente à data em que se situaO Banquete (416 a. C.), mas a estrutura da obra não é por isso diminuída: Platãodeve ter em vista o efeito cómico que tal anacronismo produziria nos ouvintes.

65 O escoliasta explica que são dados partidos ao meio, tal como os symbola.

S6

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- -' .. .endo em amizade e boa harmonia com os deuses lograremos'.:es..-:::t;J[j·tr o favorito que nos é próprio - coisa que hoje em dia raros

- =: em! E não se ponha Erixímaco a troçar, das minhas palavras,ares de entendido, a supor que é de Agaton e de Pausânias

u a falar: até porque bem pode dar-se o caso de pertencerem eles- número e possuirem ambos uma natureza viriL. Mas não, o que

tem antes a ver com a humanidade inteira, homens e mulheres!espécie só pode alcançar a felicidade quando cada um realizar

plenitude as suas aspirações amorosas e encontrar o favorito que lhe, '0, de modo a restaurar a nossa primitiva natureza. E se este é omo bem, necessariamente o que há de melhor no mundo actual é odele mais se aproxima, quero dizer: acertar com um favorito

o ao nosso feitio. E eis por que, ao celebrar um deus, será de todaiça celebrarmos o Amor: não só é ele quem, no presente, nos con-

maiores benefícios como alimenta, quanto ao futuro, as nossasesperanças mais caras. Se mostrarmos reverência para com os deuses,

dará a cura aos nossos males, restaurando a nossa primitivaza. E assim seremos de facto felizes e bem-aventurados!qui tens, Erixímaco, o meu discurso em honra do Amor, aliás

diverso do teu. Mas, como te pedi, não faças dele motivo deadeira, para podermos ouvir o que os restantes têm a dizer-nos-

mais exactamente, cada um dos dois restantes, pois só faltam_ on e Sócrates.

- Claro que acedo ao teu pedido! - respondeu Erixímaco - De_ o. até escutei o teu discurso com muito agrado; e, se não soubesse

o como Ágaton e Sócrates são fortes em matéria de amor, teriamotivos para recear que, depois desta quantidade e variedade de

ursos, ficassem sem ter que dizer! Mas, no caso deles, estou tran-o.- Claro, tu também te saíste bem da prova, Erixímaco - acudiutes - Porque, se estivesses na situação em que as ora me vejo (ou

zaelhor, em que possivelmente me irei ver, depois de Agaton ter feito odiscurso ...) então havias de recear forte e feio, sem saber por ondepegar, como é agora o meu caso ...- O que tu queres é lançar-me mau-olhado, Sócrates! 66 -acudiu

_' gaton - a ver se me desconcerto à ideia de que a assistência está emde expectativa, a imaginar já o excelente discurso que vou fazer!

66 A ideia de um «fascínio», exercido por Sócrates sobre os interlocutores, éntemente repetida nos diálogos. Note-se que o mesmo poder de magia se. a Eras.

57

194

c

e

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Bom, antes de passar ao meu discurso quero dar-vos uma palavra,antes de mais, sobre os princípios em que me vou fundamentar. E istoporque, se não me engano, todos os que me precederam, em vez de

58

- Muito esquecido seria eu, Ágaton - replicou-lhe ele - se,b depois de observar a coragem e o aprumo com que subiste à tribuna na

companhia dos actores 67 e enfrentaste, sem a mais leve perturbação,aquela imensa assembleia, na altura em que ias apresentar a tua obra -se, depois disso, imaginasse que irias ficar perturbado por causa de umpunhado de homens como nós!

- Ora Sócrates! - contestou Ágaton. - Não me julgas, porcerto, tão inchado com os aplausos da multidão que ignore o quequalquer pessoa de senso sabe: com um punhado de homens inteligen-tes é bem mais para recear do que uma multidão de tolos ...

c - Nem seria bonito da minha parte, Ágaton, atribuir-te sentimen-tos tão comezinhos ... De modo nenhum! Tenho até a certeza absoluta deque, se desses pela frente com algumas dessas pessoas que são, a teuver, entendidas na matéria, te importarias muito mais com a opiniãodelas do que com a do vulgo. Não falando de nós (de nós que, como ésabido, também lá estivemos a fazer número ...), se desses pela frentecom pessoas realmente entendidas, era decerto diante delas que senti-rias vergonha, caso imaginasses que estavas a fazer algo de mal feito.Ou que achas tu?

- Acho que tens razão - assentiu.d - E diante da multidão não sentirias também vergonha se suspei-

tasses de alguma coisa mal feita?Foi a vez de Fedro intervir: - Meu caro Ágaton, se continuas a

responder a Sócrates, ele já nem quer saber do rumo que as coisas vãotomando aqui! Basta apenas que tenha com quem conversar, sobretudose se trata de um belo jovem ... Pessoalmente, também gosto de ouvirSócrates e as suas conversas, mas cumpre-me velar pelo encómiodevido ao Amor e recolher de cada um de vocês o respectivo discurso.

195a Depois de prestarem o vosso tributo, então conversem à vontade umcom o outro!

- Dizes bem, Fedro - concordou Ágaton. - De resto, nadaimpede que faça o meu discurso. Ocasiões para conversar com Sócratesé o que não há-de faltar depois!

67 Em geral o poeta, os actores e os coreutas apresentavam-se diante da assis-tência antes da representação - era o chamado proagon.

Page 48: O banquete - Platão

ele - se,à tribuna na

~ perturbação,atua obra-causa de um

~ julgas, por_ ore o que

inteligen-

sentimen-absoluta dee são, a teua opinião

- ue, como épela frenteque senti-

e mal feito.

se suspei-

ontinuas acoisas vão. sobretudoo de ouvir

10 encómio. :0 discurso._ 'ontade um

te da assis-

fu~:"'-! O elogio do Amor 68, se limitaram a exaltar a felicidade dosiJI:lc;;==-s pelo benefícios de que ele é causa. Mas propriamente a~::=;:7.3do deus que concede tais benefícios, isso ninguém deixou

Ora em toda a espécie de elogio e qualquer que seja o assunto, hámétodo válido: definir a natureza do objecto que nos propo-

ersar e, em função dela, a dos efeitos que produz. Na mesmade ideias, impõe-se, portanto, que comecemos por louvar aza do Amor e só depois as suas dávidas.

Por minha parte, afirmo-vos que, entre todos os deuses bern-aven-""'--~J~.o Amor (se é lícito dizê-I o sem incorrer na cólera divina ...) é o

-- venturado deles, porque os excede todos em beleza e em virtude.E e cede-os em beleza, vejamos como: antes de mais, Fedro, é ele o- -:0 em dos deuses; uma prova convincente aí a tens na atitude do

• _ ·0 deus, ao fugir a sete pés da velhice - e se ela é veloz! 69Maispelo menos, do que seria para desejar quando é a nós que nos

_ ... Ora a velhice representa justamente aquilo que o Amor odeiaza, e de que nem ao de leve se aproxima! A sua companhia

jovens e é sempre entre eles que se encontra, pois, como reza o- provérbio e com razão, «o semelhante junta-se sempre ao que lhe

elhante» 70. Por isso, embora em muitos aspectos concorde com. neste não posso concordar: que o Amor seja mais antigo do que

""'LiuLfin e Jápeto! 71 Afirmo-vos, pelo contrário, que ele é o mais jovem- - eenses e a sua juventude, eterna. Mais ainda: esses velhos conflitos

H íodo e Parménides 72 contam acerca dos deuses (se é que eles- mentiam ...) deram-se sob o reino da Necessidade e não do Amor.

~t:::illaç.ões, aprisionamentos recíprocos e quantas outras atrocidades -

b

c

Para esta crítica, vide supra, nota 27.Ao. ideia é familiar a alguns poetas líricos gregos, que juntamente com a

'=-:::!Cl-ençiafísica lamentam a perda dos prazeres do amor. Assim, por exemplo,L",,-=:iamte: « .. .Eros, olhando para a minha barba/grisalha, com um sopro das suas

docradas/voa ao largo» (fr. 53 Diehl - vide Hélade, tradução de M. H. da. Pereira, Coimbra, 31972, p. 118).

_.o Lisis (214a) alude-se também à teoria do «semelhante pelo semlhante»,ontra a sua mais antiga expressão no verso da Odisseia ali citado (XVII, 218).

-, Cronos e Jápeto, tradicionais símbolos de antiguidade, eram Titãs nascidos-IEDO (o Céu) e de Gea (a Terra). Cronos foi quem destronou seu pai, Urano,

s::I:m.:ndo-lbe no império do mundo e sendo por sua vez destronado pelo filho, Zeus,o qual se inicia uma nova era de paz no universo. Jápeto foi, juntamente com osTitãs, precipitado por Zeus no Tártaro.--::As mesmas autoridades que Fedro invocara. Vide Hesíodo, Teogonia 176_-ão restam fragmentos de Parménides sobre esses «velhos conflitos».

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Page 49: O banquete - Platão

nada disso teria acontecido se o Amor estivesse entre eles! Pelocontrário, seria uma era de amizade e de paz, à semelhança do que agorasucede desde que o Amor reina sobre os deuses ...

O Amor é, portanto, jovem. E, além de jovem, delicado ... Para nosd fazer sentir a delicadeza do deus era mister um artista como Homero, o

mesmo que qualifica de «deusa» e «delicada» a sua Ate - ou, pelomenos, afirma a delicadeza dos seus pés -, por estes termos:

Delicados são, de verdade os seus pés; o solo não chega sequera pisá-Ia, pois é entre as cabeças dos homens que caminha 73.

e

Ora, o exemplo de que se serve para pôr em evidência a delicadezada deusa afigura-se-me justamente feliz: o de que não caminha sobreasperezas mas sobre o que é macio! E do mesmo exemplo nos iremossocorrer para realçar, com respeito ao Amor, a sua delicadeza. É quetambém ele não caminha sobre o solo (nem sobre os crânios, de resto,pouco macios ...) mas antes se move e habita em tudo o que de maisbrando existe. Porque são, efectivamente, os temperamentos e as almasdos deuses e dos homens que ele elege como sua morada e, mesmoassim, não indiscriminadamente: qualquer uma que se lhe depare comum temperamento rude, rejeita-a; mas àquela que possui um tempera-mento maleável, essa sim, passa a habitá-Ia! E eis por que, ao tocar comos seus pés e com todo o seu ser no que há de mais macio entre as coisasmacias, possui por força, uma extrema delicadeza,

Ele é, pois, sumamente jovem e delicado. E, além disso, de com-pleição subtil... Sim, fosse ele rígido e como poderia insinuar-se emtoda a parte ou passar despercebido, sempre que entra no íntimo de cadaalma e dela se escapa depois? Da sua maleabilidade e subtileza de formahá, de resto, um indício convincente: essa elegância natural que toda agente é unânime em atribuir-lhe ao mais alto grau. O facto é que entredisformidade e Amor há uma guerra sem tréguas! Por outro lado dabeleza da sua tez fala por si a vida de deus entre flores 74, dado que não

196

73 Ilíada XIX, 92-93. «Delicado» é um dos traços físicos ou espirituais quedistinguem o amado por oposição ao amante. Em 204c, Diotima, ao negar a Eras esteatributo de «delicado», fará ver a Sócrates que o seu erro (subentenda-se, o deÁgaton) resulta de ver no Amor o «objecto amado» em vez do «sujeito amante».Aristófanes deixa-nos uma crítica menos amável nas Mulheres que Celebram asTesmofórias, retratando Ágaton como efeminado (v. 192).

74 A referência às flores, anthe, deve estar ligada ao nome de uma conhecidapeça de Ágaton, Antheus; o ritmo do passo, bem como a sugestão dos lugares floridose perfumados onde Eras habita, é poética (cf. Safo, fr. 2 Lobel-Page).

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Page 50: O banquete - Platão

-- Parece tratar-se de uma citação de Alcidamas, orador da escola de Górgias .•6 A arete, «virtude», ou melhor, «excelência», aparece repartida nas quatro

~ idades tradicionais: «justiça», «temperança», «coragem» e «sabedoria». Cf., lica IV, 427e. Para o problema da constituição deste cânone, veja-se a traduçãoL H. da Rocha Pereira, Lisboa, 1972, nota ad. loc., p. 176.

I A frase é tirada de um passo da Estenebeia, tragédia perdida de Eurípides-_ 663 auck).

morada o que não floresce ou já está murcho, trate-se de bs, almas ou seja o que for. .. Só quando encontra um sítio adornado

e perfumes, então pousa e se instala.a beleza do Amor eis, pois o essencial, ainda que muita coisa

r dizer. E posto isto, importa que passemos a referir a virtude dorealçando, desde já, o seu principal aspecto: o de que não cometesofre injustiças, seja contra um deus ou da parte de um deus, sejaum homem ou da parte de um homem. Mesmo se alguma coisa onão é por violência pessoal que é afectado, (violência não liga

amor!) nem tão-pouco ele a exerce nos seus actos, uma vez que é c- ::re vontade que cada um serve ao Amor. Ora, todo o acordo que

___•..•.•...•...do assentimento voluntário de duas partes são «as leis, rainhas:idade» 75, que o proclamam justo __Ias, além da justiça 76, o Amor participa ao mais alto grau da

te:TIpenllllça... É ponto assente que a temperança consiste no domínioos prazeres e os instintos - e, ainda, que não há prazer mais forteo amor! Ora, se os outros são mais fracos, como não pensar que

_ em sujeitos ao Amor e que este os domine? Logo, nesse domínioos prazeres e os instintos residirá a temperança excepcional do

E quanto a coragem, é fora de dúvida - ao Amor «nem mesmo_ -= resiste», e eis porquê: não é Ares que subjuga o Amor mas sim o d

__ o de Afrodite (assevera-o a tradição!) que subjuga Ares. Ora, ter~ êm sob o seu jugo significa ser o mais forte. E se o Amor venceele que excede todos os outros em coragem, como não há-de ser deo mais corajoso?Falou-se, já, portanto, na justiça, na temperança e na coragem do_Falta referir a sua sabedoria uma vez que importa, na medida do

s: - ível, evitar omissões. E para que também eu preste as honras àa arte, tal como Erixímaco prestou à sua, começo por falar naoria do deus como poeta: um poeta tão hábil que sabe, inclusive, emitir a outros a sua arte! Certo é que todo o homem bafejado peloor, «mesmo antes avesso às Musas» 77, adquire o dom da poesia ...

61

Page 51: O banquete - Platão

E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor em todo ogénero de criação ligado às artes, pois o que se não possui ou se nãoconhece não é possível concedê-lo ou ensinã-Io a outrem. Mais ainda,

197 pelo que respeita à geração dos seres vivos, alguém há que se recuse aver nela uma sabedoria específica do Amor, graças à qual todos os seresvivos nascem e crescem? E consideremos também a profissão dosartífices: não sabemos nós que aquele que tem por mestre este mesmodeus alcança celebridade e glória, ao passo que outro, que não seja porele bafejado, permanece na obscuridade? Incontestável, pelo menos, éque foi sob o império da paixão e do amor que Apolo inventou a arte demanejar o arco, bem como a medicina e a advinhação 78. De sorte que

b não passa de um discípulo do Amor, tal como as Musas o são nas artesou Hefesto no bronze ou Atenas na tecelagem, ou mesmo Zeus na suafunção de «governar os deuses e os homens» 79. Daí concluirmos tam-bém que os conflitos entre os deuses se compuseram com o aparecimen-to do Amor - o amor, evidentemente, da Beleza, pois da fealdade nãose aproxima! Quanto a essas atrocidades todas que, segunda reza atradição, houve entre os deuses, são anteriores e deram-se sob o reinadoda Necessidade, como dizia de início. Porque, desde que este deusnasceu, o amor da Beleza fez surgir tudo o que há de bom, tanto para osdeuses como para os homens.

c E aí tens, Fedro, a ideia que faço do Amor: justamente porquepossui ao mais alto grau beleza e virtude, é que depois se toma para osoutros fonte de idênticos dons. Ocorre-me até esta expressão em versopara dizer que é ele quem estabelece

entre os homens a paz, a bonança nos mares açodados,o dormir sossegado dos ventos, o sono isento de cuidados 80.

d É ele quem apaga em nós a ideia de sermos estranhos uns aosoutros e nos comunica sentimentos de familiaridade, através de reu-niões como estas, que ele promove. Nos festivais, nas danças, nos

78 Apoio, como inventor do tiro ao arco, é citado em Ilíada Il, 827; da adivinha-ção, em Ilíada I, 72; relativamente à medicina, cf. Píndaro, Piticas V, 63-69.

79 Kubernan, «governar», é uma metáfora de origem náutica: Zeus (comoadiante o Amor- 197e) compara-se a um piloto que governa o mundo; a expressão,que vem já de Homero (vide Ilíada Il, 205), repercute-se na linguagem da filosofia,antes e depois de Platão (cf., e. g., Platão, Timeu 49d-e).

80 Estes dois versos constituem uma possível reminiscência de Homero: videOdisseia V, 391, e XII, 168.

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E eis o testemunho ideal para mostrar a excelência do Amor er;género de criação ligado às artes, pois o que se não possui OL

conhece não é possível concedê-Ia ou ensiná-Ia a outrem. MaL197 pelo que respeita à geração dos seres vivos, alguém há que se :":

ver nela uma sabedoria específica do Amor, graças à qual todos:vivos nascem e crescem? E consideremos também a profiss.artífices: não sabemos nós que aquele que tem por mestre este-deus alcança celebridade e glória, ao passo que outro, que não ~:ele bafejado, permanece na obscuridade? Incontestável, pelo rr-que foi sob o império da paixão e do amor que Apolo inventou é. _

manejar o arco, bem como a medicina e a advinhação 78. De seb não passa de um discípulo do Amor, tal como as Musas o são lL

ou Hefesto no bronze ou Atenas na tecelagem, ou mesmo Zeus -função de «governar os deuses e os homens» 79. Daí concluirm;bém que os conflitos entre os deuses se compuseram com o apare.to do Amor - o amor, evidentemente, da Beleza, pois da fealda.se aproxima! Quanto a essas atrocidades todas que, segunda -tradição, houve entre os deuses, são anteriores e deram-se sob o :":da Necessidade, como dizia de início. Porque, desde que es~nasceu, o amor da Beleza fez surgir tudo o que há de bom, tanto : .deuses como para os homens.

c E aí tens, Pedra, a ideia que faço do Amor: justamente ~possui ao mais alto grau beleza e virtude, é que depois se torna; _outros fonte de idênticos dons. Ocorre-me até esta expressão errpara dizer que é ele quem estabelece

entre os homens a paz, a bonança nos mares açodados,o dormir sossegado dos ventos, o sono isento de cuidados

d É ele quem apaga em nós a ideia de sermos estranhos t::outros e nos comunica sentimentos de familiaridade, através C:::

niões como estas, que ele promove. Nos festivais, nas dança

78 Apoio, como inventor do tiro ao arco, é citado em llíada li, 827; da a;ção, em Ilíada I, 72; relativamente à medicina, cf. Píndaro, Píticas V, 63-6Ç

79 Kubernan, «governar», é uma metáfora de origem náutica: Zeusadiante o Amor- 197e) compara-se a um piloto que governa o mundo; a eL-que vem já de Homero (vide Ilíada 11, 205), repercute-se na linguagem da =-antes e depois de Platão (cf., e. g., Platão, Timeu 49d-e).

80 Estes dois versos constituem uma possível reminiscência de Home-Odisseia V, 391, e XII, 168.

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sacrifícios divinos ei-lo como nosso guia, abrindo-nos as vias para adelicadeza, fechando-as para a rudeza. Liberal em dons de simpatia,inacessível aos da malquerença. Alegre e amável. Venerável aos olhosdos homens superiores e admirável aos dos deuses; objecto de invejapara os que o não partilham e para os que o partilham, um bemdesejável; pai da Volúpia, da Doçura, do Requinte, das Graças, doDesejo e da Saudade; propício aos bons, desatento aos maus; nosofrimento e na inquietude, na saudade e nas conversas, o piloto, omarinheiro, o camarada e o salvador por excelência; ornamento de etodos os deuses e homens sem excepção; enfim, o corifeu de supremabeleza e virtude que cada homem deve seguir e invocar em belos hinos,associando-se ao cântico que o Amor canta para fascinar o espírito detodos os deuses e de todos os homens!

Possa, pois, este discurso representar, Fedro, a minha parte dehomenagem ao deus: um misto de brincadeira e de seriedade, quetemperei como me foi possível.

Mal Ágaton acabou de falar, todos os circunstantes romperam em 198aplausos, achando que o jovem se tinha saído muito bem, tanto em suahonra como na do deus 81. E eis que Sócrates comenta, olhando paraErixímaco:

- Então, ainda estás convencido, filho de Acúmeno, de que eramvãos os meus receios de há pouco? Não achas que adivinhava aoassegurar que Ágaton nos iria proporcionar um discurso maravilhoso edeixar-me, a mim, em sérios apuros?

Replicou Erixímaco: - Numa das coisas, acho eu que adivi-nhaste - ao assegurar que Ágaton nos faria um belo discurso! Agoraque fosses ficar em apuros, isso não acredito ...

- Ora, meu caro amigo! - insistiu Sócrates. - Como queres tu bque não me veja em apuros, eu ou qualquer outro a quem tocasse a vezde falar, depois de um discurso tão bonito e variado? Nem tudo, claro,terá sido igualmente admirável... Mas este final? Quem não ficariavarado de assombro com a beleza dos seus termos e expressões? Porminha parte, tão convencido fiquei da minha incapacidade para dizercoisas assim bonitas, que pouco faltou para me sumir de vergonha, se ctivesse por onde ... Sim, o seu discurso só me trazia à lembrançaGórgias, a ponto mesmo de passar pela experiência que Homero des-

81 O narrador sublinha ironicamente a boa impressão que Ágaton (identifi-cando-se a Eros) pretendeu dar de si mesmo (cf. 195d, nota 73).

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creve: todo o meu receio era que Ágaton acabasse por evocar nodiscurso a cabeça do terrível Górgias e a arremessasse contra o mdeixando-me mudo como um penedo! 82 Só então medi o ridículoque tinha caído quando aceitei associar-me a vocês na celebração

d deus; afirmei-vos então que o amor era justamente a minha especial,dade ... e afinal desconhecia de todo em todo o essencial - a artefazer qualquer espécie de elogio! Supunha eu, na minha boa-fé, queessencial era, em cada caso, dizer a verdade sobre o objecto a elogiar,seja: tomar essa mesma verdade como ponto de partida e proceder en -a uma escolha dos aspectos mais belos para os dispor da forma matractiva. Já impava mesmo de vaidade à ideia de proferir um bdiscurso, convicto, como estava, de conhecer a verdadeira arte [de fqualquer espécie de elogio] ... 83 Entretanto, pelos vistos, não era este

e método adequado para louvar fosse o que fosse, e sim atribuir-lhe tuo que de mais belo e grandioso pudesse imaginar-se, independenmente de ter ou não fundamento. Mentir, claro, não constituía p -blema, pois o que antes se convencionou, pelos vistos, foi que cadade nós «simulasse» um elogio do Amor e não propriamente quefizesse ... Daí, creio eu, essa girândola de ideias que vocês apresentarr:conta do Amor, daí falarem na sua natureza, na imensidade de donsque é causa, com o fito exclusivo de o fazer parecer tão belo e perfei

199 quanto possível - aos olhos, claro, dos ignorantes e não dos ente-didos ... E aí está um belo, um nobre elogio! Ora o facto é que eu nãconhecia tal modalidade de elogios e, porque não conhecia, concor -com vocês em dar o meu contributo pessoal na celebração do deus. Fportanto, «a língua» que assentiu «e não o espírito» ... 84 Nada fei -Renuncio, desde já, a louvores desse estilo, pois não tenho qualqjeito para eles. Agora, se vocês aceitam a perspectiva da verdade, i

b sim, estou pronto a falar - mas ao meu modo pessoal, sem compecom os vossos discursos, porque não quero cair no ridículo! Posto is

82 Cf. Odisseia XI, 632: Ulisses receia que Perséfone envie contra ele a ca _«gorgónica» do terrível monstro. A Górgona era um monstro de cabeleira comppor serpentes entrelaçadas, cujo olhar tinha o poder de transformar os homenspedra; os Gregos identificavam-na com a Medusa, uma das três GórgonasHesíodo cita (cf. Teogonia 276) e era considerada como símbolo de «mau-olhadNote-se o trocadilho Górgona/Górgias, comparável ao de Ágaton/agathon em 174-'-

83 Para esta oposição entre retórica e verdade (contra a qual Platão se insurgecf. Górgias 453b e Fedro, 260b-c.

84 Paráfrase de um verso do Hipólito, de Eurípides (162), que se tomou proverbial.

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Fedro, vê lá se interessa um discurso deste género: um discurso que vosfaça escutar a verdade sobre o Amor, mas que em matéria de termos,requintes de expressão e coisas quejandas será aquilo mesmo que meocorrer na altura ... 85

Naturalmente, tanto Fedro como os demais o incitaram a falar deacordo com o critério que achasse melhor.

- Mas já agora, Fedro - ajuntou Sócrates - pedia-te licençapara fazer ainda umas perguntas a Agaton sobre uns quantos pormeno-res: logo que chegarmos a acordo sobre eles, passo sem mais ao meudiscurso.

- Com certeza que dou - anuiu Fedro. - Faz lá as tuas per-guntas.

Seguidamente, foi mais ou menos nestes termos, contou Aristo-demo, que Sócrates começou:

- Para ser franco, caro Ágaton, acho que introduziste bem o teudiscurso ao afirmar que era necessário primeiro demonstrar qual anatureza do Amor e só depois os seus efeitos 86. Apreciei mesmo muitoessa introdução. E, já que falamos do Amor (para mais, depois dessabeleza e magnificência com que nos expuseste a natureza do deus!),diz-me então o seguinte: a natureza do Amor implica que ele seja dealguma coisa ou de nada? Não estou a perguntar-te se é amor de um paiou de uma mãe - claro que uma pergunta des as eria ridícula! 87 Não,o sentido da pergunta é mais ou menos como e em vez de «amor»estivesse «pai»: um pai é pai de alguém ou não? Se quisesses respon-der-me correctamente, dirias com certeza que é pai de um filho ou deuma filha, não é verdade?

- Claro que sim - assentiu Ágaton.- E o mesmo acontece em relação à mãe?Concordou também neste ponto. Sócrates prosseguiu:- Já agora, responde-me só a mais umas perguntas, a ver se

entendes onde quero chegar. Supõe que te perguntava assim: «Vamos, eum irmão?» Nessa qualidade estrita, é irmão de alguém ou não?

85 A «modéstia» que leva Sócrates a recusar competir com os outros é umaspecto característico da sua eironeia: do ponto de vista artístico, vemos que o seudiscurso nem despreza o plano proposto por Ágaton, nem os recursos de estilo que aretórica punha em prática para seduzir e cativar os ouvintes.

86 Cf. 180d, nota 27.87 Sócrates comenta que uma tal pergunta seria absurda, dado que em grego a

palavra eras é empregue quase exclusivamente em sentido erótico, o que não acon-tece com o termo amor em português.

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c

d

e

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Confirmou que era.- De um irmão ou de uma irmã, não é verdade?Concordou.- Experimenta então seguir o mesmo raciocínio com respeito.

Amor. Ele é amor de nada ou de alguma coisa?- De alguma coisa, evidentemente!

200 - Muito bem - prosseguiu Sócrates. - Guarda a resposta :teu espírito e lembra lá que «coisa» é essa. Entretanto, diz-me só IL

isto: o amor é ou não desejo daquilo de que é amor?- Claro que sim - assentiu.- E donde provém esse desejo e amor: do facto de possuir o

não possuir aquilo que ama e deseja?- Provavelmente, do facto de não possuir - aventou.- Ora vê lá - comentou Sócrates - se, em vez de provável ~

será antes forçoso admitir que aquele que deseja deseja o que lhe fab que, se não sentir falta, não sente também desejo? 88 Por mim acho

que maneira!) que é mesmo forçoso assim ser ... E tu, que achas?- O mesmo - respondeu.- E com razão: alguém que seja alto poderá querer ser alto, o;

robusto, se for robusto?- Impossível, de acordo com os nossos pressupostos.- E isso, porque não estaria privado dessas qualidades que ~

sui...-Exacto.- Claro - aventou Sócrates -, pode dar-se o caso de _

pessoa robusta querer ser robusta, ou querer ser veloz, mesmo queseja, ou saudável, mesmo que tenha saúde - sim, porque talve:

c generalidade destes casos não seja impossível imaginar que indiví;dotados de certo tipo de qualidades, e, portanto, possuidores del;desejem também (e levanto a questão justamente para evitar qULequívoco!). Ora bem, se reparares nos indivíduos em causa, o Ct-que eles possuem, ao presente, cada uma das qualidades de qt,dotados, quer queiram quer não. Assim sendo, como entende:possam sentir desejo delas? Vamos que alguém nos diz: «eu, que--saúde, quero também ser saudável» ou «eu, que sou rico, quero ta::ser rico» ou ainda: «estes bens todos que possuo, desejo-os tam:A isto poderíamos replicar: «Tu, criatura, gozas já de riqueza, de s.,

88 Tudo o que se segue é um desenvolvimento da noção que se encontre :221d.

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de robustez! Se queres de facto possuir esses mesmos bens é a pensar no dfuturo porque, quanto ao presente, já gozas dele, quer queiras quer não.Vê lá, pois, se quando afirmas sentir desejo dos bens de que já dispões,a tua ideia não será esta: 'os bens de que agora disponho, quero tambémdispor deles no futuro'?» Que remédio tinha ele senão concordar?

Ágaton secundou-o. Sócrates prosseguiu:- E não será esta também uma forma de amar o que não se

encontra ainda ao nosso alcance e em no o poder - desejar que osbens que nos pertencem se conservem connosco e ao nosso dispor nofuturo?

- Claro que sim - respondeu. e- Consequentemente, esse ou qualquer outro indivíduo que sinta

desejo sente-o em relação a algo que não está ao seu dispor ... Ora é emsituações deste género, em função daquilo que o homem não tem, quenão faz parte do seu ser e de que se sente pri ado que tanto o amorcomo o desejo existem?

- Claro que sim - assentiu.- Muito bem - resumiu Sócrates. - amo entender-nos sobre

o que ficou dito: antes de mais, que o Amor existe em função de umdeterminado número de coisas e, em segundo lugar, que essas são as deque se sente privado?

- Sim - respondeu. 201- E agora, é o momento de recordares em função de que coisas o

Amor existe, de acordo com o que afirmaste no teu discurso. Sepreferires, eu mesmo to vou lembrar. Sal o erro, disseste mais oumenos o seguinte: «foi graças ao amor do Belo que os conflitos entre osdeuses se compuseram, pois amor ao que é feio é coisa que não podehaver.» Não foram estas, mais ou menos, as tuas palavras?

- Sim, foram - concordou Ágaton.- E com razão, meu caro - apoiou Sócrates. - Ora, se assim é,

o Amor só existe em função do Belo, não do feio?Ágaton assentiu.- E, segundo ficou assente, o que ele ama é aquilo de que se sente b

privado e não possui?- Sim - respondeu.- Consequentemente, o Amor é desprovido de beleza e não a

possui ...- Terá de ser - concordou Ágaton.- Vejamos, e a uma coisa desprovida de beleza e que de nenhum

modo a possui, chamas tu bela?- Não, é evidente.

67

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68

- E nestas condições ainda sustentas que o Amor é belo?Retorquiu-lhe Ágaton: - Muito possível, Sócrates, que não esti-

VC\\C seguro das afirmações qu~ fiz então!( - O que não quer dizer, Agaton, que não tivesse sido um bonito

di-curso ... Mas diz-me só uma coisa: não entendes tu que aquilo que ébom também é belo? 89

- Entendo, claro.- Então, se o Amor é desprovido de beleza e se o belo e o bem são

a mesma coisa, segue-se que ele é igualmente desprovido do bem ...- Não tenho argumentos a opor-te. Sócrates. Seja como dizes.- Diz antes, caro Ágaton - contrapôs ele - que não tens

argumentos a opor à verdade. Porque contra Sócrates ... nada te seriamais fácil do que arranjá-Ias! 90

d Bom, e a partir de agora deixo-te em paz ... Há uma doutrina sobreo Amor que escutei em tempos a uma mulher de Mantineia, Diotima,mulher versada não só nesta matéria como em muitas outras. Foijustamente ela que, nos sacrifícios realizados pelos Atenienses antes dapeste 91, conseguiu retardar o flagelo por dez anos; e foi ela também queme instruiu sobre os fenómenos do amor. É pois essa sua doutrina quevou procurar referir-vos, na medida dos meus recursos, a partir dasconclusões a que eu e Ágaton chegámos. Impõe-se, naturalmente,começar como tu, Ágaton, por falar no Amor em si mesmo - quem é

e ele, qual-a sua natureza - e em seguida nos seus efeitos. Nesse sentidoo mais prático, salvo erro, será expor-vos a doutrina da tal estrangeiranos mesmos termos em que ela ma expôs, através das perguntas que mefazia. A verdade é que as minhas ideias sobre o assunto eram sensivel-

89 A equivalência do Belo (tokalon) ao Bem (to agathon) domina, podedizer-se, em toda a cultura grega, como demonstra o ideal de perfeição traduzido nakalokagathia. Ágaton não tem nesse aspecto dúvida em dar razão a Sócrates, mas háum desacordo fundamental no modo como cada um entende a sua equivalência: paraÁgaton, to kalon refere-se á beleza essencialmente física que acompanha o mérito, toagathon, independentemente do significado ético que Sócrates lhe atribui; para esteúltimo, o Bem e o Belo têm de existir em função de uma utilidade que se definesempre eticamente.

90 O que Sócrates pretende significar é que a verdade interessa muito mais doque as opiniões particulares que ele, como qualquer outro homem, possa ter(ef. Cármides 166d-e; Fédon 91b-c).

91 Trata-se da grande peste ocorrida em Atenas em 430 a.c. Tucídides conta(sem dar grande crédito) que a peste havia sido prevista e retardada por algum tempo(cf. lI, 47).

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mente semelhantes às que Ágaton ainda agora professava, isto é. que oAmor era um grande deus e, além disso, amor do Belo. ldeias que elame ia refutando com os mesmos argumentos que há pouco utilizei comÁgaton, fazendo-me ver que, de acordo com as minhas palavras. oAmor não poderia ser belo nem bom. Eu contestei:

«Que queres dizer, Diotima? Que ele é feio e vil?»E ela: «Tem tento na língua ... ou achas que, por não ser belo. tem

forçosamente de ser feio?»«Fora de dúvida!»«E ignorante, pelo facto de não ser sábio? Ou não pressentes que

há um meio termo entre sabedoria e ignorância?»«Que meio termo?»«Então não sabes? Formular uma opinião correcta 92, embora sem

saber fundamentá-Ia, nem é conhecimento (impossível conhecer-se oque não sabemos explicar...) nem ignorância: poi como falar de igno-rância quando acertamos com a verdade das coi as? Claro que há algodo género, a opinião correcta, que é um intermediário entre saber eignorar!»

«Tens razão», concordei.«Não teimes, portanto, em chamar feio ao que não é belo e vil ao

que não é bom. O caso, precisamente, do Amor: lá por assentiresespontaneamente que ele não possui beleza nem virtude, nada te obrigaa pensar que ele seja feio ou vil: é apenas uma espécie de intermediárioentre ambas as coisas.»

Objectei: «Mas a verdade é que todos são unânimes em ver neleum grande deus!»

«Todos, quem?», perguntou. «Referes-te aos ignorantes ou aosentendidos?»

«Todos, sem excepção!»Ela riu-se e replicou: «Como, Sócrates? Será que também vêem

nele um grande deus até as pessoas que negam que seja um deus?»«Que pessoas?», perguntei.«Uma», declarou, «és tu; a outra, eu!»Exclamei: «Que queres tu dizer com isso?»

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92 Seguindo Pannénides com a sua célebre divisão entre caminho da verdade(aletheia) e caminho da opinião (doxa), Platão define muitas vezes negativamente adoxa em relação à episteme, o «conhecimento verdadeiro», relegando a opinião parao mundo das aparências (cf. República 479c-480a). No entanto, em muitos outroscasos, reconhece-se a existência de uma orthe doxa, espécie de intuição das realida-des verdadeiras, que praticamente se revela eficaz para guiar os homens à virtude (cf.Ménon 98b sqq).

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E vai ela: «Muito simples! Ora diz-me: não afirmas tu que todos osdeuses são felizes e belos? Ou terias cara para sustentar que há algumdeles que não seja belo e feliz?»

«Claro que não, por Zeus!», respondi.«E felizes, não chamas tu àqueles que possuem bondade e

beleza?» 93

«Precisamente» .d «Todavia, ao falarmos justamente do Amor, não deixaste de con-

cordar que era a privação do Bem e do Belo que o faziam desejar essasmesmas qualidades que lhe faltam ...»

«Concordei, efectivamente.»«Então como queres tu que o Amor seja um deus, se não tem parte

naquilo que é belo e bom?»«Nenhuma possibilidade, ao que parece ...»Ela concluiu: «Estás a ver? Também tu não consideras o Amor um

deus ...» 94

«Dado isso», perguntei, «o que será o Amor? Um mortal?»«Que ideia!»«O quê, então?»«Exactamente o que disse antes: um intermediário entre mortal x:

imortal.»«Mas ao certo, o quê, Diotima?»

e «Um génio poderoso, Sócrates! Pois todo o ser genialintermediário entre o humano e o divino.»

Perguntei: «E quais são as suas atribuições?»«As de um intérprete e mensageiro dos homens junto dos deuse

dos deuses junto dos homens: àqueles, transmite as preces e os sacri-fícios; a estes, as ordens e as recompensas em paga dos sacrifícios. -seu papel de intermediário, preenche por inteiro o espaço entre un =outros, permitindo que o Todo se encontre unido consigo mesmo >

93 A eudaimonia, como já Ágaton insinuara (195a), é condição daqueles _possuem de modo absoluto beleza e bondade - isto é, dos deuses; eros, despro -de beleza e de bondade, não pode, portanto, ser um deus.

94 Esta argumentação é, em grande parte, desenvolvida sobre a ideia exprno Lisis 216d-e: entre as duas categorias de «bom» e «mau», intercala-seterceira, que se define negativamente - o que não é bom nem mau. Platão socorreda crença tradicional nos daimones (híbridos de seres divinos e mortais - -Apologia 27c-e) para mostrar em Eros o que racionalmentre define como intediário (rnetaxu) entre mortal e imortal, sábio e ignorante.

95 «Estar em contacto com ambos» (ou seja, mortal e imortal), «unir oconsigo mesmo» são funções que no Timeu se atribuirão à Alma do Mundo (337a; cf. 41c-d, 42a).

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É efectivamente com o seu concurso que se realizam as várias formasde adivinhação e as práticas dos sacerdotes, tanto os que se ocupam dossacrifícios e das iniciações como os que se ocupam dos encantamentose de toda a espécie de vaticínios e de ritos mágicos. Pois o divino não semistura directamente com o humano, e é ao ser intermediário querecorre para estabelecer comunicação e diálogo com os homens, quer nosono quer na vigília 96. O homem versado nestas matérias é, consequen-temente, um ser genial enquanto outro, cujo saber se limita a qualqueroutro domínio, seja ele arte ou ofício, não passa de um artífice. Ora, osgénios de que falo existem em grande número e variedade, e um deles éprecisamente o Amor.»

Eu indaguei: «Mas afinal, quem são o seu pai e sua mãe?»«Isso é uma história comprida ...», respondeu. «Todavia, vou con-

tar-ta 97. Quando Afrodite nasceu, os deuses reuniram-se num festimonde, entre vários outros, se encontrava o Engenho, filho da Sabedoria.Depois de jantarem, eis que aparece a Pobreza a mendigar os restos -como é usual em ocasiões de festa ... - e ali ficou, junto à porta.Entretanto o Engenho, já embriagado de néctar (pois vinho não haviaainda ...) foi para o jardim de Zeus, e tão pesado se sentia, que adorme-ceu. Então a Pobreza, que na sua natural indigência meditava ter umfilho do Engenho, deitou-se junto dele e assim concebeu o Amor. Eis arazão por que o Amor nos surge como companheiro e servidor deAfrodite: concebido nas festas em honra do seu nascimento, é, pornatureza, um apaixonado do Belo, pois que Afrodite é bela. Por outrolado, a condição de filho do Engenho e da Pobreza ditou-lhe o seudestino. Condenado a uma perpétua indigência, está longe do requinte eda beleza que a maior parte das pessoas nele imagina ... 98 Rude, mise-

• 96 Tais práticas são criticadas na República 364a-365a, mas aí Platão teráprovavelmente visado os «falsos profetas» e não a magia ou a advinhação em simesmas (cf. Cármides 173c); que, pelo menos espontaneamente, seria levado aatribuir-lhe um valor divino, é o que nos parece mostrar o F édon (111b), onde se dizque os deuses se dão a conhecer aos homens puros, os que habitam a «terra verda-deira», através de vozes e oráculos.

97 Sobre as interpretações dadas a este mito, sobretudo por parte dos neopla-tónicos, vide Robin, La Théorie platonicienne de l'Amour, Paris, 1964, §§ 111-115.É curioso notar que no Fedro se alude a uma origem e natureza do amor diversa daque aqui se apresenta - cf. Fedro 242d.

98 Em oposição à imagem tradicional de Eros, que Ágaton elogiara, Diotimadistingue neste retrato, inteiramente diverso, os aspectos característicos da personali-dade e do modo de viver de Sócrates; a caricatura que Aristófanes nos deixa nasNuvens (e a narrativa de Alcibíades) confirma muitos desses aspectos que os Cínicos,aliás, posteriormente adoptaram.

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d rável, descalço e sem morada, estirado sempre por terra e sem nada quo cubra, é assim que dorme, ao relento, nos vãos das portas e do:::caminhos: a natureza que herdou de sua mãe faz dele um inseparávecompanheiro da indigência. Do lado do pai, porém, o mesmo espíritoardiloso em procura do que é belo e bom, a mesma coragem, persistên-cia e ousadia que fazem dele o caçador temível, sempre ocupado etecer qualquer armadilha 99; sedento de saber e inventivo, passa a vidainteira a filosofar, este hábil feiticeiro 100, mago e também sofista!

Deste modo, não é por natureza mortal nem imortal. No mesmodia, tanto floresce e vive, segundo está senhor dos seus recursos, comomorre para voltar à vida, graças à natureza de seu pai. Porém, os seusachados escapam-lhe continuamente das mãos, de tal sorte que nunca seencontra na indigência nem na riqueza: antes, num meio termo que é, deigual modo, entre sabedoria e ignorância. A verdade é esta: nenhumdeus ama o saber ou deseja ser sábio (pois que já o é), nem qualqueroutro que possua o saber se dedica à filosofia 101, do mesmo modo quenão são também os ignorantes que a ela se dedicam ou que aspiram a sersábios! A ignorância acarreta efectivamente consigo este peso: é que oque julgam possuir em suficiência beleza, bondade e inteligência, nadadisso possuem: e quem se não crê destituído não aspira, consequente-mente, a um bem de cuja falta se não apercebe.»

«Vamos, Diotima» interpelei-a. «Como qualificaremos entãoesses que se dedicam à filosofia, se não são sábios nem ignorantes?»

Ela exclamou: «Isso salta até aos olhos de uma criança! Sãointermediários entre ambos os extremos, como indubitavelmentesucede com o Amor: pois se a sabedoria se conta entre as mais belacoisas e se o Amor é amor do Belo, forçosamente terá de ser filósofo e.

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99 As armadilhas ou traições do Amor fazem parte da tradição lírica: cf. Safo.fr. I Lobel-Page; Anacreonte, fr. 7 Diehl. Nos diálogos platónicos, o amor e afilosofia aparecem frequentemente identificados com a arte da caça (cf. Lisis 206a-b:Fédon 66c); semelhante ao caçador, o amante, tal como o filósofo, tem de usar deastúcia para alcançar o objectivo que persegue.

100 A expressão «hábil feiticeiro» evoca, com alguma ironia, essa espécie de«poder mágico» que de boa ou má vontade os interlocutores de Sócrates lhe reconhe-ciam (vide Cármides 155e-156a; Ménon 80a sqq.). No Ménon esse poder é compa-rado ao choque eléctrico produzido pela raia.

101 Diotima parece admitir a possibilidade de algum homem chegar efectiva-mente a ser sábio (sophos); mas, tal como «tomar-se imortal» (212a), esse estadodeve considerar-se como termo de uma procura e de um desejo (eros) em que ofilósofo se empenhou.

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como filósofo, situar-se no meio termo entre sábio e ignorante. Ora, acausa de tais características reside justamente na sua origem: de umaparte, um pai sábio e engenhoso; de outra, uma mãe desprovida desabedoria e de recursos. E aí tens, pois, a natureza deste génio. Quantoàs ideias que tu fazias do Amor, não é assim coisa tão extraordinária:tanto quanto posso avaliar das indicações que me deste, o que tu vias noAmor era «o objecto amado» e não «o amante» 102. Por isso mesmo, senão estou em erro, ele incarnava aos teus olhos a suprema forma debeleza - exactamente porque ao amado compete ser belo, delicado,perfeito e feliz em sumo grau. Porém, o amante propriamente dito temuma natureza diversa, tal como te expus.»

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Comentei por minha vez: «Muito bem, estrangeira! Sem dúvidaque tens razão. Mas, a ser o Amor tal como o representas, que utilidadetem ele para os hornens?»

«Aí está, Sócrates», respondeu, «o que a seguir vou tentar expli-car-te. A natureza e a origem do Amor são estas que lhe apontámos;paralelamente é também em função daquilo que é belo, como tu susten-tas, que ele existe. Mas vamos supor que alguém nos pergunta: 'O que éisso de amar as coisa belas, Sócrates e Diotima?' Ou, falando maisclaramente: 'Aquele que ama as coisas belas, o que é que ama em con-creto?'»

Respondi: «Possuí-las!»«Mas essa resposta», prosseguiu ela, «implica ainda uma outra

pergunta deste género: de que servem as coisas belas a quem aspossui?»

Confessei-lhe que não me sentia ainda em condições de responderà vontade a uma pergunta destas.

«Então faz de conta», insistiu, «que alguém te fazia a mesma per-gunta, substituindo a ideia de 'belo' pela de 'bom': olha, Sócrates,aquele que ama as coisas boas, ama. Mas que ama ele, em concreto?»

«Possuí-las!», respondi.«E de que servem as coisas boas a quem as possui?»Repliquei: «A isso já posso responder mais facilmente ... é torná-Io

feliz.»

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102 Sócrates, pela boca de Diotima, condena o ponto de vista de Ágaton(cf. 195d). O desenvolvimento do discurso indicar-nos-á que o «objecto amado»pelos homens não é outro senão o Bem, a que no Lísis se chama «o primeiro Amável»(219c).

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205 «É, portanto, pela posse das coisas boas», concluiu, «que aspessoas felizes são felizes. E já não adianta perguntar com que fim seaspira a ser feliz: a resposta, salvo erro, encerra já um termo último.» 103

«Tens razão», concordei.«Porém, esta aspiração e este amor de que falamos, crês que seja

comum a todos os homens e todos aspirem a possuir sempre as coisasboas, ou tens outra opinião?»

«Isso mesmo», 'confirmei, «é um sentimento comum a todos.»«Vejamos então, Sócrates», replicou, «porque não afirmamos

então que todos os homens amam? Se é verdade que as mesmas coisasb são sempre objecto de amor por parte de todos 104, por que motivo dize-

mos de uns que amam e dos outros, não?»«Pessoalmente», reconheci, «também isso me admira.»«Contudo, não há de que te admirares! É que nós restringimos o

sentido, chamamos amor apenas a uma certa forma de amor, apli-cando-lhe a designação de todo, enquanto, para outras formas, nosservimos de outros nomes.»

«Por exemplo?», perguntei.«Por exemplo, isto: sabes que a ideia de criação ou poesia é algo de

muito amplo, pois toda e qualquer passagem do não-Ser ao Ser sec efectua por um acto de criar; de tal sorte que, mesmo as obras produzi-

das na totalidade dos ofícios são criações, como criadores ou poetas sãotodos os seus artíficies.»

«Tens razão.»«Entretanto, como sabes, não lhe chamamos poetas e damos-lhes,

sim, outras designações. Apenas uma parte delimitada do acto de criar(a que se liga às artes e ao ritmo) recebe o nome do todo. Só a este ramoespecífico damos o nome de poesia e identicamente só aos que dele seocupam chamamos poetas.» 105

103 Diotima parte da ideia comum de que a máxima aspiração do homem sepode definir como eudaimonia (cf. Lísis 207d) e fundamentalmente o fim do seudiscurso reconduzir-nos-á a esta mesma noção; porém, o que do ponto de vistafilosófico se entende por eudaimonia é, como adiante se verá, bastante diversodaquilo que geralmente os homens imaginam.

104 As coisas belas e boas (ta kala kai ta agatha).105 Platão serve-se frequentemente da discussão sobre o valor linguístico dos

termos para o aplicar a determinado raciocínio. A explicação do ponto de vistasemântico está correcta: poiesis, poietes, que derivam de poieo, «criar», deveriamprimeiro ter sido empregues em qualquer domínio de criação e só depois se terãousado especificamente no sentido em que ainda hoje se empregam as palavras poesiae poeta, provenientes da mesma raiz. O mesmo não acontece com o termo eros, que

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«Tens razão», concordei.Ela prosseguiu: «Ora o mesmo acontece com o amor: de um modo d

geral, toda a forma de aspiração ao bem e à felicidade é 'esse amor tãoforte como em tudo enganador ... ' Porém, de uns que o procuram pornumerosas vias, como seja os negócios, a ginástica ou a filosofia, nemse diz que amam nem se lhes dá o nome de 'amantes'; só a outros, cujointeresse e zelo vai para uma forma específica de amor, se aplicam ostermos próprios do todo: amor, amar, amantes.»

«Tens provavelmente razão!»«Corre por aí, é certo», prosseguiu, «uma teoria que diz que amar é

andar em procura da sua própria metade ... 106 Mas o que a minha teoria ediz é que não há amor de uma metade ou de um todo - a não ser,evidentemente, que por acaso se trate do Bem! Pelo contrário, aspessoas consentem até em amputar os seus pés e as suas próprias mãosse virem que essas partes do corpo lhes são nocivas ... Não, o que cadapessoa estima não é, creio, o que faz parte de si (a menos que por'aparentado' e 'parte de si' se entenda o Bem e o mal, como alheio ...),dado que aquilo que os homens amam de verdade não é outra coisa 206senão o Bem. Ou não achas que é isso?»

«Claro que acho, por Zeus!», assenti.«Basta então dizer simplesmente que os homens amam o Bem?»«Sim.», concordei.Ela advertiu: «Vê lá! Não temos igualmente de acrescentar que

amam possuir o Bem?»«Sim, temos.»«E que não apenas amam possuí-lo, mas também possuí-lo para

sempre?»«Também temos.»Ela concluiu: «Eis, em resumo: o amor é o desejo de possuir o Bem

para sempre.» 107

teve sempre um significado estritamente sexual, mesmo quando empregue metafori-camente. O que Platão pretende, de facto, é justificar um alargamento de sentido dapalavra eros a todos os domínios, incluindo a filosofia. Para melhor clareza, des-dobrámos o termo grego poietes em «criador» e «poeta».

106 Alusão ao discurso de Aristófanes (193a).107 Esta noção será adiante alterada (206e). Note-se que a partir deste momento,

Diotima não falta já em ta agatha «as coisas boas», mas sim em to agathon «o Bem»,e o mesmo acontece com o termo kalon «o Belo». O deslize tem importância para anova definição, pois levará a reconhecer a impossibilidade de se possuir concreta-mente o Bem e o Belo, e a definir estes últimos como o meio (e não o fim) em queEras actua.

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h«o que dizes é a pura verdade.», confirmei.«Ora, dado que o alvo do amor é sempre este», continuou, «qual o

género de vida e a actividade específica daqueles que perseguem esseobjectivo, para que possamos dar o nome de amor ao interesse e àintensidade dos seus esforços? Em concreto, qual o efeito que elesvisam, sabes dizer-me?»

Redargui: «Se o soubesse, não estaria aqui a admirar a tua ciência,Diotima, nem seguiria as tuas lições para me instruir nessas matérias ...»

«Vou então dizer-to», declarou. «Esse resultado consiste, concre-tamente, em gerar no Belo, tanto no que respeita ao corpo como àalma ...» 108

Repliquei: «Seria necessário ser adivinho para entender o quequeres dizer ...»

«Pois bem, vou ser mais explícita», esclareceu. «É um facto,Sócrates, que todos os seres humanos são dotados de fecundidade, nãosó no seu corpo mas também no seu espírito, e ao atingirem a idadeprópria, a sua natureza aspira a gerar. Só que não conseguem gerar nafealdade e apenas no que é belo. Ora a união entre o homem e a mulheré propriamente um acto de gerar e há nisto algo de divino, que subsisteem cada ser vivo, mortal por natureza, como forma de imortalidade - afecundidade e a procriação. Estas, no entanto, não podem realizar-se nadesarmonia e em desarmonia com tudo o que é divino está a fealdade,tal como o Belo se encontra em harmonia: a Beleza representa, efectiva-mente, para a geração o mesmo que Parca e Ilítia 109. Essa a razão porque, quando um ser fecundo se aproxima de um objecto belo, se enchede bem-estar e de alegria e, distendendo-se, gera e dá à luz; porém, se,em vez de belo for feio, fecha-se sobre si mesmo, sombrio e angustiado,volta costas e recusa-se a gerar, arrastando consigo o peso doloroso dasua fecundidade. Daí pois, a emoção intensa que invade o ser fecundo,já pleno de seiva, à vista do Belo, cuja posse o liberta de um verdadeirosofrimento de dar à luz! 110 Pois o alvo do Amor não é de facto o Belo,como tu supões, Sócrates ...»

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108 Platão insiste particularmente nas noções de «gerar e dar à luz», apli-cando-as à esfera intelectual, como adiante fará com os logoi, denominados «filhosdo espírito» (209c).

109 Platão junta mais uma divindade, Kallone, às que a tradição associava aosnascimentos: a Eileithuia e a Moira, ambas já conhecidas de Homero (Ilíada XXIV,209, e XII, 270).

110 Como observa Bury (p. 112), é característico deste passo o realismo dostermos com que simultaneamente se descrevem as reacções físicas e psíquicas deagrado ou aversão. A imagem das «dores de dar à luz», que acompanham a actividadeintelectual e de que alma se liberta pelo contacto com o Belo, é igualmente evocadana República em relação ao Bem (cf. 490a-b).

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«Então qual é?»«Gerar e criar no Belo!»Comentei: «Pode ser...»«Não tenhas dúvida!», asseverou ela. «E gerar, concretamente

porquê? Porque a geração é, para o ser mortal, como que a possibilidadede se perpetuar e imortalizar. Ora, de acordo com os pressupostos emque assentámos, é forçosamente à imortalidade que o homem aspira 207através do Bem - se é certo que o amor do Bem é o desejo de pos-suí-lo para sempre! E daí concluirmos, por força, que o Amor tem igual-mente em vista a imortalidade.»

Aí têm, pois, tudo o que me ia ensinando, sempre que discorriasobre o Amor. Certa vez, fez-me esta pergunta:

«Qual achas tu que seja, Sócrates, a causa de tal desejo e amor? Ounão sentes o que há de invulgar no comportamento de todos os animais,os que andam sobre a terra e os que voam, quando os assalta o impulsode gerar? Não vês como todos eles, tocados pelo mal de amor 111,

procedem, primeiro, em vista unirem-se entre si e, depois, a alimenta- brem a sua descendência? Como se dispõem, até os mais fracos, a lutarpor ela contra os mais fortes e mesmo a dar a sua vida? Como sofremvoluntariamente a fome para que as suas crias tenham de comer e sesacrificam de mil outras maneiras? Pelo que respeita aos homens,poder-se-á julgar que procedem assim por reflexão; mas com respeitoaos animais, qual a causa do impulso amoroso que os leva a um talcomportamento, sabes dizer-me?» c

Confessei-lhe, por minha parte, que não sabia. E volveu ela;«E contas ainda vir a ser forte em matéria de amor 112, quando não

fazes a menor ideia sobre o que acabo de perguntar-te?»«Vamos, Diotima! Essa foi justamente a razão, como há pouco te

disse, que me fez vir ter contigo - saber que necessito de um mestre!Diz lá, portanto, a causa desses fenómenos que apontaste e doutros quetêm a ver com o amor.»

«Muito bem», esclareceu. «Se estás de facto convicto de que afinalidade natural do amor é aquela que tantas vezes lhe assinalámos decomum acordo, não há que te admirares! Na mesma ordem de ideias, d

1110 reconhecimento comum de Eros como doença (nosos) e além disso comodelírio (mania) é no Fedro um dos tópicos principais dos dois discursos (contra e afavor) do Amor.

112 Há ironia nesta observação, dita pelo próprio Sócrates: a ciência do amorera, efectivamente, a única que se gabava de possuir (I77d, 198d; cf. Lísis 204c).

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também aqui a natureza mortal procura, consoante as suas possibilida-des, perpetuar-se e ser imortal 113. Mas essa possibilidade só lhe é dadamediante este processo, o da geração, repondo continuamente um novoser distinto na vez do antigo ... E não é, afinal, o que se passa com cadaser vivo, a quem reconhecemos, enquanto vive, uma existência e umaidentidade próprias? Sim, nós dizemos que é o mesmo indivíduo desdea infância até à velhice, e contudo ele jamais retém as mesmas

e características, seja nos cabelos, na carne, nos ossos, no sangue, emtodo o seu corpo: ora nasce continuamente para umas, ora morre paraoutras ... 114 Mas além do corpo, também a alma é afectada: estadosde espírito, hábitos, opiniões, desejos, prazeres, alegrias, receios -nenhuma destas coisas permanece em cada indivíduo; umas nascem,outras desaparecem ... E ainda mais extraordinário é o que se passa comos nossos conhecimentos: assim surgem, assim se vão, de tal sorte que

208 nunca somos os mesmos no que respeita aos nossos conhecimentos,pois cada um deles, considerado em si, está sujeito a idêntica mudança.De facto, o que chamamos estudar, que implica senão um conheci-mento que pode escapar-nos? E esquecer, senão a fuga de um conhe-cimento? E é assim que o estudo, ao implantar um novo conhecimentono lugar do que se vai, permite que ele se salvaguarde, aparentementesem alteração 115. Ora, é também por este processo que todo o ser mortalsalvaguarda a sua continuidade - não à semelhança do divino, que

113 Limitada ao processo da geração, a imortalidade, no seu pleno sentido, nãoestá de facto ao alcance do ser mortal, incluindo o próprio homem. É curioso que esteponto de vista, em princípio tão contrário à ideia que outros diálogos nos deixam (e.g. o Fédon, a República, ou o Fedro) sobre a imortalidade da alma, venha a repetir-senas Leis: a espécie humana apenas é imortal e se continua pela geração de seres quetomam o lugar de outros (721c; 773c).

114 Cf. Heraclito, fr. 20 Diels. Por outras palavras, a lei do Devir, que Heraclitodeixou consagrada na conhecida afirmação «nenhum homem pode mergulhar duasvezes nas águas do mesmo rio» (fr. 41 Diels) é equilibrada, na vida física e psíquicados seres, por outra lei, não menos importante: a da Identidade. Desde que esseequilíbrio se desfaça, o resultado para o indivíduo será a morte. Aparentemente, aideia do Devir universal, com base neste argumento, é no Crátilo pretexto paracríticas a Heraclito e aos seus adeptos; mas a intuição de um princípio de identidade,que se afirma através da mudança, é ainda possivelmente em Heraclito que Platão arecolhe: veja-se, e. g., fr. 54 Diels, onde se diz: «a harmonia invisível vale mais doque a visível».

115 Para idêntica noção do que significa conhecer e esquecer, cf. Fédon 75d-e;porém (o que não acontece no Banquete), o raciocínio apoia-se na teoria da remnis-cência: conhecer, deste modo, é «segurar» um conhecimento que a alma preexistentejá possuía; esquecer é, pelo contrário, deixá-lo fugir.

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existe sempre e é igual em tudo a si mesmo - mas deixando um novoser distinto, igual a ele, quando envelhece e morre. Só graças a esteartifício, Sócrates, o ser mortal participa da imortalidade, tanto no corpocomo em tudo o mais. Com os seres divinos, é diferente. Não estranhes,portanto, que todo o ser se desvele com o que é, por natureza, umrebento de si mesmo: em cada um, esse zelo e esse esforço conjugam-seem vista à imortalidade.»

Eu, ao escutar tais palavras, fiquei varado de espanto e disse:«Bom, Diotima! Tu, que és tão sabedora, explica-me lá como é que issopode ser mesmo verdade ...»

Ela replicou, num perfeito tom de sofista: «Acredita à tua vontade,Sócrates! Se queres, atenta só, pelo que respeita aos homens, na suaambição de glória: é natural que te espantes da sua insensatez', a menosque medites no que acabo de dizer e te convenças de que o seucomportamento estranho se deve à paixão de se tomarem célebres eassegurarem «uma fama imortal, que perdure para todo o sempre» 116.

Por este fim se dispõem a correr todos os riscos, mais ainda do quepelos filhos; a despender toda a sua fortuna, a passar por sofrimentos detoda a ordem, mesmo com sacrifício da vida! Acreditas, de verdade, queAlceste teria morrido por Admeto ou Aquiles teria seguido Pátroclo namorte, ou que o vosso Codro teria, com o sacrifício da sua vida, legadoo seu reino aos filhos 117, se não estivessem convictos de alcançar umrenome imortal, que nós hoje guardamos, ligado ao seu mérito? Longedisso! A meu ver, cada homem dá o máximo de si na esperança de ummérito imortal e de um nome glorioso que lhe corresponda. E tantomais facilmente, na medida em que é superior. Pois o que o move é oamor da imortalidade.

116 O tom solene da frase, citação ou remniscência de poetas (vide, e. g., Tirteu,fr. 9, 30 Diehl; Teógnis, 245-246), sublinha, como acontece também adiante, ocarácter ilusório dessa imortalidade que os homens julgam alcançar, perpetuando-senos filhos ou num feito que lhes assegure uma fama imortal.

117 Sócrates evoca propositadamente os mesmos exemplos de Alceste e Aqui-les, já citados por Fedro, para corrigir a ideia de que o mérito e o sacrifício possamalguma vez originar-se num impulso puramente altruísta; o que na verdade dá forçaaos homens para se sacrificarem é, conforme Sócrates explica, o desejo de imortali-dade, ou seja, o amor a si mesmos. A este\ dois exemplos junta-se o de Codro, reiateniense, que, segundo a lenda, se teria deixado morrer em luta contra os Dórios,para que estes não conseguissem conquistar Atenas. Codro fora informado de umoráculo que garantia aos Dórios a posse de Atenas desde que o seu rei não fossemorto. A tradição localiza o acontecimento em 1068 a.c. (cf. Bury, p. 119).

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Uns, portanto, que são fecundos segundo o corpo, voltam-se depreferência para as mulheres e esta é a.sua maneira de amar, convictoscomo estão de que, através dos filhos que criam, asseguram a suaimortalidade, a lembrança do seu nome e uma bem-aventurança queperdure para todo o sempre. Outros, que são fecundos segundo a alma ...Pois não tenhas dúvida, há homens cuja alma possui uma fecundidadeainda superior à do corpo em criar e produzir o que a ela compete (e oque lhe compete afinal, gerar, senão a sabedoria e as demais formas devirtude?) - E entre esses tais se contam não apenas todos os poetascriadores de obras, como ainda, no domínio da técnica, todos osartífices reconhecidamente dotados de espírito inventiva. Contudo, aforma mais nobre e bela de sabedoria é, de longe, a que respeita àorganização dos Estados e da vida familiar e que, em concreto, designa-mos por 'temperança' e 'justiça' 118. Ora, quando um ser, cuja almaparticipa do divino, traz desde a infância os germes de tais virtudes e, aochegar a idade própria, o assalta o impulso de gerar, é então, salvo erro,que se põe em campo, lançando-se em procura do Belo onde lhe serápossível gerar: porque na fealdade, é sabido, jamais o fará! Daí que, emrazão da sua fecundidade, se desvele com os corpos belos e não com osfeios, e se o acaso lhe depara uma alma igualmente bela, nobre e bemformada, o seu desvelo atinge o auge por uma união entre ambos! Juntode um homem como este, instantaneamente lhe vêm recursos paradiscorrer sobre a virtude, sobre os deveres e as ocupações próprias deuma pessoa de bem - e empreende a missão de educar 119. Pois ocontacto com o que é belo, o convívio com ele, permitem-lhe então,creio, gerar e dar à luz os frutos que há muito trazia em si; e com a suaimagem sempre presente, quer esteja perto ou longe dele, alimenta emcomum com ele o que acaba de produzir.

c

118 Acima dos poetas, tradicionais educadores da Grécia (vide, e. g., Lisis214a), e dos inventores, Platão distingue os que sobressaem pela sua «virtudepolítica» - o que indica, sem dúvida, uma proximidade cronológica com a Repú-blica. Mas 'temperança' e 'justiça' representam noções já propriamente pla-tónicasou apenas uma concessão aos pontos de vista correntes, que pelo contrário critica? Seconsiderarmos o ataque aos poetas (sobretudo Homero - vide República 595b sqq.e a ironia com que no F édon se alude aos que praticam a espécie de virtude.vulgarmente chamada «temperança» e «justiça» (82a-b), teremos de entender estepasso - incluindo o elogio de poetas e legisladores adiante citados - como casua:referência a ideias tradicionalmente defendidas, que Platão não aceitaria sem res-trições.

119 Vide Fedro 276e-277a: educar é depositar, numa alma que se revele dotada.os frutos (logoi) cujas sementes irão desenvolver-se em outras almas e farão surgi:novos logoi. Para um confronto com a rnaiêutica socrática, veja-se a nota 124.

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Assim é que homens desta têmpera se prendem por laços bem maisfundos [do que aqueles que nos prendem aos filhos] e guardam entre siuma amizade mais durado ira, porque também os filhos que resultam dasua união são mais belos e imortais ... Todo o homem que tenha os olhospostos em Homero, Hesíodo e outros poetas de mérito não deixará, por dcerto, de preferir filhos como estes aos da humana geração, de lhesinvejar a descendência que eles deixam após si e lhes confere, emvirtude mesmo da sua imortalidade, a glória e um nome imortal! Sim,se queres, vê só os «filhos» que Licurgo deixou na Lacedemónia, comose tomaram a salvaguarda desta cidade e, a bem dizer, de toda aGrécia! 120 Ou ainda Sólon, como se tomou venerado na vossa cidade,graças às leis que gerou! E o mesmo diremos de outros homens que nasmais diversas partes, entre os Helenos como entre os Bárbaros, fizeram enascer toda a espécie de virtude com a produção de belas e variadasobras. Em sua honra, e graças a «filhos» como estes, já inúmeros cultosforam até agora instituídos; ainda nenhum, porém, em atenção aosfilhos mortais 121.

Nestes mistérios do amor talvez até tu, Sócrates, possas ser iniciado.Mas os mistérios últimos e a sua revelação 122, que constituem o alvo 210desta primeira etapa - na condição de se seguir o caminho ade-quado - esses não sei se estarás à altura de entendê-Ias ... Não obstante(assegurou) vou prosseguir com o mesmo empenho que até agora. E tuesforça-te por me acompanhares até onde te for possível.

Pois bem, é necessário que aquele que empreende o recto caminhopara este fim comece desde jovem a procurá-lo na beleza dos corpos.E, se o seu guia o orientar como deve, há-de amar primeiro um único

120 Licurgo, legislador lacedemónio, que viveu talvez no século X a.C., foiquem, segundo a tradição, instituiu as leis em vigor em Esparta. A designação de«salvador da Grécia» é alusiva ao papel desempenhado pelos Lacedemónios duranteas Guerras Pérsicas (cf. Píndaro, Píticas I, 77 sqq.).

121 Referência ao culto dos heróis - homens que o espírito do povo assimilouaos seres divinos pelas boas obras que praticaram em vida. Plutarco (Licurgo 31) eHeródoto (I, 66) fazem menção de um culto estabelecido em honra de Licurgo.

122 Este passo marca a transição para a última parte do discurso, cuja naturezarevelada Diotima anuncia expressamente. Telea e epoptika eram, com efeito, aspalavras usadas na linguagem dos mistérios para designar o termo da iniciação(muesis). Alguns autores comentam que aqui Platão pretende sugerir a separaçãoentre a doutrina do Sócrates histórico e as suas próprias teorias. Porém, a dúvida queDiotima exprime, quanto às capacidade do discípulo, continua meramente a ficçãoliterária, e dirige-se, como observa Bury (p. 124), «não a um Sócrates ideal ouhistórico, mas a um hipotético Sócrates - o disfarce assumido pelo Sócrates ideal,quando representa o papel de discípulo».

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bcorpo e, desde logo, gerar belos discursos. r-netrar-se-á de que a beleza deste ou daqueem outro e como, necessariamente, o alvomanifesta na aparência física, absurdo seria não ;=nr-:".eoe7" quede todos os corpos é uma e a mesma coisa: c...,~::7~'passa então a votar-se ao amor de todos os ~do excesso que o prendia a um único, rele~~roisavalor. Chegado aqui, é, pois, a vez de av ..sobreleva à beleza física 123, de tal sorte qnemesmo num corpo sem atractivos, será sufn .e solicitude, para o levar a gerar discursoszelo] naqueles que elevam os jovens. Emente levado a contemplar a beleza das ocepeçõesconta de como toda ela está unida pormesma! E deste modo, pouco crédito dará

Depois das ocupações, é para os coni •.=,:I::-.l.=-;:-...us ç-..c o seu guiadeve orientá-lo, para que possa, por seu tnr:aa_'"~., ~:!. beleza destese contemplar a extensão do Belo já alc.ançaC:!:cio já. 'X::TI os olhos doescravo que, preso a uma forma particular re b:l~ (~2 ela a de umjovenzito, de um homem ou de uma OC""::;,;:ç%D). se ;;:::ma..em suaescravidão, mesquinho e aviltante, mas acres ~ os if..::ns postos nooceano sem fim do Belo, imerso na sua cc;::~=-;l~ _~gora sim, é avez de dar à luz uma imensidade de discursos tr-.!m .= ::x'!?uíficos, depensamentos nascidos no seu inesgotável "'õ.n;;:ao~ "':-.até que, jápleno de força e grandeza, descubra enfima =DSL~ .:e em conheci-mento único, que vem a ser o deste m

«Tenta agora», prosseguiu, «prepossível. Aquele que até aqui foi orien

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e

123Cf. 18lb; a superioridade do amor ~ :!':::::zs ~ o ~ dos corposconstituía um dos temas preferidos nos diálogos :,::; ~ ~ (vide, e.g.,Xenofonte, Banquete VIII, 15-16).

124Os comentadores vêem geralmente ness:!. :uoc::'~ÇlV d= ~e intelec-tual um desenvolvimento da maiêutica socráI:icz.. =.lS ~ ~ as bases de quecada uma delas parte são divergentes; enquamo ="-"'-7::T:? soc&iri:::a é o discípuloque tem em si os frutos da sua própria sabedodae ~ f::=çi:lt ro o:si:re se limita aassisti-lo, para Platão, ao contrário, o discípeIo i::So F ::IOS:--:= fim em si mesmo,mas apenas um meio ou ocasião de «dar à mz,. .. ~."b ~ ~=rando nele umasabedoria que não pertence, e apenas ~ ~ 5liT-ir ao discípulo.Kierkegaard (Riens Philosophiques, Paris. 19!-s.. ~c Ist,~ a-:m esta diferençaquando, ao comentar este passo, afirma que ~ ~.t= ~ riso não a relação domestre ao discípulo, mas sim do autodidacta

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.=:J:t='~)l~OUas coisas belas na sua ordem correcta e progressiva, já

.....,.....,._•...-"'IeIIl10 da iniciação amorosa, avistará de súbito um espectáculo;;;n~~!rlente - o Belo na sua verdadeira natureza, esse mesmo Belo,~::;;z~ ..que era o alvo de todos os esforços passados! Uma natureza

te de mais, que não nasce nem morre, não cresce nem~=-=iiia'::; depois, que não é bela deste modo ou feia daquele, ou bela~'-''''''''ILLl,ento e noutro já não, ou em determinada perspectiva, bela e~-"'=:""U'U1.1a, ou bela aqui e feia acolá, de modo que uns lhe achem beleza'='.~rn<: não. Mais ainda: esse Belo não lhe surgirá aos olhos sob forma

ro to, de mãos, do que quer que pertença a um corpo; tão pouco_ : ~ a de pensamento, de conhecimento 126 ou de qualquer coisa- em algo diverso dele - por exemplo, um ser vivo da terra, do_ ..•de qualquer outro sítio. Pelo contrário, surgir-Ihe-á em si e por b

a Forma única e eterna, da qual participam todas as outras coisasr um processo tal, que a geração e a destruição de outros seresa aumentam ou diminuem, e em nenhum aspecto a afectam.

Ora, quando alguém se eleva da realidade sensível, graças à práticacorrectamente os jovens, e começa a distinguir esse Belo de

íalamos, já pouco falta para atingir a meta. E aqui tens o recto;:z=nho pelo qual se chega ou se é conduzido por outrem aos mistérios c

ar. partindo da beleza sensível em direcção a esse Belo, é sempre'.=oo_~,uer,como que por degraus, de beleza de um único corpo à de

-~, da beleza de dois à de todos os corpos, dos corpos belos às- - ocupações e destas, à beleza dos conhecimentos até que a partir

alcance esse tal conhecimento, que não é senão o do Belo em si e~ a conhecer, ao chegar ao termo, a realidade do Belo. Se algumnto da vida existe, caro Sócrates», acentuou a estrangeira de d

:.:5 As características essenciais do Belo concordam com as que no Fédon e noz: - o são atribuídas às Formas (Eide, Ideai): vide, e.g., F édon 80b e Fedro 250c sqq.

_ p. 128) distingue no conjunto três aspectos principais: 1) eternidade e imutabi-: Z) ausência de geração e morte; 3) existência própria. Estes conceitos expri--se sobretudo negativamente, sublinhando, por contraste com os objectos- eis, a impossibilidade de aprender pelos sentidos a realidade das Ideias; o

processo será adaptado na descrição do «lugar suprace1este» onde no Fedro= habitarem os deuses (247c). Vide M. H. Rocha Pereira, Concepções HelénicasFelicidade no Além, (pp. 179-183).

D> Por outras palavras, a natureza do Belo não pode ser apreendida nem pelosnem pela razão .

•co A dialéctica ascendente (synagoge), que conduz do mundo sensível aoigf 'el, é representada pela imagem dos degraus, possivelmente inspirada na

_ gem dos mistérios, que ocorre também na República (511b).

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Mantineia, «que valha a pena ser vivido pelo homem, é esse em quecontempla o Belo em si! Um dia que chegues a esta visão, nada' te'parecerá comparável, nem o ouro nem o vestuário, nem mesmo osadolescentes e os jovens, cuja beleza agora te põe a cabeça à roda, comoa tantos outros ... Sim, para usufruir sempre da presença dos vossosqueridos, para jamais se separarem deles, vocês até seriam capazes(caso fosse possíveL.) de passar sem comer e sem beber, ocupadosunicamente em olhar para eles e usufruir do seu convívio! 128

Que devemos, pois, pensar de uma pessoa a quem fosse dadocontemplar o Belo em si, verdadeiro, puro e sem mistura, e que, em vezda infecta carne humana, das cores e de tantas outras insignificânciasvotadas à morte, pudesse apreender o Belo divino na simplicidade dasua natureza? Crês», ajuntou, «que seria uma vida sem interesse a dohomem que tem os olhos postos nesse alvo e que, ao contemplá-lo peloprocesso adequado, se encontra em união com ele? Ou não sentes quesomente a esse, quando olha o Belo pelos meios que o tomamvísivel '?", será dado gerar, não já imagens de virtude (pois não é já auma imagem que se apega), mas a virtude verdadeira, uma vez que é aoreal que está apegado? Mais, não achas que o facto de gerar e alimentara verdadeira virtude lhe permite ser querido aos deuses e que, se háalguém de entre os homens que possa tomar-se imortal, será esse,precisamente ?»

Foram estas, pois, Fedro e demais amigos, as palavras com queDiotima me convenceu. E porque fiquei convencido me esforço, pormeu turno, por convencer os outros de que, na aquisição deste bem, anatureza humana não encontrará facilmente auxiliar melhor do que oAmor! Esse o motivo por que vos declaro que todo o homem deveprestar homenagem ao Amor, como também eu presto: sim, tudo o quelhe diz respeito é para mim objecto de devoção especial, que recomendoaos outros também. E por isso não deixo nem deixarei, dentro dasminhas possibilidades, de elogiar o Amor pelo seu poder e pela cora-gem.

a

128 Que a beleza física parecia exercer em Sócrates um efeito especial mostra-o,e.g., o Cármides (l55d-e) ou o Banquete de Xenofonte (IV, 27 sq.); a comparação deSócrates aos Sátiros e aos Silenos é, a esse respeito, significativa (vide 216d), mas,como mostra Alcibíades, essa tendência sublima-se num intuito puramente educa-tivo.

129 Subentende-se o naus (inteligência) que desempenha, em relação às realida-des inteligíveis, o mesmo papel que a vista para as realidades sensíveis.

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cEm resumo, Fedro, aí tens o meu discurso. Aceita-o, se queres,como um elogio ao Amor; se não, escolhe uma designação que teagrade e põe-lha tu!

Ao dar assim por findo o seu discurso, Sócrates começou a receberas felicitações de todos; apenas Aristófanes se preparava para dar umaréplica qualquer, alegando que tinha sido ele o visado com a alusão à talteoria ... 130 Mas eis que de repente batem à porta do pátio com enormealarido, provocado, segundo tudo levava a crer, por um bando defoliões, e ouve-se o canto de uma flautista. Exclama Ágaton para oscriados:

- Então, não vão ver o que é? Se for algum dos nossos conheci-dos, mandem entrar. Se não, digam que já acabámos de comer eestamos a descansar.

Não muito depois ouvem, de facto, a voz de A1cibíades no pátio, jábastante tocado, a perguntar aos berros por Ágaton e a exigir que olevassem junto dele. Levam-no então até junto dos outros convi-vas, amparado pela flautista e por alguns dos da comitiva. À entradada sala detém-se, com a fronte cingida por uma espessa coroa de folhasde hera e de violetas, a cabeça coberta por uma infinidade de fitas 131,

e exclama:- Ora muito boas noites, meus senhores! Será que aceitam como

camarada de bebidas um sujeito já embriagado de todo ou devemosbater em retirada depois de coroar Ágaton, que foi a razão que aqui nostrouxe? A falar verdade - explicou -, ontem não me foi possível vir.Mas aqui me têm agora, com estas fitas na cabeça; e é justamente daminha cabeça que as vou retirar para cingir com elas li cabeça dohomem mais sábio e mais belo, e proclamar os seus títulos ... Vocêsestão a rir-se de mim, a pensar que isto é só vinho? Apesar dos vossosrisos, sei bem que digo a verdade! 132 Mas respondam lá depressinha:posso entrar' sob estas condições ou não? Aceitam ou não a minhacompanhia para beber?

213

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130 Cf. 205 d-e.131 As fitas usavam-se nas grinaldas como sinal de distinção; a pnnclplO

faziam-se de casca de tília ou de lã, mas posteriormente passaram a ser feitas comlantejoulas de ouro ou de prata.

132 O protesto de «dizer a verdade» repete-se insistentemente na boca deAlcibíades, o que está de acordo com o tom de excessiva franqueza (222c) que oséompanheiros notarão e que Alcibíades adiante justifica (mas não só) por acção devinho (cf. 2l7e).

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Toda a gente o aplaudiu com entusiasmo e o convidou a entrar e ainstalar-se. Ágaton chamou-o para o pé de si. Então ele avançou, guiadopelos companheiros, ao mesmo tempo que ia retirando as fitas dacabeça na intenção de coroar Ágaton. Mas como as tinha diante dosolhos, não deu por Sócrates e foi sentar-se ao lado de Ágaton, entre

b este e Sócrates, que entretanto se tinha desviado para lhe dar lugar.Enquanto se sentava, abraçou Ágaton e depôs-lhe a grinalda sobre acabeça. Este ordenou, por sua vez, aos criados:

- Descalcem Alcibíades para ele se instalar aqui ao pé de nósdois.

- Isso mesmo - apoiou Alcibíades. - Mas quem é esse terceiroconviva que está connosco?

E ao mesmo tempo que se voltava dá de caras com Sócrates! Aovê-lo sobressaltou-se e exclamou:

- Por Héracles, que vejo eu? Sócrates por cá? Claro, mais umac emboscada que me preparaste, ao instalares-te aqui ... Era assim mesmo,

de repente, que costumavas aparecer nos sítios onde eu nem por som-bras imaginava que te havia de encontrar! Qual é agora a razão da tuavinda? E porque é que te foste instalar precisamente aqui e não, porexemplo, ao pé de Aristófanes ou de um qualquer outro cómico «que oseja e que pretenda sê-lo»? 133 Mas não, tu lá arranjaste processo de teinstalares junto do mais belo de quantos aqui se encontram!

- Ágaton - implorou Sócrates -, vê se me defendes, pois oamor que tenho por esta criatura tem-me cansado já não poucos traba-lhos... Desde os tempos em que me apaixonei por ele não me é

d permitido olhar ou conversar sequer com um único jovem belo! Decontrário, aí o tenho à perna com os seus ciúmes e quezílias, a fazer-mecenas incríveis, a cobrir-me de injúrias ... Enfim, pouco falta para chegara vias de facto! Cautela, não vá ele agora fazer alguma das suas ... Tratade fazer as pazes entre nós ou de me defenderes, caso ele prefira recorrerà violência, pois eu receio tanto as suas fúrias como os seus acessos depaixão!

- Ah, não! - exclamou Alcibíades. - Entre ti e mim não há pazpossível. Mais tarde ou mais cedo hei-de tirar a desforra dessas pala-

133 A observação é maliciosa: a incompreensão que Aristófanes demonstra nasNuvens quanto ao verdadeiro alcance da actividade de Sócrates testemunha quenunca uma aproximação seria possível entre estes dois homens - se bem queSócrates pareça não ter tomado demasiado a sério as ironias do comediógrafo.

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vras! Mas por ora, Ágaton - acrescentou - dá-me daí algumas dessasfitas para as pôr também na cabeça admirável deste sujeito ... Não vá eleralhar comigo por te ter coroado a ti e não ter feito o mesmo a ele, quenão apenas anteontem, como tu, mas sempre, bate todos os homens emeloquência! I

E agarrando ao mesmo tempo num braçado de fitas, coroouSócrates e recostou-se no leito. Depois de se recostar, eis que comenta:

- Que é isso, meus caros? Dá-me ideia que vocês ainda estãosóbrios, o que é inadmissível! Toca a beber, pois é o que ficou combi-nado entre nós. E para presidir à função, até vocês ficaram com a vossaconta, vou eleger... a minha pessoa! Ágaton que me arranje uma taçadas grandes, se as houver. Não, já não é preciso ... Eh, rapaz, chega-meaí esse vaso de gelo - exclamou, ao ver um que media mais de oitocotilos 134.

Depois de o encher, bebeu-o até ao fim. Em seguida ordenou que oenchessem para Sócrates, ao mesmo tempo que explicava: - Comrespeito a Sócrates, meus caros, não há qualquer malícia da minhaparte. Tudo o que lhe quiserem mandar beber, ele bebe até ao fim, semjamais ficar embriagado ...

O criado veio, pois, servir o vinho e Sócrates começou a beber.Entretanto, Erixímaco perguntou:

- Então, Alcibíades, o que vamos agora fazer? Ficamos assim, detaça na mão, sem conversar nem cantar, a beber simplesmente comopessoas sedentas?

- Ó Erixímaco, filho excelente do mais excelente e sensato dospais ... 135 - volveu Alcibíades - desejo-te muita saúde!

- O mesmo te desejo também - ripostou Erixímaco. - Mas quevamos nós fazer?

- O que tu mandares! A nossa obrigação é obedecer-te, pois

um médico vale por muitos outros homens 136.

e

Dita à vontade as tuas ordens.

134 Isto é, com uma capacidade. superior a dois litros e meio. Rigorosamente,designava-se por psykter um vaso de água muito fria que se utilizava para arrefecer atemperatura do vinho. Na tradução procurou-se dar uma equivalência.

135 A ironia dos superlativos é sublinhada pelo ritmo poético da frase (trímetroiâmbico), provavelmente, como nota Bury (p. 141), uma réplica trocista ao aidein«cantar», que Erixímaco mencionara.

136 Citação da Ilíada XI, 514.

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b

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- Ouve lá então - disse Erixímaco. - Antes de tu vires, tínha-c mos estabelecido como regra que cada um, a começar pela direita,

fizesse um discurso de elogio ao Amor, o discurso mais belo que lhefosse possível. Nós já apresentámos todos o nosso discurso. Como tuainda não falaste (até agora só bebeste ...), é justo que o faças agora.Depois disso podes então ditar as tuas ordens a Sócrates, este, ao seuvizinho da direita, e assim por diante.

- O que dizes é razoável, Erixímaco ... Mas um homem embriaga-do não está em igualdade de circunstâncias para competir com osdiscursos de homens sóbrios! E além disso, meu excelente amigo,

d acreditas de verdade naquilo que Sócrates disse há pouco? Sabes que oque se passa é exactamamente o contrário daquilo que ele afirmou? Esteindivíduo, se me ponho a elogiar alguém na sua presença - trate-se deum deus ou de um homem qualquer, contanto que não seja ele - nãopassa sem chegar a vias de facto ...

- Não terás tento nessa língua? - interrompeu Sócrates.- Por Posídon! - exclamou Alcibíades. - Não te zangues, nem

eu seria capaz de louvar fosse quem fosse diante de ti! 137

- Se assim queres - conciliou Erixímaco - faz isso mesmo:um elogio de Sócrates.

e - Que dizes, Erixímaco? - acudiu Alcibíades - Isso não éinfringir as regras? Posso então lançar-me ao ataque e desforrar-me dosujeito, aqui diante de vocês todos? 138

- Ouve lá - protestou Sócrates -, que ideia é a tua? Cobri-res-me de ridículo com esse elogio ou quê?

- Dizer a verdade ... desde que tu consintas.- Mas naturalmente! - assentiu - Se é a verdade, não só

consinto como te ordeno que a digas.- É para já - retorquiu Alcibíades. - Tu, entretanto, farás o

seguinte: no caso de eu faltar à verdade, interrompe quando quiseres edeclara que estou a mentir. Porque mentir de propósito é coisa que não

215 vou fazer! Claro que se as minhas evocações sairem algo desconexasneste discurso, não tens que te admirar: dada a tua excentricidade e o

137 Qui pro quo: Sócrates manda calar Alcibíades, receando que a liberdadeexcessiva das suas brincadeiras o exponha ainda mais ao ridículo; este, por sua vez,finge acreditar que a indignação de Sócrates se deve exclusivamente à ideia de queele possa aceder em louvar qualquer outro.

138 «Revelar» Sócrates não é apenas uma homenagem, mas também umavingança; nada podia ser mais desagradável, para o homem que passava a vida«escondendo-se» (vide 216d), do que ver-se desmascarado.

88

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tínha-

não

nem

b

estado em que me encontro, não será empresa fácil enumerá-Ias deforma acessível e ordenada!

É assim, meus senhores, recorrendo a imagens, que vou empreen-der o meu elogio de Sócrates. Ele, claro, julgará talvez que é para fazerrir à sua custa ... Mas não, tudo o que pretendo com estas imagens é averdade e não o rídiculo. Sócrates, afirmo-vos eu, é igualzinho a essasestátuas de silenos expostas nas oficinas dos escultores, que os artistasrepresentam a tocar pífaros ou flautas ... 139 Eis que as abrimos ao meio eque vemos? Por dentro encerram imagens de deuses! Mais ainda,afirmo-vos que se parece também com o sátiro Mársias ... 140 Que pelomenos no físico és igual a eles, Sócrates, nem tu serias capaz denegá-Io! E ouve também como no mais te assemelhas: és um insolentee um trocista ... ou não é verdade? Se não concordas, posso apresentartestemunhas. «Mas não SIOU tocador de flauta», dirás. És, sim, e muitomais admirável do que Mársias! Este servia-se de instrumentos parafascinar os outros graças ao poder dos seus lábios - e ainda hoje, a bemdizer, se encontra quem toque as suas melodias, pois essas queOlimpo 141 tocava eram, asseguro-vos, de Mársias e foi com ele que asaprendeu. A prova é que apenas essas melodias, executadas quer porum bom flautista quer por uma insignificante tocadora de flauta, conse-guem possuir os espíritos e fazer-lhes sentir, em virtude da sua naturezadivina, a necessidade dos deuses e das iniciações. Quanto a ti, só diferesneste pormenor importante: é que, em vez de instrumentos, te serves dosimples poder das palavras para obter o mesmo efeito.

139 Referência a umas pequenas estatuetas ocas que representavam um Sileno(companheiro de Baco) a tocar pífaro ou flauta, e se utilizavam como estojos paraguardar figuras de deuses, trabalhadas em ouro e outros metais preciosos. A expres-são do texto faz supor que se abririam ao meio, horizontal ou verticalmente, mas nãose sabe ao certo como seriam manejadas.

140 Sátiros e Silenos aparecem sempre associados ao culto de Dioniso, e os seusatributos físicos e psicológicos não divergem substancialmente, pelo que devemosconsiderar a referência a uns e outros como dois aspectos da mesma comparação.A fealdade proverbial de Sócrates, com os seus olhos salientes, nariz achatado elábios grossos, era motivo de gracejo para os amigos, que viam nele uma perfeitacaracterização desses semideuses, sobejamente conhecidos pela sua fealdade(cf. Xenofonte, Banquete IV, 19); Alcibíades omite delicadamente esse aspecto(ainda que implícito) para apenas insistir no traço moral de hybris (insolência) emque deve incluir-se o excesso do temperamento erótico.

141 Discípulo de Mársias, o Sátiro cuja arrogância (hybris) foi ao ponto dedesafiar Apoio para um concurso de flauta. Vencido pelo deus, este esfolou-lhe a pelee do seu sangue fez nascer um rio que depois foi chamado Mársias.

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c

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d Pelo menos, se nos acontece ouvirmos os discursos de qualqueroutro homem, até mesmo de um orador de renome, nenhum de nós, porassim dizer, se sente, no mínimo afectado. Mas se são as tuas palavrasque escutamos ou alguém que as reproduz 142 - por mais insignificanteque seja aquele que as diz - todos nós, mulheres, homens, adoles-centes, ao escutá-Ias, todos somos sacudidos até ao íntimo e possuídospor elas! Pelo menos no que me diz respeito, meus senhores, podiajurar-vos, se não corresse o risco de passar por embriagado de todo, aemoção, que causavam e causam, ainda hoje, as palavras deste homem!

e Sempre que o ouço, o coração bate-me com mais força ainda que o dosCoribantes, as lágrimas caem-me sob o efeito das suas palavras, e estaemoção, vejo que não sou o único a sofrê-Ia, mas inúmeras pessoastambém.

Quando ouvia Péricles 143 e outros oradores ilustres, a minha opi-nião sobre o seu talento era, sem dúvida, favorável. Mas nada sentia quese comparasse, nem a alma se me agitava e revoltava por jazer emsemelhante escravidão; entretanto, por obra e graça deste Mársias queaqui vêem, muitas vezes cheguei a um tal estado que me parecia

216 impossível continuar a levar a vida que levava! E isto, Sócrates, nãovais também dizer que não é verdade ... Ainda hoje tenho a certezaabsoluta de que, se quisesse dar-lhe ouvidos, não seria senhor demim mesmo e me deixaria arrastar pelas mesmas emoções. É que eleobriga-me a reconhecer como, apesar das minhas imperfeições, esqueçoo que devo a mim mesmo para me ocupar dos assuntos de Atenas! 144

E assim, é à força que me escapo dele cerrando os meus ouvidos comose fugisse das Sereias, não vá ficar ali mesmo, sentado à sua beira, àespera que a velhice chegue ...

142 Era hábito, entre discípulos de Sócrates, anotarem as suas conversas e repro-duzirem-nas de cor a outros; Aristodemo, o primeiro narrador do Banquete, bemcomo Apolodoro, testemunha essa técnica usual de que encontramos confirmação emoutros diálogos: Teeteto 142d; Parménides 126c (citações de W. K. Guthrie, A His-tory ofGreek Philosophy, Cambridge, vol. Ill, 1969, pp. 343-344). A referência aosCoribantes (personagens ligadas ao culto de Cíbele) e aos sintomas físicos e psi-cológicos que acompanham o delírio báquico, evoca-nos uma concepção caracteristi-camente platónica do amor (ou filosofia) como delírio divino. Para idêntica referên-cia, cf. Fedro 228b-c.

143 Péricles é, no Fedro, elogiado como o orador mais completo do seu tempo(vide 26ge).

144 Nisso consistia precisamente a «missão divina» de Sócrates: despertar osAtenienses para o cuidado da alma acima dos interesses do corpo, da riqueza e dashonrarias (vide Apologia 30a-b).

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Por outro lado, é ele o único homem junto de quem me acontece oque talvez em mim se julgasse impossível - sentir vergonha perante bqualquer um! Efectivamente, só na presença dele me envergonho, e eisporquê: se, por um lado, reconheço não poder contradizê-lo, e sustentarque não devo seguir os seus conselhos, por outro, tenho a certeza deque, ao afastar-me dele, o prestígio de que gozo junto da multidão ésuperior a mim ... Por isso fujo, como um escravo, ao jugo deste amo esempre que o vejo me envergonho das minhas promessas passadas. cMuitas vezes, mesmo, desejaria não o encontrar já no número dosvivos ... E todavia, se tal sucedesse, estou certo de que o meu tormentoseria bem mais profundo, de modo que não sei o que fazer destehomem!

Tal é, em resumo, o efeito que este sátiro desperta, não só em mimcomo em muitos outros, com as suas árias de flauta. Mas prestematenção, vejam até que ponto é perfeita a semelhança com os tais silenosa quem o comparei e até que ponto é maravilhoso o seu poder! Porque,podem estar certos, nenhum de vocês o conhece bem. Mas, já que lancei dombros à empresa, vou mostrar-vos de que força ele é... Vocês reparam,é claro, nessas atitudes amorosas que Sócrates mostra com os jovensbonitos: como está constantemente a assediá-Ios, como a sua presençalhe põe a cabeça à roda ... 145 e, além disso, que tudo ignora e nadaconhece - a julgar pelas amostras que dá! Ora não será este o jeitotípico dos silenos? Até demais! O que vocês vêem não é senão oinvólucro de que se rodeia, tal como o sileno esculpido. Mas, uma vezaberto, imaginam, caros convivas, até que ponto o seu interior trans-borda de temperança? Acreditem à vontade: ele não se deixa prender apessoa alguma, seja pela beleza (e ninguém sonha sequer os extremos ede desdém a que é capaz de votá-Ia ...), seja pela fortuna ou por quais-quer dessas distinções que fazem as delícias do vulgo. Tudo isso, na suaopinião, são coisas sem valor nenhum e aos seus olhos, asseguro-vos,nada contamos! Entretanto, passa o tempo todo a brincar com as pes-soas e a fingir de ignorante 146. Mas se acontece estar sério e abrir-se ...Não sei se alguém terá já contemplado as imagens de deuses que por

145 Cf. 211d, nota 128.146 A eironeia «ironia» ou «fingimento» tem, em Sócrates, um alcance mais

profundo do que sugere a simples tradução do termo; é apenas fingindo-se seme-lhante ao discípulo, equiparando-se a ele em ignorância, que o mestre realiza comple-tamente a sua missão, estimulando-o a descobrir a verdade pelos seus próprios meios.Daí o papel fundamentalmente activo que a eironeia (comparável à maiêutica)desempenha na educação e no ensino socrático.

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dentro se encontram: eu, porém, que já um dia as contemplei, achei-as217 tão divinas e preciosas, de uma beleza tão completa e admirável, que me

seria impossível, numa palavra, resistir a tudo o que Sócrates me man-dasse!

Ora, eu supunha-o então sinceramente atraído pelos encantos daminha mocidade ... e, assim sendo, supus também que era um beloachado e uma sorte esplêndida que se me oferecia: correspondendo aSócrates com a minha afeição, teria, sem dúvida, ocasião de escutar dosseus lábios tudo o que ele sabia! É claro que depositava uma confiançaextraordinária nos meus encantos físicos... Guiado, pois, por estasreflexões, como até aí não era hábito encontrar-me com ele sem a

b presença de um criado, despedi, certo dia, o criado para ficar a sós comele ... Uma vez que tenho de confessar-vos a verdade toda, prestem-meatenção e se eu mentir, Sócrates, refuta-me!

Ficámos, pois, absolutamente a sós, e eu rejubilei à ideia de quelogo iria usar comigo a mesma linguagem que os amantes usam,quando estão a sós com os seus amados ... Mas nada disto aconteceu;depois de conversar como habitualmente e de passarmos o dia juntos,

c despediu-se e foi-se embora. Mais tarde convidei-o a vir comigo aoginásio e ali estive a treinar com ele, convicto de chegar assim aqualquer resultado. Passou, pois, a acompanhar-me nos treinos e nãopoucas vezes lutava comigo sem que ninguém estivesse presente;porém - será preciso dizê-lo? - também nada adiantei com isso!Como assim não havia meio de chegar a lado nenhum, achei que omelhor que tinha a fazer era atacar o indivíduo pela frente e não olargar - já que tinha metido mãos à obra - até saber ao certo em quepé estavam as coisas. Eis que o convido para jantar, muito simples-

d mente à maneira de um amante que prepara uma cilada ao seu bem--amado. É claro que não aceitou logo ... mas com o tempo acabou porceder. Da primeira vez que veio quis despedir-se após o jantar; enver-gonhado, deixei-o ir-se embora. Da vez seguinte, porém, preparei-lhenova cilada: mal o jantar acabou, prolonguei a conversa pela noiteadiante, de modo que, quando quis despedir-se, aleguei que era já muitotarde e obriguei-o a ficar. Descansou, portanto, no leito contíguo aomeu - o mesmo em que tinha jantado 147 - e naquele aposento nin-guém mais dormiu, além de nós ...

147 Nos banquetes gregos (e nos romanos) a comida era trazida em mesas atéjunto dos leitos onde os convivas se instalavam; após a refeição, os criados retiravamas mesas, e os convivas podiam dormir sobre os mesmos leitos onde haviam comido.

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eAté este ponto a história ainda passava e poderia repeti-Ia diante dequem quer que fosse. Porém, o que se segue nunca vocês o ouviriam daminha boca se, antes de mais (como reza o ditado ...), o vinho nãofalasse a verdade «com ou sem menino» 148; e, em segundo lugar, se nãome parecesse injusto, já que me lancei ao elogio de Sócrates, deixar nasombra um dos seus feitos mais brilhantes ... 149 De resto, passa-secomigo o mesmo que com o homem mordido por uma víbora: o seusofrimento é tal, dizem, que se recusa a descrevê-lo a não ser àquelesque o experimentaram e que por isso são os únicos capazes de com-preender e desculpar os excessos que comete e diz sob o impulso da dor.Pois bem, eu, que sofro de uma mordedura ainda mais cruel que a deuma víbora, atingido no ponto mais sensível onde alguém poderiasê-lo ... Porque foi aí, no coração, na alma ou como deva chamar-se, queme sacudiram e morderam as palavras da filosofia; e essas provocamuma dor mais lancinante que a mordedura da víbora quando tomam deassalto uma alma jovem, não desprovida de dons, e a levam a agir e adizer seja o que for! 150 Sim, digo-o na presença destes Fedros, destesÁgatos, Erixímacos, Pausânias, Aristodemos, Aristófanes (Sócrates,será preciso dizê-lo") e quantos outros - de todos vocês, que partilhamdo delírio e da divina loucura da filosofia: vocês me irão, pois, escutare, estou certo, desculpar os meus actos de então como as minhaspalavras de agora. E os criados, ou quaiquer outros profanos e incultosque aqui se encontrem, tapem os ouvidos com portas muito espessas ...

Ora bem, meus senhores, logo que a luz se apagou - já os criadostinham saído - achei que devia deixar-me de subterfúgios e dizer-lhecom toda a franqueza aquilo que pensava. Abanando-o ao de leve,perguntei então:

«Estás a dormir, Sócrates?»«Não, não estou.»«Sabes o que me veio à ideia?»«O quê, diz lá ...»

148 Segundo F6cion, Alcibíades mistura dois provérbios: um relaciona a ver-dade com o vinho, outro com o vinho e as crianças. O primeiro tem largas tradições,não s6 na cultura grega como também na latina (vide, e.g., Alceu, fr. 366 Lobel--Page).

149 O termo grego tanto pode significar «brilhante» como «insolente». O elogioé, por isso, ambíguo, envolvendo a acusação de insolência que adiante se fará.

150 Esta descrição dos efeitos dos logoi é comparável, no Pedra, à descoberta daBeleza. A mesma mistura de prazer e dor, as mesmas reacções incompreensíveis,caracterizam, aqui e ali, as almas dotadas, das quais a filosofia e a beleza se apossam(cf. Pedra 251c-252a).

até.amido.

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218

b

c

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d

«Acho que és o único homem digno de ser meu amante mas, oumuito me engano, ou tens receio de te declarares a mim ... Ora, asminhas disposições, aí as tens: a meu ver, seria uma rematada tolice nãote corresponder nesse ponto, como em qualquer circunstância em queprecisasses de dispor da minha fortuna ou dos meus amigos. Pois nãohá nada que tome tão a peito como a ideia de me aperfeiçoar até ondeme for possível, e não creio que para isso possa contar com um auxiliarmais"preciso do que tu! Precisamente por seres o homem que és, teriamuitos mais motivos para me envergonhar, junto dos homens inteligen-tes, por não te corresponder com a minha afeição, do que, em casocontrário, perante o vulgo e os imbecis.»

Depois de me escutar, eis que me responde com essa ironia refi-nada, que é o seu jeito característico: 151

«Meu querido Alcibíades, talvez tu não sejas, a bem dizer, parvonenhum, se é verdade o que dizes a meu respeito e se existe de facto emmim um poder especial, que teria o condão de te tornar melhor! Foicertamente alguma beleza insuspeitada que tu viste em mim, bemdiferente dos teus encantos físicos ... E se, ao descobri-Ia, te propõespartilhá-Ia comigo e trocar beleza por beleza é porque calculas obter àminha custa uma vantagem, e não pequena: nada mais nada menos doque adquirir uma beleza real pelo preço de uma beleza aparente ...Vamos, não será mesmo «trocar oiro por bronze» o que tens no espí-rito? 152 Contudo, meu excelente amigo, presta mais atenção, não este-jas tu redondamente iludido sobre mim e os meus méritos! A verdade éque os olhos da razão só começam a discernir com clareza quando os docorpo se preparam para abandonar o seu vigor ... Mas tu ainda estáslonge disso!»

Eu, ao ouvi-Io, repliquei:«As minhas disposições, aí as tens: nada do que te disse está em

contradição com os meus sentimentos. Decide-te tu, portanto, sobre oque achas melhor para ti e para mim.»

«Aí está uma boa ideia!», exclamou. «De futuro, havemos dedecidir a actuar de acordo com o que a ambos nos parecer melhor, tantono que respeita a este aspecto como aos outros.»

e

219

b

151 Cf. 216e; na República (337a) alude-se igualmente à «ironia» como traçocaracterístico de Sócrates.

152 Ilíada VI, 235-236; Glauco, reconhecendo os laços de hospitalidade queuniam ao grego Diomedes, acede a trocar as suas armas de ouro pelas do adversário,que eram de bronze.

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te mas, ou.. Ora, astolice nãoia em que. Pois não

até ondeum auxiliar

e és, teriainteligen-, em caso

está emsobre o

Eu, depois desta conversa, convenci-me naturalmente de que aszainhas palavras tinham atingido o alvo, como se fossem flechas que lhe- -esse lançado! Eis que me levanto, sem lhe dar tempo a acrescentar

. palavra. Cubro-o com a minha própria capa (era então Inverno) eigo-rne debaixo do seu velho manto; e lançando os braços em voltate ser extraordinário, verdadeiramente divino, assim me deixei ficar c

noite inteira! Também neste ponto, Sócrates, não irás acusar-me dentir ... Pois bem, a todos os meus esforços opôs uma resistência ainda

maior: os encantos da minha mocidade, votou-os ao desdém, pô-los aidículo, enfim, insultou-os! E era precisamente deles que eu me fiava,

caros juízes (juízes, digo bem, da insolência de Sócrates ...). Pois certi-- o-vos, pelos deuses e pelas deusas, que, depois de passar a noite comSócrates, nada mais tinha acontecido, ao levantar-me, do que se tivesse d, rmido com o meu pai ou com um irmão mais velho!

Depois disto, imaginam o meu estado de espírito? Convencido,como estava, de ter sofrido uma humilhação e, ao mesmo tempo, mara-'ilhado com o carácter deste homem, com a sua temperança e firmeza

ânimo? Sim, o acaso tinha posto no meu caminho uma pessoa talcomo eu nunca julgaria encontrar, em sabedoria e domínio de simesmo ... De modo que nem sabia como romper com ele e privar-me dasua companhia, nem como atraí-I o a mim com sucesso. Quanto a edinheiro, tinha a certeza, era, em todos os aspectos, muito mais invul-nerável do que Ájax ao ferro 153; e, por esse único processo com quecontava seduzi-lo, escapava-se-me irremediavelmente das mãos ... Talera a minha perplexidade e, feito escravo desse homem como ninguémo fora em relação a outro, assim girava em volta dele.

Entretanto, já o tempo me tinha distanciado de todas estas expe-riências, quando se deu a expedição de Potideia 154, em que ambosparticipámos, e ali tomávamos as refeições em conjunto. Devo dizerque logo nas fadigas da guerra se revelou superior não só a mim mas atodos os outros sem excepção. Sempre que acontecia ficarmos bloquea-do em algum sítio (como é vulgar em campanha) e forçados a passar 220sem mantimentos, não havia ninguém que resistisse como ele. Mastambém, nos períodos de abundância, era o único capaz de se desforrarem pleno; mesmo quando o obrigavam a beber contra vontade, até nisso

153 Ájax é conhecido como o herói de escudo invulnerável ao ferro: cf.Sófocles, Ájax 576; Píndaro, Ístmicas V, 45.

154 Em Apologia 28e e em Cármides l53a encontramos igualmente referência àparticipação de Sócrates na expedição de Potideia (435-430 a.c.)

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vencia toda a gente e - o que é mais assombroso - nunca homemalgum o surpreendeu embriagado! Disso, creio que muito em breveteremos a confirmação ...

Igualmente da sua resistência ao frio 155 (e se os Invernos eramb rigorosos naquela região!) dava provas espectaculares. Esta, entra

outras: certa vez, caía um nevão mais espesso que nunca e toda a gentese encontrava recolhida nas tendas ou, se alguém saía, era coberto comtoda a casta de agasalhos, os pés calçados e enrolados em feltro e pelede carneiro. Pois, nessa mesma ocasião, saía este com o seu mantohabitual, o mesmo que costumava trazer, e, descalço, deslizava mais àvontade pelo gelo do que os outros, calçados. De modo que os soldadoso olhavam com desconfiança, convictos de que pretendia humilhá-los.

e Sobre este assunto, eis o que há a dizer.

Mas o que ainda realizou e suportou este homem valente 156

ali, em campanha, vale a pena ouvir-se. Certa vez, embrenhado nas suasreflexões, deteve-se em qualquer sítio e ali ficou especado desde aaurora, em busca de uma ideia qualquer. E como esta não lhe vinha, alicontinuou a pé firme, sem abandonar o campo. Era já meio-dia; oshomens começaram a reparar e, perplexos, passavam a notícia uns aosoutros: desde o romper da aurora que Sócrates se encontrava imóvel, ameditar... Ao cair da tarde, alguns Jónios foram, por fim, jantar e, comoera Verão nessa altura, levaram os seus leitos de campanha para fora dastendas. E ali se dispuseram a dormir ao relento, ao mesmo tempo quevigiavam Sócrates, a ver se, também essa noite, ele continuaria ali a péfirme ... Pois ele continuou, até que a aurora veio e o Sol rompeu. Sóentão, depois de dirigir as suas preces ao Sol 157, se afastou.

E passemos às batalhas, se vos apraz; pois ainda neste capítuloestou em dívida com Sócrates. Sim, quando se deu a batalha que levouos generais a agraciarem-me com o louvor de bravura, foi a ele, e a nin-guém mais, que fiquei a dever a vida! Só ele se recusou a abandonar-meferido e não apenas me trouxe a mim a salvo como também às minhasarmas. Eu então pedi aos generais, Sócrates, que te concedessem a ti o

d

e

155 Essa capacidade de resistência às privações constitui, nas Nuvens (412-428),um dos aspectos cómicos do modo de viver de Sócrates, bem como dos seusdiscípulos.

156 Citação, levemente modificada no início, da Odisseia IV, 242.157 Hesíodo recomendava as preces ao nascer e ao pôr do Sol (Trabalhos e Dias

339); aqui o Sol é possivelmente símbolo da iluminação mental e do Bem (cf. Fédon85b, e República 530a).

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_ or - e nisto não tens que censurar-me ou acusar-me de mentir ...- bem, embora fosse a mim que os generais quisessem conceder oor atendendo à minha condição de nobre, tu próprio te empe-,mais do que eles, em que fosse eu a recebê-lo e não tu!

E ainda, meus senhores, outra ocasião em que valia a pena obser-ócrates: o exército, já em fuga, começava a retirada de Delos 158. 221

encontrava-me, por acaso, junto de Sócrates, montado a cavalo; ele,lesmente com as suas armas de infantaria. Já os homens tinham

-spersado quando ele iniciou a retirada, juntamente com Laques. Eise chego casualmente ao pé deles e, ao vê-Ios, exorto-os a ganharem

• . o, garantindo que não os iria abandonar. Aí, precisamente, pudeservar Sócrates melhor ainda do que em Potideia, pois o facto de

estar a cavalo fazia-me recear menos o perigo. Devo dizer que desde.=;0 e revelou superior, e de longe, a Laques 159, graças ao seu sangue- b

-- '0. E depois, Aristófanes, até a mim me parecia, - para me servirela tua expressão - que também ali, como aqui em Atenas, andavaum lado para o outro, «a pavonear-se e a lançar olhares de

? ·és»... 160 Com a mesma calma avistava amigos e inimigos e qualqueroa, por mais longe que estivesse, notaria claramente que, se alguémpusesse as mãos em cima, era homem para se defender com unhas etes! Daí a segurança com que se iam afastando, ele e o companheiro:eles que assim se comportam na guerra, ninguém praticamente lhes ce só os que fogem em debandada são perseguidos.

s eramentra

a genterto come pelemanto

Ta mais àsoldados. á-los.

Sem dúvida, muitos outros aspectos, igualmente extraordinários,- poderiam referir neste elogio de Sócrates. Mas talvez, no que respeita

uas actividades em geral, não fosse difícil falar de outros em termos- nticos; agora o que faz deste homem o cúmulo dos prodígios é queem entre os antigos nem entre os modernos é possível encontrarguém a quem ele se assemelhe! Comparável à pessoa de um Aquiles

remos, por exemplo, um Brásidas 161 e outros mais; à pessoa de Péri-

apítuloelevou.eamn-nar-meminhasem a ti o 158 Batalha travada na Beócia em 424 a.c., na qual os Atenienses foram

desrotados pelos Tebanos. Cf. Tucídies IV, 76 sqq.159 Célebre general que se destinguiu na Guerra do Peloponeso e com quem

Sócrates, no Laques, discute definição e o valor da coragem.160 Alusão ao v.362das Nuvens. Para o «olhar de touro», tradicionalmente

. uido a Sócrates,vide, e.g., Fédon 117b.161 General espartano que lutou em Anfípolis, tendo sido morto em combate

~22 a.C.). Sócrates parece ter também tomado parte nesta expedição: vide Apologia~ . Quanto a Nestor e Antenor, heróis homéricos, são tradicionalmente citadoscomo símbolos de eloquência.

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deles, Nestor e Antenor - para citar apenas estes. E idênticos paralelosocorrem possivelmente a respeito de outras personagens ilustres. Porémeste homem, tal como aqui o vêem, com a sua inqualificável natu-reza - ele e as suas conversas - não tem paralelo possível! Por maisque alguém procure, não encontra de certeza, nem entre os antigos nemos de agora, uma imagem sequer aproximada, a não ser talvez nos taissilenos e sátiros - uma imagem não só da sua pessoa como tambémdas suas conversas.

Pois é um facto que no início omiti: também as suas conversas sãoiguaizinhas aos tais silenos que se entreabrem. Alguém que se disponhaa escutá-Ias, não deixará, por certo, de as achar bem risíveis ao primeiromomento: esses tais termos e expressões de que se rodeiam maisparecem a pele de um insolente sátiro! Sim, ele fala-nos de burros, deanimais de carga, de ferreiros, de sapateiros, de correeiros ... 162 e a ideiacom que se fica é a de que está sempre a dizer as mesmas coisas pelosmesmos termos. De modo que todo o homem limitado e ignoranteapenas lhes achará motivo de troça. Mas, uma vez entreabertas, alguémque as observe e lhes encontre o fundo, verá, desde logo, como só elasfazem verdadeiramente sentido; mais, verá como só essas conversas,plenamente divinas, encerram em si as mais variadas imagens devirtude e se elevam ao mais alto ponto - melhor dizendo, a tudo o queimporta observar, quando se pretende vir a ser um homem de bem!

E aí estão, meus senhores, os aspectos que tenho a elogiar emSócrates. Quanto aos que tenho a censurar, fui-os misturando de cami-nho, ao contar-vos o vexame a que me sujeitou ... De resto, não fui oúnico que ele tratou desta maneira. Também a Cármides, o filho deGláucon, a Eutidemo, o filho de Díoeles 163 e a tantos outros - semconta! - ele pregou a mesma partida: fazer-se passar por amante paraassumir na realidade o papel... do amado! E isto que te sirva de aviso,Ágaton, não vá o indivíduo pregar-te também a partida ... aproveita oconhecimento das nossas experiências para te pores em guarda e nãoseres como o tolo do provérbio «que só fica a conhecer à sua custa»!

e

222

b

162 Xenofonte testemunha igualmente este tipo de imagens familiares, inspira-das na vida diária e no trabalho dos artíficies, que Sócrates referia nas suas conversas.Em Memoráveis I, 2, 37, Crítias, e.g., censura Sócrates de só falar em sapateiros.carpinteiros e ferreiros. Para idênticas imagens em Platão, vide, e.g., Górgias 490csqq.; Protágoras 319d.

163 Cármides era tio de Platão e figura como principal interlocutor de Sócrateno diálogo que tem o seu nome. Eutidemo, outro dos seus habituais interlocutores(vide Xenofonte, Memoráveis IV, 2, 40), nada tem a ver com o sofista do mesmonome que Platão representa em diálogo com Sócrates no Eutidemo.

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paralelos. Porém

ãvel natu-! Por maistigos nem

rez nos taiso também

nversas sãose disponhaao primeiroeiam maise burros, de

••• 162 e a ideia- coisas pelose ignorantertas, alguémomo só elasconversas,

- imagens de. a tudo o quede bem!

a elogiar emdo de cami-

sto, não fui oo filho de

- outros - sem• r amante para= sirva de aviso,- .. aproveita o

guarda e nãoà sua custa»!

últimas 'palavras de Alcibíades provocaram uma onda de ceu excesso de franqueza: de facto, dava ideia de que o seuócrates não tinha ainda passado ...lama Sócrates: - Muito sóbrio me pareces tu, Alcibíades!

""'=<r'C' outro modo conseguirias, com esses hábeis rodeios, esconder o•••.• .,.,..."..:·;..·0 de tudo quanto disseste, e metê-lo, como quem não quer a

!,IO no fim do teu discurso ... Como se todo ele não visasse~te objectivo: indispor-nos a mim e a Ágaton! Julgas, é,claro,

_ tenho obrigação de te amar a ti e a mais ninguém e que Agaton dter outro apaixonado que não sejas tu ... Mas não, não me

.!S.::2:;:"3Sre. essa tua comédia de sátiros e silenos foi por demais evidente!- meu caro Agaton, não o deixemos levar a sua avante e prepara

frito para que ninguém nos venha indispor um com o outro.-.Mas sim, Sócrates - volveu Agaton -, é provável que tenhas

- . Também agora reparo, pelo modo como se veio pôr no meio de ebo que o fez unicamente na intenção de nos separar! Mas não

e ar a sua avante, porque me vou instalar a teu lado._- Apoiado! - exclamou Sócrates. - Instala-te aqui, à minha

- Ó Zeus! - desabafou Alcibíades.- As coisas que este homem:37.. passar! Acha que tem sempre de ser superior a mim eIl} tudo!

anto mais não seja, meu admirável amigo, deixa que Agaton= o meio de nós dois ...- Impossível - redarguiu Sócrates. - Bem vês: tu já fizeste o

_ = ogio. Cabe-me agora fazer o do meu vizinho da direita 164. Ora se_ - n ficar à tua direita, não achas que terá de me fazer um novo.::' . antes de eu fazer o dele? Por isso, meu caro amigo, sê condes-

ceosenre e-não tenhas ciúmes de que eu faça o elogio deste jovem: é que 223mesmo empenhado em cantar os seus louvores ...- Sim, sim, Alcibíades! - acorreu Ágaton. - Não é possível eu. uar aqui. Tenho mesmo de mudar de lugar, se quero que Sócrateso m~u elogio.- E sempre assim - lamentou-se Alcibíades -, é o costume:o Sócrates está presente não há maneira de alguém obter êxitodos jovens belos. É só ver a facilidade com que logo arranjou umento persuasivo para que este fosse instalar-se ao lado dele! 165

A ordem dos discursos seguia da esquerda para a direita: se Ágaton se,;:Q~tSSe no meio de Alcibíades e Sócrates, teria, seguidamente a Alcibíades, de

elogio do seu vizinho da direita (isto é, de Sócrates).< Esse efeito de sedução sobre os jovens belos pode observar-se, por exemplo,

ilDCjnroaes e no Lísis. Com os seus logoi, Sócrates não apenas consegue despertar oa:=se. mas também a amizade, implícita ou explicitamente demonstrada (vide

. s 176b, Lísis 223b).

99

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b Ágaton levantou-se, pois, para se instalar ao pé de Sócrates. Maseis que de repente uma horda de foliões chega à entrada da porta decasa. Ao vê-Ia casualmente aberta por alguém que saía, avançaram logodireitos à sala e instalaram-se. Foi uma perturbação geral e, sem sombrade ordem, era-se obrigado a beber vinho em grande quantidade.Erixímaco, Fedro e mais alguns outros, segundo Aristodemo, aprovei-taram a altura para se irem embora. Quanto a ele, deixou-se invadir pelo

c sono e dormiu a bom dormir - pois as noites eram então longas - parasó acordar de madrugada, quando já os galos cantavam.

Ao abrir os olhos, reparou que uns estavam a dormir e que outrosse tinham já ido embora. Apenas Ágaton, Aristófanes e Sócrates semantinham acordados, a beber por uma grande taça que iam passandopela direita. Sócrates estava a conversar com eles. Aristodemo pouco se

d lembrava do que diziam, pois não tinha seguido a conversa de início e,além disso, estava ainda ensonado. Mas, de uma maneira geral, Sócra-tes insistia em fazer-lhes ver que o mesmo homem que sabe comportragédias sabe também compor comédias, e que aquele que tem a artedo poeta trágico tem também a do poeta cómico 166. Eles cediam às suasinsistências, já sem acompanharem bem as palavras dele, pois estavamtontos de sono. O primeiro a adormecer foi Aristófanes; e, já quandorompia a manhã, Ágaton.

Depois de os pôr a dormir, Sócrates levantou-se e foi-se embora,acompanhado, como de costume, por Aristodemo. Ao chegar aoLiceu 167 fez as suas abluções e preparou-se para passar um dia idênticoa qualquer outro. E depois de o passar como habitualmente, ao cair datarde foi para casa descansar.

166 Sobre este conceito de unidade intrínseca entre tragédia e comédia, veja-se an. 16 à Introdução.

167 Ginásio consagrado a Apolo, nos arredores de Atenas, onde Sócrates sereunia frequentemente para debater os seus temas preferidos de discussão.Cf. Cármides; Eutidemo, ad initium; Xenofonte, Memoráveis I, 1, 10.

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pé de Sócrates. Masentrada da porta desaía, avançaram logogeral e, sem sombragrande quantidade.

- . todemo, aprovei-ixou-se invadir peloentão longas - paraamodormir e que outros, anes e Sócrates se~ que iam passando- . todemo pouco seconversa de início e,

eira geral, Sócra-que sabe comporele que tem a arte

- Eles cediam às suas- dele, pois estavam, anes; e, já quando

- e foi-se embora,. Ao chegar aoum dia idênticoente, ao cair da

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ÍNDICE

ODUÇÃO 9

-o tema .- O symposion e a sua projecção social e literária .- Estrutura dramática e narrativa .

91013

131722

A) Prólogo, apresentação de personagens e interlúdios .B) Os discursos .C) Epílogo .

•.."'RAS DO DIÁLOGO . 25

_-\..:-QUETE 27

TIPALBIBLIOGRAFIA CONSULTADA 101

103