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XARQUEADAS DE DANÚBIO GONÇALVES UM RESGATE PARA A HISTÓRIA Charqueada de Debret - 1820

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XARQUEADASDE DANÚBIO GONÇALVES

UM RESGATE PARA A HISTÓRIA

Charqueada de Debret - 1820

XARQUEADASDE DANÚBIO GONÇALVES

UM RESGATE PARA A HISTÓRIA

3a Edição Revista e Ampliada

Desenhos e xilogravuras coloridas pelo autor Danúbio Gonçalves

José Antonio Mazza Leite

Porto Alegre, 2011

© Todos os direitos desta edição estão reservados a José Antonio Mazza Leite proibida assim qualquer reprodução, cópia ou qualquer alteração, manipulação das informações aqui conti-das sem prévia autorização do autor.

Capa: Daniel Ferreira da Silva

Revisão: Daniela Ambrost

Editoração: Observatório Gráfico

A grafia desta obra está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Patrocínio: Apoio:

Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960

L533x Leite, José Antonio Mazza Xarqueadas de Danúbio Gonçalves: um resgate para a história / José Antônio Mazza Leite. -- 3.ed. rev. e ampl. -- Porto Alegre : s.c.p, 2011. 213 p. : il.

1. História – Rio Grande do Sul. 2. Xilogravura. 3. Arte – Aspectos Socias. 4. Charque – História – Rio Grande do Sul. 5. Economia – Rio Grande do Sul. I. Gonçalves, Danúbio. II.Título CDU: 981.65 761.1(816.5)

Dedico este livro a meu pai, Arthur Souza Leite (in memorian),a meu avô Raphael Mazza (in memorian),

a minha mãe Amelina Mazza Leite (in memorian, a Daniela Pieper e a psicóloga Gabriela Pieper Domingues.

A minha irmã querida, Branca Leite Hertz e a Antonio Carlos Mazza Leite meu irmão.

HOMENAGENS

A Danúbio Gonçalves, grande expoente das artes plásticas brasileira.

A todos os trabalhadores das Charqueadas riograndenses e os de suas co-irmãs do Prata.

A Carlos Reverbel jornalista e historiador (In memorian).

A José Almeida Collares e Maria Angelina Collares Talaveira pelo incentivo e amizade.

Ao professor pelotense de História Pasqual Müller (In memorian).

A Alvarino da Fontoura Marques, médico, fazendeiro e pesquisador, cuja trilogia do Ciclo do Charque é obra obrigatória para conhecer nossa história

(In memorian).

A Fernando O. Assunção academico, professor e historiador uruguaio presidente do IHGU - Instituto Histórico Geográfico do Uruguai (In memorian).

A Paulo Xavier, médico, professor e pesquisador, certamente o maior conhece-dor da história do Ciclo do Charque no Rio Grande do Sul (In memorian).

A Augusto Simões Lopes Neto, gaúcho e pelotense de coração,amigo inesquecível

(In memorian).

A Voltaire Schilling historiador e amigo.

Aos excursionistas da Ouro e Prata na França em 2010.

Sumário

Apresentação - Eduardo Bueno, 13

Apresentação de Danúbio Gonçalves para a Terceira Edição, 15

Depoimento de Danúbio Gonçalves - Primeira Edição - 2003, 17

A poética da charqueada - Mário Barbosa de Mattos, 19

Charqueada ou Xarqueada, 21

Introdução da 3a Edição, 23

A Charqueada, 25HISTORIOGRAFIA SOBRE A CHARQUEADA, 25OS VIAJANTES, 25LUCCOCk, 25JOSé CAETANO DA SILVA COUTINHO, 26SAINT-HILAIRE, 27JEAN BAPTISTE DEBRET, 28NICOLAU DREyS, 30MICHAEL MULHALL, 33O TRABALHO DE LOUIS COUTy, 34HERBERTT HUNTIG SMITH, 36VITTORIO BUCCELLI, 37PEIXOTO DE CASTRO, 38TESTEMUNHA OCULAR: ANTENOR PEIXOTO DE CASTRO, 39AS CHARQUEADAS, 48A PRIMEIRA DESCRIçãO DE UMA CHARQUEADA, 48AS CHARQUEADAS EM PELOTAS, 49DESCRIçãO DA PRIMEIRA CHARQUEADA POR JOãO SIMõES LOPES NETO, 49AS CONSEQUÊNCIAS DA REVOLUçãO FARROUPILHA PARA AS CHARQUEADAS DE PELOTAS, 51A EXPANSãO DAS CHARQUEADAS APÓS A REVOLUçãO FARROUPILHA, 52AS CHARQUEADAS EM BAGé, 53OS ABATES DE GADO DURANTE O PERÍODO REVOLUCIONÁRIO, 54CHARQUEADA SãO DOMINGOS, LOCAL DOS ESBOçOS DE DANÚBIO GONçALVES, 57

O olhar da arte, 59UM OLHAR DE ARTE SOCIAL SOBRE OS TRABALHADORES DO CAMPO À CIDADE, 59MOVIMENTOS PRECURSORES: O REALISMO EUROPEU, 59O REALISMO DOS MURALISTAS E GRAVURISTAS MEXICANOS, 62LEOPOLDO MENDEz, 63UM ENCONTRO FUNDAMENTAL, 65O GRUPO DE BAGé: UM DOS PRIMEIROS CLUBES DE GRAVURA, 67DIFUSãO DOS CLUBES DE GRAVURA NO BRASIL E SEU LEGADO, 71DANÚBIO GONçALVES: SUA TRAJETÓRIA, 72O MENINO DE BAGé, 72DA CARICATURA AOS MORROS CARIOCAS, 73DANÚBIO AINDA ADOLESCENTE MERGULHA NA VANGUARDA ARTÍSTICA CARIOCA, 74DANÚBIO SE INICIA NA XILOGRAVURA, 77CARLOS REVERBEL – UMA LEMBRANçA, 79CRÔNICAS DE CARLOS REVERBEL – NOTÍCIA DE UMA EXPOSIçãO, 80PEDRO WAyNE, 83PRIMEIRA EXPOSIçãO DE DANÚBIO EM BAGé, 87MERECEU UMA CRÔNICA DE PEDRO WAyNE, 87CORREIO DO SUL – BAGé; – 31/12/1939, 87ANTÔNIO VIEIRA PIRES, 88SAUDADES DE VIVER, 88INTRODUçãO À GRAVURA, 93UM POUCO DA SUA HISTÓRIA, 93

A gravura como documento, 93TéCNICAS XILOGRÁFICAS, 94OS CADERNOS DE DANÚBIO GONçALVES, 95O APITO NAS CHARQUEADAS, 96Esboço DE Zorra Com mEDiDas E EpliCaçõEs, 97zORRA, 103zORREIROS, 108CARNEADORES, 1089ESPERA, 114ESPERA, 116MANTEIRO, 118MANTEIRO, 124MATAMBREIROS, 128PICADOR, 129PICADOR, 133LINGUEIRO, 133TIRADOR DE CARRETILHA, 136TIRADOR DE CARRETILHA, 139SALGA, 142

Considerações finais, 145BIBLIOGRAFIA REFERENCIAL, 147

Bibliografia, 147BIBLIOGRAFIA CONSULTADA, 149LIVROS E DISSERTAçõES, 151

Anexos, 155

Breve história do Coronel Caetano Gonçalves da Silva e de sua descendência , a partir , de seu filho mais velho, Bento Gonçalves da Silva, 167

Danúbio Gonçalves, sobre o artista, 169MOSTRAS E EXPOSIçõES, 169EXPOSIçõES INDIVIDUAIS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 171EXPOSIçõES COLETIVAS DE MAIOR IMPORTÂNCIA, 172PREMIAçõES, 172OBRAS EM MUSEUS, 173LIVROS, 173

Mais alguns esboços de Danúbio Gonçalves, 175

Introdução para as fotos do Wolfgang Hoffmann Harnich Jr, 185

A Charqueada do Século XX e XXI, 203CHARQUEDAS NO SéCULO XX E XXI, 203RECORDAçõES DA INFÂNCIA, 203

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 13

Houve um tempo em que o Rio Grande do Sul esteve por cima da carne seca. Foi a era de ouro das oficinas de desmontar boi e salgar carne, tudo isso com o suor dos escravos. Foi o tempo da courama e, acima de

tudo, o auge das charqueadas.O charque, é verdade, jamais trouxe ao Rio Grande a mesma pujança que

o açúcar concedeu ao Nordeste ou o café ao Sudoeste – mas o doce pó branco e o amargo negro pó jamais teriam gerado tamanha riqueza se o charque gaúcho não alimentasse os escravos que habitavam nos engenhos e nos cafezais. O charque também não produziu bibliografias tão ricas quanto aquela dedicada às lavouras que colocaram o Brasil no mapa da economia mundial. Quantos hinos há sobre as charqueadas gaúchas, que deram músculos ao Rio Grande e o levaram a enfrentar o império em dez anos de guerra civil? Demasiadamente poucos. é por isso que esse belíssimo trabalho de José Antonio Mazza Leite vem reforçar o cardápio historiográfico gaúcho com um traço literário saboroso e consistente como um bom carreteiro. E não se trata apenas de uma bela com-pilação de relatos de viajantes que visitavam as charqueadas em seu auge, nem uma reconstituição de como funcionavam aquelas sanguinolentas oficinas de salgar boi. Como o próprio título indica, Xarqueadas resgata também o dramáti-co e comovente trabalho do artista plástico Danúbio Gonçalves. Ilustrado pelas xilogravuras que encantaram Diego Rivera, esse estudo de Mazza Leite dá um novo tempero a uma história de sangue, suor e sal. A história que transformou os gaúchos e o Rio Grande no que hoje são. Bom Apetite!

Eduardo Bueno Jornalista e Historiador

Apresentação

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 15

Sugeri que esta edição fosse colorida e, com o apoio de patrocinadores, pode José Antonio Mazza Leite aumentar a tiragem da publicação. A importância maiúscula deste memorial de nossa época saladeira, incluindo o Uruguai e

a Argentina. Podendo-se sentir a unidade “pampeana”. José Antônio Mazza Leite historiador, complementado por sequentes viagens ao estrangeiro, nos presenteia com este livro – resgate – certamente, um dos mais destacados sobre a Charqueada. Paralelamente ao término do filme “Grandes mestres”, de Henrique Freitas Lima, após três anos de filmagem, focando também a charqueada São Domingos e Bagé, onde por meses, desenhei pelos departamentos de matadouro (documento inédito que me possibilitou a série de xilogravuras “charqueadas” e pinturas. Obra obtendo o prêmio de viagens ao país no 2o Salão de Arte Moderna no Rio de Janeiro). Viaja-ndo para Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, por nove meses, exigido pelo prêmio.

O filme de Henrique tendo registrado minha visita ao pavilhão central, das zorras, me emocionou ao retornar a esse local após mais de cinquenta anos. Pela obra “charqueada” tive o estímulo e admiração dos bageense se adotados culturais Pedro Wayne, Clóvis Assumpção, Carlos Scliar, Diego Rivera, Tarcísio Taborda, Mário Lopes, Roberto Suñe, Ito Carvalho, Mario Mattos e mais. A presente edição, con-tinuando a ser divulgada e a consagrada pelo Museu do Charque de Pelotas, ide-alizado por Ediolanda Liedke e José Antonio Mazza Leite, com felicitação estadual.

Apresentação de Danúbio Gonçalves para a Terceira Edição

16 José Antonio Mazza Leite

Tablada - desenho aquarelado, Danúbio Gonçalves, 2002 - acervo do museu do Charque.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 17

Após a viagem de estudo por um ano e dois meses na Europa, em 1950, retor-nei à Bagé. Encontrei-me com Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues, e juntos fundamos o Clube Amigos da Gravura de Bagé. Em sequência, fundamos o

Clube de Porto Alegre, com liderança de Carlos Scliar, que regressava de Paris. O chama-do “Grupo de Bagé”, interessado na temática gaúcha, foi acolhido pelos irmãos Ismael e Severino Collares, anfitriões nas estâncias das Palmas. Lá, desenhávamos e pintávamos, tendo como motivação a paisagem local e os trabalhadores campeiros.

Bento Gonçalves, meu pai, fornecia gado para a charqueada bageense, ocasionando-me a oportunidade-surpresa de visitar a Charqueada São Domin-gos (Bagé). Estupefato fiquei com a monumentalidade do tema encontrado nas várias dependências do matadouro, em plena efervescência da safra. Trabalho esse que aliciava pessoal vindo da lide campeira. Entusiasmado, por três meses frequentei este estabelecimento industrial, desenhando, aquarelando e ano-tando com croquis as variadas operações, da matança ao preparo do charque. Trabalho, a seguir, complementando com a pintura e uma série de xilogravura de topo, série gráfica mostrada no país e em diversos centros culturais estran-geiros. Etapa de minha obra gráfica com que obtive o Prêmio de Viagem pelo País, no Salão Nacional de Arte Moderna (Rio de Janeiro). Em viagem à Polônia, Varsóvia, recebi elogios do grande artista polonês Tadeusz kuliziewicz, xilógrafo e desenhista, e, na capital chilena, em entrevista para a revista “Horizonte”, tive também honrosa e estimulante referência do famoso pintor muralista mexica-no, Diego Rivera. A série “Xarqueada” faz parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo, da Coleção Gilberto Chateaubriand, do Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro) e do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Essa fase foi, representativa de minha obra e serviu de favorável estímulo para minha traje-tória gráfica, parcelada entre xilogravura e litografia.

Fato curioso em meu envolvimento com a charqueada foi estar vivenciando o fim da Era do Charque e, sem saber, documentando-a, uma vez que não existe registro fotográfico dos trabalhadores em ação, tanto no Brasil como no Uruguai ou Argentina. Embora artisticamente motivado, o meu trabalho relativo à charqueada alcançou a condição histórica, inédita, de memorial.

Depoimento de Danúbio Gonçalves Primeira Edição - 2004

18 José Antonio Mazza Leite

Anos depois, é gratificante estar contribuindo com o Museu do Charque de Pelotas, criado por José Antonio Mazza Leite, apaixonado entusiasta da história universal e local, em relevante pesquisa favorável ao resgate da era saladeril. His-toricamente, um período social e econômico especificamente marcante para o Rio Grande do Sul.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 19

Ali, onde os bois eram martirizados e os homens eram os magarefes, as pes-soas passavam de longe, buscando evitar o próprio ar, empestado pelo cheiro do sangue e resíduos putrefatos dos animais abatidos. No entanto,

um historiador e um artista plástico, duas pessoas com motivações diferentes, mas igualmente sedentas de beleza, uniram-se no resgate da poesia da charqueada. Como isso foi possível?

Aristóteles, pai da poética - vale dizer da arte - ocidental, já explicava há mais de dois mil anos, que além da tendência congênita do ser humano para imitar po-eticamente a vida, há uma outra causa do surgimento da poesia: a tendência do ser humano ao aprendizado. O estagirita foi o primeiro a ensinar que a imitação, mesmo das coisas que olhamos com repugnância, produz o prazer intelectual do re-conhecimento. A arte é revelativa, e isso faz parte da produção de emoção estética.

A poética histórica da charqueada, seu papel no surgimento e desenvolvi-mento de civilizações como a da cidade de Pelotas, inspirou José Antonio Mazza Leite a largar seus interesses importantes na cidade natal e buscar a capital gaúcha para inscrever-se em pós-graduação de História.

A busca de uma arte social e realista nos anos cinquenta, inspirara o jovem Da-núbio Gonçalves a internar-se na última charqueada de Bagé – e descobrir ali a poética dos homens em ação no trabalho saladeril, preservando com a destreza e paixão de seu nervoso lápis, uma dinâmica de dois séculos que, não fora ele, ficaria irrevelada para a ânsia de saber da humanidade póstera.

Mas na charqueada de Danúbio, há uma diferença: os homens retratados na labuta não são mais os infelizes negros da charqueada escravocrata. São gaúchos egressos da lida campeira, isto é, saídos do capitalismo pastoril para o capitalismo industrial. Já aceitaram, como o velho Blau Nunes, as regras do “manda quem pode, obedece quem precisa”, mas deram um passo à frente como categoria social. Ha-bituados até por atavismo à violência pampeana, não estranham o que fazem - e ainda não têm consciência da envergadura do passo dado. Para eles, vale dizer, para o gaúcho a pé, é um novo caminho da velha subalternidade. é o salário, o emprego, embora sazonal, a sobrevivência da família... A partir daí, a qualificação progressiva do trabalho assalariado mais a democracia política, vêm abrindo caminho à melhor

A poética da charqueada

20 José Antonio Mazza Leite

qualidade de vida, à escolarização dos filhos, à educação tecnológica e à cidadania, plena de oportunidades para poderem voltar a cavalgar, dessa vez nas asas da re-volução técnico-científica. E um dia - quem sabe, por que não? – chegar à utopia de fraternidade sonhada pelos jovens socialistas do Clube da Gravura.

Portanto, suplico – aos senhores ecologistas, aos nobres protetores de ani-mais e outras pessoas de extrema sensibilidade que torcem o nariz ao próprio aprendizado – que abram alas para o extraordinário livro de Mazza Leite e às ricas ilustrações de mestre Danúbio, feito editorial inédito da concepção moderna e lúci-da de comunicar História. A poética da Charqueada pede passagem.

Mário Mattos

Coordenador do NES (Núcleo de Estudos Simonianos)do IHGPEL (Instituto Histórico e Geográfico de Pelotas)

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 21

Essa explicação deveria ter sido dada na primeira edição para explicar o por-que que Danúbio usou o X. Somente nesta terceira edição vou reparar essa falta. O jovem Pedro Wayne, depois de estudar em Pelotas, foi para Bagé.

O rapaz casou-se nessa cidade, indo trabalhar como contador na charqueada de seu sogro. Aí começou sua vivência em uma charqueada. O que para outros seria uma rotina, para o gênio de Pedro foi uma oportunidade de expandir sua veia literária e também o profundo sentido de injustiça social que acontecia na sociedade gaúcha. Daí saiu uma obra prima!

Os manuscritos estavam prontos e Pedro remeteu a Jorge Amado, que estava no Rio de Janeiro, para que esse opinasse sobre o futuro livro. A carta de resposta remetida do Rio de Janeiro está no livro em que Ernesto lembrava o pai e publica o teor da carta de Jorge Amado.

Foi durante o carnaval de 1936, Jorge Amado estava com Osvaldo de Andrade na livraria José Olimpio e, foi de lá que redigi a carta.

Depois de tecer considerações sobre o conteúdo da obra que gostou, diz ter uma implicância com o nome sugerido por Pedro e é enfático: “vocês aí do Sul tem um nome tão forte como “Charque”, porque não usa esse nome para o livro? Aliás, o Osvaldo de Andrade que está aqui do meu lado, diz que coloques Charque com X, como era antigamente, aí fica mais forte ainda.”

Como vemos, Pedro Wayne seguiu a sugestão dos amigos escritores (e que escritores!) colocando o nome do seu livro de Xarqueadas com X.

Danúbio, amigo de Ernesto, filho de Pedro e também grato a Pedro pelo apoio e também pelas crônicas muito favoráveis que este fez a ele e a sua primeira exposição em Bagé. Então denominou seu trabalho no saladeiro São Domingos de Xarqueadas.

São as xilogravuras que conhecemos que hoje estão nas melhores galerias do Brasil, sendo uma glória para o Rio Grande do Sul e para seu autor. São suas cópias que o Museu do Charque leva as escolas de Pelotas, percorrendo várias cidades gaúchas, mostrando o trabalho dos homens das charqueadas, resgatado em arte perene pelo maior artista plástico gaúcho do nosso tempo, Danúbio Gonçalves.

Charqueada ou Xarqueada

22 José Antonio Mazza Leite

Logomarca do Clube de Gra-vura de Porto Alegre Ferramenta para xilogravura

em madeira de topo

Danúbio Gonçalves gravando com buril em madeira de topo (1988)

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 23

A amizade é um presente dos deuses, diziam os gregos e, qualquer pessoa que partilhe desse sentimento com seus semelhantes, compreende como é profundo esse pensamento. Assim, que em um dos tradicionais almoços

de quarta-feira, no apartamento de Marisa Querubini, no Moinho de Vento, em uma garfada do delicioso macarrão de Marisa, Danúbio Gonçalves me perguntou: “tu não achas que poderíamos fazer uma nova edição, do teu livro Charquedas em cores.” Respondi que achava ótimo que queria fazer uma nova edição colocando textos que me pareciam pertinentes para um livro mais completo sobre esse assun-to, que é fascinante. Em cores tudo se torna mais atraente.

Passadas algumas, semanas Danúbio me convidou para ir a sua casa e me apresentou a versão colorida do “Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História”. Era uma colaboração de inestimável valor. A partir desse empurrão amigo, fui à procura de textos que poderiam enriquecer essa nova terceira edição.

Os artigos de Carlos Reverbel, escritor e cronista que tive o prazer de manter uma boa amizade, pareceram-me uma ótima inclusão pois Carlos Reverbel viven-ciou a época dos artistas de Bagé e de Pedro Wayne como político, repórter e escri-tor. Assim, Carlos Reverbel tinha que participar da nova edição.

Também um conto que ele que me indicou para ler: “Saudade de Viver”, de Vieira Pires, que mostra o comportamento dos bovinos frente ao destino inexorável que se desenha na faca que os espera no final do corredor do brete. Nesse conto impactante, transformam-se os atores e temos o comportamento humano frente ao destino inexorável da morte. Esse conto está no livro “Entrevero” que Carlos Reverbel organizou e foi editado pela LPM e também uma série de fotos das char-quedas do século XXI.

as charqueadas do século XXi

Coloquei também a situação das charqueadas remanescentes nesse final de 2010. Continuam sendo uma atração marcante para a cidade. Sua bela arquitetura portuguesa, realçada por novas pinturas, mantendo sua estrutura, estão prepara-das para acolher as novas gerações de pelotenses.

Os universitários fazem festas de formatura em suas dependências. Novos casais ali começam suas vidas.

Introdução

24 José Antonio Mazza Leite

Esses locais de macabra memória foram vitalizados para acolher os belos mo-mentos da vida, como festas, casamentos, formaturas etc. O progresso da cidade e de suas universidades atinge o centro saladeril.

O turismo vai procurá-las e festivais com a gastronomia do charque são rea-lizados pelos restaurantes locais. As charqueadas do século XXI pedem passagem.

Também entram nessa nova edição as documentações fotográficas de Wolfgang H. Harnich Jr., feitas na década de cinquenta e constituindo uma bela documenta-ção da iconografia da cultura da época das últimas charqueadas, fotos da mesma época em que Danúbio Gonçalves desenhava na charqueada São Domingos.

José Antônio Mazza Leite

Carneador assentando o fio da faca com a chaira

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 25

HisTorioGraFia sobrE a CHarQUEaDa

os viajanTEs

Muitos olhares direcionaram-se para as Charqueadas no decorrer do tempo, mas foram os viajantes quem primeiro as descreveram, como negociantes, jornalistas, biólo-gos, artistas, um médico e um bispo. Mais recentemente, as teses de mestrado também privilegiaram o charque e as Charqueadas. O método de charquear que veio dos Andes e era elaborado com carne de lhamas e alpacas, tomou outra dimensão com a introdu-ção do gado bovino europeu.

Sobre a vinda do inglês John Luccock ao Brasil, em 1809, uma curiosidade nos é contada pelo historiador Mário Osório Magalhães. John Luccock teria vindo ao Rio de Janeiro em 1809, com a ilusão de fazer grandes negócios no comércio da lã, cutelaria e ferragens. Porém, o comércio desta cidade já estava abarrotado de patrícios seus, que trouxeram o mesmo tipo de mercadoria. Por isso, decidiu viajar para o Sul e aproximar-se das colônias espanholas. Os tecidos de lã eram muito mais apropriados para Buenos Aires e Rio Grande do Sul do que para o Rio de Janeiro.

O inglês esteve na Capitania durante o período de dois meses, quando conheceu as cidades de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas que, nessa época, era apenas um distri-to da Vila de Rio Grande, sem autonomia administrativa ou concentração populacional.

lUCCoCk

Luccock (1951, p.139) percorreu a região da Fazenda de Pelotas e admirou-se com o tamanho da propriedade, comparando o rio São Gonçalo ao Tâmisa de Londres. No Passo dos Negros, descreve uma imensa mangueira com uma grande paliçada para conduzir o gado rio a dentro. A casa, caiada de branco, ficava em local elevado, tendo como fundo o verde escuro das matas. As habitações eram encontradas em pontos esparsos, tendo, algumas, “pretensões ao luxo”, com capelas anexas. Junto à casa principal, havia um casario menor destinado aos agregados, escravos e ao pobrerio. Assim é que, antes de se formar o núcleo ur-bano, como podemos constatar pela narração, as Charqueadas já eram comuns

A Charqueada

26 José Antonio Mazza Leite

na região de Pelotas. Sobre esta esteira econômica e social, erguer-se-ia, logo depois, o núcleo da futura cidade.

Luccock admirou-se com o número de reses abatidas por um indivíduo, 54 mil cabeças de gado, e a original pilha de ossos que “ultrapassam tudo quanto me era dado imaginar” e que depois de limpos eram transformados em cal.

Quanto ao abate dos animais, dá-nos um relato sucinto e objetivo:

A denominação Charqueadas provém do charque que esse distrito pre-para e exporta [...] uma vez morto e esfolado o gado, arranca-se a carne dos flancos numa só peça larga, semelhante a um pano de toucinho; sal-pica-se em seguida ligeiramente com sal e seca-se ao sol. Nesse estado, constitui o alimento vulgar dos camponeses das partes mais quentes do Brasil, não sendo nada de se desprezar e, como se conserva por longo tempo, constitui excelente provisão de bordo, suportando transporte para distintas regiões do mundo. (Luccock, 1951, p. 139).

Essa descrição concisa, embora sem a riqueza de detalhes da que foi feita an-teriormente por Francisco Millau sobre uma Charqueada de Buenos Aires, em 1772, mostra que a técnica, nesses 38 anos (1771-1809) pouco mudou e que, no decorrer do séculos XIX e XX, a matança não sofreu grandes alterações.

Todos os viajantes referem-se às Charqueadas, pois a formação do sítio urbano deveu-se a razões econômicas e não a propósitos políticos ou acampamentos militares. Com o estabele-cimento das Charqueadas, formou- se a riqueza que veio propiciar a construção do sítio urbano.

O método de charquear já era bem conhecido no Rio Grande do Sul antes da vin-da de Pinto Martins. Porém, foi em Pelotas que as Charqueadas fixaram-se com suces-so, trazendo grandes progressos à região durante os séculos XVIII e XIX e nas primeiras décadas do século XX.

josé CaETano Da silva CoUTinHo

Bispo do Rio de Janeiro, em visita pastoral ao sul, em 1815, foi o primeiro Bispo a visitar o povoado. Aqui, viu algumas manadas de gado chegando às Charqueadas e escreveu em seu diário:

Cheguei aqui ao sol posto, no meio de um luzido acampamento de sa-cerdotes, de militares, de negociantes, piquetes de milicianos e um des-tacamento da Legião de São Paulo, que aqui se acha. No dia 8 de dezem-bro, às onze horas, dei a minha entrada sem pálio nem Irmandade, que não há; e depois dos atos de costume, preguei muito sobre o espírito da minha visita (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.17).

E, com mais detalhes, acrescenta:

Vi algumas manadas de gado nestas vizinhanças que vinham do interior para as Charqueadas, que ocupam algumas léguas nesta banda d’água. Uma Charqueada é um grande matadouro com alguma ordem nas suas carniçarias. A atmosfera seca e mui ventosa, concorre para facilidade destas operações. Alguns dias senti aqui frio, e noutros, ventos furiosos do nordeste e sudoeste. (Coutinho apud Magalhães, 2000, p.19).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 27

é significativo que este bispo sempre se refira à Freguesia de “Pelotas” e não de São Francisco de Paula, nome dado à futura cidade, graças ao alvará conferido por Dom João VI, em 1812. Assim, conclui-se que o nome Pelotas impunha-se sobre o nome oficial. Porém, oficialmente, somente após vinte anos, ou seja, em 27 de junho de 1835, o nome de Pelotas substituiria o da Vila de São Francisco de Paula.

Saint-Hilaire

Por ocasião de sua viagem ao Rio Grande Sul, em 1820, Saint-Hilaire descreve não só a geografia local, como também o povo e seus costumes. Observou:

Tenho o projeto de ir daqui, por água, a uma aldeia nova e muito florescente, situada junto ao Rio São Gonçalo, canal que liga a lagoa Mirim à dos Patos, acompanhando nessa viagem um charqueador chamado Chaves no qual surpreendi um dos homens mais compe-tentes da região. (Saint-Hilaire, 1974, p. 63).

Na viagem de Rio Grande para Pelotas, partiu em uma lancha que o levou até o iate do Sr. Chaves. Saint-Hilaire descreve a viagem como sendo muito agradável por ser o Sr. Chaves:

[...] um homem culto, sabendo o latim, o francês, com leituras de história natural, conversando muito bem. Pertence à classe dos char-queadores ou fabricantes de carne seca. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67).

Em 6 de setembro chegam à casa de Gonçalves Chaves, onde Saint-Hilaire atem- se a todos os detalhes. No gramado da residência, ele observou várias fileiras de grossos paus fincados na terra, sendo cada um deles terminado por pequena forquilha.

Essas forquilhas recebiam varões transversais destinados a estender a carne para secar. Ao lado desses secadouros, existia o edifício onde se salgava a carne e onde se achava construído o reservatório, denominado tanque.

Quando o animal é abatido, retalham-no, salgam os pedaços e colo-cam no tanque onde se impregnam de salmoura. Ao fim de 24 horas vão para os secadouros, onde ficam durante 8 dias, quando há bom tempo a carne seca não se conserva mais de um ano. é exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros. (Saint-Hilaire, 1974, p. 67).

De acordo com seu relato, durante o inverno o gado emagrece; no verão, porém, logo que os campos se cobrem de pastagens, ele engorda. Por isso, em novembro já começam as Charqueadas que vão até o mês de abril ou maio.

A região que se estende entre o rio Pelotas, o rio São Gonçalo e a paróquia de São Francisco de Paula, pertencia aos charqueadores. Isso facilitava tanto para a engorda do gado nas pastagens situadas ao sul do Jacuí, como para a exportação da carne seca e dos couros por iates que navegavam pelo arroio Pelotas e pelo canal São Gonçalo, na época conhecidos como “Sangradouro”. Escreve então:

28 José Antonio Mazza Leite

A localização dos charqueadores à margem do rio São Gonçalo deu lugar à formação da paróquia de São Francisco de Paula. (Saint-Hilai-re, 1974, p. 69).

Confirmando que primeiro surgiram as Charqueadas e depois o núcleo urba-no, continua ele:

[...] apesar de ter cessado, há meses, a matança nas Charqueadas, sente-se ainda nos arredores um forte cheiro de açougues, donde se pode fazer ideia do que não será esse odor no tempo da matan-ça. Nessa época, dizem, não se pode aproximar das Charqueadas sem ser logo coberto pelas moscas. Ao imaginar essa multidão de animais decapitados, o sangue a correr aos borbotões, a prodigiosa quantidade de carne exposta nos secadouros, vejo que tais lugares devem inspirar contrariedade e pavor. (Saint-Hilaire, 1974, p.74).

jEan bapTisTE DEbrET

Jean Baptiste Debret, quinze anos depois, descreveu e pintou as Charqueadas, e também São Francisco de Paula. Foi pintor da Corte que veio com a Missão France-sa, em 1816, para o Rio de Janeiro. O quadro mais popular sobre o panorama externo do trabalho de uma Charqueada é dele. A Charqueada de Debret, que ele denominou “engenho de carne seca”, é um dos mais completos estudos sobre o funcionamento desses estabelecimentos. é extremamente didático. Mostra desde o abate do bovino, até o embarque das mantas em uma escuna atracada junto à Charqueada. é nela que podemos ver o estreito canal, vermelho de sangue, que desaguava no rio. As graxeiras, os grandes panelões, os escravos em movimento nas atividades de estaquiar os couros, carnear, levar as mantas salgadas. O autor foi extremamente bem informado sobre o funcionamento de uma Charqueada. Porém, a cancha de carnear, por localizar-se no in-terior dos galpões, não foi representada na tela de Debret. Coube a Danúbio Gonçalves completar esta obra, fazendo as xilogravuras dos trabalhos na cancha, cento e dezoito anos depois, na Charqueada São Domingos, em Bagé – o foco do meu trabalho. Segun-do o historiador Mário Osório Magalhães,

Debret fez seis aquarelas conhecidas sobre Pelotas que nada ficam a dever às que pintou sobre o Rio de Janeiro. As duas que constam da Viagem Pitoresca e Histórica (“Canoa brasileira de couro” e “Viajantes da Província do Rio Grande do Sul”) estão devidamente assinadas e da-tadas de 1823. Uma terceira que mostra o abate do gado num potreiro de Charqueadas, embora assinada, não tem data. “Engenho de Carne Seca”, embora datada de 1825, não tem assinatura e a “Passo Rico no São Gonçalo”, não tem data nem assinatura. Igualmente, sem data nem assinatura chama-se “São Francisco de Paula”, que retrata uma cena de campo, divisando-se, ao fundo, a pequena freguesia.

Debret assim descreve uma Charqueada, que ele chama de “Engenho”:

A carne seca é um alimento de primeira necessidade no Brasil, pre-para-se na Província do Rio Grande do Sul, conhecida pelo número

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 29

de Charqueadas, situadas em grande parte na margem esquerda do rio de São Gonçalo, rio que facilita a exportação considerável desse comestível feita a bordo de iates e sumacas, pequenos navios de ca-botagem, empregados no abastecimento dos portos do Brasil e do Chile. (Debret, 1940, p.242).

A descrição, abaixo, retrata o que se vê na litografia, que reflete completamente sua ideia:

A Charqueada, vasto estabelecimento em que se prepara carne sal-gada e secada ao sol, reúne dentro dos seus muros o curral, onde se mantém os bois vivos, o matadouro, a salgadeira, edifício em forma oblonga, o secadouro, vasto campo eriçado de estacas entre as quais são esticadas cordas, e as caldeiras, bem como os fornos abrigados sob um barracão espaçoso. Toda essa fábrica é dominada por um pequeno platô no qual se ergue o edifício principal, habitada pela família inteira do charqueador. (Debret, 1940, p.242).

Depois de explicar o processo de secagem do charque, ele dirige sua atenção às mangueiras.

O curral é um cercado de seis a sete pés de altura mais ou menos, e formado pela reunião de grande quantidade de troncos colocados uns ao lado dos outros e no qual se abre uma entrada fechada por uma porteira. Um pequeno corredor de doze pés de comprimento por quatro de largura, une o curral ao matadouro, as cercas constru-ídas da mesma maneira que as do cercado, mais espesso, porém, e com somente 5 pés de altura, servem de passagem elevada para o negro encarregado de laçar os chifres do boi que deve ser puxado para o corredor. A outra extremidade do laço, amarrada a uma ma-nivela, força o boi a aproximar-se pouco a pouco do matadouro e colocar a cabeça no lugar em que deve receber o golpe que o abate. (Debret, 1940, p.242).

Continua o autor:

Já colocado sobre o palanque de um guindaste giratório, o animal é suspenso imediatamente e levado para o local em que deve ser es-corchado, operação preliminar depois da qual retiram de cada lado e num só pedaço toda a parte carnuda, desde o maxilar e até a coxa; essa parte é transportada em seguida para a salgadeira, juntamente com outros pedaços muito menores. O resto do boi, semi-descarna-do, é reservado a outro destino. (Debret, 1940, p.243).

Explica, com mais detalhes, o salgamento da carne e fala do pequeno canal de esgoto que levava água e sangue para o rio.

A salgadeira é um rés-do-chão bastante espaçoso, coberto, de forma oblonga, inteiramente guarnecido, de cada lado e em todo o com-primento, por dois balcões inclinados sobre os quais se estendem

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os pedaços de carne a serem salgados. Calhas de madeira aderen-tes aos balcões recebem as águas da salgação e as conduzem a um pequeno esgoto descoberto, destinado ao escoamento do sangue; um filete de água viva lava continuamente esse pequeno canal que deságua no rio. (Debret, 1940, p.243).

é interessante, como assinala Magalhães (2000), que Debret escreva que as ne-gras trabalhavam nas Charqueadas nos serviços mais minuciosos e, também, que o Rio Grande do Sul – leia-se Pelotas – era responsável, além do couro que exportava para o mundo inteiro, pela produção da maior parte da carne seca ou charque brasileiro, ali-mento de toda a população negra e indigente.

Assim, essa descrição do “engenho de carne seca” é, sem dúvida, a descrição da sua litografia sobre uma Charqueada em plena atividade. Desde os varais, os galpões, as roldanas, em que cordas suspendem o bovino, até o filete de sangue que corre pelo canal, desaguando no rio, levando detritos e os líquidos tintos de sangue, estão na des-crição de Debret. Também estão as pirâmides de charque cobertas pelos couros, a em-barcação esperando para ser carregada e a atividade dos negros escravos, na incessante lida da Charqueada que ele chamou de “engenho de carne seca”.

niColaU DrEys

Negociante e escritor francês, lançou seu livro “Notícia Descritiva da Provín-cia do Rio Grande”, em 1839, durante a Revolução Farroupilha, certamente para aproveitar o interesse das pessoas das outras províncias sobretudo da corte no Rio de Janeiro pela Província que se rebelava em armas contra o Império. Dreys viveu quase dez anos no Rio Grande do Sul e boa parte deles na região de Pelotas. Ele dividiu seu livro em três partes: a geografia, o núcleo urbano e a população. As des-crições sobre o modo de charquear a campo coincidem com a gravura de Debret, relatando, minuciosamente, o processo de charquear e as condições dos escravos que trabalhavam nas Charqueadas. Segundo Magalhães,

[...] podemos convir que “Notícia Descritiva” de Nicolau Dreys é o primeiro trabalho de grande divulgação sobre a gente e cultura do Rio Grande do Sul. (2000, p. 87).

A descrição de Dreys, sobre a técnica de matança usada nas Charqueadas pelo-tenses, mostra que pouco mudou nas diferentes fases da operação. Primeiro, descreve o modo de matar o gado em campo aberto:

Os peões montam a cavalo; um deles estimula o animal recolhido num curral aberto, agitando ante seus olhos o poncho colorado e quando o novilho exasperado lança-se afinal sobre o agressor e en-tra a persegui-lo; outro peão, armado de uma lança comprida cujo ferro tem o feitio de meia lua, corre atrás do boi e corta-lhe o jarre-te, abandonando-o logo que cai, para ir atrás de outro boi, também excitado pelos mesmos meios; enquanto isso, um camarada ou um negro escravo toma conta do animal caído e sangra-o: esse método não é sem perigo, mas, por isso mesmo, agrada aos hábitos aventu-rosos dos gaúchos. (Dreys, 1990, p. 97).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 31

Desjarretamento, cortando o jarrete do bovino com lança, que em seguida é sangrado - Debret

Há uma pintura de Debret, em que se pode ver, exatamente, a cena descrita por Dreys. Sobre os charqueadores comenta:

[...] homens tão esclarecidos como são em geral os charqueadores do Rio Grande, não poderiam deixar de chamar a indústria em auxílio de seus tra-balhos, tanto para economizarem os braços, como para minorarem, quanto possível, não somente o perigo, como também as repugnâncias insepará-veis do ato e das consequências da matança. (Dreys, 1990, p. 97).

Completa, dizendo que:

[...] hoje em dia, nas Charqueadas mais bem organizadas, matam- se os bois por um método mais expedito, mais seguro e menos cruel. (Dreys, 1990, p.87).

Dreys fala nas Charqueadas mais organizadas, ou seja, as que abatem de uma forma racional e com planejamento industrial. é verdade, porém, que os dois tipos de carnear, o ‘industrial’ e o ‘a campo’ conviveram durante quase todo o século XIX.

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O gado fechado no curral é impelido na direção de dois corredores, separados um do outro por uma espécie de esplanada, levantada a sete ou oito palmos do solo; um peão, de pé em cima dela, lança no boi, que aparece nesses corredores, um laço cuja extremidade está atada, fora do recinto, num cabrestante posto em movimento por uma roda de ferralho (trinquera) manejada por dois negros: quando o boi, puxado pelo laço, chega a encontrar-se com a cerca contra a qual a cabeça se acha comprimida, uma pessoa (ordinariamente um capataz) que o espera exteriormente, introduz-lhe a ponta da faca nas primeiras clavículas cerebrais, donde resulta ficar o boi espon-taneamente privado de movimento; nesse estado, um guindaste, rodando sobre seu eixo, eleva o animal asfixiado para fora do curral por cima do cercado, e o transporta para debaixo de um telheiro, sobre um lajeado disposto em segmento de esfera, onde se sangra, sem que, graças à disposição bem entendida do lugar, a operação deixe depois quase vestígio nenhum. (Dreys, 1990, p. 98).

Observa-se que tanto Dreys quanto Debret falam das roldanas e da introdução da faca nas primeiras clavículas.

é interessante observar que Saint-Hilaire, mesmo não estando presente durante as matanças, mas que sentiu o cheiro de carniça, vaticinou ser ele insuportável. Já seu patrício, Dreys, que certamente viveu muito mais tempo em Pelotas, foi um defensor do odor almiscarado desses estabelecimentos. Sendo os dois franceses, presume-se que sejam conhecedores dos mais finos odores. Essa diferença de opiniões é, no mínimo, curiosa. Nas suas descrições, Dreys segue a linha de Debret, ou de Francisco Millau. é um detalhamento repetitivo dos diferentes estágios a que o charque é submetido.

Esgotada que seja, a carne é levada do salgadeiro para os varais, assim se denomina uma grande extensão de terreno plantado de espeques arruados, de 4 a 5 palmos de altura, atravessados por varas compridas em que se sustentam as mantas para secarem-se pela ação do sol e dos ventos; quando se receia alguma chuva repentina, o toque de um sino chama, para os varais, todos os negros da Charqueada, e coisa curiosa é ver como num instante a carne amontoada por porções nos mesmos varais se acha escondida debaixo de couros que não permitem o menor acesso às águas do céu. (Dreys, 1990, p.98).

A quantidade de ossos, que secavam ao relento, fazem a admiração do francês.

O estrangeiro que chega pela primeira vez às Charqueadas avista com admiração paredes extensas tão brancas como alabastro; meio século mais tarde, se o destino o levasse ao mesmo lugar, havia de achar as mesmas paredes com a mesma alvura: é uma matéria que o tempo rói sem a sujar; são os ossos entrelaçados com arte e solidez, sem pedra nem cal, de maneira, todavia, a formarem uma cerca contínua capaz de opor-se mais eficazmente que qualquer outra aos esforços do gado recolhido nos currais que circunscrevem. (Dreys, 1990, p.99).

Dreys é a exceção da regra, ao elogiar o cheiro das Charqueadas. “Almiscarado”, diz ele.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 33

O certo é que, fora da estação da matança e nesta mesma estação, fora das horas do trabalho, uma Charqueada não tem nada que repugne à vis-ta; e sempre diremos, em abono da verdade, que, em tempo nenhum, num estabelecimento desses bem administrado, nada se acha que ofenda o olfato, não dizemos de um sibarita, mas de qualquer homem não pre-venido nem efeminado. Certamente as emanações produzidas por tan-tas matérias animais de natureza e preparações diversas não deixam de produzir estranha impressão à primeira vez, porém nunca incomodam, e ainda menos são letais; e aqueles que nas Charqueadas se demoram alguns dias, não tardam em ver chegar o momento em que a combinação de todos esses eflúvios heterogêneos determina uma sorte de sensação agradável, mormente quando se lhe ajunta, como acontece nas aproxi-mações de quase todas elas, o singular e intenso cheiro de almíscar que deixa o gado em todos os currais em que estaciona. (Dreys, 1990, p. 99).

é de Nicolau Dreys a frase que orgulha todos os pelotenses e que Fernando Osó-rio usou na abertura do livro A Cidade de Pelotas: “[...] eles quiseram que o lugar pros-perasse, e o lugar prosperou” (Dreys, 1990, p. 102).

miCHaEl mUlHall

Em Buenos Aires, possuía um jornal editado em língua inglesa, o semanário “Standard”. A fama do jornal chegou ao Rio Grande de São Pedro e a colônia britânica o convidou para visitar essa progressista Província, onde as companhias inglesas vinham investindo. Quando chegou a Pelotas, em 1871, chovia muito. Para ir ao centro da cida-de, teve que atravessar banhados até encontrar uma grande praça, hospedando-se no Hotel Europa.

Pelotas tinha, então, 12 mil habitantes e um ar de opulência por saber-se o prin-cipal centro de produção e exportação nesta região do Brasil. Mulhall admirou-se da hospitalidade, do espírito empreendedor dos brasileiros (pelotenses), que pareciam ianques por serem muito vivos nos negócios empreendedores e ótimos comerciantes.

Acrescentou que a maioria dos estrangeiros que vem a Pelotas progridem e, des-ta forma, admirou-se por não haver colonos ingleses.

Depois de algumas considerações sobre a cidade, o jornalista acrescenta que quem quiser visitar uma Charqueada em funcionamento, o que:

[...] a meu ver, é uma das visões mais revoltantes que se possa ima-ginar. A rês é morta, cortada e a carne e o couro são pendurados para secar, quase no mesmo tempo que levo para descrever a cena. Os peões ficam empapados de sangue, o chão transforma-se num mar vermelho, o cheiro é o que seria de se esperar nesses matadou-ros gigantescos, e miríades de moscas infectam o local. Entretanto, dizem que, quando as pessoas se acostumam, é uma ocupação in-teressante e agradável, e a experiência mostra que as Charqueadas são lugares saudáveis de se frequentar. (Mulhall, 1974, p.137-138).

Neste ponto, o jornalista irlandês concorda com o comerciante francês Nicolau Dreys, que não achou nada enojoso o ambiente das Charqueadas.

Por outro lado, vê-se pela descrição que Mulhall esteve no interior dos galpões onde os carneadores atuavam. Sua visão é a mesma que, onze anos após, vai ter o ame-

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ricano Herbert Smith: homens banhados de sangue e os animais berrando. Danúbio, ao visitar a Charqueada São Domingos, oitenta e três anos após, lembrou o Inferno de Dante e as cenas dramáticas das águas fortes de Goya (Caprichos) e de Pirinesi (mas-morras) e, assim, a descreve:

Algo dantesco plasticamente. Próximo das gravuras de Piranesi ou dos caprichos goiescos. Entusiasmado, fiz uma série de xilogravuras de topo, que muito surpreenderam. Expostas no Chile, vistas por Diego Rivera, foram elogiadas pelo grande pintor mexicano em entrevista a uma revis-ta nossa. (Gonçalves, 1995, p.50).

o TrabalHo DE loUis CoUTy

Le mate et les conserves de viande, publicado em 1880, constitui-se em um dos clássicos da historiografia da erva mate e, particularmente, do charque. é um estudo científico, de manuseio obrigatório para todos aqueles que têm interesse em compre-ender as relações concretas de produção da região platina.

Um dos destaques é, justamente, o método comparativo que Couty utiliza, ado-tando o caráter científico nos seus objetivos de estudo. Nesse aspecto, ele se diferencia de outros “viajantes” que, de modo geral, preocupavam-se, apenas, com o ilustrativo e o pitoresco em suas considerações. é de se observar que Couty veio a esta região com a finalidade específica de fazer um estudo sobre o charque. Contratado pelo Ministério da Agricultura do Império, trouxe uma metodologia francesa e vários títulos científicos.

Traçando algumas observações sobre a matança dos bois, Couty refere-se a uma “zorra sobre os trilhos”.

A mangueira figura, com bastante exatidão, o plano de dois troncos de cone encostados em uma larga base: um dos vértices corresponde ao curro ou brete: o outro mais importante é aquele onde os bois vão ser sucessivamente mortos. Neste lugar, o chão da mangueira continua com uma zorra móvel sobre os trilhos. (Couty, 2000, p.96).

Interessante é que nem Dreys nem Debret falam da zorra, e sim de guindastes com roldanas puxadas por cavalos que levantavam o boi. São as descrições da primeira metade do século XIX, antes da Revolução Farroupilha.

Já para Couty, depois Herbert Smith e as descrições que se seguem, inclusive de Antenor Peixoto de Castro e Danúbio Gonçalves, a zorra é parte importantíssima da téc-nica de transporte do boi para ser carneado. Acredito que, como a rapidez era um fator básico para o bom funcionamento do processo de carnear, a zorra cumpria essa finalidade com muito maior eficiência do que o guindaste. Uma vez o animal laçado, é suficiente puxar a corda para que o boi seja arrastado por alguns metros sobre o chão deslizante, e venha colocar-se diretamente sob a mão de um segundo operário (às vezes, o mesmo) o matador ou “desnucador”. “[...] que só tem que enterrar de alto a baixo um longo facão, muito resistente e mal afiado, entre o atlas e o occipital para o bulbo” (Couty, 2000, p.96).

Todas essas manobras duraram apenas um minuto, dois no máximo, já que se podem matar até 1200 bois em menos de dezoito horas, e a mé-dia das matanças diárias varia conforme os saladeiros, entre 200 e 1000. Imediatamente após o golpe de facão, o boi cai, bruscamente, como

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 35

que fulminado sobre a vagoneta: levanta-se a porta vertical que fecha a abertura da mangueira, e arrasta-se o vagão e o boi sobre os trilhos. Após alguns segundos, ou 1 a 2 minutos de imobilidade completa, este boi pode, em alguns casos, apresentar movimentos variados, irregu-lares, dos membros; nestes casos excessivamente raros, e ele poderia mesmo levantar-se, mas mesmo assim, quase sem forças, ele não tarda a cair de novo. (Couty, 2000, p.97).

Danúbio conta que chegou a ver um boi levantar-se, dar alguns passos e, logo, cair. Antenor afirmou que, mesmo sem a cabeça, o animal continuava debatendo-se.

A ferida feita pelo facão nos órgãos nervosos tem sido, também muito variável, como fiquei convencido em Pelotas e Montevidéu por autópsias bastante numerosas, cujos detalhes serão publi-cados em outro trabalho: às vezes, a medula é completamente cortada; outras vezes, ela é simplesmente puncionada. [...] O que quer que seja, qual seja o ponto atingido desta região bulbo-me-dular, o animal cai: ele está morto, mesmo que capaz ainda de contrações reflexas dos membros e conservando seus movimen-tos cardíacos, e mesmo, às vezes, alguns “esforços” diafragmáti-cos respiratórios. (Couty, 2000, p.97).

Na xilogravura “A Espera” (p.118), o charqueador, da extrema direita, traz em sua mão um objeto longo e curvo. é uma cartilagem da rabada, que os próprios operários usavam para destruir as terminações nervosas, colocando-a no local da ferida provoca-da pela faca, mexendo-a para, com isso, paralisar os safanões dos membros dos bovinos abatidos. Esta era a forma como obtinham segurança para evitar acidentes de trabalho.

Sobre a transformação do boi em charque, Couty, narra:

O boi caído sobre o vagão e arrastado é, em seguida, deposita-do sobre um piso de tijolos, levemente inclinado: são as “can-chas”. Elas são construídas de um só lado ou dos dois lados dos trilhos, recobertas, quase sempre, por um hangar e contíguas à mangueira. Uma vez em terra, ele aí é tirado, seja por dois ho-mens, seja, como em Fray-Bentos por uma corda fixada a uma das duas partes da frente, e puxada por um homem a cavalo, o boi é imediatamente despojado do seu couro. Faz-se uma incisão e esfola-se primeiro a cabeça; depois, quando se chega ao pescoço, ou às vezes, mesmo desde o início, se o animal se agitar, sangra-se cravando o facão até o coração. Esta sangria é constante; ela é indispensável, porque termina de matar animais dos quais alguns teriam podido viver ½ hora a mais, e sobretudo porque, sem a sangria, a carne seca mal e tem uma cor ruim. Entretanto, esta sangria dá pouco sangue, seguramente muito menos que em um animal normal, cerca de 12 a 15 quilos para um boi de tamanho médio. (2000, p.98).

Essa operação é citada por Peixoto de Castro ao narrar que, em Pelotas, na Char-queada do Coronel Pedro Osório, usava-se um tipo de balde para aparar o sangue que seria utilizado, posteriormente, no preparo de adubo.

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Acaba em alguns minutos de tirar o couro: o animal tem, muitas ve-zes, reflexos muito marcados, mas irregulares, às vezes ele ensaiará gritos afônicos: ele terá durante a hemorragia, convulsões, ou me-lhor, abalos não coordenados dos membros, e já terá sido carneado pela metade. Estes operários cobertos de sangue, que se agitam em todos os sentidos, estes 30 ou 40 bois esfolados e ainda vivos, sen-tindo o facão e não podendo reagir, mugindo e não podendo se fazer ouvir, procurando levantar-se e só conseguindo executar safanões desordenados, oferecem ao artista um curioso quadro, ao fisiolo-gista, interessantes temas de estudo, e também aos filantropos que preferem os animais aos homens, uma reforma para tentar. (Couty, 2000, p. 98).

HErbErTT HUnTiG smiTH

Suspendendo a narração técnico-científica e permitindo que a emoção dite suas palavras, o Dr. Couty situa-se diante de um quadro dantesco. O artista Danúbio Gon-çalves mostra que também foi tocado pelo “curioso quadro” quando perpetuou essas cenas na sua série “Xarqueadas”, conforme consta no terceiro capítulo deste trabalho.

Devido a uma grande seca que se abateu sobre o Ceará, em 1877, veio ao Brasil o especialista em geologia e geomorfologia. Sua missão era fazer a cobertura, para um periódico norte-americano, da seca e das epidemias que se propagavam pela região do nordeste. Smith tornou-se amigo de Capristano de Abreu, tradutor de seus trabalhos. Sua vinda ao Brasil foi estimulada pelo mestre Frederic Hart, da Universidade de Cor-nell. Ele esteve em Pelotas no ano de 1882.

Dele, é uma das mais completas descrições sobre a Tablada pelotense, onde o gado era reunido e negociado. Vamos nos ater, porém, a sua descrição sobre o que acontecia na “cancha”. Smith, relata que

[...] a matança é feita de manhã. Um laço é atirado na cabeça de um animal escolhido e através de um sistema de roldanas e cordas, puxados por cavalos ou bois, arrastam o animal laçado até que seu pescoço fique ao alcance da mão do desnucador, que levanta um punhal comprido e afiado e embebe-o no pescoço do animal entre o Atlas e o Occipital. Esse golpe não mata o animal instantaneamente, porém priva-o de toda a sensibilidade. O boi cai em um carro de pla-taforma (zorra), que é contínuo com o soalho da mangueira. (Smith, 1922, p. 137).

Os desenhos de Danúbio Gonçalves começam a partir daí, como se pode ver no terceiro capítulo deste estudo, a zorra e zorreiros, registra dois momentos dessa operação.

Levanta-se uma porta, tira-se rapidamente o carro (zorra), descar-regam-no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro animal que entremetentes foi laçado. A operação inteira, leva cerca de um minuto, e muitas vezes, num só estabelecimento no mesmo dia matam-se 600 a 700 animais. (Smith, 1922, p. 138).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 37

A morte definitiva do boi é narrada da seguinte forma:

As operações restantes são quase sempre efetuadas por escravos. Esfo-la-se o couro, abre-se o pescoço e enterra-se uma faca no coração que ainda bate. Acabada a esfolação tira-se limpadamente a carne dos ossos e são cortados em oito pedaços, que são lançados em estacas horizon-tais onde dois trabalhadores hábeis recortam e retalham-na então, de maneira que cada pedaço fica reduzido à espessura uniforme de cerca de quinze milímetros. (Smith, 1922, p. 139).

Completa, então: “Para essa operação emprega-se o verbo charquear e dele de-rivam os substantivos, charque, charqueada, charqueador” (1922, p.102).

Smith também não se furtou de expor sua visão sobre o ambiente onde se pro-cessavam as operações de Charqueada:

Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo de cativador nestes grandes matadouros; os trabalhadores negros, seminus, es-correndo sangue; os animais que lutam, os soalhos e sarjetas corren-do rubros, os feitores estólidos, vigiando imóveis sessenta mortes por hora, os montes de carne seca dessorando das caldeiras, a con-fusão, que entretanto é ordem: tudo isso combina-se para formar uma pintura tão peregrina e tórrida quanto pode caber na imagina-ção. De toda essa carnificina originou a riqueza de Pelotas, uma das mais prósperas entre as cidade menores do Brasil. (1922, p.100).

Suas descrições sobre o trabalho dos homens, no interior dos galpões, são im-pactantes. Ele escreve: “[...] tudo isso combina-se para formar uma pintura tão pere-grina e tórrida quanto pode caber na imaginação” (Smith, 1922, p.100). As imagens, tanto para Couty como para Smith, foram fixadas, graças às xilogravuras de Danúbio Gonçalves na Charqueada São Domingos.

Pela descrição acima, parece que o biólogo norte americano antevê como um artista poderia fazer uso da vigorosa cena. Danúbio, quando a viu, lembrou as gravuras de Pirinese, que teria se inspirado nas tétricas masmorras da inquisição.

viTTorio bUCCElli

O italiano, em 1905, veio a Pelotas e daqui gostou tanto que fez derramados elogios à cidade. Mas, como disse, seu principal interesse era ver as Charqueadas, con-sideradas o motor econômico do estado e, por isso, dirigiu-se à Charqueada do Coro-nel Pedro Osório. Lá, foi recebido com todas as honras pelo proprietário, então vice-governador do estado, que o levou a acompanhar as diferentes etapas pelas quais que passam os bovinos, até transformarem-se em mantas salgadas.

Ao visitar a cidade, Vittorio tinha a incumbência de escrever um livro de propa-ganda para a Exposição Internacional de Milão, em 1906. Suas informações foram cor-retas em vários sentidos pois, na época, Pelotas era a segunda cidade do estado e tanto no charque como no couro estava assentada sua economia.

Porém, o panorama geral mudara. A ligação ferroviária Bagé – Rio Grande estava esvaziando o pólo charqueador de Pelotas. Das trinta e cinco Charqueadas que funcio-navam no século XIX, havia apenas nove com um abate de 130 mil cabeças de gado e

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não as quatrocentas mil da época de Louis Couty e Herbert Smith. O funcionamento das Charqueadas de Bagé, Quaraí, São Gabriel, além das de Santana do Livramento, foram um duro golpe para o pólo charqueador pelotense.

Vittorio refere-se à visita que fez às Charqueadas, destacando a importância da água para seu funcionamento. Tanto as de Bagé, Santana, Quarai e Livramento, como as de Pelotas, estão situadas junto a rios ou arroios. Em Pelotas, há o canal do São Gon-çalo e o arroio Pelotas que cumprem essa função. Continua narrando sua visita ao local. Conforme sua descrição, uma Charqueada constituía-se num pequeno vilarejo porque, além da casa de habitação do proprietário, existiam muitas outras habitações para em-pregados, assim como galpões e diversos locais de trabalho. Buccelli discorre sobre a matança e fala das mangueiras, dos enormes alpendres para depósito dos produtos, caldeiras, depósitos com várias funções, estrebaria, chácaras, além das 200 ou 300 pes-soas que trabalhavam e viviam no local.

Fala então da Charqueada que “mais agradou-nos permanecer”: a do Coronel Pedro Osório.

pEiXoTo DE CasTro

Esta Charqueada tem uma importância bem particular para o autor deste livro, pois é a Charqueada em que trabalhou Antenor Peixoto de Castro, que fez um relato preciso sobre suas atividades desde 1930 até o derradeiro ano de 1939, quando foram encerradas as ma-tanças. Na época, era a Charqueada da Viúva do Coronel Pedro Osório.

A viva narração de Antenor mostra o tempo em que seu pai administrou o esta-belecimento, unindo-se a ela uma descrição poética das reminiscências, além de um apurado e limpo relato de todos os diferentes momentos pelos quais passava o animal abatido e as técnicas de preparação do charque.

O outro motivo é que, na História de Pelotas, de João Simões Lopes Neto26 , lê-se o seguinte sobre essa Charqueada:

Rio São Gonçalo, na margem esquerda, os proprietários foram: Ma-nuel Batista Teixeira, passou ao filho de igual nome, deste a Paulino Teixeira de Costa Leite, deste à Companhia Pastoril Industrial Sul do Brasil, pertence hoje a Pedro Osorio & Cia. (Lopes, 1994, p.31).

O Sr. Paulino Teixeira da Costa Leite vem a ser meu bisavô. Só quando fiz este trabalho, percebi que esta era a Charqueada a que meu pai referia-se, por ter pertencido a seu avô. Fui procurar no 1º Cartório de Registro Civil de Pelotas e lá encontrei os seguintes dados:

São Gonçalo: situada no Passo dos Negros (margem esquerda do São Gonçalo), fundada por Manuel Batista Teixeira, que a passou ao filho do mesmo nome, deste vendida em 3/10/1885 a Paulino Tei-xeira de Costa Leite - livro 4, folha 207, sob nº 2565 - depois vendi-da à Companhia Pastoril Industrial do Sul do Brasil (7/2/1891 - livro 4ª, folha 354, nº 1392), que a vendeu ao Coronel Pedro Osório em 31/12/1896 - livro 3ª, folha 297, nº 5103.Um estabelecimento de Charqueada, completamente montado, si-

26 LOPES NETO, João Simões, 1865 – 1916. Apontamentos referentes à história de Pelotas e de outros dois municí-pios da zona sul: São Lourenço e Canguçu organizada por Mário Osório Magalhães.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 39

tuado às margens do São Gonçalo, com casa de moradia, galpões, mangueiras, currais, carroças, carrinhos de mão, balança e demais acessórios.

A mesma Charqueada onde o Dr. Antenor Peixoto de Castro viveu e trabalhou quan-do jovem, deixando-nos excelente relato de suas atividades (1930-1939) e que, na época, pertencia à viúva do Coronel Pedro Osório. é o que veremos no Testemunha Ocular.

TEsTEmUnHa oCUlar: anTEnor pEiXoTo DE CasTro

A descrição do funcionamento da Charqueada, feita por Antenor Peixoto de Castro, adapta-se muito bem aos estudos e xilogravuras de Danúbio Gonçalves. A se-melhança entre os fatos e as gravuras é tal, que as coincidências são dignas de serem mostradas, uma vez que só vão enriquecer este trabalho.

Transcrevo, na íntegra, o depoimento:

Eu tenho lido, se bem que em poucos lugares, alguns esclarecimentos sobre as Charqueadas de Pelotas. A bem da verdade e para conhecimen-tos definitivo sobre o que acontece em uma “matança”, venho trazer a experiência de quem passou 10 anos dentro de um estabelecimento saladeril. A última “matança” da qual participei deve ter ocorrido entre os anos de 1938 e 1939, não recordo bem, quando durante a safra foram abatidas cerca de 38.000 reses. Tratava-se da firma Vva. Pedro Osorio Cia. Ltda., cuja Charqueada estava localizada no Passo dos Negros, con-tígua ao Engenho São Gonçalo, às margens do Canal do São Gonçalo.27

é o mesmo estabelecimento onde Vittorio Buccelli foi recebido pelo proprietário, o Coronel Pedro Osório.

Meu pai foi chamado para administrar o estabelecimento e em 1931, transferimos residência para a casa grande da Charquea-da, com cerca de 1.000 m2 de construção e áreas de quartos que equivaliam a um excelente salão de festas. Ali nos instalamos e permanecemos até 1941, acompanhando as safras que se suce-diam e que movimentavam os trabalhadores do Areal, da Várzea e do Passo, de 1° de janeiro até 30 de junho de cada ano, data fixada para o encerramento da safra. Em 1934, formado Perito Contador, fui admitido como Auxiliar de Escritório da Charquea-da, com a incumbência, entre outras, de acompanhar o andamen-to de todas as matanças. No primeiro dia útil de cada ano a safra era iniciada, encerrando-se, impreterivelmente, em 30 de junho, com a duração, portanto, de seis meses.28

27Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à escritora Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.7.

28Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.1.

40 José Antonio Mazza Leite

Neste ponto da narrativa, Peixoto de Castro relembra o antigo apito da Charqueada.

As matanças iniciavam entre meia-noite e uma hora da madruga-da, quando deveriam estar a postos todos os empregados, o chamado de... “boi... boi... boi”, ecoava num raio de 5 quilômetros, convocando os operários. A tropa que deveria ser abatida, de propriedade da firma ou de custeio, de 300, 500 ou mesmo de 800 bois, já estava distribuída nos mangueirões interligados, que davam para um pequeno com capa-cidade para cerca de 20 bois. Aí, os animais encostados uns aos outros, aguardavam o laçador-matador, em geral um castelhano de boa cepa, com coragem bastante para desnucar as reses com um pequeno punhal de dois gumes, numa operação que muitas vezes entrava noite a dentro. Quinze minutos antes do início da matança, com o livro ponto debaixo do braço, recorria todos os setores do galpão para anotar a presença dos operários em seus postos, já distribuídos pelo “Capataz da Cancha”. Ali estavam alinhados, esperando o primeiro boi, zorreiros, cambonei-ros, coleiros, carneadores, charqueadores, aguateiros, salgadores, ma-tambreiros, foguistas, mergulhadores de carne e de couros, balanceiros, porteiros, guincheiros, carregadores de ossadas e buchadas, serradores de caracu, resfriadores, graxeiros, eletrecistas, tripeiros, etc e etc.29

Depois de falar sobre o grande número de operários que movimentavam a Char-queada, refere-se as suas instalações.

Os tanques, com mais ou menos 6 metros de comprimento, por 1,50m de lar-gura e 1,20 m de altura, já estavam cheios de salmoura, com os medidores de salinidade boiando em seus interiores, um destinado à salga da carne e outro à dos couros. As fornalhas, com as bocas vermelhas escancaradas, iam pouco a pouco transmitindo aos manômetros a pressão das 4 caldeiras destinadas ao preparo da graxa amarelinha, acondicionadas em bordale-sas ou em bexigas, que enchiam os olhos pela qualidade. Montanhas de sal grosso, completamente branco, trazidas por barcos que atracavam nos trapiches da Charqueada, completavam o interior do enorme galpão, que se mantinha absolutamente limpo, aguardando a salga da carne e do cou-ro, para formarem as “pilhas de inverno” que, ao fim da safra, beiravam as telhas, com quase 5 metros de altura. Pela tarde, véspera da matança, as tropas que vinham trazidas pelos tropeiros, passavam pela Balança Muni-cipal (imediações do Parque Tênis Clube) e, em grupos de 50 animais eram pesados, fazendo-se ao final a média de peso da tropa. A seguir eram leva-dos para a Charqueada pela Estrada das Tropas (hoje Avenida São Francisco de Paula) para serem encerrados nos mangueirões.30

Narra, então, como era feita a contagem do gado.

Aí, o Capataz da Cancha e mais eu, empoleirados cada um de um lado do portão da mangueira, com algumas pedrinhas no bolso, fazíamos a contagem dos animais componentes da tropa. Os tropeiros, para faci-litar a contagem, faziam alas para a passagem do gado, em pequenos

29 Id., fev./1988, p.1.30 Ibid., fev./1988, p.2.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 41

lotes. Não era fácil a tarefa e ao final da contagem, antes que os tropeiros falassem, nós já tínhamos o resultado que em geral conferia, havendo algu-mas vezes pequenas divergências decorrentes do extravio de alguma rês ou sacrifício de alguns novilhos para a alimentação dos boiadeiros que vinham de fazendas muito distantes. O pequeno brete, uma vez abatida as reses nele encerradas, era imediatamente reabastecido. Os rodeios crioulos nos mostram seguidamente a perícia de um laçador perseguindo a rês em seu cavalo para, num arremesso certo, laçá-la ou derrubá-la ao solo num pialo. é maravilhoso! Não menos maravilhosa, no entanto, é a perícia de um la-çador de brete! Ali estão 20 animais apertados uns contra os outros, chifre a chifre, não restando mais de 5 cm separando as guampas dos animais!31

O laçar do boi é mencionado por todos os viajantes, o que mostra a importância de um bom tiro de laço. Peixoto de Castro explica, muito bem, esse momento.

O laçador preparava, então, sua laçada, quase exatamente da medi-da do afastamento dos chifres do animal que pretendia laçar. Mos-trava o animal e dizia: é aquele mestiço de zebu! O animal estava apertado entre os outros! Será que dava? Distante mais ou menos 4m, o animal estava parado. Aí, então, a laçada voava sem rebolei-ro e caía exatamente sobre os 2 chifres do animal indicado. Uma façanha de craque! Fácil? Eu experimentei e em 50 tiros tive a nota zero... O velho castelhano João Taborda não era mole! Laçado o boi, ele gritava: Ala... Ala... Ala... E o laço enrolado ao guincho (máquina a vapor), puxava o boi até encostar sua cabeça a um moirão colocado horizontalmente, onde era desnucado com o punhal de 2 gumes.32

A zorra, a que se refere Peixoto de Castro, aparece em duas xilogravuras de Danúbio Gon-çalves, numa demonstração de sua importância para o bom funcionamento da Charqueada.

O animal caia sobre uma zorra colocada sobre trilhos e o zorreiro, abrin-do uma portinhola, puxava a zorra e, juntamente com o coleiro e o cam-boneiro, derrubavam o animal e o colocavam ao longo da cancha (local de carneamento), onde os carneadores esperavam para o início dos tra-balhos. O cambaneiro era o operário que passava uma grossa corrente pelos chifres do boi e o coleiro o que puxava pela cola para, num esforço conjunto, derrubar a rês, colocando-a na devida posição.33

Parece que estamos observando as cenas dos zorreiros de Danúbio.

Tal serviço era repetido 20 a 30 vezes seguindo, conforme a capacidade da cancha, distribuindo-se o trabalho entre igual número de carneado-res. Quando o último carneador era servido, os primeiros já haviam car-neado os seus animais e aguardavam novas peças.34

31 Op.cit. fev./1988, p.2.

32 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.7.

33 Id., fev./1988, p.3. 34 Ibid., fev./1988, p.3.

42 José Antonio Mazza Leite

A rapidez, com que os carneadores efetuavam o seu trabalho, era motivo de admiração e era também necessária para o andamento do processo, como bem salienta Antenor Peixoto de Castro.

O local onde haviam carneado já estava completamente limpo. Por ali já haviam passado, devidamente montados em petiços, os carre-gadores de ossadas e buchadas, que, com ganchos fixados aos ar-reios, faziam o serviço, levando a buchada para o monturo e a ossa-da para a graxeira para a elaboração da graxa, colocada, como disse, em bordalesas e bexigas. Também haviam colaborado com o carne-ador 2 matambreiros que, com um instrumento especial, soltavam o matambre, parte mais difícil de ser trabalhada com a faca.35

O trabalho de faca exigia um conhecimento especial, muita habilidade e traquejo.

O trabalho do carneador era dos mais importantes na matança. Ao re-ceber o boi ele o sangrava e todo o sangue era aparado dentro de uma espécie de forma de lata, colocada sob o pescoço do animal e posterior-mente levado a tonéis, para depois de coagulado e seco, ser misturado com farinha de ossos para fabricação de adubo (guano). Ao final do tra-balho do carneador, sobrava na cancha apenas o couro da rês, já que o aguateiro fazia a limpeza do local. Vinha, então, o “capatazes da can-cha” que examinava o couro. Qualquer furo em local importante que o desvalorizava, era motivo para o carneador não receber a ficha corres-pondente ao seu trabalho. Durante a matança o carneador recebia uma média de 25 fichas, que valiam, cada uma “um mil e quinhentos réis”. Este serviço, assim como o dos carneadores salgadores, eram os mais bem pagos. A carne tirada pelos carneadores era levada para os char-queadores, em números de três ou quatro, que faziam o seu corte em mantas e outros pedaços que compunham propriamente o “charque”, como produto final. Colocada a carne nos varais em setor contíguo à cancha, para resfriamento12 , era ela, pouco tempo depois devidamente pesada, para se conhecer a média de carne da tropa, sendo lançada após no tanque da salga. Ali dois homens, munidos de paus com uma rodela numa extremidade, mergulhavam a carne durante algum tempo até que ela estivesse completamente salgada.36

O tanque de salga é uma das xilogravuras de Danúbio, em que há vários pares de homens, e não só dois.

Feito esse trabalho, retiravam a carne do tanque e a depositavam a sua borda, para que os salgadores efetuassem o seu trabalho. Os salgadores, em pequeno número, cobriam de sal grosso uma área de mais ou menos 8x5 m e ali iam depositando, devidamente aberta, a carne retirada do tanque. Coberta a área com carne, espalhavam nova camada de sal, agora sobre a carne e, alternadamente, iam co-locando carne e sal até que o charque de toda a tropa ali estivesse

35 Op.cit., fev./1988, p.3.

36 O resfriamento foi motivo de desenho mas não de xilogravura de Danúbio. 13 Loc. cit., fev./1988, p.4.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 43

depositado. Colocavam, após o término, uma espécie de rede de cordas sobre a pilha, para separá-la da próxima tropa que para ali viria. As anotações feitas: 1ª tropa, fulano; 2ª tropa, sicrano e assim por diante, até que aquela imensa pilha quase encostava no teto do galpão. Eram pilhas de inverno. Matanças que somente meses de-pois seriam transformadas em charque e colocadas no mercado.37

Sobre essas pilhas, Antenor relembra sua beleza: “Altas e brancas como monta-nhas de neve” (testemunho oral).

Outras matanças, por interesse dos proprietários das tropas, eram rapidamente tratadas para consumo. Sobre o preparo do charque falaremos oportunamente. Estávamos, ainda, em plena “cancha”. A ocorrência de matanças de grande número de reses, obrigava os tra-balhadores a um regime de esforço fora do comum, pois muitas delas, iniciadas à primeira hora da manhã, prolongavam-se até pela tardinha, reiniciando os trabalhos novamente pela madrugada. Nesse contínuo emendar de matanças, os operários andavam quase dormindo pelos cantos. Nessas ocasiões, o meu pai, para acordar o pessoal, manda-va soltar na cancha um animal que não fosse muito brabo. O bicho, mediante um descuido propositado, passava pelo buraco da zorra e enfrentava todo mundo que estava na cancha. Corre pra cá, foge pra lá, esconde aqui, esconde acolá, todo mundo acordava.38

Essa forma de acordar o pessoal, certamente será muito mal compreendida por quem não conhece os trabalhadores das mangueiras, que unem coragem e habilidade a um perigo calculado, vivendo num ambiente de camaradagem que a todos contagia.

Aí entrava em cena o Bernardino Gritão, um preto da zona do Areal, meio surdo, que puxando a faca da cintura com a mão esquerda, segurava o rabo do animal com a direita, e com dois rápidos movi-mentos da faca desgarronava o dito cujo, que ficava se arrastando pela cancha. Sua morte acontecia logo após.3916

Conforme narrativa de Peixoto de Castro, abater o animal dessa forma, era retor-nar ao passado, quando, usando as lanças de meia lua na ponta de uma taquara leve, o “desgarretamento” cortava o tendão do bovino, que, logo a seguir, caia, sangrado mortalmente. Esse trabalho era, geralmente, feito por um escravo.

Dreys descreveu a cena com riqueza de detalhes, que depois foi pintada por De-bret, e narrada por Peixoto de Castro noutro contexto.

Acontecia, às vezes, que o Bernardino não estava por perto e o ani-mal percorria toda a cancha ameaçando uns e outros e, postava-se, afinal, em um dos cantos do galpão. Aí, então, era acionado o ron-da Baltazar, o seu Balta, que se encaminhava para o animal e cerca

37 Documento produzido por Antenor Peixoto Castro, oferecido à Prof. Heloisa Assumpção Nascimento, fev./1988, p.4.

38 Id., fev./1988, p.5.39 Op.cit., fev./1988, p.5.

44 José Antonio Mazza Leite

de uns 20 metros, levantando o 38 com a mão esquerda, colocava uma bala na testa da vítima que arriava para o chão, sendo carneado ali mesmo, sob grande salva de palmas. Agora sim! Todo o mundo estava acordado e pronto para recomeçar o trabalho! Entrementes, o produto de algumas matanças ia ser preparado para consumo. Orientação do escritório central mandava preparar determinada ma-tança. Aí, então, entrava em ação o “Capataz de Rua”.40

Havia o capataz do interior do galpão e o capataz de rua. Nos estudos de Danúbio, o carrinho de mão aparece várias vezes, mas varais na rua não foram desenhados, o que mos-tra a sua preferência pela figura humana em movimento, mesmo porque seus desenhos, quase em sua totalidade, foram sobre o interior do galpão. Voltando a Antenor:

O competente João Doralino, um preto que tinha em bondade e respei-to, tanto como os seus 120 quilos, botava em forma cerca de 30 operários, cada um com o seu carrinho de mão, para retirar o charque ainda pingando e depositá-lo sobre os varais que ocupavam mais de um hectare. Dia de sol, bonito, as peças iam perdendo a umidade e antes do cair da tarde já estavam novamente no galpão, agora em nova pilha. Durante alguns dias era repetida a operação, até que, completamente seco e mostrando uma gordura dourada, o charque apresentava um aspecto excelente.41

Peixoto de Castro mostra, orgulhoso, a vivência que seu pai tinha nessa ativida-de, evitando que a umidade pelotense estragasse o resultado de trabalho tão árduo.

Em cerca de 10 anos, apenas em duas oportunidades houve corrida para o recolhimento dos varais. A experiência do meu pai sobre o assunto fazia com que mesmo em alguns dias de sol não se fizesse o trabalho, pois, con-forme previsão, o tempo mudava e passava a chover. Pronto o charque, os operários passavam a se ocupar de uma nova tarefa. Os sacos de aniagem eram devidamente carimbados com o nome da firma, o peso, o local de destino e a classificação do produto. O peso era determinado pela média da tropa, acusada por ocasião da matança, e variava entre 80 e 100 quilos. Finalizando o tratamento do charque, ele estava incluído dentro de uma das seguintes classificações: AA – SS – XX – BB – GG e MM. Considerava-se com o AA o charque especial, com uma camada de gordura dourada sobre as mantas, destacando-se dos demais; como SS, o mesmo tipo, com um pouco menos de gordura; como XX o charque um pouco gordo, muito parelho, e, como os anteriores, tipo exportação; a seguir vinham os tipos BB e GG, de pouca gordura e, finalmente o pelancudo MM. Era feito um amarrado com cordas finas e a carne devidamente ensacada. Cosido o saco, estava pronto para embarque. Os principais mercados eram do Nor-te e Nordeste, com Pernambuco e Bahia como as maiores expressões. 42

Comprova-se, assim, o que vários viajantes do século XIX afirmavam: o charque era consumido pelas populações do Norte e do Nordeste.

40 Op.cit., fev./1988, p.5.41 Loc. cit., fev./1988, p.5-6. 42 Op.cit., fev./1988, p.6.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 45

Muitas singularidades acompanhavam as matanças. A firma man-tinha um regular número de pequenas casas onde em geral mora-vam, permanentemente, os operários mais categorizados, como charqueadores, carneadores, rondas e salgadores e o agrupamento chamava-se “quadra”, e um outro conjunto de quartos, para os em-pregados solteiros que se chamava ‘turma’.43

Desde suas primeiras observações sobre as Charqueadas, em 1809, John Luccok falava das inúmeras casinhas próximas umas das outras. Cada Charqueada parecia uma vilazinha.

Ao final da cada matança todos os portões do galpão eram fechados, e à exceção de um, onde eu me postava, sentado a uma mesa, frente a um pequeno bloco. A fila ia se formando e cada empregado, portando um saco branco, ia dizendo: ‘Um valezinho para uma agulha e um par de rins’; o outro falava: Tô lavando uma bexiguinha de graxa e uns miúdos; um terceiro pedia: Só um terneirinho, um coração e uma agulha. E eles, após um exaustivo dia de trabalho, entregavam os vales na porteira e, em casa, iam salgando aqueles pedaços de carne que representavam parte de seu sustento na safra seca. E isso se repetia durante os seis me-ses da safra. E os que não conheceram esse tempo, por certo haverão de perguntar: Será que isso acontecia? Tudo de graça mesmo?44

Esta afirmação de Peixoto de Castro mostra-nos como trabalhador e empresa conviviam antes das leis trabalhistas.

Ao término da safra, o operário poupador abria a sua grande caixa de madeira e lá estavam, devidamente salgadas, algumas arrobas de uma carne muito especial. Outra particularidade era o acerto de contas ao final de safra. Muitos empregados iam retirando pequenos vales nos fins de semana e deixavam o grosso, se é assim que se poderia chamar, para o final. Acertado o saldo credor, portanto um envelope, lá se ia o trabalhador, que passava pela “turma” para apreciar o “jogo do osso”. Sorte e culo, culo e sorte, passavam a ser responsáveis pela felicidade de uns e tristeza de outros. Às vezes, em um único “tiro”, lá se ia o conteúdo do envelope e adeus saldo credor!45

O jogo sempre foi uma característica dos gaúchos da fronteira, podendo ser um passatempo ou uma tragédia para o jogador. Finaliza, então, Peixoto de Castro:

Isso tudo aconteceu no tempo do aeroplano, da “gasolina” para passear no São Gonçalo, no tempo em que se “guiava” um carro, quando o guar-da de trânsito era o “pauzinho”, quando um amigo meu foi atropelado por um dos únicos carros que existiam na cidade e que o apanhou com a alucinada velocidade de 20 quilômetros por hora, quando a gasolina custava “seiscentos réis” o litro e era permitida a “maromba” e quando existia o “golo”, a “córnia”, o “friquique” e o árbitro era o “refe”. Mas

43 Op.cit., fev./1988, p.6.44 Op.cit., fev./1988, p.6.45 Op.cit., fev./1988, p.7.

46 José Antonio Mazza Leite

este foi o início do desenvolvimento de Pelotas, a riqueza dos estabe-lecimentos saladeris, os primeiros agrupamentos na zona do Areal, o Obelisco, a freguesia, a vila e finalmente a cidade. Coisas da vida, não?46

O depoimento que vimos acima, e que esclarece bem uma época passada, é dado por um homem em plena atividade, cujo nome compõe a diretoria de uma das mais prestigiadas associações culturais de Pelotas. O senhor Angenon Peixoto de Cas-tro, que me honrou com sua amizade, foi um intelectual ativo até mais de 90 anos.

Planta baixa da Charqueada, elaborada por Antenor Peixoto de Castro que, de memória, refez o fluxograma da Charqueada do Coronel Pedro Osório (Charqueada São Gonçalo).

Desenho realizado em maio de 2004

46 Op.cit., fev./1988, p.7.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 47

Praia de matança, geralmente de cimento - Charqueada São Gonçalo, 1915local onde os animais eram charqueados

imagem gentilmente cedida por Vera rheinghantz abuchaim

POEMA “XARQUEADA VELHA”

Xarqueada Velha! Que saudade trazes,Daqueles tempos que não voltam mais...

Duma pessoa que eu queria muito,Que Deus levou e eu não verei jamais...

Quando eu chegava, ei-lo que surgia,De qualquer canto, de qualquer lugar...

E acompanhado de seu cão saia,Ao meu encontro para me saudar...

Hoje não tenho mais quem me receba, O velho amigo já não está, partiu,

Foi-se da casa que tanto serviu...

Só vejo o cão que sempre o seguiu, Agora triste, sempre nas pegadas, Do velho dono que dele fugiu...

Antenor Peixoto de CastroDezembro de 1941

48 José Antonio Mazza Leite

as CHarQUEaDas

a primEira DEsCrição DE Uma CHarQUEaDa

As descrições sobre as Charqueadas do século XVIII são extremamente raras e imprecisas. Nesse sentido, temos a “Descripción de la Província del Rio de la Plata (1771), de Francisco Millau (1947, p.56-57), Colección Austral, Buenos Aires, citado por Mario Maestri, em seu livro “O Escravo no Rio Grande do Sul”. Francisco Millau foi um oficial espanhol que esteve no Rio da Prata e anotou minuciosamente o que viu, inclu-sive a situação da Colonia de Sacramento:

Millau, oficial de marinha espanhol que parte para o Prata em no-vembro de 1751, descreve com alguma precisão, o que deveria ser a técnica “saladeril” em meados do século XVIII: As fazendas de Bue-nos Aires não dão o produto correspondente às suas extensões e à multiplicação de seus gados, porque estes, por sua abundância, vendem-se com dificuldade a preço mínimo e é pequena a saca de couro que podia dar a maior utilidade. A principal utilidade que dei-xam as matanças de gado vacum é o couro, a gordura, a banha e a língua, e é de nenhum proveito o mais de suas carnes. Algumas poucas que se quer conservar, convertem-se em charque ou “tasajo” isto é, carne seca ou salgada. Faz-se o charque cortando, primeiro, as carnes em tiras de maior largura e mais finas que se coloca, sobre um grande couro estendido no solo, até preencher todo seu espaço e se joga sobre elas partículas de sal. Dispõe-se assim uma segunda camada que leva a mesma porção de sal e se prossegue deste modo com outras, fazendo uma pilha da altura que se quer e se cobre com outro couro, colocando em cima bastante peso. Mantém-se assim, algumas horas, até que todo a carne vá eliminando toda água e o sal. Estendem-se logo essas tiras, em cordas ou paus, para secar ao sol, se não é forte e se corre vento fresco, e não à sombra e somente ar. Prossegue-se esta atividade por alguns dias, tendo o cuidado de recolhê-las à noite para libertá-las do sereno a fim de preservá-los, enquanto que se pode, da umidade. Antes que sequem e quando se sabe que falta pouco, amontoa-se outra vez em pilhas comprimindo-a com algum peso, para que a gordura que podem ter, se reparta engraxando toda a carne, para que se conserve melhor, assim fei-to, põe-se a secar como antes. Beneficiando deste modo o charque guarda-se fazendo deles alguns rolos a maneira de terços, para levá-lo a qualquer lugar com mais comodidade. (Millau apud Maestri, 1984, p.48-50). [tradução nossa].

Essa descrição sobre a forma de produção do charque numa Charqueada de Bue-nos Aires, em 1771, parece importante por mostrar que a técnica, posteriormente deta-lhada por viajantes e conhecedores como Louis Couty no século XIX, em pouco mudou, o que vem a ser constatado nos desenhos e xilogravuras de Danúbio Gonçalves, realiza-das em 1953. A imagem, que o autor nos traz, é a mesma que lemos e que transforma a série “Xarqueadas” em uma importante testemunha da história.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 49

As CHarQUEaDas Em pEloTas

DEsCrição Da primEira CHarQUEaDa por joão simõEs lopEs nETo

Foi a existência das Charqueadas e do seu gradual progresso que propiciou o surgimen-to das casas de moradia, a princípio simples e, logo, maiores e mais belas. Juntamente com as moradias vieram o comércio, os hotéis, as hospedarias, as casas de aluguel e as de prostituição. A sociedade organizou-se, apareceram as manufaturas, os artesãos, as primeiras escolas e, em 1832, o primeiro teatro. A população urbana foi tendo suas necessidades supridas com o cresci-mento da cidade. Segundo Simões Lopes Neto:

As Charqueadas, no seu início, eram compostas de galpões de fácil cons-trução, cobertos de palha, e de tendais de madeira bruta para o desse-camento do charque, sendo algumas localizadas sobre o declive do pla-nalto, onde assenta hoje a cidade de Pelotas; mais tarde, obedecendo às exigências da higiene e a facilidade de transportes, convergiram todos para as margens do Arroio Pelotas e Rio São Gonçalo, onde se construí-ram, com a necessária solidez, extensos galpões de alvenaria, casa para trabalhadores, habitações confortáveis e luxuosas para os proprietários e suas famílias, e todos mais acessórios relativos a essa indústria, tais como pedreiras, mangueiras, tendais, graxeiras, etc...47

Simões Lopes Neto, além de escrever Lendas do Sul, Casos do Romualdo e Terra Gaúcha, foi um infatigável cronista pelotense, sempre atuante nos jornais e nos movi-mentos que tinham por finalidade fortalecer o civismo na mocidade local. Com grande felicidade, seu texto oferece um painel do primórdio das Charqueadas e do desenvol-vimento que esse lucrativo negócio gerou. Ele refere-se à Charqueada primitiva como “... apressada construção de galpões cobertos de palha, tendais de madeira bruta para o dessecamento do charque”. A técnica de charquear em quase nada mudou, desde o século XVIII até as mais produtivas Charqueadas do século XIX. Lógico que foram sendo introduzidos os avanços da época.

Os charqueadores possuíam tino para seus negócios e, já na segunda metade do século XIX, eram usados os tanques de vapor, passando, no século XX, para eletricidade. Porém, as descrições serão, com algumas variações, as mesmas.

Desde seus primórdios, a região de Pelotas fazia parte do município de Rio Gran-de e assim manteve-se quando foi elevada à situação de Freguesia de São Francisco de Paula, em 1812, mais precisamente a 12 de outubro, documento assinado pelo Vigário Felício Joaquim da Costa Pereira.

Durante a ocupação espanhola, em 1763, muitos dos habitantes de Rio Grande refugiaram-se na região do Estreito, além de São José do Norte. Dali começou a Guerra da Reconquista, pois José Marcelino de Figueiredo, o Sepúlveda, compreendeu a situa-ção e logo tratou de auxiliar os que resistiam aos espanhóis. Parte desses portugueses, porém, refugiaram-se no Rincão das Pelotas.

Pela segunda metade do século XVIII, o país em que o município de Pelotas se veio a talhar, era ainda uma solidão coberta de matas que desciam serros

47 Sobre a Charqueada de José Pinto Martins, de Simões Lopes Neto – Dados sobre as Charqueadas de Pelotas (história e estatísticas até 1903). Pacote nº 2 – Arquivo e Museus. Sala da Lâmpada. Arquivo Histórico do RS. Parte desse documento é o histórico das Charqueadas pelotenses apresentado na “Revista do 1º Centenário de Pelotas”.

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e colinas por encostas abaixo, ameaçando invadir as planícies, por onde cordões cerrados acompanhavam o curso dos arroios e em restingas e capões se disseminavam por várzeas do Fragata e por plainos do São Gonçalo. Já por esses tempos, ousados pioneiros, vindos do presídio de Rio Grande, haviam devassado o distrito pelotense e muitos deles, em situação que escolheram, se deixaram ficar arranchados nela. (Osorio, 1922, p.20).

Esta descrição é da gente que veio da Colônia de Sacramento. Em seu livro sobre Hipólito José da Costa, “Um Observador Econômico na América”, Paulo Xavier relata a chegada da família Furtado de Mesquita:

O Rincão das Pelotas foi doado pela Coroa Portuguesa ao coronel Thomaz Luiz Osorio, pelo seu desempenho na Guerra Guaranítica. O Coronel dos Dragões teve, porém, a desdita de entregar sem re-sistência o forte de Santa Teresa, deixando o caminho livre para os espanhóis avançarem sobre Rio Grande, em 1763. Finda a guerra, entre as duas coroas, portugueses que habitavam a Colônia do San-tíssimo Sacramento, que foi arrasada por Pedro de Ceballos, foram levados prisioneiros para Buenos Aires. O padre Pedro de Mesqui-ta, que fora pároco em Colônia do Sacramento e, certamente, era o mais culto entre os refugiados, conseguiu que Ceballos concordasse em mandá-los para a colônia portuguesa de Rio Grande de São Pe-dro. (Xavier, p.127).

Assim, os refugiados dessa guerra chegavam exaustos a Rio Grande para come-çar uma nova vida. O padre Pedro de Mesquita era formado em Cânones, por Coimbra, e sabia da importância da cultura, pois foi com ela que convenceu Ceballos, governador de Buenos Aires, a cumprir sua palavra, permitindo o retorno dos refugiados para Rio Grande.

Para que o povoado de São Francisco de Paula fosse elevado à categoria de Freguesia, em 1812 o padre Felício contou com o apoio de seu irmão José Saturnino, ministro na Corte. Essa resolução dividia ao meio o município de Rio Grande como re-presentação do governo português. Em nível internacional, o mais famoso dos irmãos, Hipólito José da Costa, foi para Coimbra, formou-se em Leis Canônicas e depois seguiu em missão aos Estados Unidos. Lá estudou o cultivo do linho cânhamo e do algodão, mas, sobretudo, interessou-se pelo modelo político da nova República. Foi ele quem, depois de ser preso pela Inquisição Portuguesa, fugiu para a Inglaterra, tornando-se redator do Correio Brasiliensis, jornal que influenciou, decisivamente, o movimento para a Independência do Brasil. Assim, Pelotas teve, nos seus primórdios, vários filhos ilustres com formação em Coimbra. Hipólito José da Costa é reverenciado através de um monumento de pedra, mandado erguer pela maçonaria de Pelotas, além de ser o nome da Biblioteca do Capão do Leão, local onde estavam as terras da família. Sua estátua, de corpo inteiro, encontra-se em uma das bases do Monumento do Ipiranga, em São Paulo, ao lado de José Bonifácio de Andrada e Silva, Rodrigues Ledo (jornalista) e Padre Feijó (Regente).

Esses antigos povoadores da região, mesmo antes de 1780, produziam charque para sua alimentação, mas de maneira artesanal e com ambições limitadas. Foi quando,

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 51

por volta de 1780, veio para a região o português José Pinto Martins que já trabalhava com carne seca em Aracati, então capital do Ceará, local vitimado por terrível seca que fustigava a região há vários anos. Os Pinto Martins, proprietários de terras no Nordeste brasileiro, constituiam uma família abastada e influente. Sabendo das ricas pastagens do Sul e da abundância de gado, José Pinto Martins aqui chegou, iniciando sua Char-queada junto ao arroio Pelotas. Com a experiência adquirida no Ceará e conhecedor da vasta costa brasileira e suas capitais litorâneas, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro e a grande quantidade de escravos que ali viviam, compreendeu que um negócio de grande envergadura poderia ser iniciado, se fosse organizado e tivesse mercados ga-rantidos e sólidos. Começa, então, a fase industrial das Charqueadas, mostrando-se tão promissora que, em 1830, pouco mais de 50 anos após a de Pinto Martins (1780), havia de 30 a 35 Charqueadas atuando na região.

as ConsEQUÊnCias Da rEvolUção FarroUpilHa para as CHarQUEaDas DE pEloTas

Pelotas é uma cidade situada numa grande planície. Sua posição geográfica a co-locava entre a capital da Província e o porto de Rio Grande, cobiçado pelas duas facções que se empenhavam na luta. Fácil é supor que, num estado de guerra, a cidade ficasse praticamente indefensável.

Os combates foram mais frequentes e violentos nos primeiros anos e Pelotas foi palco de alguns, como o da rendição do jovem oficial Marques de Souza futuro Conde de Porto Alegre ao General Netto. Este último, após vários dias de combate, ameaçou mandar pelos ares a atual “Casa da Banha”, sobrado que se localiza na esquina da Pra-ça Coronel Pedro Osório com a rua Félix da Cunha, restaurada pelo arquiteto Ricardo Ramos.

Face a tal ameaça, grande parte da população mudou-se para a cidade de Rio Grande, que não chegou a ser tomada pelos farroupilhas.

Dois dos principais líderes civis revolucionários, tinham seus negócios em Pelo-tas. Eram eles José Gonçalves Chaves e Domingos José de Almeida. Este último, foi um dos cérebros mais ativos da Revolução Farroupilha, sendo, praticamente, o mentor in-telectual do movimento. Ambos eram abastados charqueadores que arriscaram suas vi-das e patrimônios em defesa de seus ideais e dos propósitos farroupilhas. Já é tempo de se estudar esse episódio de nossa história com mais cautela, sem preconceitos ou ufanismos, conforme palavras de Riopardense de Macedo, autor do livro Diário de um Conflito.

Em 1836, no começo da Revolução, Jean Batiste Roux veio com sua esposa e filha de Buenos Aires para Porto Alegre. A Revolução não intimidou o valente comerciante francês.

No ano de 1846, um ano após a assinatura do tratado de paz, Roux elegeu Pelo-tas para estabelecer-se, iniciando-se como charqueador. Em sociedade com o senhor Eugênio Salgues, francês de origem mas procedente de Buenos Aires, instalou uma nova Charqueada, adotando o sistema platino. Embora possuísse escravos, incluiu, nos serviços, mão de obra assalariada, o que lhe garantia maior produção.

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a EXpansão Das CHarQUEaDas apÓs a rEvolUção FarroUpilHa

No ano seguinte à “Paz de Ponche Verde”, em 1846, o Imperador Pedro II fez sua primeira longa viagem e esta foi, exatamente, à Província que, por quase dez anos, o desafiou. O Império não desmontou a máquina militar do Sul, pois contava com ela para as guerras que se seguiriam contra os vizinhos do Prata.

O jovem imperador queria marcar sua presença, acalmar os ânimos e trazer a tran-quilidade à família rio-grandense. Fez-se acompanhar por Caxias e ficou hospedado no Solar do Barão de Jaguarí, onde hoje funciona o Conservatório de Música. Foi D. Pedro II quem colocou a pedra fundamental onde deveria ser erguida a nova igreja matriz, em frente à Praça Coronel Pedro Osório, mas que nunca chegou a ser construída, pois a Catedral de São Francisco de Paula sofreu reformas. Pelotas é uma das poucas cidades cuja Catedral não ocupa lugar junto à praça principal e à Prefeitura, como ocorre em grande parte das cidades brasileiras, conforme cita Magalhães, em Opulência e Cultura, 1993.

Pelo que foi visto no capítulo anterior, as estâncias organizaram-se no momento em que as Charqueadas mostraram como o gado poderia ser um negócio rentável e seguro.

As estâncias organizadas e com maior rendimento, proporcionaram a seus pro-prietários residir na cidade. Os hábitos, em geral, foram se transformando. O acúmulo de capitais foi benéfico, porque o comércio cresceu e as Charqueadas continuaram au-mentando seus lucros, agora bem mais, com o gado chegando do norte da Província.

A proibição do tráfico negreiro, em 1851, afetou a economia do charque, obri-gando os charqueadores a procurar novas opções para as Charqueadas. Começa uma acentuada diversificação do trabalho, como o estabelecimento de barracas para aproveitamento dos subprodutos das Charqueadas, as fábricas de sabão, velas e outros mais. Surgem excelentes artesãos, que trabalham o couro, metais e ma-deira. Esse acúmulo de capital intensificou as operações bancárias e as operações de crédito.

Após as guerras de Manuel de Rosas e Manuel Oribe, houve paz na Cisplatina. Sempre que isso acontecia, o mercado de charque pelotense e gaúcho sofria as conse-quências.

Foi justamente no ano de 1861 que o charque e o couro, produtos que, até en-tão, contribuíam com metade da exportação gaúcha, passaram a representar 74,9% dessas exportações.

Em 1868, o Rio Grande de São Pedro produziu a maior safra de charque de sua história, abatendo 470 mil cabeças de gado (Magalhães, 1981, p.120).

Na década de 1860, as plantações de café do Rio de Janeiro foram fator de cresci-mento para o charque pelotense, que alimentava os escravos daquela Província.

Segundo Mario Osorio Magalhães, a implantação do capitalismo no Brasil e o apogeu de Pelotas, podem ter como data base o ano de 1860. No seu livro “Opulência e Cultura,” o historiador considera que o auge do crescimento sociocultural da cidade, foram as décadas de 1860 até 1890.

O ano de 1890 assinala o início do declínio da indústria saladeril em Pelotas.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 53

as CHarQUEaDas Em baGé

Bagé, no final do século XIX, mais precisamente em 1884, já possuía sua estrada de ferro ligando-a ao porto de Rio Grande. Essa estrada foi construída rapidamente, gra-ças à influência de Gaspar Silveira Martins, ilustre filho do município. Com isso, os gran-des rebanhos da fronteira, a matéria prima que abastecia as Charqueadas de Pelotas, começaram a ser abatidos no próprio município, pois estava garantido o seu transporte à cidade litorânea de Rio Grande e ao seu porto.

Sobre a falta de comunicação e estradas no Rio Grande do Sul, o General Osório, Marquês do Herval, veterano da campanha do Paraguai e Ministro da Guerra em 1873, afirmava:

Em 1826 os exércitos argentino e oriental invadiram esta província de Bagé; achava-se o exército brasileiro em Santana do Livramento, onde tinha seus depósitos, porém, por falta de estradas não tinha condições de reunir elementos para entrar em combate e, em 1865, o exército paraguaio invadiu a província por São Borja. O imperador do Brasil, cooperando pessoalmente para a defesa do território, en-controu-se em Uruguaiana, em frente à divisão paraguaia, ao mando de um exército com falta de tudo e impossibilitado de mudar a linha de operação se preciso fosse. Isso porque [...] o único meio de trans-porte são as carretas. (Herval apud Memória Cidadã, 2002, p. 27).

Continua o Marquês do Herval, prevendo o que poderia acontecer frente a um ini-migo que já nos desafiara:

Hoje o perigo aumenta, porque os argentinos tratam de trazer suas estradas à nossa fronteira e acresceram seu poder com massas de infantes que podem engajar através da forte migração europeia de Buenos Aires. (Herval apud Memória Cidadã, 2002, p. 27).

Certamente, com toda essa argumentação favorável, não foi difícil que Silveira Martins, grande tribuno, com imenso prestígio no Senado do Império, tratasse, como prioridade máxima, a estrada que ligava sua terra natal (Bagé) a Rio Grande. A estrada foi inaugurada em 1884.

A primeira Charqueada de Bagé começou a funcionar em 1891. A partir daí, até o começo do século XX, as Charqueadas bageenses tiveram uma discreta atuação. No entanto, a maior e mais conhecida Charqueada de Bagé só foi instalada em 1897, por um charqueador que então vivia em Pelotas, o português

Antonio Nunes Ribeiro de Magalhães, futuro Visconde de Magalhães. é in-teressante notar que, cem anos após a chegada de José Pinto Martins ao Rincão das Pelotas, outro português percebeu claramente que o eixo econômico havia se deslocado para Bagé. Saindo de Pelotas, com seu tino industrial, comercial e social, fundou a Charqueada Santa Tereza que, situada aproximadamente a 5 km e meio de Bagé, às margens do Arroio Quebrachinho, favorecia o aproveitamento do leito da estrada de ferro. Ribeiro de Magalhães possuía 200 empregados quando come-çou a trabalhar, o que revela ter sido proprietário de uma grande Charqueada, que, aliás, foi inaugurada em 21 de fevereiro de 1897. Como era uma estação da estrada de ferro, o seu proprietário, em dada ocasião, fez correr por ali um trem expresso, conduzindo convidados e duas bandas de música. Nesse evento, estiveram presen-

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tes mais de 300 pessoas, um dos maiores acontecimentos sociais da cidade (cf. Boucinha, 1993, p.37).

São Sebastião de Bagé foi fundada em 11 de julho de 1811, caracterizando-se pelas suas grandes propriedades e pela exploração da criação de gado. A povoação, que teve seu início com os acampamentos dos exércitos, sob o comando de Dom Diogo de Souza, foi di-vidida em sesmarias enquanto acontecia a ocupação militar. Cada soldado que tomou parte na conquista do forte de Santa Tecla, em 1801, recebeu uma sesmaria como prêmio.

Foi com a fundação da primeira Charqueada que o gado, que até então era levado para as Charqueadas de Pelotas e Montevidéu, passou a ser aproveitado no município. (Boucinha, 1993, p.1).

Assim, o ano de 1891 é um marco histórico para as Charqueadas de Bagé. A Com-panhia Industrial Bageense foi fundada em 10 de julho de 1891.

Poucos anos após sua fundação, irrompeu a Revolução Federalista no Rio Gran-de do Sul, em local bem próximo de Bagé.

Para Alvarino da Fontoura Marques, é surpreendente que as atividades saladeris te-nham continuado em pleno período revolucionário, mas foi exatamente o que aconteceu.

os abaTEs DE GaDo DUranTE o pErÍoDo rEvolUCionÁrio

As narrações sobre os combates da Revolução de 1893, levam-nos a acreditar que houve uma total paralisação de todas as atividades da cidade durante esse perío-do. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Segundo Cláudio Boucinha, entre 1891 e 1894, existiu mais de uma Charqueada no município de Bagé. O que há de admirável nisso, é que a segunda foi fundada em plena Revolução Federalista, demostrando o arrojo de seu fundador.

De acordo com José Carlos Teixeira Giorgis (Correio do Sul, Bagé, 24 de junho de 1984), Antônio Nunes Ribeiro de Magalhães, em 1894, mesmo com os atropelos federalistas, montou uma Charqueada na Chácara do Cotovelo. Mais tarde, adquiriu um campo próximo à estrada de ferro, pertencente a Alexandre José Collares48. Nesse local, foi construída a Charqueada Santa Tereza, cujo nome homenageia a sua esposa, Dona Tereza Pimentel Magalhães. Tal atitude, mostra a iniciativa e o destemor de que era dotado o futuro Visconde Ribeiro de Magalhães.

Dois anos após a fundação da Companhia Industrial Bageense, a primeira Charqueada de Bagé, irrompeu a Revolução Federalista (1893-95). A cidade de Bagé e seus arredores tornaram-se palco de combates, e a Charqueada Industrial Bageense foi ocupada pelas tropas.

Em novembro de 1893, a força federalista que cercava a cidade, acampou na Charqueada Industrial. Outro fator prejudicial as ati-vidades foi o cerco de Bagé, que cortou o tráfego de trens até Rio Grande, desativados a partir de 24 de novembro de 1893 até 4 de fevereiro de 1894. (Reis apud Boucinha, 1993, p. 24).

25 O capital decorrente desta venda, possibilitou ao engenheiro agrônomo Bernardo Collares mudar-se para Pelotas e, aqui, iniciar o Hand Book Collares

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 55

Narra Cláudio Antunes Boucinha que, durante a Revolução Federalista os abates na Charqueada Industrial continuaram, embora intermitentes, bem como o trem que, por vezes, era utilizado na perseguição dos revoltosos. Somente durante o cerco, as atividades tiveram que parar (Boucinha, 1993, p.123).

Qual seria a origem do gado abatido nos anos da revolução? Sabe-se que grande parte do gado era proveniente da República Oriental do Uruguai, pois muitos estanciei-ros brasileiros dispunham de propriedades nos dois países.

Citando alguns deles, vemos que o general Antônio de Souza Netto, morto em 1866, foi grande fazendeiro no Uruguai, Estado Oriental (Reis, 1989, p.79). Em levanta-mento efetuado em 1850, pelo presidente da Província (Marques, 1992, p.57-58), no Departamento de Cerro Largo, Uruguai, 453 propriedades locais eram de brasileiros e totalizavam 574 léguas de área. Esse Departamento de Cerro Largo funciona ao lado da fronteira de Bagé. Em sua obra “História de la Ganaderia en el Uruguay - 1574-1971”, Marques (1992, p.58), afirmava que, em 1887, 43,9% do gado bovino do Uruguai per-tencia a brasileiros. O coronel Caetano Gonçalves da Silva (bisavô de Danúbio Gonçal-ves), que faleceu em 1885, nasceu em Cerro Largo, (Reis, 1989, p.60), na mesma região em que seu pai, Bento Gonçalves da Silva, comprou estâncias, por volta de 1811 (Leit-mann, 1979, p.26).

Esses dois exemplos, juntamente aos dados estatísticos, servem para mostrar o aspecto econômico do município, estreitamente ligado ao vizinho Uruguai. O próprio Visconde Ribeiro de Magalhães, mesmo sendo português, foi proprietário da estância Carpintaria, com 16.000 hectares, localizada entre os dois países, sendo que 7.912 hec-tares ficavam no Departamento de Cerro Largo (Boucinha, 1993, p.27).

Certamente, esse contexto econômico da região foi o fator que permitiu, durante a Revolução Federalista, a continuidade dos abates em Bagé.

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Retrato de Bento Gonçalves da Silva, segundo fotografia de Bento Gonçalves da Silva Neto, pai de Danúbio Gonçalves, autor deste retrato (2003)

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 57

CHarQUEaDa são DominGos, loCal Dos Esboços DE DanÚbio GonçalvEs

A Charqueada São Domingos tem especial importância para minha dissertação. Foi nela que Danúbio Gonçalves, no verão de 1953, passou três meses desenhando e fazendo estudos que o levaram a série das xilogravuras “Xarqueadas”.

Dois anos após, portanto em 1955, a Charqueada foi adaptada para funcionar como um frigorífico, adequando-se aos novos tempos que se anunciavam desde o co-meço do século XX, quando a carne frigorificada substituiu a carne salgada.

A Charqueada São Domingos foi fundada em agosto de 1902, situada além do passo real do Piraizinho, de propriedade de “diversos cava-lheiros. (Boucinha, 1993, p. 113).

Já no início de suas atividades, empregava 250 homens em tempos de safra. Cláudio Antunes Boucinha, citando o jornal bageense:

O “Dever” noticiava em 17 de março de 1903, nº 393, que hoje (por-tanto, 17 de março de 1903) às 8:00 horas da manhã, deveria seguir para a nova Charqueada São Domingos, um trem especial, conduzindo convidados que irão assistir à inauguração do novo estabelecimento in-dustrial. Deveriam ser abatidas 200 reses procedentes da estância do Sr. Tenente-Coronel Theodoro Saibro Jardim. (Boucinha, 1993, p. 113).

Segundo esse mesmo jornal, noticiado no dia seguinte, quarta-feira, 18 de mar-ço de 1903, o trem que partiu às 8:30min levava dois vagões lotados por convidados. A Charqueada São Domingos era um estabelecimento de grandes proporções, maior e mais aperfeiçoado do que os já existentes e, pelas informações do jornal “O Dever”, possuía galpões de grande altura para carnear e salgar reses, encanamento de água para lavagem de detritos e os seguintes “maquinismos”: dois digestores de graxa com capacidade para 80 reses cada um e outros dois com capacidade para 50 reses, um refinador de 3,50m de altura, dois resfriadores, dois depósitos de água, uma “embixiga-dora”, uma caldeira multitubular “Root”, “inexplosível”, com força de 75 “cavalos”.

No ato da inauguração, falaram o Dr. Armando Azambuja (Juiz da Comarca), Ar-mando Loureiro de Souza, Antonio Machado Bruno e Roque Cirone. Agradecendo pela Charqueada São Domingos, fez-se ouvir o Dr. Domingos P.F. Mascarenhas.

Segundo o Guia Ilustrado Comercial, Industrial e Profissional do Município de Bagé (1937), a Charqueada São Domingos constava como propriedade do Banco da Pro-víncia e era arrendada pela Cooperativa de Carnes e Derivados. Anteriormente, havia sido arrendada por João Suñe & Cia.

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Fisionomias de trabalhadores da Charqueada

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 59

Um olHar DE arTE soCial sobrE os TrabalHaDorEs Do Campo À CiDaDE

movimEnTos prECUrsorEs: o rEalismo EUropEU

O realismo teve como precursor na França, na década de 1840, Gustave Cour-bet (1819-1877), cujos objetivos propugnavam que a pintura rompesse com as re-gras excessivamente rígidas da Academia, ditadas por Jean Louis David e que fosse pintado o que realmente se vê. Na Inglaterra, esse movimento teve como objetivo o retorno à natureza e à pintura dos grandes temas, dos romances e tragédias clás-sicas, como as obras de Shakespeare. Era conhecido como “pré-rafaelistas”. Tanto as obras de Courbet como as dos ingleses “pré-rafaelistas”, são exemplos do realis-mo que procurava mostrar “as coisas como elas são”, sem apelar para a mitologia greco-romana. O realismo procura mostrar a vida como ela é, assumindo, diante dela, uma atitude objetiva e acreditando que a fantasia e a imaginação especulativa desviam a atenção do homem. Embora as propostas de Courbet, em 1849, sejam diferentes daquela abraçada, na mesma época, pelos pré-rafaelistas, ambas são consideradas realistas.

Durante o século XX, muitos artistas que se consideravam realistas, não elabo-raram um discurso doutrinário, como fez Gustavo Courbet. A maioria considerava-se contra as tendências progressistas ou vanguardistas.

O conceito de vanguarda foi popularizado pelo crítico Julius Méier-Graefe, em aproximadamente 1910, face às ondas sucessivas de “ismos” que se alastraram pelas artes na Europa desde o início do século XX. Esse conceito corre o risco de distorcer qualquer atributo artístico na luta entre “vanguarda” e “ultrapassados”, com suas raízes remontando ao século XIX (Maplas, 2000, p.7). Hoje, o realismo engloba os mais variados estilos, até os mais desmoralizados pintores da Alemanha Nazista ou da Rússia Stalinista, onde o “realismo socialista” tornou-se apologista do “aparelho estatal”.

O olhar da arte

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Muitas dúvidas surgiram quando o realismo foi discutido no final do século XX. Será a arte pop realista? Por um lado, ela adere ao trivial, do cotidiano ao des-cartável, ao entulho, que é oposto ao pregado pela noção courbetiana de heroís-mo. Este aspecto corresponde ao ideal de que a arte pode abranger os temas mais humildes e comuns. Aliás, a maioria dos heróis da pop-arte pertencia às classes trabalhadoras, como os de Courbet.

Durante o século XX, os períodos em que o realismo teve maior prestígio foram, especialmente, após o cataclismo da Primeira Guerra Mundial e depois da Segunda Guerra. Na América Latina, nesse período, os mexicanos Diego Riveira, David Siqueiros e José Clemente Orozco fazem grandes murais e, segundo a tradição asteca, mesclam a arte indígena com a europeia, numa arte em que a política confunde-se com o protesto de uma raça que foi subjugada pelo invasor europeu, pois este trazia técnicas de guerra muito mais eficientes, como armaduras e cavalos.

Os muralistas mexicanos, porém, não se detiveram apenas na denúncia social, cantaram também a beleza de sua terra: as frutas, árvores e pássaros, que coloriam a vida dos astecas e dos atuais mexicanos. Essa pintura, impregnada de mestiçagem, apaixonou os pintores brasileiros.

Analisaremos, com mais detalhes, o movimento realista mexicano no próximo item. Mas, voltando a Courbet, ele já estava convencido de que seria preciso mudar, ur-gentemente, as regras e prescrições da Academia e dos ateliês de pintura que haviam se tornado mais rigorosas, a partir de Jean-Louis David em favor do neoclassicismo, após a Revolução Francesa. Pretendia, Courbet, que: “as regras deveriam ser provisórias e não princípios irrevogáveis” (Malpa, 2000, p.11). Bem ao contrário do que pregava a dita-dura da Academia do século XIX, cujo objetivo histórico da obra, sua moral, o aspecto sentimental e histórico da pintura determinavam seu aspecto visual.

Gustave Coubert.Os quebradores de pedra, 1850

Fonte: Malpas, 2000

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 61

“Os quebradores de pedra”, de 1850, são um exemplo e Courbet disse: “Não in-ventei nada. Todos os dias, ao fazer minhas caminhadas, via as pessoas miseráveis deste quadro” (Coubert apud Malpas, 2000, p.14). Para ele, as regras deveriam ser flexíveis e não cânones irrevogáveis.

Esse foi o primeiro sinal de pluralismo na pintura. A técnica e o estilo apropriados, tornaram-se mais importantes do que a hierarquia acadêmica do tema.

Courbet, em seu “Enterro em Ornans”, chocou a crítica conservadora do Salão de 1851 e desconcertou até mesmo os liberais, dizendo tratar-se de um bando de aldeões desajeitados, que não eram caricaturas mas sim pessoas.

Na Inglaterra, além dos pré-rafaelistas que usavam a literatura e a história como temas para suas pinturas, outras propostas apareceram. O pintor Luke Fildes, em 1874, expôs na Royal Academy a tela “Candidatos à admissão numa enfermaria improvisada”. Essa tela possui toda a característica de posicionamento moral dos romances de Charles Dickens, no modo de apresentar o deplorável estado dos pobres sob a neve da cidade, encostados na parede à espera de atendimento.

luke Fildes.Candidatos à admissão numa

enfermaria improvisada de 1874Fonte: Malpas, 2000

Esse mesmo espírito de denúncia observa-se na Inglaterra, durante a Primeira Guerra. Após 1916, quando o otimismo da vitória rápida se dissipou, o pintor Paul Nash escreveu:

Não sou mais um artista interessado e curioso, sou um mensageiro que irá trazer a palavra dos homens que estão lutando aos que desejam eternizar a guerra. Débil, frágil, desarticulada será, minha mensagem, mas ela trará uma amarga verdade. (apud Malpas, 2000, p.15).

Uma obra impressionante é do pintor inglês John Singer Sargent, de 1918, “Enve-nenados por gás”. Fica evidente a ironia do sol radiante de verão nas últimas semanas da guerra, frente à fileira de soldados ingleses, cegos, cobertos de ferimentos e lama que marcham em seus uniformes cáquis, enquanto outro grupo de soldados do exército inglês, caídos, denunciam a estupidez da guerra.

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John Singer Sargent.Envenenados pelo gás, 1918

Fonte: Malpas, 2000

o rEalismo Dos mUralisTas E GravUrisTas mEXiCanos

As civilizações pré-colombianas, no México, tiveram um notável desenvolvi-mento. No Museu Antropológico do México, as diferentes culturas que vicejaram nos diversos rincões do país são mostradas de forma didática. Os diferentes povos desfilam ante nossos olhos. Nesse museu, é possível encontrar-se a reconstituição dos murais pintados pelos povos que habitavam o México. São rostos de índios de perfil, homens e mulheres pré-hispânicos e deuses, como a serpente emplumada. Os murais astecas foram acrescidos, no século XX, com obras dos maiores expoen-tes da pintura mexicana.

Esse atavismo cultural foi aproveitado e explorado pelos muralistas me-xicanos. Assim, há uma mescla entre cultura pré-colombiana com elementos do momento político e também da história do México. São enormes painéis murais, multicoloridos, em que se amalgamam índios, mestiços e brancos, em luta para a formação do México.

Estive, por duas vezes, em visita à cidade do México. Lá, perambulando pelas ruas, frequentando igrejas e museus, apaixonei-me pelo povo, pela história e cultura mexicanas. Então, o que escrevo é com conhecimento de causa.

Diego Rivera, José Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros foram os principais muralistas, cujas obras embelezam a Cidade do México. Há muito de denúncia contra o dominador espanhol, contra o capitalismo e o militarismo.

As antigas culturas Maia e Asteca são enaltecidas nas pinturas murais, onde mos-tra o antagonismo de um mundo de harmonia e beleza destruído pelo poder das armas do invasor.Os sacrifícios humanos dos astecas, são minimizados frente à violência da conquista espanhola.

Segundo James Maplas “os muralistas mexicanos constituem um dos fenômenos mais intrigantes da pintura do século XX” (2000, p.45).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 63

lEopolDo mEnDEZ

A personalidade que será abordada a seguir grande gravador, conhecedor pro-fundo da arte de seu país, México, sofrendo as influências da arte pré-colombiana e da europeia, pôde transmitir seus ensinamentos e experiência a jovens artistas brasileiros, com quem se encontrou em Paris.

O gravurista Leopoldo Mendez nasceu em 30 de junho de 1902 na Cidade do México. Era filho de uma família pobre. Seu pai, artesão, faleceu quando Mendez ainda era menino que, por isso, foi criado por um tio, ferroviário, que vivia em General Anaya-la. Desde criança mostrou afeição pelo desenho e, aos 16 anos, ingressou na Academia de San Carlos.

Mendez foi, de certa forma, autodidata. Sua cultura enriqueceu-se com leituras, com observações das obras dos grandes mestres e com o uso do seu fino espírito critico, mesmo quando recebeu as primeiras aulas na Academia de Pintura na Escola de Pintura ao Ar Livre de Coyoacan.

Manuel Maples Arce (1970, p.8), narra em seu livro “Leopoldo Mendez”, que ele e Mendez eram muito amigos e, como era repórter da revista zig-zag, quando lhe pedi-ram para fazer uma reportagem sobre a vida noturna da Cidade do México, levou junto Leopoldo. Nos inúmeros cabarés, mais ou menos pitorescos, admirou-se da agilidade, fluidez e segurança com que Mendez desenhava as “damas da noite” e o ambiente noturno. Os desenhos impressionaram favoravelmente o diretor de zig-zag, que deu grande destaque às ilustrações do novo artista.

Comparando as duas escolas, pode-se dizer que a Academia de San Carlos era mais formal e clássica, enquanto que a de Coyoacan ficava ao ar livre, instalada em um amplo parque cheio de luz, que estimulava as tendências modernas, o encanto da pai-sagem e a captação sensual da natureza. Essa foi a preferida de Mendez.

Quando Maples Arce ocupou a Secretaria do Governo de Veracruz, empre-endeu uma obra de renovação editorial com a publicação de livros e revistas de cunho erudito, porém voltadas ao público em geral. Foi então que convidou Leo-poldo para trabalhar com ele. Ambos resolveram imprimir a revista Horizonte, que teve aceitação com abrangência internacional. Nesse trabalho, Ramon Alva De La Canal e Leopoldo Mendez puseram seu esforço, sua aplicação e seu entusiasmo. Ilustrações, gravuras e vinhetas, além de desenhos, retratos e pinturas realçavam o caráter revolucionário daquele movimento editorial. Para eles, viver era trabalhar, criar, revelar uma nova visão do mundo.

Em 1928, Mendez colaborou com a revista Norte e Ruta, de Veracruz, fez vários cartazes com tendência de denúncia social. Ao regressar à Capital, firmou resolução de trabalhar como gravador, porém sem abandonar seu amor à pintura, para a qual pos-suía um grande talento.

Sua participação no muralismo foi marcada nos Talleres Gráficos da Nação, com a apresentação de um soldado agonizante. Em 1932, Mendez foi nomeado Chefe da seção de Desenho do Departamento de Belas Artes.

época igualmente importante para a vida de Mendez foi o período em que tra-balhou na revista El Sembrador, editada pela Secretaria de Educação Pública e desti-nada aos camponeses. A tradição visual das antigas civilizações do México reflete-se em algumas de suas obras, com uma concepção justa, adaptada às necessidades de um estilo moderno.

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Presidente Juarez por leopoldo MendezFonte: arce, 1970

Na introdução do álbum bilíngue (espanhol e inglês) El Taller de Gráfica Popular – T.G.P. (doze anos de obras artísticas), Hannes Meyer alude ao “problema da herança artística mexicana e seu aproveitamento pelos artistas do T.G.P”. Mais do que suas formas, manifes-ta-se a relação desta arte gráfica com o passado pré-corteziano na sua forma de ser. Sem o espírito coletivo daquelas remotas culturas indígenas, esta arte branca e negra não seria possível entre os mexicanos de hoje, nem, tampouco, existiria o T.G.P. Mendez não utilizou somente temas nacionais como objeto de representação, também usou assuntos interna-cionais, dos quais soube tirar elementos óticos de igual força expressiva.

Com a chegada ao poder do general Cárdenas, intensificaram-se as reivindica-ções da Revolução Mexicana. Ele obrigou a respeitarem as instituições nacionais, o país recuperou a riqueza petrolífera, nasceram estilos renovadores por todas as partes e criou-se um ambiente propício às críticas, aos vícios e debilidades da vida nacional. Sur-giram, então, novas formas de exaltação da mesma. Mendez sentiu essa onda de vibra-ção e, com imaginação realista e excelentes faculdades artísticas, expôs as injustiças de que era vítima o povo mexicano, suas dores e suas possibilidades de regeneração. Com a pena, o lápis e o buril, expressou admiravelmente as questões que se discutiam. Gra-vuras em madeira, linóleo ou litografia, levaram suas convicções a toda parte.

Quando sentiu que a Liga de Escritores e Artistas Revolucionários se distancia-va de seus propósitos por falta de ação, Leopoldo Mendez, Pablo O’Higgines, Angel Brocho e Luis Arenal que, com seus talentos, haviam dado à gravura uma enorme força de expressão, decidiram continuar a tarefa de aplicar os recursos plásticos às lutas sociais e satisfazer as aspirações do povo mexicano, fundando o Taller de Gráfica Popular.

A contribuição de Mendez à vida e ao desenvolvimento do Taller, foi capital. Em todas as atividades, sua atuação foi preponderante e responsável, seja através dos desenhos e gravuras, indicações e críticas pertinentes sobre as obras de seus

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 65

companheiros, suas relações com os sindicatos operários ou com os editores e as galerias de arte.

Mendez expõe seus desenhos e gravuras ao mundo como ele o vê, acompanha-o uma ideia e um sentimento implícito de protesto, para que a impressão estimule as mais profundas reservas morais e se sintam as orientações que devem reger a nova sociedade.

Desde 1959, trabalhou para o Fundo Editorial de Arte Plástica Mexicana e, com a colaboração de Manuel Bravo e Raphael Carrillo, editou alguns dos livros mais im-portantes sobre o tema: “La pintura mural de la Revolución Mexicana, Los maestros europeus em la galeria de San Carlos de México, José Guadalupe Posada, ilustrador da vida mexicana” (Arce, 1970, p.25-26). Também preparou o volume “Flor y canto en el arte pre-hispánica del México”.

Seu apaixonado buril revela os defeitos de uma classe social, as mesqui-nharias de suas vidas, a falsidade de suas concepções artísticas, seus desejos de exploração. Mendez possui uma capacidade de síntese só comparável a José Clemente Orosco.

A experiência de gravador, desdenhada por muito tempo como artesanato, foi justamente valorizada pelos fundadores do muralismo mexicano. José Guadalupe Posa-da influiu até um certo ponto nos muralistas e o mesmo aconteceu com Mendez, uma vez que muitas de suas gravuras emanam da mesma realidade popular. Os gostos e a cultura de Mendez, porém, o levaram mais adiante. Familiarizou-se com alguns ilustra-dores do século XIX, especialmente com Gustave Doré; conheceu as lâminas de Goya e de Rembrandt, interessava-se pelas litografias de Daumier e também pelas xilografias de Frans, Maserrel, káte kollwitz, com quem apresenta, às vezes, uma afinidade de con-cepção e estilo. Leopoldo Mendez disse de si mesmo:

Envolvo minha obra com a luta social. Porém como minha principal arma na luta social é essa minha obra, tomo-a muito a sério e faço tudo para enobrecê-la. (Mendez apud Arce, 1970, p. 34).

Isto o distingue de muitos pintores, gravadores e escritores do nosso tempo, que são sinceros em suas ideologias, porém incapazes de transmitir essa energia espiritual criadora.

Um EnConTro FUnDamEnTal

A presença de Mendez em Paris e seu encontro com Carlos Scliar foi de funda-mental importância para a arte brasileira e, sobretudo, para o Rio Grande do Sul. Carlos Scliar, em seu relato de como e porque encontrou Leopoldo Mendez, diz o seguinte:

Em meados de 1947 fui ao 1º Festival da Juventude na Tchecoeslová-quia depois retornei a Paris. Vi, revi, circulei o que pude, e creio que a França tornou-se essencial para minha formação e insubstituível para o que sou até hoje. Conheci, em 1949, o gravador mexicano Leopoldo Mendez. Participávamos do Congresso Mundial pela Paz, em Paris. Eu já conhecia suas obras e o considero um dos grandes gravadores contemporâneos. Ficamos amigos, e quando ele retor-nou ao México remeteu-me uma belíssima coleção de originais com obras de todos os artistas que formavam o Taller de Grafía Popular. Leopoldo Mendez era presidente dessa oficina de gravura junto com

66 José Antonio Mazza Leite

Hannes Meyer, um dos diretores da Bauhaus, da República de Wei-ner na Alemanha pré-Hitler. (1994, p.11).

Assim, a influência de Leopoldo Mendez, a partir dessa época, foi uma constante nos grupos de gravuras do Brasil.

Realizou-se, em São Paulo, de 15 de Abril a 29 de Junho de 2003, a ex-posição: Arte e Sociedade – Uma Relação Polêmica, tendo como local o Itaú Cultural. Houve o lançamento da 3ª edição do livro de Aracy Amaral: Arte para quê? – a preocupação social na arte brasileira 1930 – 1970. Viajei, então, àquela cidade para visitar a exposição e, durante três dias, percorri os três andares do prédio onde se localizavam as dependências desse magnífico Centro Cultural do Banco Itaú. A exposição abrangia, praticamente, todos os espaços do local. No subsolo, a arte dos anos 30 a 40; no primeiro andar o magnífico quadro “Café” de Portinari e obras dos anos 45 até 70. No último andar, ou sobreloja, a arte social dos anos 70 a 2000. A exposição era pródiga em cartazes explicativos, alguns da própria Aracy Amaral, mas também frases e textos de Pablo Picasso e Ferreira Goulart, entre outros. Colocadas em meio a Vasco Prado (Soldado Morto) e Glauco Rodrigues, estavam três xilogravuras de Danúbio, sendo elas os “Matambreiros, zorreiros e Espera”. Enquanto eu os apreciava, chegaram ao local alunos de um colégio, quando um dos meninos disse: “é a primeira vez que vejo matar um boi com uma pá”. Não resisti e expliquei-lhe o que estava vendo. O animal já estava morto e os matambreiros retiravam dele o matambre, valendo-se de uma pá.

Constatei, na oportunidade, que Danúbio não tem nenhuma xilogravura de vio-lência explícita. Vasco Prado tem o Soldado Morto, Scliar, as Marchas Operárias e Glau-co, Comícios com protestos.

Certamente é do temperamento de Danúbio essa denúncia bem mais sutil da exploração corrosiva, como acontecia com os Mineiros de Butiá, cujos pulmões ficavam afetados pelo pó de carvão, e em “Xarqueadas”, onde a falta de proteção ao trabalha-dor, os pés descalços e a pobreza das roupas é, por si só, um libelo contra a exploração do homem pelo homem.

Em São Paulo, pude ter uma visão muito mais abrangente da arte social e o quan-to ela foi difundida em outros estados do Brasil, mas vi, também, que foi no Rio Grande do Sul que ela teve seu berço e seu maior desenvolvimento. Alguns painéis dessa expo-sição foram adaptados para esse texto.

A arte e a vida sempre estiveram ligadas, pois os artistas sempre são tocados pelos acontecimentos que os rodeiam, mesmo que, às vezes, isso não seja sentido mui-to claramente em suas obras. Porém, guerras, injustiças sociais e violência urbana são fatores que influenciam o artista, tal como afligem a sociedade.

No decorrer do século XX e início do novo milênio, quase todos os artistas, em suas trajetórias, foram sensibilizados pelas circunstâncias do momento, especialmente fatos políticos, delas brotando motivações e inspirações. é um enfoque sempre polêmi-co entre arte-vida e da arte-pela-arte, em sentido restrito.

Mais vibrante, a partir de 1930 até o final da Guerra Fria, a preocupação dos ar-tistas com os problemas sociais vem se alterando nos últimos vinte anos. Após a queda do Muro de Berlim, as novas gerações olham mais atentamente à exclusão social, à violência urbana, sobretudo em um país pleno de contraste como o Brasil.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 67

No período que se seguiu à Revolução de 1930 houve um interesse renovado dos artistas brasileiros com os acontecimentos mundiais. Um dos primeiros a se expressar sobre essa crescente preocupação foi Di Cavalcanti que, em seu texto sobre a exposição de Tarsila do Amaral, em 1933, coloca:

[...] o artista influi sobre sua época com a condição de só se impreg-nar nas profundas correntes da humanidade”. Continua: “não fica-remos com os que se suicidam pela tolerância, com os cúmplices silenciosos e os altruístas solitários”.26

Nessa década e na seguinte, o espírito dos muralistas mexicanos seria represen-tado, no Brasil, por Cândido Portinari com os painéis para o novo edifício do Ministério da Educação no Rio de Janeiro e a menção honrosa que lhe foi conferida pelo quadro “Café” (1934) na Exposição do Instituto Cornegie, de Pittsburgh. Portinari pertenceu aos quadros do partido comunista e, em 1947, candidatou-se ao Senado por São Paulo.

Tarsila do Amaral esteve em visita a Moscou em 1931 e retornou impressionada com o “paraíso” comunista. O gravurista Livio Abramo, comunista militante, elaborou gravuras de cunho político sobre a guerra civil espanhola.

Entre os anos 1930 e 1940, artistas de origem modesta uniram-se para trabalhar e expor. Não eram militantes, mas sua origem operária os fazia abordar os temas so-ciais. Eles formaram o Núcleo Bernardelli e a Família Artista Paulista.

Após a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1946, com o Brasil voltando à demo-cracia, novas ideias, até então proibidas pela ditadura de Vargas, começaram a circular. Formaram-se os partidos políticos e em 1947 Cândido Portinari concorreu ao Senado. Scliar, em 1949, conheceu, em Paris, Leopoldo Mendez e após seu retorno ao Brasil, liderou os Clubes de Gravura em Bagé, Porto Alegre e, mais tarde, Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, todos de caráter político militante. Esses clubes foram ativos até por volta de 1956, com obras de realismo social que se contrapõem ao expressionismo visível em jovens artistas emergentes, como Marcelo Grassmann, Octavio Araújo e Ge-raldo de Barros.

Através dos Clubes, os associados recebiam uma gravura por mês. A venda des-sas gravuras dava o suporte econômico para a publicação da revista Horizonte, que le-vou o mesmo nome da mexicana.

Nesse período, abrem-se novos museus no país: MASP e MAM em São Paulo e MAM do Rio de Janeiro, completando-se com a implantação da 1ª Bienal Internacional de São Paulo no MAM em 1951. Nessa terceira edição quero lembrar que Danúbio fez dois belíssimos painéis para a cidade de Porto Alegre. A chegada e o desenvolvimento da colônia judaica no Rio Grande do Sul e a Epopeia Farroupilha, representam um traço forte da obra de Danúbio, localizados na zona central de Porto Alegre.

o GrUpo DE baGé: Um Dos primEiros ClUbEs DE GravUra

O grupo de Bagé era também conhecido como “Novos de Bagé”27, denominação dada pelo crítico Clóvis Assumpção, muito amigo de Carlos Scliar, um dos grandes talen-tos com influência na formação desses novos artistas.

Carlos Scliar, natural de Santa Maria, já era um artista renomado e veterano da

26 Frases retiradas dos painéis referentes a cada artista, na exposição Itaú Cultural.27 Danúbio escreveu a Ennio sua versão sobre o clube de Bagé (p. 158).

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FEB, quando foi convidado por seu grande amigo Clóvis Assumpção para fazer palestras em Bagé. Clóvis, na época, escrevia artigos sobre arte na imprensa local.

O pintor José Moraes foi quem ganhou, em 1946, o Prêmio Viagem ao País. Como tinha um irmão servindo ao exército em Bagé, decidiu morar numa chácara per-to da cidade, onde montou seu atelier. Ali reuniam-se outros pintores bageenses, ain-da jovens e sem experiência, mas com muita vontade de aprender. Este foi o caso de Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti. José Moraes foi aluno de Quirino Campofiorito, assistente de Portinari na Pampulha e era extremamente consciente da participação social do artista.

Segundo Aracy Amaral, Glauco Rodrigues ressalta quanto o “trabalho em equipe” foi importante, a partir do momento em que se uniram como um grupo homogêneo.

Os jovens bageenses que aprenderam com José Moraes foram Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti, pois Danúbio Villamil Gonçalves, embora bageense da gema, ao unir-se ao grupo já trazia uma considerável bagagem artística. Como diz Glauco em sua entrevista: “por ter estudado no Rio, era, por isso, mais sabido”. Esse “mais sabido” era uma forma carinhosa de referir-se ao amigo que, nessa época, já contava muitos anos de estudos na capital do país. Danúbio nunca perdeu os vínculos com Bagé, pois, mes-mo morando no Rio de Janeiro, vinha sempre à sua cidade natal, em férias que passava na estância do pai. Quando Danúbio, em 1948, retornou a Bagé, José Moraes já não estava mais lá, porém seus conceitos foram assimilados pelos alunos, Glauco e Glênio. José Moraes, dentro do que lhe permitia seu prêmio de Viagem ao País, seguiu para Pelotas e de lá para o Rio de Janeiro.

Em Carlos Reverbel - uma lembrança, na sequencia deste livro, ele destaca a im-portância de Danúbio para o Grupo de Bagé. Ele foi decisivo no destino do Grupo, pois Danúbio trazia uma formação de 10 anos de estudos no Rio de Janeiro, aulas e aperfei-çoamentos no atelier de Cândido Portinari.

O escritor baiano Pedro Wayne, autor do romance “Xarqueadas”, casou-se em Bagé e ali constituiu família. Era um intelectual que trocava cartas com Jorge Amado, Oswaldo de Andrade, Mario de Andrade e valorizava a Semana de Arte Moderna de 1922 de São Paulo. Dessa forma, pode influir no seu meio e no seu tempo. Infelizmen-te, a morte de sua filha, aos 15 anos, foi um terrível baque para o escritor que faleceu prematuramente. Ernesto Wayne, seu filho, seguiu o caminho do pai, pois foi escritor, poeta e professor de literatura. Também foi intimo dos artistas e intelectuais que for-mariam o Grupo de Bagé. A casa de Pedro Wayne foi o acolhedor centro dos novos pintores, que Clóvis Assumpção chamou de “Novos de Bagé” e acrescenta: “Moldou-se o grupo com grande influência e estímulo de Pedro Wayne.”

Em 1948, Danúbio instalou-se na cidade e montou um atelier com a participação de Glauco e Clovis Chagas, além do jovem Denny Bonorino e o dentista Júlio Meirelles. Bianchetti, embora trabalhando em Porto Alegre, mantinha-se em permanente contato com o grupo.

Graças a um árduo trabalho e muito entusiasmo, em outubro de 1948, realiza-ram uma mostra de caráter inovador no Auditório do Correio do Povo, em Porto Alegre, sob o patrocínio da revista “Quichote”. Carlos Reverbel fez referências a essa exposição na revista do Globo de 20 de novembro de 1948. Nela, o cronista escreve: “[...] esses rapazes parece que vivem com o corpo em Bagé e com o espírito em Paris”.

O grupo dos Novos de Bagé, segundo Carlos Scarinci, durou até 1949, quando Danúbio Gonçalves partiu para a Europa em viagem e ali permaneceu um ano e dois meses. Ao retornar do Velho Continente, encontrou em Bagé um clima absolutamente

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 69

favorável às novas ideias que trazia. Disse ele: “foi uma coisa incrível”, o quanto as ideias políticas e sobre arte se assemelhavam entre ele, que havia viajado, e os outros que ficaram no Rio Grande do Sul. Porém, é bom lembrar, que tanto Glênio como Glauco estudaram com José Moraes, que já enfatizava: “percebi que a arte não tem sentido quando se isola do povo. Arte é comunhão, é vida”.

Após a Segunda Guerra Mundial, quase todos os intelectuais tornaram-se comu-nistas ou demonstravam fortes tendências a “gauche”.

Danúbio Gonçalves já havia retornado da Europa em 1950. Carlos Scliar e Vasco Prado voltaram, também, no mesmo ano. Juntos, iniciaram o grande empreendimento que envolveria os amigos Glauco e Glênio. Eles criaram o Clube de Gravura de Porto Alegre e, logo após, o de Bagé. Os moldes, como vimos, eram do TGP. A realidade bra-sileira, porém, diferia, pois aqui não houve uma revolução como a mexicana. Por isso, o enfoque foi o homem do campo, nossa realidade nas Charqueadas ou os operários das minas de carvão, como os das xilogravuras de Danúbio.

Esses artistas tinham como objetivo colocar sua arte a serviço de um ideário po-lítico definido e voltado a nossa realidade regional: foi o realismo regionalista. A ideia era, inicialmente, fundar uma revista, no caso a Horizonte. O pensamento político fun-dava-se na ideologia marxista, cuja maior preocupação era a Campanha da Paz contra a ameaça da bomba atômica e a politização de todo um público nessa direção. Assim, o Clube de Gravura, ao vender o resultado de seu trabalho, poderia financiar a revista Horizonte; esse era o objetivo. Em entrevista, Glauco Rodrigues disse a Aracy Amaral:

Organizamos o primeiro Clube de Gravura que reuniu logo cinquenta sócios. O Clube distribui uma gravura por mês aos seus associados que pagam uma mensalidade de cinquenta cruzeiros. Depois fizemos uma escola de arte para crianças que já conta com cem alunos”. O poeta Ernesto Wayne se tornou o 4o componente do nosso grupo. Na ga-leria em 1951 foram organizadas sete exposições desde o começo do ano e é enorme o número de frequentadores: “todo o mundo vai lá. Desde os trabalhadores e os soldados até a gente de sociedade”. (2003, p.182-183).

Conforme Carlos Scliar, a revista Horizonte já se sustentava a partir do seu 4o aniversário, graças aos resultados obtidos pelo Clube de Gravura. Nessa época, era produzida uma gravura por mês, para um público que pouco tinha acesso a obras de arte na gravura.

Defendendo os excelentes resultados obtidos pelo Clube, Scliar de-clara: “Nos cinco anos de funcionamento do Clube de Gravura de Porto Alegre chegamos a resultados surpreendentes”. Foi realizada, no Parque Farroupilha, uma exposição, em setembro de 1955, cujo título era: “Por uma arte nacional”, com intensa participação do pú-blico presente. Durante uns cinco anos houve um trabalho intenso, mas em 1955, Scliar e outros artistas como Glauco, Glênio e Danú-bio, considerando que a experiência do Clube de Gravura tinha já dado os seus frutos, reiniciaram um “trabalho individual, cada um fazendo um balanço daquilo que para nós tinha tido um significado”. (Scliar, depoimento cit., item 28).

70 José Antonio Mazza Leite

Aracy Amaral acrescenta:

Na verdade, por volta de 1954 já surgia uma saturação da temática social e regional. Ao mesmo tempo, o grupo tendia a se dispersar. Bianchetti passaria a viver em Brasília; Glauco e Scliar, no Rio de Ja-neiro e somente Vasco Prado e Danúbio, em Porto Alegre. Danúbio visitou a União Soviética em 1953 com uma caravana de intelectuais e artistas brasileiros e participou da exposição do Clube de Gravura em Moscou. Ao final desse período, Carlos Scliar considera que a melhor série de estampas do Clube de Gravura foi a da Xarqueadas, 1953, de Danúbio Gonçalves. A Revista Horizonte, que movimentou toda uma época foi porta voz eficaz do pensamento de artistas e intelectuais em defesa de suas posições como a Campanha pela Paz ou de enfrentamento com a Bienal de São Paulo partidária da arte abstrata. (Scliar apud Amaral, 2003, p.185).

Em entrevista, na época, disse Danúbio:

A ideia dos clubes (de gravadores) nos foi trazida pelo pintor Scliar, que em Paris, teve contato com Leopoldo Mendez, o mestre mexi-cano, e começou ali mesmo a fazer gravuras juntamente com outros jovens com entusiasmo: seria um campo novo de trabalho que ofe-recia material de fácil aquisição (linóleo) e de reprodução também fácil. O trabalho coletivo ajuda a acentuar as características pessoais de cada artista. Nos clubes, através das discussões frequentes, fir-mamos uma orientação estética voltada com realismo para os temas da vida do povo. Dentro desse pensamento comum é que cada um de nós busca a sua voz própria a ser enriquecida continuadamente. (Entrevista).

Relata como desenhou as Charqueadas.

Outra marca do nosso trabalho é o caminho para o realismo. Tratan-do novos temas com o ponto de vista a que me referi, procuramos nos libertar do formalismo. E, muitas vezes, vamos buscar os nossos temas nas próprias fontes. Um exemplo: durante dois anos passei vá-rios meses pelas Charqueadas do Sul, observando o trabalho daque-les homens. Foi esta a base sobre a qual gravei uma série de peças tratando o tema do árduo trabalho das Charqueadas. (Entrevista).

Pablo Picasso, em 24 de março de 1945, fez uma declaração em Paris para Les Lettres Françaises, v. 48. Nela, o célebre pintor refere-se ao que deve ser um artista após os horrores da Segunda Guerra e a nova reconstrução da Europa. Seu vibrante espírito espanhol o levou a dizer:

O que você pensa que seja um artista? Um imbecil que só tem olhos se é pintor, só tem ouvidos se é músico, ou uma lira em todos os can-tos do coração, se for poeta, ou mesmo, se for um boxeador, somen-te músculos? Bem ao contrário, ele é ao mesmo tempo um ser políti-co, constantemente atento diante dos dilacerantes, ardentes e doces

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 71

acontecimentos mundiais moldando-se com todos esses elementos segundo sua imagem. Como é possível desinteressar-se dos outros homens e, em virtude de qual indiferença de torre de marfim, se desvia de uma vida com que lhes brindam tão copiosamente? Não, a pintura não é feita para decorar apartamentos. é um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo.

DiFUsão Dos ClUbEs DE GravUra no brasil E sEU lEGaDo

Como vimos, um grupo de artistas gaúchos, liderados por Carlos Scliar, fun-dou o Clube de Gravura de Porto Alegre em 1950. Influenciados pelas gravuras de käthe kollwitz – que expôs em São Paulo em 1933 – pelas gravuras chinesas que eram consideradas uma “arma de combate”, pelas revistas culturais da esquerda e influenciados, sobretudo, pelo Taller de Gráfica Popular, o TGP, os artistas de-fendiam o realismo socialista, porém adaptado às condições de seu rincão natal. Esse foi o realismo social, com cunho regional, que tivemos entre nós e que não tardou a se disseminar nacionalmente. Os integrantes dos Clubes de Gravura, a partir de 1956, começaram a dispersar-se, pois consideravam cumprida sua missão. Nesse mesmo ano, a União Soviética invadiu a Hungria, o que causou desencanto em grande parte dos artistas militantes.

A contribuição desses Clubes, no consenso dos artistas foi, segundo Marilene Burlet Pieta, o seguinte:

• Superação dos problemas técnicos do autodidatismo pela auto-disciplina profissional. Os quatro artistas sempre fizeram frente ao aprendizado próprio do academismo do século XIX, imposto pela Missão Artística Francesa, vigente até os anos de 1940 no Rio Gran-de do Sul. • Profissionalização pela entrega à causa maior da arte e do artista. • Busca do aprendizado com mestres maduros e já plenos pela bra-silidade como Campofiorito, Portinari, Segall e a observação de de-mais mestres especialmente da modernidade brasileira dos anos 30 e modernidade internacional. • Ambição ao muralismo como arte urbana popular pela visualização pública e contemplação coletiva. • Tentativa de comunicação pelo contexto social mais amplo, capaz de tornar a arte uma linguagem mais acessível. • Consciência do papel social da arte e do artista. • Presença da Escola de Paris, do Expressionismo alemão e Neo-Realismo italiano, proporcionado pelos contatos europeus nas artes visuais e cinema. • Oposição, na época, à invasão internacional irrestrita (como o Abs-tracionismo) para a criação de uma arte brasileira, voltada à temá-tica local. • Observação dos específicos culturais pelo desenho de observação. • Troca artística na presença com o Prata, especialmente Montevi-déu. Destaque para o Estado do Rio Grande do Sul na área gráfica, como um dos maiores sítios de gravura brasileira. (Pietá, 1996, p.12).

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DanÚbio GonçalvEs: sUa TrajETÓria

o mEnino DE baGé

Em seu livro “Do conteúdo ao pós-vanguarda,” Danúbio conta a sua infância, es-creve que perdeu a mãe ao dois anos e meio de idade, e diz também: “que enchia a casa com desenhos, alguns dos quais foram guardados por uma babá analfabeta” (Gonçal-ves, 1995, p.13).

Os desenhos guardados pela babá são uma “rara relíquia” para Danúbio. “São có-pias do grande J. Carlos e de outros caricaturistas que desfilavam em nossas excelentes revistas de humor como A Careta, Fon-Fon, Tico-Tico, o Almanaque Anual do Tico-Tico, etc. Carlitos, o Gordo e o Magro, o Reizinho, ídolos dos meus oito anos” (Gonçalves, 1995, p.13). Comenta ainda: “Alvorada precoce para sátira e deboche pela comédia humana”. O artista muito cedo mostrou seu gosto pelo desenho e pela cópia dos caricaturistas da sua época. Conta também, no livro:

[...] suas sestas com a bela tia que tinha gosto por desenhar e foi aluna de um fotógrafo que a introduziu na técnica do “esfuminho”. Ela copiava as revistas francesas, fazia desenhos anatômicos e se en-cantava com os trabalhos criativos do sobrinho Danúbio, cuja ima-ginação ela não podia alcançar. Ela frustrava-se por não conseguir libertar-se da cópia [...] (Gonçalves, 1995, p.13).

Outra tia, casada com um estancieiro e atraída por saibros da sanga, moldava figuras de qualidade surpreendente.

Também, uma de minhas filhas tem facilidade para o desenho e a cor, produzindo algo expressivo. Mas não se dedicou ao estudo, para desenvolver sua potencialidade artística. (Gonçalves, 1995, p.15).

Vê-se, com isso, que o artista acredita que há pessoas com aptidão e facilidade para as artes. é uma sensibilidade especial, porém se ela não é trabalhada, termina por se estiolar.

Danúbio conta como foram os seus primeiros anos de vida: com idas à estân-cia do pai, acompanhando campereadas e rodeios. Enumera os animais, cavalos, bois, porcos, galinhas, todo esse mundo animal com ruídos e odores, que povoa-vam a imaginação do menino. Curtindo a horizontal imensidão esmeralda das co-xilhas, o grito dos quero-queros e as carícias da brisa, sentado nas raízes do umbu. Aos sete anos, foi adotado e cuidado por sua irmã mais velha que casou-se e cujo marido foi chamado para o Rio de Janeiro. O casal levou consigo o menino que esta-va, na ocasião,com dez anos. Nessa viagem, no navio Araranguá, apaixonou-se pelo mar que será seu companheiro constante no Rio e depois em Torres, onde o artista tem um apartamento.

Danúbio, no Rio de Janeiro, estudou no Colégio Anglo-Americano onde cursou parte do primário, transferindo-se, depois, para o Colégio Santo Inácio. Ali conheceu Ennio Marquez Ferreira, seu amigo até hoje. Colaborou para o jornal da escola com ilustrações e vinhetas feitas com tinta china. Havia um pagamento quase simbólico para essa colaboração, porém precioso para o bolso do menino. Conta que foi um desportis-ta dedicado, gostava de natação e futebol. Aos domingos, depois da missa, ia passear

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 73

vestindo o uniforme da escola: farda branca, sapatos de verniz e quepe. As fardas do tipo militar, na época, eram usadas nas escolas como uniformes.

Da CariCaTUra aos morros CarioCas

Com a Revolução de 1930, o Brasil varreu a República Velha que se mantinha graças às alianças de governadores e oligarquias que vinham, há muito, mandando no País. Uma vez instalados na Capital Federal, os gaúchos levaram um ar higienizador à política, cuja incorruptibilidade era comparada, na época, ao frio vento minuano que limpa os horizontes e as coxilhas.

Logo, Getúlio deu início a um governo aberto, de coalizões, e Assis Brasil torna-se Ministro da Agricultura. Muitos, porém, queriam definir uma nova Constituição e reivindicavam eleições. Os paulistas revoltaram-se em 1932 e fizeram a sua Revolução Constitucionalista. Vencido o movimento, Getúlio alegou que a Nação não estava ma-dura para eleições e, novamente, foram convocadas novas assembleias para discutir a Constituinte.

Assim, com a vitória da Revolução de 1930, aqueles que dela participaram pas-saram a ocupar cargos de mando na Nação. Capanema, que ficou com o Ministério da Educação, tinha como auxiliar de gabinete o escritor Carlos Drummond de Andrade. Rodrigo de Melo Franco, preocupado com os destinos do patrimônio brasileiro, termi-naria por fundar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Para isso, houve a participação de Mário de Andrade, que havia trabalhado na Secretaria de Cultura de São Paulo e que, com a nova situação política, achava-se afastado. Mário de Andrade escreveu o que podemos chamar de bases para dar conteúdo às leis que, em 1937, foram aprovadas para legalizar e fundar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN.

Se nos reportarmos a 1922, veremos que em São Paulo realizava-se um evento que é colocado como basilar para a cultura brasileira do século XX, a Semana de Arte Moderna.

No livro, “Elite intelectual e debate político nos anos 30” – uma bibliografia co-mentada da Revolução de 1930 (coordenado por Lúcia Lippi Oliveira, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1980, p.33), lê-se sobre o ambiente intelectual dos anos 20 e 30, referindo-se a 1922:

[...] nele eclodem quatro acontecimentos simbólicos que contêm, em embrião, a mutação da sociedade brasileira entre as duas guer-ras mundiais. A Semana de Arte Moderna, em fevereiro, desenca-deia a revolução estética; uma nova etapa da política da classe ope-rária se delineia, em março, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro; a criação do Centro D. Vital, ligado à revista Ordem, de orientação católica, prenuncia a renovação espiritual; e finalmente, a primeira etapa da revolução política tenentista irrompe, em julho, com a rebelião na Fortaleza de Copacabana. (Trindade, 1974, p.15).

Em 1935, esses diferentes fatores políticos e sociais integraram-se entre si, for-mando um país com novas ideias e uma nova elite.

Após a vitória da Revolução de 1930, se vivencia uma década crucial para o mun-do: a que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

74 José Antonio Mazza Leite

Em 1935, Danúbio Gonçalves, ainda menino, com aproximadamente 10 anos, chegou com a família da irmã ao Rio de Janeiro. e escreveu em seu livro “Do conteúdo ao pós-vanguarda”:

Aos dez anos fiz uma série de desenhos coloridos, livres, de sim-ples cópia. Três anos depois, no Colégio Santo Inácio (Rio) passei a com ilustrações e vinhetas, em tinta china, para o jornal da escola. Pago modestamente pelos padres. Remunerada glória. (Gonçalves, 1995, p.32).

Esse pequeno texto, agora transcrito, dá uma ideia de que não foi difícil a adap-tação do menino gaúcho aos ares cariocas.

O cunhado de Danúbio era um homem que lia bastante e tinha bom relaciona-mento com intelectuais e jornalistas do Rio de Janeiro. Certamente afeiçoado ao meni-no, e vendo seu grande entusiasmo pelo desenho e pela caricatura, o levou a conhecer o jornal “A Noite”, cujo grande prédio localizava-se na Praça Mauá.

O Rio de Janeiro, como Capital da República, era também o maior centro cultural do País, embora São Paulo, centro econômico por excelência, concorresse com o Rio nesse setor. Danúbio compara “A Noite” à Rede Globo de hoje. Na redação do jornal, conheceu pessoalmente J. Carlos e Mendez, além de outros caricaturistas. Podemos imaginar o espanto, o encanto do menino, que adorava caricatura, ao encontrar-se, frente a frente, com seus ídolos. Lembremos que nos papéis que a babá guardara em Bagé, estão as cópias que ele fazia de J. Carlos.

DanÚbio ainDa aDolEsCEnTE mErGUlHa na vanGUarDa arTÍsTiCa CarioCa

Esse mundo novo tinha tudo a ver com a tendência e vocação de Danúbio.Ali, sob o ar praiano do Rio de Janeiro, o caráter, a sensibilidade, o entusiasmo do

menino pôde desabrochar sem tropeços. Diz então sobre seu trabalho:

Fiz muitas tentativas, escrevendo e ilustrando histórias, inúmeras ve-zes repetidas. Rasgando-as, inconformado com o resultado. Também uma sobre animais na técnica de “lavis” a nankim, elogiada pelo edi-tor Adolfo Hizen, surpreso pelo texto, duvidando “de que tivessem sido escritas por um guri.” Nessa ocasião, no jornal infantil Mirim, de histórias em quadrinhos, foram publicadas onze caricaturas. Anun-ciando-o como o mais jovem caricaturista do País. Consegui prêmio em concurso de caricatura do Presidente Vargas e meu trabalho foi publicado na revista “Vamos Ler”. Algumas das minhas caricaturas das estrelas de Hollywood, também foram editadas na revista “A Cena Muda”, especializada em cinema. (Gonçalves, 1995, p.35).

Sabemos que o sucesso é uma forma segura de fortalecer o ego e o caráter. As-sim, obtendo com o próprio esforço esses prêmios, a simpatia e o respeito dos maiores, a auto-estima e o desejo de se ultrapassar foi aumentando no artista mirim.

Danúbio conta que visitava, periodicamente, o Departamento de Artes do famoso jornal carioca “A Noite”, instalado no alto do prédio da Praça Mauá, em

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 75

que o último andar era ocupado pelo auditório e estúdio da Rádio Nacional. Esse departamento era complemento, em separado, da redação do jornal e reservado aos ilustradores e caricaturistas, autores de belíssimas ilustrações para capas de revistas da empresa editora. Foi então que:

Conheci de perto Almirante, Lamartine Babo, Ari Barroso, Orlando Silva, Pedro Vargas, Carmem Miranda, Emilinha Borba (namorado apaixonado por três anos de uma morena baiana, irmã da canto-ra) e outras celebridades do rádio. Opinavam favoravelmente sobre meus desenhos e caricaturas os ilustradores exclusivos da empresa “A Noite” (Arnaldo Pacheco, Orlando Mattos, Cecil Thiré – pai do ator – Euclides Santos, Jerônimo Ribeiro, Mario Mendez). Fiquei amigo do excelente ilustrador português Jerônimo Ribeiro e aos domingos subíamos o morro para desenhar moradores da favela, naquela épo-ca ambiente pacífico, poético, pitoresco dos barracões de zinco tão decantados no cancioneiro popular. Dos malandros de tamanco, dos jogadores de cartas em plena rua. Das mulatas com lata d’água na cabeça. Muitas vezes comparecemos aos ensaios de roda de samba em plena noite escura. Cercados pelas crianças como lambaris, para serem desenhados. (Gonçalves, 1995, p.35).

Danúbio estava sempre ligado a sua arte, não descansava nem aos domingos. Subia os morros para desenhar, fosse de dia ou à noite Ele e o amigo português Jerôni-mo Ribeiro desenhavam, e tinham sob o seu olhar, além dos modelos vivos, a soberba paisagem carioca. A inspiração era robustecida por um trabalho contínuo, feito, porém, num ambiente auspicioso. Esses mesmos morros podem ter sido palmilhados por De-bret. Danúbio rememora:

O Rio era realmente a cidade maravilhosa. Afamada pela sua hospi-talidade aos forasteiros, humor e descontração. Deslumbrante por sua privilegiada natureza. Lá morei em muitos bairros. Fui muito es-timulado e admirado pelo grande caricaturista cearense Mário Men-dez – de quem tive forte influência – frequentava sua casa. Aparecia seguido, namorando a sobrinha dele. Comecei a me entusiasmar pela pintura moderna. Frequentava o Vermelhinho, café-bar, pre-ferido pelos escritores, atores, artistas plásticos, cantores, etc... Lá se reuniam os marginalizados modernistas, ainda pouco aceitos no país: Djanira, Heitor dos Prazeres, Santa Rosa, Durval Serra, Meira, Silvia Chalreo, Quirino Campofiorito, Ubi Bava, atuantes em artes plásticas. (Gonçalves, 1995, p.36).

Ao rememorar, Danúbio conta que, em 1939, quando tinha 14 anos, a Europa, que recentemente saíra da Guerra Civil Espanhola, via iniciar a Segunda Guerra Mun-dial. O Brasil e sua capital ainda não tinham sido tocados pela avalanche, mas sabe-se que o Rio de Janeiro foi um importante teatro de espionagem. A seu modo, os artistas também eram envolvidos na tragédia. Continua Danúbio:

Participei de algumas coletas e do Salão Nacional. A mais significati-va foi a da Associação Brasileira de Imprensa, com destacados artistas plásticos brasileiros residentes no Rio, em benefício da Cruz Vermelha

76 José Antonio Mazza Leite

em campanha de guerra. O Salão Nacional canalizava artistas de maior destaque nas artes plásticas do país. A princípio acadêmico, depois, se-parando-se foi chamado de moderno. Curioso é que em certa etapa o artista passava pelos dois júris. Ocasião em que me conferiram menção honrosa com retrato feminino pintura a óleo. Muito me impressiona-ram os retratos pintados por Goya e Portinari; mais tarde recebi, me-dalha de prata, condição para concorrer ao Prêmio Viagem ao País, que foi conferido em 1953, com série “Xarqueadas” (xilogravura de topo) remetidas de Bagé, onde foram gravadas. (Gonçalves, 1995, p.36).

Falando de seu aprendizado no Rio de Janeiro, Danúbio diz que foi inesquecível a importante exposição de Lasar Segall. Nela, o Navio dos Emigrantes muito o impressionou. O conteúdo expressionista e o humanismo nostálgico do artista russo, o comoveram forte-mente. Nesse momento, Segall e Portinari já eram consagrados, unanimemente, pela in-telectualidade brasileira, simpatizante da arte moderna. Danúbio admirava a escultura de Bruno Giorgio, nesta época influenciado pelo francês Aristide Maiol.

Vinculado à Sociedade Brasileira de Belas Artes, tinha possibilidade de desenhar modelo vivo por duas horas diárias. Conta então:

Nesta época, conheci a Pancetti, Darel – recém chegados do norte – Silvia Chalreo e Reinaldo Fonseca. Entrei em contato com Roberto Burle Marx. Morava num prédio, no Leme, em frente ao seu ateliê e aparecia com croquis, d’aprés natures, feitos nos bares da Praça Mauá, fascinado pelos notívagos frequentadores. Marinheiros, pros-titutas em espetáculos plástico atrativo. Tomei coragem e compareci ao ateliê de Cândido Portinari, sendo amavelmente recebido. Reunia periodicamente e ouvia sua crítica estimulante. Até que, certo dia, fui convidado por ele a desenhar modelo vivo em ateliê, na parte da manhã, junto com outros artistas. (Gonçalves, 1995, p.38).

Do grupo participavam Iberê Camargo e Athos Bulcão, que ouviam atentamente os conselhos de um dos maiores pintores brasileiros e, ao mesmo tempo, tinham a oportunidade de conceber obras recentes em seu estúdio. Com uma certa veneração, escreve Danúbio:

O mestre pintava, quase sempre, antes de sair, em traje de passeio, nunca se sujando com as tintas. Dizia que o artista plástico deveria estar capacitado para atender qualquer encomenda, até mesmo pin-tar letras, se solicitado. Jamais mostrava seus quadros sem moldura e a colocava à medida em que ia pintando. Mostrava as pinturas no cavalete, no ateliê, com luz apropriada. (Gonçalves, 1995, p.39).

Portinari ficava até tarde conversando com amigos políticos e intelectuais e dor-mia pela manhã, enquanto jovens usavam seu ateliê. Quando já estava de saída, olhava os trabalhos e opinava. Danúbio continua:

[...] anos mais tarde frequentei a Fundação Getúlio Vargas, em Bo-tafogo. Tendo orientação de Anna Levi, Santa Rosa, Axl Von Lesko-shek, Carlos Oswald e outros professores de alto nível. Lembro-me

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 77

dos colegas Faiga Ostrower, Cláudio Correia e Castro – (o autor) e de Anísio Medeiros. Lá fiz minhas primeiras gravuras. Tentativas em xilogravura e metal com Axl Von Leskoshek e Carlos Oswald. Atração que, a partir daí, foi crescente. (Gonçalves, 1995, p.39).

O artista trabalhava, no mínimo, de sete a oito horas por dia, na Escola de Belas Artes, desenhando modelo vivo no ateliê de Cândido Portinari e na Fundação Getúlio Vargas.

Nos bondes, percorria o Rio de Janeiro, treinando compulsivamente e assim pre-parava o seu futuro como artista plástico. A disciplina, junto com o entusiasmo pelo trabalho, faz parte do caráter de Danúbio.

DanÚbio sE iniCia na XiloGravUra

Frederico Morais escreveu, certa vez, sobre uma homenagem prestada na Gale-ria de Arte BANERJ, em março de 1985. O tema era: Ciclo de Exposições sobre Arte no Rio de Janeiro: Axl Leskoschek e seus alunos Brasil - 1940 - 1948.

Os dados que agora serão citados, foram colhidos de um material cedido por Ana Letícia Quadros, gravadora e amiga de Danúbio Gonçalves.

Vivendo no bairro da Urca, Rio de Janeiro, Letícia mostrou-se gentilíssima quan-do a cosultei, disponibilizando rico material sobre a escola de desenho e artes gráficas que se desenvolveu na Fundação Getúlio Vargas, após 1945.

Tal foi a eficiência da citada Fundação em apagar qualquer vestígio dessa época que, não fosse o material cedido por Ana Letícia, eu duvidaria de sua existência. Igno-rância a parte, os objetivos da direção foram alcançados.

O Curso de Desenho de Propaganda e das Artes Gráficas foi criado em 1946 pela Fundação Getúlio Vargas. Visava dar a conhecedores do desenho básico, o domínio do desenho de propaganda e artes gráficas, especialização que, dia a dia, torna-se mais necessária, face ao avanço da técnica de publicidade e da expansão que, mesmo em nosso meio, estão tendo os livros, revistas e jornais. Conforme anunciava o folheto o curso destinava-se

[...] a profissionais em atividades e empresas gráficas particulares e em institutos oficiais ou paraestatais que mantêm serviço desse ramo de desenho e pintura cujo nível de conhecimento se revele satisfatório, à vista das provas vestibulares.

O curso foi previsto para durar seis meses, com duas áreas disciplinares: dese-nho aplicado às artes gráficas e técnicas de publicidade. A direção e a orientação era do Tomás Santa Rosa Jr., que se ocupava também das aulas de composição decorativa e técnica de publicidade. Carlos Oswald ensinava água forte e Ana Levy28 , História da Arte. Além de seus cursos na Fundação, Hannah Levy, que era alemã, trabalhou como pesquisadora no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tendo publicado, na revista do SPHAN, alguns ensaios fundamentais, como “Modelos europeus na pintu-ra colonial” e “A pintura colonial no Rio de Janeiro”.

O material encontrado nos arquivos da Fundação restringe-se ao folheto de lan-çamento, já comentado, e duas páginas datilografadas, provavelmente dirigidas à dire-

28 Seu nome passaria a ser gravado no Brasil com H.

78 José Antonio Mazza Leite

toria, como relatório. Nelas, informa-se que “durante o período de maio a novembro de 1946, deixou de funcionar a secção de gravura em pedra, a cargo de Silvio Signorelli, por falta de aparelhagem, bem como a de desenho de propaganda em face do nível técnico dos alunos”. Ao mesmo tempo, solicitava-se a criação de uma pequena oficina tipográ-fica. E, possivelmente, foi devido a má vontade da direção da Fundação Getúlio Vargas para com o curso, que Santa Rosa decidiu expor os trabalhos dos alunos na sede da Fundação Brasileira Central, à Praia de Botafogo, 186, entre 6 e 20 de fevereiro de 1947.

O crítico Antonio Bento, em artigo escrito para o Diário Carioca (“Desaparecerá o curso da FGV?”), revela e contesta os argumentos da Fundação a favor do fechamento do curso: inutilidade, fracasso e falta de recursos. A crítica da época comentou a exposição, elo-giando o curso, o aproveitamento dos alunos e a orientação dada por Santa Rosa e demais professores. Como consequência dessa boa acolhida, a mostra foi transferida para o nono andar do prédio da Associação Brasileira de Imprensa, onde permaneceria aberta até fins de março com o apoio da Associação de Artistas Brasileiros. Santa Rosa fez uma conferência sobre artes gráficas, no recinto da mostra, à qual se seguiu um debate com a participação de Hannah Levy, Axl Leskoschek, Romiro Gançalves, Peregrino Júnior e Marques Rabelo.

O crítico Celso kelly foi um dos primeiros a comentar a exposição em texto para o jornal “A Noite” (“Um curso, um programa, uma realidade” 06.02.1947). Lembrava que, no Brasil, continuamos atrasadíssimos em matéria de artes gráficas e que o único curso que temos para preparar artistas gráficos, que saibam desenhar e compor para ilustrar revistas, livros e jornais é o da Fundação Getúlio Vargas, sob a direção de um espírito esclarecidíssimo e apaixonado, que é Santa Rosa. Pergunta ele: “será que o curso vai desaparecer”?

Em um segundo artigo, para o mesmo jornal (“Uma legítima escola de arte”, 21.02.1947), destaca entre os expositores Fayga Ostrower e elogia a sensibilidade artís-tica de Isabela e Misabel. Sobre esta última diz: “é a expressão mais nova nos meios de arte. é um temperamento plástico magnífico”.

Antonio Bento (”O curso na Fundação Getúlio Vargas”, Diário Carioca, 13.02.1947), “Não se vê na exposição nenhum Santa Rosa-Mirim, ou qualquer Leskoschek-Júnior, fenômeno tão comum nos cursos daqui como da Europa”. Ela-borar uma lista completa dos alunos de Leskoschek no Brasil, é muito difícil. Alguns frequentaram o curso da Fundação Getúlio Vargas, outros apenas o ateliê na Glória, outros ainda, os dois endereços. Por sua vez, alguns dos alunos do curso da Funda-ção assistiam apenas às aulas de Leskoschek e, em muitos casos, é difícil esclarecer quem foi aluno de quem, devido à carência de documentação.

Os jornais da época mencionam cerca de 30 expositores, citando especificamente: Maria Teresa Nicolao, Danúbio Gonçalves, Bartolomeu de Andrade, Cláudio Corrêa e Castro, Fayga Ostrower, Isabela Sá Pereira, Misabel Pedrosa, Anísio Medeiros, enfim, trinta ao todo.

Entre os alunos de Leskoschek citados, encontram-se algumas das mais destaca-das gravadoras brasileiras, todas atuando também no ensino.

Fayga Ostrower ensinou durante muito tempo no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro. Mirabel Pedrosa foi professora no antigo Instituto de Belas Artes (Escola de Artes Visuais), Isabela Sá Pereira, desenhista, continua ensinando, até hoje, no Parque Lage. Danúbio Gonçalves, gaúcho, foi um dos fundadores do Clube da Gravura de Porto Alegre, em 1950, sendo, atualmente, professor do Ateliê de Artes Plásticas da Prefeitura de Porto Alegre.

Danúbio trabalha há 30 anos no Ateliê da Prefeitura, sendo 15 como Diretor. Foi aposentado compulsoriamente, para seu grande desgosto, mas prossegue fre-quentando o Ateliê Livre e fazendo suas experiências.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 79

CarlOS reVerbel – UMa leMbrança

Conheci Carlos Reverbel na década de oitenta, quando ele já era um jornalista e escritor consagrado. Foi Alcides Carvalhal que me levou a sua casa em uma tarde de sábado. Alcides e Tania Franco Carvalhal eram amigos de longa data de Olga e Carlos Reverbel. Tinham em comum o gosto pelos livros, a literatura e a história.

Carlos Reverbel conhecia como poucos a história do Rio Grande do Sul e sua literatura. Conhecia muito bem a obra de Marcel Proust, dominava o francês, pois ele e Olga viveram os anos do pós-guerra em Paris. Conviveu e ficou amigo de Rubem Braga e Tônia Carrero. Olga era professora de teatro.

Quando Alberto Camus esteve em Porto Alegre, Carlos Reverbel foi seu ci-cerone. Pelotas deve muito a ele, pois foi Reverbel que escreveu “Um Capitão da Guarda Nacional”, uma pesquisa magistral sobre Pelotas do “fin du siecle”, e de João Simões Lopes Neto.

Carlos Reverbel gostava muito de Pelotas e dizia que se sua saúde fosse me-lhor para aguentar a umidade e o frio da cidade, era para cá que ele se mudaria – ou viria morar. Era grande amigo de José Almeida Collares do Herd Book, Registro de raças puras de bovinos. Eram dois representantes do que de melhor havia em reserva moral e inteligência no Rio Grande do Sul.

Passei a visitá-lo nas tardes de sábado. Encontrava Corálio Cabeda e, às vezes, Araujo Santos, que também eram fascinados pela conversa, o humor e os casos que Carlos Reverbel ia contando ao relembrar o passado no Correio do Povo e dos bares de Porto Alegre com seus frequentadores cheios de histórias e boemia. Sua me-mória era prodigiosa! Eram horas deliciosas que se prolongaram por muitos anos, sempre aos sábados à tarde.

Quando li o livro “Carlos Reverbel - textos escolhidos”, organizado por Clau-dia Laitano e Elmar Bones - Porto Alegre, 2006 – encontrei duas reportagens que

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me pareceram preciosas para melhor entender o Grupo de Bagé e seu mentor inte-lectual, Pedro Wainer.

Escrevendo sobre o Grupo de Bagé, Carlos mostra a importância capital que teve Danúbio Gonçalves para alavancar o grupo, pois trazia uma riquíssima experiência que faltava aos outros jovens pintores.

Danúbio tem uma proverbial modestia e descrição. Jamais alardeou o que es-tava muito claro. Ele frequentou o atelier de Cândido Portinari. Estudou desenho e xi-lografia com os melhores professores e nas melhores escolas do Rio de Janeiro, então capital da República. Viajou pela Europa, frequentando o Museu do Louvre, em Paris e outras capitais onde a arte é a razão de viver. Só ele tinha a vivência e bebera nas fontes do saber e da cultura da velha Europa.

Danúbio trouxe técnicas e ideias que foram fundamentais para que o Grupo de Bagé tivesse êxito. Ele e Carlos Scliar haviam vivido em Paris, tinham o mesmo pensa-mento “gauche” sobre o mundo do pós-guerra, comungavam as mesmas esperanças sobre a paz entre os povos.

Por isso achei importante que essas duas crônicas publicadas na Revista do Globo em 26 de janeiro de 1946 sobre Pedro Wainer e a “Notícia de uma Exposição”, de 20 de novembro de 1948, figurassem nesse livro.

Foi Reverbel que também insistiu para que eu lesse o conto “Saudades de Viver” da Antônio Vieira Pires, inserido em um livro organizado por ele, da MPM.

Enfim, quando falei por telefone com Bete Reverbel e ela concordou que as crô-nicas de seu pai fossem reescritas na 3ª edição de “Xarqueadas”, de Danúbio Gonçalves, fiquei certo de que estava iluminando] um passado um tanto esquecido, mas que este-ve muito presente na vida de Danúbio Gonçalves.

CrÔniCas DE Carlos rEvErbEl29 – nOtíCia De UMa exPOSiçãO

Perguntaram certa vez a Picasso se ele admitia que, em consequência das atuais dificuldades por que passa a Europa, fosse possível o deslocamento do centro da vida artÍstica universal para outras terras.

– Não – respondeu categoricamente o discutido pintor. E acrescentou em segui-da, justificando de modo tão expressivo quanto pitoresco o seu ponto de vista: – Não, porque laranja só dá em laranjeira ...

Quando fui informado, por uma reportagem de Pedro Wayne, publicada há casa de dois anos, aqui mesmo nesta revista, de que havia surgido, na cidade de Bagé, uma floração de jovens pintores modernistas, experimentei uma sensação primeiro de certo espanto e logo depois de franca incredulidade. Ocorreu-me, então (embora a proce-dência e sobretudo as proporções do caso fossem inteiramente outras), a tirada de Pi-casso: laranja só dá em laranjeira ...

Assim sendo, uma cidade como Bagé, normalmente, deveria produzir tudo, jamais um movimento artÍstico de vanguarda, com esse tipo de criações que ainda são capazes de levantar ondas de incompreensões até mesmo nos centros naturalmente adequados para a sua eclosão.

Mas passado algum tempo, veio o poeta Clóvis Assunção e provou que tudo aquilo era muito natural e estava muito certo. Provou à maneira mágica dos poetas, está claro, mas provou, e quando são os poetas que vêm provar alguma coisa devemos nos tornar oníricos e dizer amém.

29 Carlos Reverbel cronista, do Correio do Povo, era quem fazia a folha de capa do jornal.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 81

Seja como for – eles, que são brancos, que se entendam. A obrigação dos repór-teres é fazer notícias, nada mais.

Vamos, pois, ao noticiário da exposição que os jovens pintores de Bagé levaram a efeito em Porto Alegre.

Quando estive na exposição, que foi realizada no magnífico salão-auditório do Correio do Povo, era noite e o ambiente estava praticamente deserto.

– Foi um erro termos vindo agora – disse um dos expositores, com certa melancolia. – é – concordou um companheiro. Agora o povo só quer saber do Congresso. Mas a vaga de pessimismo que invadira o espírito dos jovens artistas no momen-

to preciso da chegada do repórter devia ter outras causas. A exposição foi visitadíssima. E a sua inauguração constituiu aquilo que os cro-

nistas sociais costumam apresentar como “um legítimo sucesso mundano e artístico, reunindo tudo quanto há de representativo”, etc. etc.

Além do mais, no momento da inauguração, o poeta Clóvis Assunção (que tam-bém é bageense) pronunciou uma conferência que deu às pessoas presentes a sensa-ção de estarem num cocktail em que fossem servidos salgadinhos culturais ...

Por sua vez, a grande imprensa da terra dava informações nesse tom: “A expo-sição do representativo grupo de jovens pintores bageenses está alcançando brilhante êxito de público e de crítica”.

– E as vendas? Como vão as vendas? – foram minhas primeiras perguntas, logo ao botar “os pés” na exposição.

– Vão muito mal. Até agora não vendemos nenhum quadro – informou descon-soladamente um dos expositores.

Então, tentei algumas palavras consoladoras, apoiado em casual leitura da bio-grafia do grande e infeliz Modigliani, cujos quadros, trocados por migalhas de pão e copos de vinho nos bistrôs de Montparnasse, passaram a valer milhares e milhares de francos, logo após o enterro do artista.

Estávamos nisso – uma legítima conversa mole – quando o pintor Osvaldo Goida-nich deu entrada no salão, farfalhante como sempre.

Pegando logo o motivo da conversa, o simpático recém-chegado tomou a palavra e, com aquela voz que parece ter saído de uma ocarina, desenvolveu a tese de que o negócio é esse mesmo: pintar... e não vender!

– Se uma entre cada grupo de cem pessoas que visitar essa exposição – disse ele – for capaz de compreender e apreciar a arte moderna, vocês terão cumprido a sua missão.

Osvaldo Goidanich fez esta afirmativa e saiu correndo para tomar assento, dentro do horário, na sua poltrona de sub-secretário da redação do Correio do Povo, um dos três ou quatro empregos que ele exerce, para poder fazer pintura desinteressadamente ...

Nem bem tão exótico paladino da pintura pela pintura havia dado as costas, um dos heróicos expositores desabafou, louco da vida:

– Comigo agora vai ser só no retrato de grã-fina, tudo muito retocado e boniti-nho, coisa para agradar e vender logo.

E, depois de um fôlego, acrescentou, cheio de desencanto: – Fazendo retratos artificiais ganha-se dinheiro e com o dinheiro pode-se pintar.

Ou melhor, pode-se aprender a pintar ... A todas essas, eu ainda não conseguira olhar os quadros da exposição. Tinha

para mim que somente o que poderia interessar naquela inesperada mostra seria a circunstância do grupo de expositores ter sido formado numa cidade de fronteira do Rio

82 José Antonio Mazza Leite

Grande do Sul, região de ótimas pastagens e excelentes gados, onde devem necessaria-mente desabrochar as peculiaridades da cultura pecuária.

Mas o que vi, comovidamente, foi uma safra pictórica que tanto poderia ter flo-rescido em Bagé como em Paris. Tem-se a impressão, aliás, que aqueles rapazes vivem com o corpo em Bagé e com o espírito em Paris, muito embora a estrutura de suas pro-duções apresente todos os vícios e defeitos das procuras feitas ao Deus-dará, contando apenas com as unhas e os dentes do autodidatismo.

A exposição apresentava 69 trabalhos (óleos, pastéis, nanquins e desenhos), assina-dos por seis artistas: Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues, Glenio Bianchetti, Clovis Chagas, Denny Bonorino e Júlio Meireles, sendo que os dois últimos não vieram a Porto Alegre.

Dos que aqui estiveram, Danúbio, Glauco e Glenio podiam ser encontrados sem-pre no local da exposição. Clóvis passava a maior parte do tempo negociando pela cida-de um emprego ... de garçom!

Não sei o que será feito dele nesta altura dos acontecimentos. Porém, faço votos para que já esteja solidamente acomodado atrás de um balcão, servindo cafezinhos ex-pressos ou coisa que o valha, pois nestes duros tempos a nenhum jovem artista pobre será lícito esperar pelos mecenas de outrora, quanto mais por uma organização social que assegure a cada um o livre desenvolvimento de sua vocação.

Dos que ficaram em Bagé – Denny Bonorino e Júlio Meireles –, o primeiro é um jo-vem colegial de 14 anos e o outro um “jovem” dentista de 50 anos. Eles se aproximaram do grupo de pintores, formado originariamente pelos quatro nomes mencionados em primeiro lugar, e foram logo incorporados à “comunidade”. Foi, na verdade, uma singular comunida-de a que se estabeleceu em Bagé à sombra da tocante ânsia de realização artística dessa meia dúzia de rapazes diferentes. Lá por volta de 1945, Glauco Rodrigues e Glenio Bianchetti abando naram subitamente tudo aquilo que constituía o mundo comum dos moços de sua idade e passaram a viver em função de um único sonho: a pintura.

Mas de pintura eles nada sabiam, e nem existia quem pudesse orientá-los e assisti-los no caminho de pedras que haviam resolvido trilhar. Guiados pelo instinto, começaram a copiar as gravuras que lhes caíam nas mãos, manifestando desde logo particular preferência pelas gravuras das folhinhas... Eles estavam nisso, quando apa-receu em Bagé o poeta Clóvis Assunção, com as suas teorias estéticas e um número da Revista Acadêmica dedicado a Segall. De posse da referida publicação, os jovens “pinto-res” de Bagé tiveram a revelação da arte moderna, vindo a renegar, do dia para a noite, as cópias das gravuras de folhinha ...

Nessa altura, já se havia constituído em torno deles um pequeno grupo de rapazes interessados nos mesmos sonhos, do qual faziam parte o “poeta” Ernesto Wayne e o “mú-sico” Jaci Maraschim. Finalmente, tendo ganho o “prêmio de viagem ao país”, o pintor José Moraes fez uma exposição e se demorou algum tempo em Bagé, levando uma ex periência e uma boa vontade de que eles se aproveitaram o quanto puderam. Então, foi fundada uma “república”, que eles teimavam em chamar de “atelier”, ou de estúdio, na qual o grupo pas-sou a morar e a trabalhar, já agora mais seguro de seus objetivos, mesmo porque, quando verificou que se tratava de jovens cheios de possibilidades vocacionais, o romancista Pedro Wayne resolveu estimulá-los e assisti-los de todas as formas e modos. No começo de 1946, o grupo já era uma coisa viva e orgânica e já havia adquirido a consciência de que tinha uma missão a cumprir. Seus trabalhos melhoravam de forma surpreendente, para o que também contribuiu uma visita do pintor Carlos Scliar.

Um belo dia, regressou a Bagé, depois de uma ausência de cerca de 10 anos, em que esteve em Buenos Aires e no Rio, estudando pintura, inclusive com Portinari, o

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 83

jovem Danúbio Gonçalves . Seu objetivo era fazer uma exposição na terra natal e tocar para diante.

Mas, quando entrou em contato com o grupo de artistas que ali se formara, ficou de tal modo empolgado pelo clima daquela comunidade ideal, que resolveu incorporar-se à turma, permanecendo em Bagé.

Isso seria decisivo no destino do grupo, pois Danúbio trazia uma formação que muito iria influir no desenvolvimento artístico dos seus companheiros, quando mais não fosse do ponto de vista do enriquecimento técnico.

E foi realmente o que aconteceu, conforme as pessoas que viram a exposição realizada em Porto Alegre e tiveram a oportunidade de apreciar, com admiração e, prin-cipalmente, surpresa, pois a ninguém seria lícito esperar tamanhos resultados, dadas as condições em que os jovens artistas de Bagé se iniciaram e as naturais dificuldades do meio donde saíram.

pEDro WaynE

Fernando Borba está escrevendo as Memórias de Bagé. Não sei em que parte do livro vai aparecer o fantasma-camarada que atende pelo nome de Pedro R Way-ne. Mas tenho certeza de que ele aparecerá num ou noutro capítulo. é fatal, tem que aparecer.

Toda a dificuldade está em situá-Io no devido lugar. O homem é mesmo impos-sível. Se me contarem amanhã ou depois que ele virou toureiro ou tocador de flauta, eu acreditarei. Também acreditarei piamente se alguém disser que ele foi visto, nos campos de Aceguá, atropelando moinhos de vento, com a lança de Adão Latorre na revolução de 1893 ...

Mas onde localizá-Io com propriedade nas Memórias de Bagé? Deixemos o pro-blema para Fernando Borba. Naturalmente, ele o resolverá da melhor forma, colocando o Wayne numa boa primeira fila, com direito a mudar de lugar quando bem entender e até mesmo de abandonar o cenário de vez em quando.

Estou convencido de que o sentimento da mudança (para não dizer fuga) é a sua verdadeira vocação. Sem nunca ter alcançado a graça de poder deixar o seu município, ele conseguiu tornar-se ambulatório dentro do seu município mesmo. Nesse ponto, Pedro R. Wayne é parente próximo de Raul Bopp. é também uma alma penada, mas em escala municipal, enquanto o outro, o inacreditável Bopp, corre atrás do seu fantasma pelas avenidas do mundo, na dispersão mais tentadora desta vida.

Que eles são primos, é evidente. Mas um está nas coordenadas geográficas em geral, executa sua dança-de-são-guido na cena aberta dos paralelos e meridianos, ao passo que o outro, embora oficial do mesmo baile, ficou acorrentado à latitude e longitude de Bagé ...

Eis o motivo pelo qual Wayne, mesmo executando as coisas mais engraçadas, nunca atinge o burlesco puro e simples. Ele é sempre uma figura trágica. Até quando se disfarça em saci-pererê, em cujas artes é useiro e vezeiro, divertindo-se com os espan-tos que costuma causar pelas esquinas sem outros imprevistos da sua pequena cidade.

A sua posição dentro da literatura é das mais singulares. Ele é uma espécie de navegador solitário das letras. Arrinconado num município de fronteira francamente da pecuária, em que ainda se pode arrastar espora pelas calçadas, de vez em quando comparece nos centros literários do país com livros de vanguarda que sempre dão o que falar, mesmo que se lhes possa negar todas as qualidades convencionais.

84 José Antonio Mazza Leite

Quando os rapazes bem-pensantes do Rio, São Paulo, Porto Alegre e das ou-tras capitais andavam perdidos na selva modernista, publicando cadernos de exer-cícios e experiências literárias que eram o terror dos editores e do público leitor, Pedro R. Wayne nos mandou da sua pacata cidade do interior uma mensagem im-prevista, que abalou os donos das originalidades então em voga. Seu livro de guer-ra, intitulado Versos meninosos e a lua, cujo sentido ninguém jamais penetrou, era dessas coisas de rebentar linotipo, mas ainda assim cheio da bravura regeneradora que caracterizava o movimento, cujos ventos tiveram força para renovar a literatura faisandé que infestava o país.

Pouco mais tarde, naquele sombrio ano de 1935, ele reapareceu com um livro desigual, de lirismo bravio e gênero arbitrário, chamado Dina, no qual publicou este “Recadinho ao busto de Camões”: “Vê se ‘seu’ Camões – o que os mouros deixaram pra toda a vida piscando um olho nos cede umas folhinhas do galho de tempero que tem em torno da cabeça que é só pra dar um gostinho ao feijão até que o armazém onde teu pai tem livreta receba o louro que encomendou .. .” Bem mais pitoresca do que tiradas como esta tem sido a própria vida do poeta.

Ele era dos que trabalhavam no Banco Pelotense. Por ocasião da ruidosa quebra, ficou desempregado. Foi quando se fez chofer de praça, tomando conta de um cami-nhão que aceitava fretes e viagens para o interior do Estado e campanha do Uruguai. Enjoando mais adiante do caminhão, tornou-se empregado de charqueada.

Isso náo é nada. Há muito que ele vinha fazendo das suas. Ainda que não se acredite, vendo os retratos de hoje, Wayne afirma que “foi um bonito garoto gordo e corado, de cabelos ruivos encaracolados e olhos vivos muito azuis”. Tanto era assim que, naquele tempo, as beatas de Pelotas, terra onde nasceu em 1904, chamavam-no de menino Jesus - conforme ele mesmo gosta de confessar.

Aluno aos 6 anos do Prof. Brasiliano da Costa e Silva, depois perambulou por todos os colégios e ginásios da cidade. Aos 12 anos, fazia versos em cartões postais e os dedicava às garotas da aula.

Em face do sucesso alcançado pela sua poesia entre as colegas, passou a manter um jornal manuscrito e clandestino, denominado Forrobodó. O jornal zinho tinha finali-dades revolucionárias. Caindo um dia nas mãos do diretor do ginásio, foi o aluno Pedro R. Wayne severamente repreendido e castigado.

Essa foi a sua primeira aventura nos domínios da chamada sexta arma, em que tanto tem brilhado o general Góes Monteiro. Mais tarde, já de cabelos brancos e pai de quatro filhos, voltou ao jornalismo, não menos revolucionário, editando em Bagé, com Paulo Thompson Flores, Fernando Borba e Pelaio Pe rez, o fabuloso semanário intitula-do ABCDEFGHIJkLMNOPQRSTUVXyz.

_ Aos que se escandalizavam ao notar todo o ABC servindo de nome para uma publicação, ele explicava que era preciso primeiro alfabetizar os leitores ...

Wayne ainda se aventurou, outra vez, nas lides da imprensa. Foi por oca sião de uma das famosas exposições rurais de Bagé, a capital da nossa pecuária. Encontrando-se quebrado, resolveu organizar um álbum da exposição, a exemplo do que fazem com êxito eméritos cavadores profissionais. As entidades rurais e os próprios expositores fo-ram generosos, financiando o empreendimento. Mas na hora de redigir a competente literatura pastoril, ele esqueceu que se alugara, esqueceu que tudo aquilo não passava de vil matéria paga, e transformou o álbum num panfleto de certo modo voltado con-tra a classe dos proprietários de touros, vacas e cavalos de pedigree. Nas legendas das fotografias dos animais premiados, não raro motivos de orgulho de famílias inteiras,

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 85

liam-se coisas mais ou menos assim: este touro reside num estábulo de material, com água encanada e criado de quarto, infinitamente mais confortável do que os ranchos dos nossos marginais.

Foi um escândalo. O álbum, que deveria resolver-lhe um momento de aperturas, transformou-se no pior negócio do mundo. Imediatamente recolhido, esse álbum cons-titui hoje uma das nossas poucas raridades bibliográficas.

Qualquer outro que tivesse feito coisa parecida teria saído ventando, no mínimo, de costelas quebradas. A Pedro R Wayne nada aconteceu. Bagé gosta dele. Deu-lhe carta branca para fazer essas e outras. E, no fundo, todos se divertem com as suas in-quietações e irreverências de inadaptado.

Se ele se prestasse para jogral estaria com a vida feita. Mas o homem é mes mo um combatente, embora sempre atue como livre atirador. Jamais se acomodaria ao papel da criatura engraçada que tira casquinhas divertindo os poderosos.

Wayne gosta imensamente de topar as paradas difíceis. Quando era proi bido praticar-se a vida democrática, embora os nazistas já estivessem torpedeando os nos-sos navios mercantes, houve um comício em Bagé, no qual ele entrou em forte bate-boca com um figurão quase inatingível, que resolvera garantir o discurso de um integra-lista cuja palavra provocadora o povo repudiava. Foi uma bonita vitória desse impulsivo lutador por conta própria. O povo carregou-lhe nos braços pela cidade, exigindo que ele falasse noutro local.

Quando os jornais se fartam de noticiário sensacionalista vindo de Bagé, é certo que Pedro R. Wayne aparece no meio das figuras que corvejam em torno do crime, todas empenhadíssimas em digerir a melhor polpa dos Miéres locais. Ele há anos é suplente de juiz municipal. E é uma estranha coincidência que tantos abacaxis forenses tenham caído nas suas mãos... Nessas ocasiões, ele se torna irreconhecível. E sempre faz honra à investidura.

No momento em que os cautelosos se encolhem, Wayne vem para a pri meira linha. Assim foi com o seu primeiro romance, “Charqueada”. Guardo com interesse e carinho o volume extremamente mal confeccionado em que ele se apresentou, em 1937. é um livro de lamentável aspecto gráfico, com os cadernos se despreendendo, crivado de pastéis tipo-gráficos, algumas folhas ilegíveis pela dupla passagem na máquina de impressão.

Não elogiarei a estrutura literária da obra. Charqueada é desses livros diante dos quais Machado de Assis teria um ataque epilético. Mas é um livro que há de ficar na crônica da nossa literatura. Foi o primeiro romance de sentido revolucionário no Rio Grande do Sul. Abriu caminho para os jovens autores que agora escrevem em torno das realidades sociais do nosso homem do campo e auxiliou poderosamente a desmoraliza-ção do velho tema do “monarca das coxilhas”, A última vez que tive notícias dele foi por ocasião de uma conferência na Biblioteca Pública de Bagé. Wayne discorreu sobre “Je-sus Cristo, Isadora Duncan e a Semana de Arte Moderna”. Se não estou mal-informado, praticamente ele reduziu a história da humanidade a esses três acontecimentos. E ainda por cima, indicava para o artista uma posição isolacionista, em torre de marfim ou coisa que o valha.

Foi enorme a onda de protestos. Os literatos do interior do Estado quase lincha-ram o nosso herói. Não foram capazes de compreender que aquilo só poderia ser uma passageira enxaqueca mental, por sinal muito gozada e inteligente.

O seu desvio não passou disso, uma boa piada. Pouco depois o encontrei num trem da Viação Férrea. Ele voltava do Congresso de Escritores, realizado em São Paulo. Vinha de boina, coberto de pó e na linha justa.

86 José Antonio Mazza Leite

Agora, pelo que leio no Correio do Sul, Pedro R. Wayne está voltado contra a Carteira de Crédito Agrícola do Banco do Brasil, “que em nada ajuda ao pequeno cam-ponês”. E também contra o governo, “para que tenhamos, com a maior urgência, o problema da lagarta solucionado”.

Virou agricultor, como se vê. E foi logo adotando as velhas dores sem cura dos novos colegas de profissão.

Anteriormente, trabalhando nos escritórios da Casa de Saúde Mario Araújo, ele sofria de quase todas as moléstias registradas no hospital ...

Foi o jeito que encontrou de não se fixar nas próprias dores. Porque este homem aparentemente inconsequente, ambulatório e de vida humorística é, acima de tudo, um eleito do sofrimento.

Mas desses que nunca se entregam ...

primEira EXposição DE DanÚbio Em baGé mErECEU Uma CrÔniCa DE pEDro WaynE

CorrEio Do sUl – baGé; – 31/12/1939

... “Se todo artista, mesmo pequeno, medíocre, merece apoio, muito maiores devem ser, no entanto, nossos aplausos para aqueles que se revelam com excepcional vigor. E, chegando a esse ponto, queremos chamar atenção para Danúbio Gonçalves. é um bageense extraordinário. Com 19 anos de idade, chegou já na pintura a tudo o que com essa idade se pode esperar de quem quer que seja. Seus quadros muitas vezes chegam a ser de grande realização. Danúbio supera o bom, vai além do provável, é um artista novo, em perfeita identificação com o momento. Seus assuntos sociais, na inter-pretação das lavadeiras; do homem que sofre e trabalha, nas cenas de morro e pandei-ro, quando mistura com a pobreza, ganha maior força que vimos aqui na pintura nacio-nal. O sofrimento que resolve nessas ocasiões, fazem-nos pensar que sua pintura está em véspera de uma situação igual a que chegou em sua última fase o genial Van Gogh e a de um atualíssimo Segal. Danúbio em coloridos que vem dele próprio, que nascem de seu personalíssimo temperamento artístico. Suas figuras complementam-se, porque não são só exterior. Manifestam o que vem do fundo do ser. Transmitem o que está se passando no íntimo do personagem representado. Suas tintas parecem ganhar células humanas quando figuram nos quadros. Bagé precisa conhecer essa exposição. E terá natural orgulho desse filho que dentro mais alguns anos o Brasil inteiro aclamará.”

Pedro Wayne

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 87

antiga prensa litográfica

livros publicados de Carlos reverbel

Barco de Papel (1978)

Saudações Aftosas (1980)

Um Capitão da Guarda Nacional (1981)

Diário de Cecília Assis Brasil (1984)

Pedras Altas (1984)

Maragatos e Pica-Paus (1985)

O Gaúcho (1986)

Assis Brasil (1990)

Arca de Blau (1993)

Outros aspectos da Imprensa do RS (1996)

88 José Antonio Mazza Leite

antôniO Vieira PireS (triUnFO-rS, 1887 - POrtO aleGre, 1948)

Sua contribuição às letras regionalistas gaúchas ficou limitada a um único livro (Querência, 1925). Não se pode, entretanto, ignorá-la. Os contos enfeixa-dos naquele volume primam pelo vigor nativista, apresentando-se como proje-ções ao vivo da realidade. As páginas em que descreve a brutalidade das matan-ças nas charqueadas talvez não tenham paralelo na bibliografia do regionalismo rio-grandense. Era comum, na sua época, as vocações literárias despontarem, sendo logo contidas pelas injunções do que então se chamava “vida prática”. Foi o que aconteceu com o contista de Querência, ao deixar-se absorver, desde cedo, pelos encargos do ministério público, inicialmente como promotor e, mais adiante, como procurador-geral do Estado, para afinal ingressar na magistra-tura, como desembargador do Tribunal de Apelação. Paralelamente, desenvol-veu atividades jornalísticas, tendo dirigido a Imprensa Oficial do Estado e dois jornais de Porto Alegre: “A Federação” e “Diário de Notícias”. A seguir, um dos contos de Querência.

saUDaDEs DE vivEr

Todos os seus companheiros de sacrifício já haviam lombado com estrondo e estrépito sobre o estrado da zorra, certeiramente tocados pelo rápido golpe do desnucador.

Um a um foram caindo e desaparecendo pela bocaina do brete. À sua passagem, como ao fim duma pavorosa tragédia, recaía com bulha e pressa o pesado cancelão suspenso. Os sobreviventes assustados corriam a refugiar-se, acantoando-se ao fundo mais largo da encerra, construída a modo de seringa, que os ia espremendo e pingando a um e um para o além daquele trágico telão, por cuja abertura, de relâmpago, mal se entreviam as bárbaras cenas de chacina que ali iam se desenrolando. Depois, redemoi-nhavam, voltavam-se encolhidos e trêmulos, empurrando-se mutuamente, cada qual, na terrificante compreensão do momento, buscando fugir ao sovéu do matador, que, para um lanço a esmo, já assobiava iminente, em revoluteio, sobre a selva movediça das guampas desasossegadas. Agitavam-se então, apertavam-se, fazendo-se barreiras uns dos outros. Escondiam-se, abaixando e sumindo as cabeças. Por pouco se não aga-chavam os mais espertos atrás dos companheiros que impeliam às comadas para a van-guarda do holocausto.

Aquele grupo de brutos que iam morrer aparentava clara inteligência da sua afli-tiva situação, revelada nas mais variadas e expressivas atitudes consoantes com os seus temperamentos. O instinto de defesa vital despertava à vista e ao cheiro da morte que mal-assombrava e empestava o ambiente, e Ihes comunicava a centelha que os compe-lia à reação ou os fulminava no abatimento.

Havia ali súbitas irrupções de revoltas furiosas. O reacionário destacava-se do grupo e erguia, saliente, arrogante, a cabeçorra armada e brandia ameaçadoramente para o desnucador inacessível os potentes chifres que luziam como espadas brunidas no atrito de tremendos recontros. Bufava e escarvava, atirando sobre a lombada uma

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 89

chuva de esterco e podridão. Subitamente arrancava sobre ele e esbarrava de encon-tro à cerca, ur rando de raiva impotente, babando como hidrófobo. Arvorava-se em pa-ladino e intérprete daquela facção de desesperados. Traduzia-lhes a cólera e a angústia, a dor e a aspiração.

Outros caíam numa funda prostração, feridos de desânimo e aban dono. Pare-ciam fatalistas. Chegara a hora extrema. Para que reagir? Cumpriam o seu lôbrego des-tino sobre a terra. Cresciam, multiplicavam -se; engordavam e eram sacrificados. Aquela última alvorada Ihes ungira de suave luz a cernelha larga e possante.

Ainda outros esmoreciam e rolavam angustiosamente enormes olhos esbuga-lhados, acesos em fantásticas fosforescências. Encarangados pelo pavor, tremiam e en-colhiam-se; apoucavam-se, resumiam-se a um canto, à espera de que assim o golpe os atingisse menos e menor fosse a dor. Era um triste encolhimento de enregelados, como quando andavam à solta no campo e o pampeiro disparava doidamente pelos plainos, e irrefreado desembocava dentre os coxilhões, repontando em tropel as bátegas que os açoitavam e retransiam.

Os demais consortes já tinham sido arrastados pelo forte sovéu, car regados pela rolante zorra. Remanescera, só, em dolorosa sobrevivência agoniada pelo que vira, pelo que farejava, pelo que adivinhava em hórrida iminência, um esbelto novilho colorado. Era um belo exemplar, mais de circo que de talho. Todo ele era nervosidade e agili-dade, membros delgados e possantes, peito amplo, pescoço curto e largo, culminado por alto cogote. As armas eram brancas, luzidias, ponteadas de negro. O pêlo era tão intensamente vermelho que parecia ter ele saído de um longo banho no sangue fres-co dos companheiros sacrificados. Na penumbra do brete que o tejadilho ainda mais assombreava, ele se movia, a um tempo salteado de pânico e de revolta, todo envolto na sua púrpura flamejante, urrando cavamente, chispando áscuas lucilantes dos olhos incendiados.

Era de vê-lo a escavar, saltitante, metendo o focinho entre as mãos, rente ao chão, donde logo o levantava arremessadamente, brandindo os chifres. E estacava, fito no vulto do desnucador que, afeito àquelas revol tas inócuas, distraidamente chupava o pito, assentado no cabeço de um dos postes do tronco. Mas em breve investia a um e a outro lado, às cegas, estonteado de raiva, alucinado por visões te-merosas, convulsionado pela pungente aspiração à vida e à liberdade que a solitude da prisão e o terrífi co ambiente exageravam sobremaneira. Tentando a escalada, lançou-se furiosamente à alta cerca do brete. Foi tal o ímpeto desesperado que con-seguiu galgá-la, ficando, porém, preso à sua borda pelos sovacos, especando furio-samente no solo as patas trazeiras. Por um instante, o derradeiro, ele viu o campo, e nos seus olhos, imensamente abertos, o campo se refletiu verdejante e vasto a confundir-se, na sua planura, ao longe, com a linha meio esbatida do horizonte. Na pupila azulada rutilou vivamente um lampejo de esperança. Mais um impulso vigo-roso, e a compacta barreira que o cercava e prendia para a morte seria transposta para a vida. Todo ele vibrou então na fugaz alegria dessa esperança evanescente. Notava-se, na retesada, forte musculatura que fremia, o agonizante esforço supre-mo do moribundo que se apega, com garra premente, à vida esquiva.

90 José Antonio Mazza Leite

Meteu pé rijamente no solo ascoroso. As unhas bífidas resvalavam e estalavam batendo nas frestas das pedras. Os garrões retesados tremiam com as carnes das per-nas e das ancas nédias. Os pelos se eriçaram, como se pelo seu corpo passasse o calafrio extremo. Ele todo, em um violento estremeção, arremessou-se mais para cima, bufan-do e urrando a meter medo, buscando esfuriadamente o espaço, o campo, a liberdade, entrevistos e estimulantes. Já as mãos tocavam o estrado da plataforma que corre ao longo do brete. Já meio corpo pendia sobre a beira da cerca. Ele todo ia a cair para fora, quando o matador, atirando lestamente o grosso sovéu, o apanhou pelos chifres. Logo, ao seu aviso agudo e lúgubre, o guincho silvou e, batendo ruidosamente as ferragens dos volantes, o empuxou brutalmente para dentro da morte, atirando-o a fio compri-do sobre o chão empedrado daquela encerra fatal. Bambeando o sovéu, ainda o lindo novilho se pôs de pé e especou-se, emperrando e resistindo. E foi aos escorregões, às pranchadas, aos bufos e às cornadas a esmo, que ele resvalou sobre a lisa chapa da zorra e chegou a cabeça ao tronco. Tanto que o sentiu em puxado e comprimido, o matador arremangou-se e experimentou os cortes da terrível, luzente lâmina bigúmea e certeiramente lha cravou na nuca, remexendo-a brutalmente, abrindo larga brecha donde um lento, rútilo fio de sangue escorreu mais rubro sobre o couro colorado. O novilho, sem um berro, apenas escoucinhou com bulha e frenesi, e, ao novo grito sibila-do do matador, o sovéu brandeou, deixando-lhe cair molemente a cabeça na zorra que apressadamente rodou sobre os trilhos através da praia26.

No seu duro chão acimentado escorriam, com a mesma efusão, a água que a lavava e o sangue que a tingia. De um lado e de outro, formando paralela com os trilhos, estendia-se a fila dos magarefes, apostando a celeridade do es-corchamento e do desfolhamento da rês que Ihes vinha a talho. O carneador a quem tocara o novilho colorado, mal ele caíra da zorra, colocou-lhe o pé sobre um dos chifres e, como se cortasse por água, correu rapidamente a larga carni-ceira pela garganta afora, até o amplo peito, onde a mergulhou fundamente e varou, cortando-o e recortando-o, o coração palpitante. A sangueira despejou-se pelo desmesurado talho, levantando levemente sobre o frio chão um leve rescaldo que vaporizava a vida naquele espaço tumultuado dos mais desencon-trados ruídos, gritos, chamamentos, ordens, pragas.

Aos relâmpagos, a faca escorchou, talhou e brevemente desmantelou o novilho colorado. Com pouco, já não restava dele mais que uma caveira alvacen-ta com laivos sanguíneos armando-lhe máscara, um couro estendido de carnaz para cima, peças e vísceras que sobre ele se amontoavam e eram conduzidas pelos serventes às competentes seções. Tudo fora consumado com tal rapidez que se tinha a impressão de que o animal ainda não houvera tido tempo de morrer de todo e já estava espostejado.

Nessa caveira, listada de zarcão, os olhos esguelhavam-se, espiavam de soslaio, ma-ganamente, com meio susto e desconfiança. A língua mole, em trejeito brejeiro de delam-bimento, pendia a um canto da boca desbeiçada. de dentes arreganhados, o que tudo lhe emprestava feição escarninha e trágica de clown que chora sob uma máscara risonha.

26 Praia é o nome dado ao chão do local de charquear.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 91

Entretanto, a vida era forte. Não findara com a multiplicidade célere dos talhos. Prossegue ainda, vibrando e agitando, na carne feita em postas e enxadrezada de la-nhos. Já nos varais a refrescar, antes de ir ao sal as mantas continuavam a assinalar veementes indícios de sobrevivência. Os panos de músculos contraíam-se, ressaltavam, repuxavam-se. Corriam por eles frenesis súbitos, coriscavam crispações em ziguezague, violentos estremeções convulsionavam-nos todos. Havia por aquelas mantas uma vi-vacidade indomável, uma irriquietude de revolta, uma incoercível teimosia em querer viver. Algumas sacudiam-se tão fortemente que pareciam batidas de uma forte lufada de vento e quase se precipitavam dos varais. Era, porventura, algum remanescente ím-peto de libertação.

Outras abanavam flacidamente, despedindo-se e finando-se com pausa e re-signação. Pouco a pouco arejavam, esfriavam e todas se morriam tristemente, forman-do vasto estendal de roupas ensanguentadas e esfarrapadas no tremendo entrechoque de uma batalha corpo-a-corpo, ali expostas a secarem para ostensivos troféus de vitória e de conquista.

Estava eu assim entretido e pensando, quando um carneador, que passava, dis-se-me risonhamente:

– Eh, patrão! Está se admirando disto? Se visse então o charque, na pilha, de noite, dar estalos que dizem serem saudades de viver? Mirei-o e ele seguiu sorrindo e gingando. Meditei o dito e achei-lhe graça. Saudades! Saudades de viver! Quem sabe?

Antônio Vieira Pires

92 José Antonio Mazza Leite

xilogravura e mercado de bagé (demolido)

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 93

inTroDUção À GravUra

“Gravar é fazer permanecer, para o futuro, um significado através de uma marca que procura comunicar alguma coisa. Assim, como diz Costella: “Gravar é deixar uma marca no mundo e, às vezes, na História” (1984, p.8).

Ao ato de gravar damos o nome de gravação direta, pois participa, de modo di-reto, da obra final. Podemos gravar para formar uma matriz que formará uma ou mais cópias. Quando só forma uma cópia, chamamos monotipia, que é uma técnica de im-pressão pouco usada.

A impressão pertence sempre a um, dentre dois tipos básicos: impressão a seco, isto é, sem tinta, e a impressão com tinta. Como exemplo bem simples, temos a marca do criador de gado, impressão seca e o carimbo de cartório, impressão com tinta.

Neste trabalho, interessa-nos a impressão com tinta. Há quatro processos: impressão em relevo, impressão em entalhe, impressão plana e impressão por permeação.

Um poUCo Da sUa HisTÓria

Pratica-se a impressão em madeira na China desde o século VI, ou seja, 900 anos antes de ser inventada na Europa. Um decreto imperial ordenou que diversos textos fossem gravados em madeira, a fim de serem impressos e publicados. Foi na China, também, que o papel foi descoberto 1.500 anos antes da técnica chegar à Europa.

A gravura sobre madeira só se desenvolveu depois da fabricação do papel. Se-gundo Costella (1984), as primeiras pranchas gravadas foram consagradas às imagens religiosas, desenhadas pelos monges. Grosseiramente gravadas e coloridas com cores vivas, essas representações de episódios da vida de Cristo e dos santos favoritos eram compradas pelos viajantes que faziam suas peregrinações religiosas através da Europa. As gravuras também tiveram um fim utilitário quando, no século XV, foram usadas para estampar baralhos, porém, os primeiros objetos em que a xilo-grafia fez sua aparição para imprimir foram os panos. Assim, os egípcios teriam pro-

A gravura como documento

94 José Antonio Mazza Leite

duzido tecidos estampados dois mil anos antes de Cristo. O mesmo teria sido feito em outras regiões do mundo, Índia, Pérsia, América Pré-Colombiana e, certamente, na China e Japão.

Em 1234, no Reino de Aragão, um edito proibiu o uso de estojos estampados, o que mostra o seu uso na primeira metade do século XIII.

TéCniCas XiloGrÁFiCas

A técnica xilográfica usada nesses primeiros tempos era a mesma que a xilografia a fio usa atualmente: o artesão desenhava em uma tábua de madeira dura, geralmente pereira, a figura ou o motivo do assunto.

O desenho era feito invertido para que, depois de impresso, fosse visto no di-reito, isto é, na forma desejada. Logo em seguida, a madeira era escavada nas partes não cobertas pelas linhas do desenho, com a finalidade de que, tal como um carimbo, permanecessem salientes os traços correspondentes à figura. Untava-se o relevo, assim obtido, com tinta. Finalmente, por sobre a tábua, era aplicado o pano, cuidadosamente estendido, acima do qual se exercia pressão com uma bola de crina embrulhada em tecido. O resultado era a transposição para o pano, do desenho originalmente lavrado na madeira.

Foi a partir da impressão em panos que a xilografia se desenvolveu com intensa produção de imagens de santos e baralhos de jogar car-tas. A xilografia divide-se em dois tipos: xilografia de fio e xilogra-fia de topo. Xilografia de fio chama-se também madeira deitada ou madeira à veia, o artista usa um pedaço de madeira cujo corte se faz paralelamente às figuras, serrando-se a árvore, da copa à raiz, cortando-se o tronco longitudinalmente. (Costella, 1984, p.12).

A xilografia de topo é também chamada de madeira em pé. Para fazer a matriz, entalha-se em um disco de madeira obtido com o corte transversal do tronco, ou seja, um taco circular no qual as figuras se alinham perpendiculares à serra. O modo de serrar a árvore, gerando uma tábua ou um disco, condicionam uma série de diferenças. Pelas diferentes posturas das fibras lígneas, diversas ferramentas precisam ser destinadas ao entalhe da matriz. A faca, o formão e a goiva, instrumentos de trabalho usados na xilo-grafia a fio, são substituídos, na de topo, pelo buril, instrumento originalmente destina-do a trabalhos de entalhe em metal.

Por outro lado, as diferentes posturas das fibras e os diferentes instrumentos de trabalho acarretam, afinal, resultados plásticos diversos na gravura produzida. Geralmente, a xilografia a fio é muito mais a da linha negra de contorno e grandes áreas lisas contrastadas, enquanto na de topo é comum preponderarem as linhas brancas e as nuanças tonais a cargo, estas, de traços finíssimos e delicados.

A técnica de topo só foi difundida do século XVIII em diante com o considerado pai da xilografia de topo, o inglês Thomas Bewick, que a teria inventado em 1775. Usou essa técnica em seu livro, “História Geral dos Quadrúpedes”.

Foi tão marcante a diferença entre os dois tipos de xilografia que, em alguns idio-mas, o seu modo de expressão mudou bastante. Os ingleses, por exemplo, embora pos-suindo a palavra xylography chamaram a técnica a fio de wood-cut e a de topo wood-engraving, o espanhol diferencia xilografia para a madeira trabalhada a fio e, para a de topo, usa: “grabado en madera” ou “grabado en madera a contrafibra”.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 95

Em português ou em francês usa-se a palavra xilografia para as duas técnicas, sendo que a diferença está no vocábulo final; xilografia a fio, em português, e “bois de fil” e a de topo, “bois de bout”, em francês (Costella, 1984, p.15).

os CaDErnos DE DanÚbio GonçalvEs

Em uma visita ao atelier de Danúbio Gonçalves, para colocá-lo a par da criação do Museu do Charque em Pelotas, Da-núbio dirigindo-se a Edio-landa Liedke e ao autor des-te livro, José Antonio Mazza Leite, representantes do Museu do Charque que visitavam Danúbio Gonçal-ves em seu atelier, este lhes disse: “Vou mostrar a vocês uns caderninhos que nunca mostrei para ninguém”.

Os cadernos com estudos de Danúbio Gon-çalves serviram para a elaboração da série de xi-logravuras sobre as Char-queadas. Os desenhos são rápidos e simplifica-dos porque reproduzem os movimentos contínuos dos trabalhadores. Esses estudos, por serem tra-çados no local da cancha de carneação do gado, representam uma realida-de do trabalho social de uma época. A fim de não interferir no andamento do trabalho dos charqueadores, Danúbio Gonçalves colocou-se num local elevado e distante da cancha de carneação, daí o ângulo de visão dos esboços, que é de cima para baixo, sendo que alguns estão no mesmo nível.

Ferramentas para gravar em linóleo e xilogravura (topo e fio)

96 José Antonio Mazza Leite

o apiTo Das CHarQUaDas

Era através de um forte apito que os trabalhadores eram chamados para lida diária no século XIX usava-se um sino. Já no século XX era mais comum o apito.

Dois autores que viveram nas Charqueadas e usam seu poder narrativo para descrever o apito. Assim o descreve Pedro Wayne:

À meia noite em ponto, trilava o apito na boca da chaminé alta, rouco e for-te, insistindo, insistindo, insistindo. Pelo espaço em fora o som se alongava, se distribuía e ecoava em todas as direções, como se fosse o céu um enor-me despertador azulado tilintando furiosamente. (1982, p . 43).

Antenor Peixoto de Castro, que trabalhou na Charqueada da viúva do Coronel Pedro Osório, de 1930-39, deixou também seu depoimento:

As matanças iniciavam entre meia-noite e uma hora da madrugada, quando deveriam estar a postos todos os empregados, chamados meia hora antes pelo velho apito da xarqueada que, imitando o cha-mado de ...boi ....boi ...boi, ecoava num raio de 5 quilômetros, con-vocando os operários. (Castro, depoimento).

Apesar de aparentar ser um trabalho rústico, a atividade de charqueador exigia ha-bilidade do trabalhador no desempenho de suas tarefas, conforme relato de Pedro Wayne:

O chamado trabalho de faca, exigia um conhecimento especial, mui-ta habilidade e traquejo. Começavam nessa espécie como aprendiz de ajudante, ganhando pouco mais que nada, ou sem remuneração nenhuma até estarem aptos. Eram os carneadores, os despostado-res, os manteiros, os descarnadores de couro, os tripeiros. Os salga-dores também necessitavam aptidões. Os demais, chamados caran-chos, eram simples carregadores, mergulhadores, encarregados de afundar carne nos tanques, e auxiliares braçais. (1982, p.35).

Hoje, falando sobre essa época, a verdade é que Danúbio Gonçalves acentua o encantamento que o envolveu ante o cenário com que se deparou. Sons, cheiros e o movimento plástico ininterrupto dos homens, cuja ação foi sempre o seu maior objeto de estudo. O mestre Portinari havia se encantado e comovido com os retirantes do nordeste. Danúbio exercita o melhor de sua arte para perpetuar os gaúchos pobres de sua terra. Não mais em cargas de lanceiros, mas o pobre gaúcho a pé, de Ciro Martins, trabalhando para conseguir seu sustento. Era um trabalho em que a rapidez, o golpe certeiro e bem calculado revestiam-se de tal importância, que exigiam, também do ar-tista, igual habilidade, destreza e um constante desafio. Esses estudos, depois, seriam transformados nas xilogravuras “Xarqueadas”.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 97

Esboço DE Zorra Com mEDiDas E EpliCaçõEs

O conjunto de esboços para a xilogravura zorra tem início com um desenho es-quemáti co, contendo as medidas da zorra, e um carrinho de madeira reforçado, sobre rodas que se movimenta em um trilho de ferro, geralmente puxado por dois homens.

Desenho esquemáti co da zorra com suas medidas

98 José Antonio Mazza Leite

O animal sobre a zorra. no esboço, o animal debate-se em seus últimos estertores

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 99

esboço de dois zorreiros. Puxam a zorra com trajes leves, por causa do calor durante o período da safra

100 José Antonio Mazza Leite

Zorra, com bovino desmaiado. neste detalhe, empurrada pelo coleiro

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 101

esboço de “zorreiros”

102 José Antonio Mazza Leite

xilogravura “Zorra” em sua composição final

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 103

Zorra

Nessa xilogravura, vê-se sete homens em atividade no seu trabalho duro e fati-gante. A zorra é movimentada, ou seja, puxada pelos dois homens que seguram o cabo em forma de “T”.

No primeiro plano, à esquerda, há um homem com as pernas abertas para me-lhor equilibrar o corpo e dar um golpe com a faca na pata do animal, que ele segura com a mão esquerda. Suas coxas e a cintura acham-se protegidas pelo avental de couro. Pró-ximo ao cotovelo esquerdo, vê-se o cabo da chaira que se projeta. Os ombros e a cabeça estão formando um arco tenso, todo ele atento ao golpe que vai ser dado pela faca.

Os dois homens que puxam o cabo da zorra parecem não fazer excessivo esforço, pois são ajudados pelo coleiro e por camboneiros. O coleiro mantém o corpo na trans-versal e, com o braço esquerdo, puxa a cola do boi, enquanto o direito apoia o peso do corpo, ajudando o movimento dos que levam o cabo da zorra.

O camboneiro da frente inclina seu corpo no ato de puxar a rês e seu avental de couro, como um chiripá, cobre-lhe a perna direita, deixando a esquerda nua e arqueada na força de levar o corpo do animal. O avental de couro voa sobre seus pés em movi-mento. Todos os operários usam gorros de couro ou pano.

Bem ao fundo, à direita, o manteiro afasta-se, levando no braço esquerdo o quar-to traseiro de um bovino. O peso faz com que o corpo se incline para a direita e o grande avental de couro se enruga em suas costas, cobrindo-o como um manto protetor. Suas pernas movimentam o avental. Todo ele é esforço e tensão. é o solitário trabalho em que o homem empenha toda a sua força. Além do ruído da zorra, não se ouve mais nada. Não se sabe se os homens estão conversando ou estão silenciosos nesse anôni-mo trabalho. São sete homens representados na xilogravura zorra. Embora dois deles se ocupem em outras atividades, todos eles foram perenizados no seu momento de trabalho pela arte de Danúbio Gonçalves.

Luiz Couty, no estudo Erva Mate e o Charque, reeditado e traduzido sob a orien-tação do Dr. Elomar Tambara, assim se refere à zorra:

[...] imediatamente após do golpe do facão, o boi cai bruscamente, como fulminado sobre a vagoneta, levanta-se a porta vertical que fecha a abertura da mangueira e arrasta-se o vagão e o boi sobre os trilhos. (2000, p.97).

Sobre o comportamento do bovino.

Após alguns segundos ou de um a dois minutos de imobilidade com-pleta, este boi pode, em alguns casos, apresentar movimentos varia-dos, irregulares dos membros, nesses casos excessivamente raros, ele poderia mesmo levantar-se, mas mesmo assim, quase sem força, ele não tarda a cair de novo. (2000, p.97).

Essa situação, do animal já sem cabeça, foi descrita por Danúbio Gonçalves que viu um deles levantar-se, dar alguns passos e cair, finalmente morto. O artista diz que não gosta de contar esse caso, pois quem não conhece o trabalho, certamente duvidará de sua veracidade.

é interessante que Nicolau Dreys, em sua estada no Rio Grande do Sul, de 1817 a

104 José Antonio Mazza Leite

1825, observou minuciosamente as diferentes etapas do abate bovino e não se referiu ao uso da zorra em nenhuma das narrati vas de matança.

No depoimento oral e escrito feito pelo Dr. Antenor Peixoto de Castro, podemos ver como foi compreendido esse momento:

Os rodeios criolos nos mostram seguidamente a perícia de um laçador perseguindo a rês em seu cavalo para, num arremesso certo, laçá-la ou derrubá-la num pialo. é maravilhoso! Não menos maravilhoso, no en-tanto é a perícia de um laçador de brete! Ali estão vinte animais aper-tados uns contra os outros, chifre a chifre, não restando mais de cinco centí metros separando as guampas destes animais. O laçador prepa-rava então a laçada, quase exatamente da medida do afastamento dos chifres do animal que pretendia laçar. Mostrava o animal e dizia: é aque-le mesti ço de zebu! O animal estava apertado entre os outros! Será que dava? Distante mais ou menos quatro metros o animal estava parado. Ai então, a laçada voava sem reboleio e caía exatamente sobre os dois chifres do animal indicado. Uma façanha de craque! Fácil? Eu experi-mentei e em cinquenta vezes ti ve a nota zero... laçado o boi ele gritava: ala...ala... ala, e o laço enrolava no guincho (máquina a vapor), puxava o boi até encostar a cabeça a um moirão colocado horizontalmente, onde era desnucado com o punhal de dois gumes.O animal caía sobre a zorra colocada sobre trilhos e o zorreiro abrindo a porti nhola puxava a zorra e justamente com o coleiro e o camboneiro, derrubavam o animal e o colocavam ao longo da cancha (local de carneamento) onde os carnea-dores esperavam para o início do trabalho. (Entrevista de Antenor Pei-xoto de Castro).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 105

Zorra chegando à cancha de carneação e o coleiro em ação

106 José Antonio Mazza Leite

O coleiro e os camboneiros em ação retirada da rês que está na zorra. no alto, à esquerda, há o esboço da cabeça de um trabalhador

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 107

o carneadorespera sua vez de iniciar a tarefa e um menino joga água para limpar a cancha

108 José Antonio Mazza Leite

ZorrEiros

xilogravura “Zorreiros” em sua composição final

A rês morta está sendo puxada pelo coleiro que, com as duas mãos, agarra a cola do animal, puxando-a, ajudado pelo peso de seu corpo. As pernas distendidas, a direita para frente e a esquerda como alavanca, o ajudam a inclinar, fortemente, seu corpo para trás.

Dois homens, os camboneiros, estão agarrados na grande argola da corrente. O maior e mais forte parece ser de cor negra, está mais atrás e puxa a corrente com os braços estendidos, enquanto seu companheiro, com os braços mais junto ao corpo, é de cor branca e usa bigode. Ele também faz força para que a corrente, que se prende ao pescoço do animal, bem junto às guampas, consiga trazer o corpo inerte do bovino. Os elos de ferro cruzam-se junto ao focinho da rês e um observador, menos avisado, pode-ria pensar que ali é que a corrente está presa, no esforço de puxá-la para fora da zorra. Os grandes pés descalços dos homens estão bem assentados no chão, permitindo-lhes maior equilíbrio nesse duro trabalho.

Três homens observam a cena. Um deles, mais à esquerda, está com a faca pron-ta para começar a carnear. Os outros dois apoiam-se em seus instrumentos de trabalho, que parecem ser vassouras ou paus e que servem para afundar as mantas de carne nos tanques de salga. O grande cabo da zorra acha-se em repouso, ao fundo.

Força e tensão desprendem-se dessa xilogravura. Todo equilíbrio repousa entre o animal, inerte com o corpo sobre a zorra, e os três homens que puxam o pesado bovino para fora.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 109

CarnEaDorEs

A elaboração da obra final dependeu de uma série de estudos, muitas vezes de trabalhadores isolados e repetidos em diferentes posições, registrando, de maneira rá-pida, o conjunto de atividades para carnear o animal.

Dois carneadores em ação

110 José Antonio Mazza Leite

Crânios bovinos, facas e outros instrumentos

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 111

Dois carneadores em posições curvadastrabalham em ritmo acelerado, cortando o animal em partes

112 José Antonio Mazza Leite

Os carneadores em outras posições Demonstra a preocupação do arti sta em captar os movimentos. Segundo informações

de Danúbio Gonçalves, quando a sequência de movimentos era interrompida, ele aproveitava para anotar as formas da faca, da chaira, da cabeça dos animais, posições

de pernas e braços, em esboços rápidos e com traços simplifi cados

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 113

xilogravura “Carneadores” em sua composição final

Dois bovinos estão sendo carneados. No primeiro plano, quase paralelamente, dois homens, inclinados, carneiam o bovino. O que está mais à esquerda tem o corpo arqueado e, com o braço direito, faz um corte no quarto do animal que se acha virado e já sem cabeça. O grande avental de couro cobre-lhe as pernas até a metade das canelas, pernas que estão afastadas, facilitando-lhe o movimento. Uma grande faca é usada no corte. O espectador pode, apenas, observar a bainha que se prende atrás, na cintura. O braço esquerdo não é visível. A fim de proteger os cabelos, os carneadores usam gorros de couro.

Trabalhando no mesmo animal da esquerda, outro carneador, curvado e com a camisa arremangada, cuida a parte dianteira do bovino. Sua grande perna esquerda en-costa no chão e seu pé está colocado de frente para o espectador. Vê-se um pé grande, forte e nodoso, quase tocando as guampas da cabeça do boi, já cortada, cujo focinho acha-se voltado para a terra.

À esquerda, um menino ou adolescente magro repousa a mão direita no bolso e, com a esquerda, parece segurar um utensílio próprio para o exercício da tarefa. Usa na cabeça um gorro em forma de navio. Na época, esses gorros, feitos de jornal, eram usados para cobrir a cabeça dos operários. O procedimento para sua confecção é seme-lhante ao dos barquinhos de papel.

114 José Antonio Mazza Leite

O bovino da direita possui uma grande cola, que se projeta no chão com os pelos espalhados e vai desaparecendo sob o braço direito do carneador. Este, inclinado num ân-gulo de quase 90º, porta um avental de couro e suas costas estão totalmente voltadas para o observador. Braços grossos e musculosos o ajudam a carnear o quarto traseiro do bovino. O trabalhador, em questão, está colocado na área de sombra.

Seu companheiro de trabalho encontra-se em pleno ato de degolar a rês mor-ta. O grande olho do animal sem vida, está estático. O homem, com a mão esquerda, comprime-lhe a queixada e, com a direita, movimenta a faca, tentando decepar-lhe a cabeça. Ele está curvado, com as pernas abertas, e pode-se ver a bainha da faca e a chaira, bem nítidas, presas à cintura. Sua posi-ção arqueada facilita-lhe o trabalho. Essa figura aparece em tom claro, contrastando com o tom escuro do que está em primeiro plano. Nas suas costas, outro homem também inclinado, parece descarnar uma cabeça. Um grande gorro branco projeta-se frente a seu corpo.

Mais à frente, outro serviçal lança uma bal-deada de água. O balde, provavelmente, estava cheio, pois muita água jorra do seu interior. é o único que não está curvado quando, sem pressa, lança água ao solo. Sua função é limpar a cancha.

O conjunto de carneadores forma um se-micírculo, tal qual uma ciranda, em torno dos animais mortos.

esboço de um charqueador afiando a faca na chaira

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 115

esboço de fisionomias e apontamentos de cores

116 José Antonio Mazza Leite

EspEra

Enquanto a cancha suja de sangue era limpa, os empregados da Charqueada aproveitavam para descansar e, segundo Danúbio Gonçalves, em posições típicas dos homens da fronteira.

xilogravura “espera” em sua composição final

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 117

EspEra

Ali estão sete homens, formando um círculo. O da extrema direita possui um musculoso braço e, com a mão direita, segura um objeto que se destaca na área branca da gravura (ou o mantém virado para direita). À primeira vista, pode parecer uma faca rombuda, com a ponta cortada. Soube, porém, pelo próprio artista plástico Danúbio Gonçalves, que se trata da rabada de um bovino, que era retirada e usada para ser introduzida na medula óssea do próprio animal, já sem cabeça, a fim de paralisar seus movimentos.

Acontece que com o corte no cerebelo, efetuado pelo punhal do carneador, o bo-vino continuava a se debater. Era necessário destruir-lhe as terminações nervosas para que as patas paralisassem, não representando perigo aos charqueadores.

O homem da extrema direita, que mantém a rabada longe do corpo, porta, como os outros, um longo avental de couro. Seu pé esquerdo, grande e forte, é bem visível, enquanto o direito é visto parcialmente. Há uma faca colocada transversalmente em suas costas e, se o olharmos bem, poderá estar esboçando um sorriso ou falando com os outros cinco, que parecem atentos.

Analisando melhor a cena, vê-se que os sete homens trazem na cabeça barretes de couro ou de pano. O chapéu seria incômodo nesta atividade que requer agilidade e destreza. O gorro é leve, protege a cabeça e contém o cabelo, não permitindo que ele caia sobre os olhos. Os gaúchos de fronteira, frequentemente, preferiam usar longas melenas.

Como o tempo de matança acontecia na primavera e verão, os trabalhadores não precisavam usar roupas pesadas. Por isso, todos estão com os braços nus e com camisas ou blusas leves. As facas, instrumentos de uso constante, ficam guardadas nas bainhas ou são afiadas como faz o que está no primeiro plano. Ele afia uma faca na ou-tra, pois faca e chaira precisavam estar sempre prontas para o uso.

A pobreza está à mostra, se observarmos os grandes pés descalços. O tamanho dos pés lembra Portinari e o expressionismo alemão, que muito contribuíram para a formação do artista.

O equilíbrio é mantido em toda a cena e mesmo a medula, que se projeta à direi-ta, tem seu contrapeso no cabo da chaira e da faca do carneador da extrema esquerda. Este parece ser jovem, pois o de boné, bem junto a ele, é mais alto e possante, enquan-to o que está logo a sua frente, com os braços cruzados, é magro, sério e seu chiripá ou tirador projeta-se para fora de uma forma intrigante, se não soubermos que há uma grande faca fazendo pressão sobre o couro.

O que se acha em primeiro plano, como que de frente ao espectador, olha aten-tamente o que sorri, tem as mãos colocadas no bolso e parece ser um dos mais fortes do grupo. O que está ao seu lado tem seu corpo e vestimenta em escuro. Embora em-punhe a faca com força, parece estar numa posição distendida. Sob o braço direito, aflo-ra parte de seu tirador, levantado pela bainha da faca, colocada atrás, em suas costas.

Nota-se uma tensão e um equilíbrio que fascina, no silêncio e no descanso pres-tes a terminar. é uma composição circular, que prende o espectador pela força que dela emana.

118 José Antonio Mazza Leite

manTEiro

Os manteiros são os operários que levavam as mantas de carne para cortar, a fim de colocá-las na salga.

manteiroVestindo capa de couro para protegê-lo da viscosidade do sangue das grandes mantas de carne retiradas do animal

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 119

Um menino arrasta uma cabeça de rês rabada, faca e manteiroacima rabada e Faca e abaixo um rosto e um manteiro vestindo sua capa de proteção

120 José Antonio Mazza Leite

manteiro

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 121

Dois policiais que mantinham a ordem na Charqueadadevido possíveis desavenças entre os trabalhadores, todos safristas

122 José Antonio Mazza Leite

Manteiro com apontamentos de coresDetalhe de uma pá para retirar o matambre

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 123

xilogravura “Manteiros” em sua composição final

124 José Antonio Mazza Leite

manTEiros

Na xilografia, vê-se um homem alto que se destaca dos demais. Traz uma pro-teção de couro que o cobre do pescoço até o começo dos braços. Trata-se de peque-nas capas que protegem os manteiros do sangue e da carne que se prende às roupas, deixando nelas forte odor e úmida pegajosidade. Com essa peça de couro, o manteiro resguardava sua modesta camisa.

O homem maior usa um barrete na cabeça e observa outro, de menor estatu-ra, que carrega a manta de carne bovina. Sua fisionomia está séria, compenetrada no pesado trabalho. O grande avental assemelha-se a uma saia em volta do corpo. Os pés grandes, descalços e fortes, sugerem a caminhada. Uma boina cobre-lhe a cabeça.

Logo atrás do homem grande, que domina a cena, caminha outro trabalhador, cujo avental cobre-lhe as pernas quase até os pés. Com uma faca presa à cintura, pa-rece dirigir-se aos outros três que estão parados. Nota-se que dois estão de chapéu e um usa quepe. Soube, pelo artista, que era comum a presença de guardas (ou policiais) nas Charqueadas, devido as constantes brigas. Sem controle, as possíveis discussões tornavam-se perigosas. A vestimenta desses três homens é completamente diferente das demais.

Os dois guardas estão de costas e são apresentados em cor escura. O da frente, com seu grande chapéu, parece ser mais avantajado e tem os braços voltados para as costas em postura de observação.

Um menino, com a cabeça baixa, segura um cabo arrastando uma cabeça bovina. Seu corpo e um dos braços estão arqueados para frente. Ele tem a cintura fina e usa um avental junto ao corpo.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 125

MatambreiroUm matambreiro enrola o matambre destacado das costelas

em um instrumento de ferro (agarrador); o outro, com uma pá, afasta o matambre das costelas, evitando, ao descolar o couro, de furá-lo com a faca

126 José Antonio Mazza Leite

esboço aquarelado de operário a esquerda com o agarrador o outro usa uma pá para tirar o matambre

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 127

xilogravura de topo “Matambreiros” em sua composição final

128 José Antonio Mazza Leite

maTambrEiros

A xilogravura “Matambreiros” é uma das mais expressivas imagens da série “Xar-queadas”. Os três homens estão trabalhando, em conjunto, no animal abatido. A cabeça bovina está solta, como pairando no ar, à esquerda do espectador. Sua posição, porém, quase à altura do corpo do animal, não desequilibra a cena. Os dois homens que se aju-dam para retirar o couro, usam uma técnica primitiva, mas eficaz. O da esquerda, com o agarrador, retira o matambre que vai se enroscando nele.

agarrador

A ilustração mostra-nos um agarrador. As duas extremidades serviam para o ma-tambreiro firmar as mãos e puxar o matambre. Vê-se, na ilustração anterior, que um operário lança seu corpo para trás, tendo os braços distendidos no ato de puxar o ma-tambre. Seu avental, também de couro, revela uma proeminência à esquerda, causada pela bainha da grande faca que se projeta para fora. Na cabeça, porta uma boina pouco usual. Nota-se que os outros operários optaram pelos bonés justos à cabeça.

De costas para o espectador, usando toda a força do seu corpo, um outro operá-rio corta, com sua grande faca, um dos quartos do animal. A bainha da faca e a chaira projetam-se para fora. As pernas distendidas, o braço curvado, e a mão segurando a faca, dão ideia de seu esforço.

O homem, a nossa direita, segura um tipo de pá que era usada para desprender o couro do animal. Sua superfície plana ajudava a diminuir o esforço do trabalhador que puxa-va o couro e que parece agachar-se no empenho de cumprir a tarefa. Seus braços dão ideia da força que precisava ser feita para ajudar o companheiro. Há um equilíbrio nas imagens, que são todas claras, ficando o escuro nas sombras do corpo do animal morto.

Os três homens diferem dos outros trabalhadores braçais na postura e nos trajes.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 129

piCaDor

Os picadores são operários que quebram (picam), com machados, o arco das costelas para colocá-las em caldeiras pois, através do calor, retira-se melhor a carne dos ossos.

estudo de picador com machado

130 José Antonio Mazza Leite

estudo de picadores com machado

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 131

esboço aquarelado com dois picadores

132 José Antonio Mazza Leite

xilogravura “Picador” em sua composição final.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 133

piCaDor

O animal, sem os seus membros, jaz no solo, podendo-se ver suas costelas ar-queadas, picadas pelas machadadas que dois fortes operários aplicam contra os ossos finos. Um homem segura o machado no ar e seu braço direito, esconde-lhe o rosto. Também ele porta o grande avental de couro cru que o protege do sangue e das partí-culas de ossos que podem saltar em suas pernas. O tom escuro cobre-lhe o corpo.

O trabalhador da direita já desferiu o golpe e procura retirar o machado das cos-telas do animal. Seu avental é mais curto e suas grandes pernas estão assentadas nos pés avantajados, que firmam o corpo no chão. Os dois portam barretes ou casquetes, às vezes feitos em papel de jornal. O da direita reflete uns tons claros, que são em maior número do que os de seu companheiro.

O trabalho desses homens é duro e solitário. A machadada desferida no animal precisa ser bem calculada, tendo em vista a proximidade do companheiro em serviço.

Ao fundo, de costas, um homem trabalha na grande mesa, enquanto outro é apenas perceptível à esquerda. Ambos, por suposição, preparam os miúdos.

Os picadores constituem-se numa das mais fortes xilografias da série “Xarquea-das”. Ali, força e destreza se unem.

linGUEiro

No homem que aparece a seguir, não sentimos o movimento dos outros, mas sua fisionomia, séria e concentrada, nos faz pensar que se trata de uma pessoa mais ve-lha do que os demais charqueadores ou picadores e que sente mais a responsabilidade e o peso de seu trabalho.

Aqui aparece, também, a grande mesa quadrada, reforçada com tábuas nos pés, o que a torna duplamente forte e pesada.

O homem segura, com a mão direita, uma grande faca e, com a esquerda, uma língua que será cortada com ela. Vemos um tanque em que os tubos parecem entrar, pois é bem nítida a tubulação. Nele, observa-se um pequeno relógio para medir a pres-são. Certamente, trata-se de uma tubulação para fazer circular o vapor. Uma grande massa negra, mal formada, que pode ser vista ao fundo, sugere o vapor da água quente. Atrás, formas arredondadas mostram as línguas penduradas.

O homem protege-se com um avental de couro e parece ter um lenço no pesco-ço, como fazem os gaúchos da fronteira.

Seus pés estão descalços e o pé esquerdo, grande e sólido, assenta-se no chão, bem a nossa frente. Um boné cobre-lhe a cabeça. A cena é marcada pela seriedade e concentração do lingueiro, com suas fortes mãos segurando a faca e a carne da língua. Essa xilogravura difere das outras, pela total ausência de movimento.

134 José Antonio Mazza Leite

esboço da xilogravura “lingueiro”

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 135

xilogravura “lingueiro” em sua composição final

136 José Antonio Mazza Leite

TiraDor DE CarrETilHa

esboço da xilogravura “tirador de carretilha”

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 137

Dois estudos do mesmo jovemno mais recuado, seu rosto e o boné. no primeiro plano, ele arqueia o corpo para imprimir

força à pá que, como uma alavanca, separa a carreti lha, que não se visualiza no estudo

Dois estudos do mesmo jovem

138 José Antonio Mazza Leite

xilogravura “tirador de Carretilha” em sua composição final

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 139

TiraDor DE CarrETilHa

A cena mostra cinco homens dedicados a seus afazeres na Charqueada, tendo, no primeiro plano, um trabalhador forçando a carretilha do bovino com a pá. Ele coloca a carretilha para baixo, valendo-se dessa alavanca primitiva. Tratava-se de um tipo de pá, em que, na parte achatada, via-se uma correia destinada a prender a carretilha do bovino. A outra parte da cabeça do animal ficava presa a um cepo enterrado no chão.

O homem coloca toda a sua força nos braços e agacha-se para melhor forçar o deslocamento da carretilha. Seu corpo inteiro está mobilizado e enrijecido nessa tarefa.

Sua roupa é pobre, calças arregaçadas, pés descalços e pernas musculosas que lhe sustentam o corpo. Uma faca prende-se ao cinto nas costas curvadas. Veste uma camisa de mangas curtas e um gorro cobre-lhe a cabeça. Está totalmente imerso em sua tarefa, concentrado no trabalho. Ao fundo, como a observá-lo, outras cabeças bovinas esperam para serem trabalhadas.

Atrás, um picador que já quebrou a carcaça bovina, parece descansar sobre o ma-chado. O menino das cabeças caminha ao fundo com passos largos e o corpo pendendo para a frente. Seus passos vão cruzar com outro trabalhador, que curva violentamente o corpo, tendo as pernas abertas para facilitar o movimento da cintura no momento em que sua faca descarnará uma cabeça bovina. As mãos o ajudam nessa tarefa de descar-nar, pois uma segura a faca e a outra a cabeça do boi. Ao fundo, as pernas do lingueiro são vistas da cintura para baixo.

A mesa, rústica, tem pés de madeira fortalecidos por tábuas que lhe permitem manter-se firme, enquanto há trabalho em sua superfície. Certamente o quadro de ma-deira, que prende os pés da mesa, é o que lhe proporciona maior estabilidade.

Todos os figurantes estão de pés descalços, expondo uma condição social mo-desta e a pobreza que são marcas desses trabalhadores. A cena mostra uma tarefa ár-dua, cansativa, que exigia grande esforço físico de cada um dos seus participantes. Os cinco homens estão condicionados, imersos em seus afazeres.

O artista grava um momento em que o movimento dos corpos e o silêncio da concentração dos trabalhadores são necessários ao exaustivo trabalho que envolve o cotidiano de uma Charqueada.

140 José Antonio Mazza Leite

SALGA

Secção de salgaOs chamados mergulhões, eram os que empurravam as mantas para o interior do tan-

que de salga. Vê-se um deles no esboço e mais quatro que parecem observá-lo. Um capataz, de avental e chapéu, fiscaliza o trabalho

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 141

estudo aquarelado do tanque de salga e os mergulhões trabalhando

142 José Antonio Mazza Leite

xilogravura “Salga” em sua composição final

salGa

Este é o trabalho nos tanques de salmoura. Aqui, vemos oito homens segurando grandes varas de madeira, com aproximadamente dois metros e meio de comprimento, usadas para empurrar as mantas para baixo, a fim de que se conservem embebidas na salmoura. Essas mantas de carne eram cortadas e furadas em toda sua superfície para melhor penetração da salmoura.

Um homem, visto em primeiro plano, à direita, veste uma capa e parece apoiar-se em um bastão ou bengala. é o único que está de chapéu, pois os outros trazem barretes em suas cabeças. Parece tratar-se de um supervisor, ocupando uma função diferenciada e autoritária.

O trabalho desenvolve-se em um grande galpão de alvenaria, onde estão colo-cados os tanques de salga e as pilhas de mantas de carne, que aparecem à direita dos tanques. Essas pilhas estão sendo trabalhadas por operários. Dois deles deslocam o sal com uma pá, cada um trabalhando numa direção. Um pequeno carrinho pode ser visto em primeiro plano, próximo ao homem da capa.

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Ao fundo, percebe-se mais quatro homens que parecem descansar e, ao mesmo tempo, olhar para os que estão em atividade com as pás. Atrás deles, vê-se uma grande janela e uma porta, próximo a qual nota-se um homem observando os tanques.

Esse trabalho, mostrado em sua dinâmica, revela a amplitude do galpão e um grande número de operários necessários para a salga. Esta é a xilogravura que concen-tra o maior número de personagens: são dezesseis homens. A composição equilibra-se, embora direcione para a esquerda o conjunto de homens e as atividades que ali são realizadas.

Comunica, para quem observa a xilogravura, as condições penosas e cansativas que deveriam pesar sobre os trabalhadores. Todos os que estão em atividade parecem estar absorvidos pelo que fazem.

xilógrafo gravando

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As primeiras Charqueadas surgiram por volta de 1780, no Rincão das Pelotas, município de Rio Grande, onde o bastião português firmou-se, após a expulsão dos espanhóis. As Charqueadas tiveram uma época de prosperidade, cantada ou decanta-da algumas vezes pelos viajantes que por aqui passaram e escreveram sobre elas. Mas tiveram, também, seu tempo de declínio e foram desaparecendo, gradativamente, por força dos avanços tecnológicos.

Meu relato sobre as Charqueadas começa com John Luccock, em 1809, e chega até Victtorio Buccelli em 1905. Foi extremamente enriquecedor, para este trabalho, o testemunho vivo de Antenor Peixoto de Castro, Falecido em 2010. Antenor foi testemu-nha ocular das charqueadas pelotenses, exatamente até o ano em que teve início a 2ª Guerra Mundial, 1939.

A partir daí, procuro trilhar a história, valendo-me de textos, como os de Simões Lopes Neto, na Revista do 1º centenário de 1912, em que escreve uma belíssima síntese das primeiras e modestas Charqueadas, sua gradual modernização e enriquecimento no decorrer do século XIX. Já no século XX, as Charqueadas de Pelotas decaíram, surgin-do em Bagé alguns grandes empreendimentos nesse setor. Graças à estrada de ferro, que ligava Bagé a Rio Grande, o gado era abatido no local, onde se encontrava em me-lhor estado e quantidade, ou seja, nos ricos campos de Bagé, Dom Pedrito, Aceguá e Cerro Largo, no Uruguai, não sofrendo o desgaste das tropeadas.

Após abordar as Charqueadas de Bagé, inicio o 2ª capítulo, procurando mostrar como a arte realista esteve sempre a serviço dos menos aquinhoados, tanto na paz como na guerra. Assim, chego a Bagé, com seus pintores realistas do pós-guerra, ou seja, o Grupo de Bagé. Afinal, foi no declínio das últimas Charqueadas que o artista plástico Danúbio Gonçalves as desenhou, transformando em xilogravuras imagens dos trabalhadores nas diversas e arriscadas lides da indústria do charque. Sua pro-dução artística foi realizada em 1953. Se a ideia que o motivou foi a denúncia que a arte social, a arte engajada, propunha-se fazer, ela foi levada a cabo no momento mesmo em que se extinguia essa atividade. Dois anos após, em 1955, a Charqueada São Domingos foi fechada e ali teve início um moderno e bem equipado frigorífico. A refrigeração a frio suplantou a conserva a sal nos moldes em que era elaborada desde a descrita por Francisco Millau, em 1771.

Danúbio, convidado a pintar o novo frigorífico, vai ao local e não encontra nada do que o tinha motivado na Charqueada São Domingos. Não havia mais os homens,

Considerações finais

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com suas atitudes típicas de gaúchos campeiros. Sumira tudo que o fascinava: os gritos, os gestos espontâneos, o laço reboleante, tudo isso era passado. Havia, sim, homens de avental branco, bem escanhoados e de botas de borrachas

As roldanas substituiram as zorras e a serra elétrica o machado. O artista, sen-tindo que aquilo que presenciava não tinha a magia e a força do que, anteriormente, o encantou, como algo plasticamente arrebatador e dantesco, recusou o convite.

O final das Charqueadas foi ditado pelo próprio progresso. Desapareceram. Porém, o que foi uma denúncia social feita pelo artista, tornou-se um documento de inestimável va-

lor, pois mostra essa atividade detalhadamente, como ninguém, até então, havia feito.

Arte e história encontraram-se na série “Xarqueadas,” ocupando, hoje, um lugar de memória no acervo do Museu do Charque.

Nesta 3a edição não vi necessidade de modificar esse derradeiro capítulo, procuro sim, em 2011, trazer as cores que o próprio Danúbio colocou em suas xilogravuras e mos-trar como no final do século XX adentrando ao XXI as charquedas se transformaram, servindo a sociedade pelotenses em suas festas de for-matura, casamento e reuniões sociais. A char-queada Santa Rita possui também uma bela pousada.

Como os velhos castelos europeus que são visitados por turistas, nosso jovem Rio Grande do Sul tem nas charquedas o começo de sua história. Elas continuam servindo ao Rio Grande graças a genialidade de seus proprietá-rios e o apoio dos pelotenses.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 147

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abrindo a comporta da graxeira

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 151

livros E DissErTaçõEs

A seguir, em ordem cronológica, os autores que se dedicaram ao tema das Charqueadas: Simões Lopes Neto escreveu sobre elas no 1o Centenário de Pelotas (1812-1912). Suas fontes foram os cronistas e escrivães do século XIX, como Vieira Pimenta e, certamente, as fontes orais que ainda existiam no final do século XIX e início do século XX.

Alberto Coelho da Cunha também faz um precioso documentário nas Antiqua-lhas Pelotenses, publicadas no jornal “Opinião Pública” em 1928, e seu conto “Pai Feli-pe” é uma forte denúncia contra o trabalho escravo.

Data de 1940 o livro “Charqueadas e Frigoríficos. Aspectos Gerais da Industria Pastoril no Rio Grande do Sul”, de Fortunato Pimentel, constituindo-se num amplo pai-nel das Charqueadas e frigoríficos de todo o estado.

As teses de mestrado que consultamos e que falam das Charqueadas serão tam-bém mencionadas. Nosso ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, procedeu uma investigação, entre 1955 e 1960, sobre a sociedade escravocrata e o negro no Brasil Meridional. Foi uma das atividades regulares de pesquisa da cadeira de Sociologia 1 da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Em Pelotas, o autor ficou por dois meses e teve como cicerone o médico pelotense Fernando Osório, filho do célebre historiador pelotense que tem o mesmo nome. A tese de Fernando Henrique refuta a teoria de democracia racial que reinava nos pampas e que foi muito cara a Jorge Sallis Goulart. A dissertação é brilhante, digna de Fernando Henrique e é ponto referencial para o estudo das Charqueadas pelotenses. Nos anos setenta, foram publicadas, no Correio do Povo, as crônicas do médico e historiador Paulo Xavier, que durante mais de duas décadas contempla o tema “Charqueadas” e os mais diferentes assuntos de cunho rural e histórico do Rio Grande do Sul. Em meados de 1980 surgem escritos do médico e pesquisador Alvarino da Fontoura Marques, que publicou uma trilogia de estudos aprofundados do ciclo do charque: “Episódios do Ciclo do Charque”, 1987; “Evolução das Charqueadas Rio-Grandenses”, 1990 e “A Economia do Charque”, 1992. O Dr. Alvarino fez um trabalho de fôlego, minuncioso e muito completo.

Já Mário Maestri Filho, em 1984, lança o livro: O Escravo no Rio Grande do Sul – a Charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Sua tese foi defendida em 1980 na “Université Catholique de Louvain” na Bélgica.

é um amplo painel sobre a escravidão no Rio Grande do Sul, focando as Charque-adas, onde isso ocorreu de uma forma quase absoluta. A exceção à regra foi a Charque-ada de Jean Batiste Roux, que agregava escravos etrabalhadores livros em sua maioria platinos.

Começo agora a citar as dissertações de mestrado e monografias. Em primeiro lugar, vou apresentar a dissertação de João Campos Bonisson, de 22 de fevereiro de 2002, cujo título é: Vida de Prateleira da Carne Bovina Salgada Seca “Tasajo” com e sem cobertura de gordura, apresentada no Curso de Pós-Graduação em Medicina Veteriná-ria da Universidade Federal Fluminense. Ele trabalhou num grande frigorífico fluminen-se, o Sola, que exportava muito charque para os Estados Unidos, cujo consumo é feito pela comunidade hispano americana.

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A dissertação de mestrado de Sandra Jatáhy Pesavento, “A Republica Velha Gaúcha – Charqueadas – Frigoríficos”, de 1978, publicada com o título “A República Velha Gaúcha na fase Pré-Guerra (1890 – 1913)”, aborda as tentativas de aproxi-mação do sindicato dos charqueadores e o governo, bem como as diferenças entre estancieiros e charqueadores. A classe dominante local revelava-se incapaz de, por si só, solucionar seus problemas e o estado demonstrava não corresponder às ne-cessidades dos pecuaristas afetados.

Ao mesmo tempo, os frigoríficos americanos e ingleses, que vieram para o Prata após o final da 1ª Grande Guerra Mundial, começaram a voltar seus olhos para o Brasil. O mercado foi mudando, a carne resfriada necessitava ter qualidade superior como as do Prata, já a carne congelada aceitava cortes menos nobres. Foi dentro desse quadro que as grandes empresas frigoríficas internacionais fizeram sua entrada no Brasil. Os pecuaristas e governo procuraram construir frigoríficos nacionais, mas as sucessivas cri-ses malograram o sucesso do empreendimento. A professora Sandra Jatay Pessavento concluiu que, durante as três décadas do início do século XX, a pecuária gaúcha revelou-se incapaz, mesmo com a ajuda do estado, de realizar as mudanças necessárias dentro de um capitalismo plenamente desenvolvido. Sua dissertação não apresenta fotos nem gravuras da época.

Berenice Corsetti (1983), em sua dissertação intitulada “Estudo da Charqueada Escravista Gaúcha no Século XIX”, analisa os fatores que levaram à desestruturação das Charqueadas gaúchas. Concluiu que são múltiplos esses fatores, desde a con-corrência platina até o aparecimento de forças mais produtivas e modernas que vão substituindo os antigos conceitos da Charqueada escravista. é um longo e minucio-so trabalho de economia e estatística, em que gráficos e números colaboraram com a pesquisa da autora.

A dissertação de mestrado de Eduardo Arriada, “O Processo de Urbanização Pe-lotense (1780 – 1835)”, de 1991, elabora uma análise ampla sobre o Rio Grande do Sul no século XVIII e XIX , quando se estabeleceram os ciclos da pecuária. “é com a desco-berta do ouro em Minas que o eixo da economia brasileira desloca-se mais para o sul e abre importante mercado para sua principal riqueza, o gado. Através do comércio de gado, couro e charque, a região integra-se na economia nacional”. Eduardo Arriada coloca, também, que a formação do sitio urbano ocorreu por razões econômicas e não político-militares. Com as Charqueadas, surgiu um acúmulo de riquezas que propiciou a urbanização. Nos seus primórdios, a vida urbana esteve intimamente ligada à vida rural.

A leitura desse trabalho é imprescindível para que se conheça os primeiros tem-pos de Pelotas, o caráter de seus habitantes e as condições da cidade até a eclosão da Revolução Farroupilha.

A dissertação de mestrado de Jorge Euzébio Assumpção, “Pelotas: Escravidão e Charqueadas (1780 – 1888)”, defendida em 1995, objetiva mostrar a escravidão no Rio Grande do Sul e como as classes dominantes procuraram minimizar uma realidade que aconteceu em São Francisco de Paula, atual Pelotas, onde a escravidão foi mais longa e cruel. Mostra, também, a resistência do movimento servil. Procura desmistificar a afirmação de que a escravidão teria sido mais suave no Sul. Não apresenta nenhu-ma ilustração.

Cláudio Antunes Boucinha, em sua dissertação de mestrado, “História das Char-queadas de Bagé (1891 – 1940)” na Literatura, defendida em 1993, mostra a data corre-ta da primeira Charqueada de Bagé, além de se estender sobre as grandes Charqueadas como a Companhia Industrial Bageense – que foi a primeira – e a Charqueada Santa

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Teresa. As Charqueadas São Martim, Santo Antônio e São Domingo, esta última onde Danúbio Gonçalves desenhou seus estudos durante dois meses, também são motivos de uma acurada análise. A última a ser estudada é a Sociedade Industrial de Sub-Produ-tos Animais Ltda (SISPAL). O trabalho é rico em fotos da época e os varais e turmas de trabalho são mostradas, porém sempre em posição de pose para o fotógrafo, como era costume. Qualquer movimento prejudicava a foto.

O trabalho de Ester V. B. Gutiérrez, (1993), “Negros, Charqueadas & Olarias – Um estudo sobre o espaço pelotense”, tem como objetivo o estudo da arquitetura e do urbanismo. Visa, hipoteticamente, reconstruir a evolução do espaço charqueador pe-lotense. é uma obra que mostra como as Charqueadas antecederam o núcleo urbano e que mais da metade das empresas charqueadoras possuíam olarias, como uma ativi-dade alternativa à mão de obra cativa. é um trabalho imprescindível para quem deseja conhecer a formação de Pelotas. é rico em mapas, tanto do município como do estado. Fala da área fabril como um ambiente macabro, fétido e pestilento. Da mesma autora é o “Sítio Charqueador Pelotense” com xilogravuras e ilustrações de Danúbio Gonçalves, lançado no Instituto Simões Lopes Neto em 2010.

Esse panorama bibliográfico tem, como última referência, a Monografia apre-sentada por Júlio César Figueiredo da Silva, no Estágio Supervisionado do Curso de Graduação em Medicina Veterinária, da Universidade Federal Fluminense, em 1996. O trabalho em questão, teve como objetivo avaliar a perda dos resíduos cárneos, durante a fervura da salmoura, oriunda do processamento do charque, conhecer a composição química do precipitado sobrenadante e sedimento em uma indústria do estado do Rio de Janeiro. Depois de expor como colheu as amostras e testar a composição química, como resultado apresenta que a perda total dos resíduos cárneos foi de 1,49%, o que se constitui numa perda expressiva, uma vez que representa um grande desperdício numa indústria com volumosa produção de charque.

Em sua Introdução, Júlio César da Silva acrescenta:

A produção do charque no Brasil foi importante, pois representou uma das primeiras etapas de conservação da carne bovina. [...] foi uma forma oportuna de suprir nossa vastidão territorial, devido a deficiência do transporte frigorífico. O charque, por sua conservação relativamente longa e por prescindir dos processos de frio, além do seu valor nutritivo, foi se disseminando em todo país. Hoje o charque é consumido em grande escala, seja da população do interior como da urbana, de baixa renda ou não, tornou-se um hábito alimentar da população brasileira.

Essa última afirmação de Júlio Cézar demonstra a atualidade e popularidade do char-que na alimentação de hoje, seja no cardápio cotidiano ou em pratos mais requintados.

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Nos anexos deste livro, cujo tema são as Charqueadas e seus trabalhadores bra-çais, estão algumas das cartas de Danúbio a Ennio e a Cândido Porti nari, seu mestre maior. Achei interessante apresentar a árvore genealógica de Danúbio a parti r de seu tataravô, o coronel Caetano Gonçalves da Silva, fi lho de Bento Gonçalves da Silva.

Certamente, o desassombro das proclamações de Bento Gonçalves e a coragem que tanto ele como Coronel Caetano mostraram com a espada, Danúbio Gonçalves re-peti u com seus livros, pinturas e xilogravuras. São homens que orgulham o nosso Rio Grande do Sul.

Anexos

Nos anexos deste livro, cujo tema são as Charqueadas e seus trabalhadores bra-çais, estão algumas das cartas de Danúbio a Ennio e a Cândido Porti nari, seu mestre

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Documento 1

Transcrito conforme o original

Bagé, 11 de fevereiro de 1945

Prezado amigo Ennio

Afinal veio-me as mãos tua carta, a tanto esperada, e que justificas a sua demora com a falta de tempo para escrever.

Dizes estar satisfeito do êxito obtido pela minha exposição, porém lamentas a venda do “O Cais”, tela preferida por você. Prometi um trabalho e em breve ajustaremos conta.

Pintei um quadro “A Mulher no Trapézio”, motivo do picadeiro circense, creio ser bom. Também, fiz alguns “Croquis no Cabarét”, realizando, então, uma outra composi-ção a óleo, esta, talvez, não muito feliz.

Quanto a teus conselhos de não descuidar-me do desenho, acho que tens toda a razão e como poderá haver boa pintura sem bom desenho? Só no dia 3 do corrente é que fui para a fazenda, onde passei uma semana, voltando depois para o carnaval, logo depois retornarei a estância. Lá iniciei meus estudos de animais, portanto minha preocupação única, no momento, tem sido muito desenho, sem me preocupar com o estilo. No entanto procuro valorizar bem os detalhes anatômicos de mais realce. Torna-se difícil ser animalista, no entanto venci, em parte, muitas dificuldades. Sem desânimo vou firmando meu traço e, agora, risco com mais desembaraço (animais como o cavalo, vaca, cão e o porco).

Falas, ainda, no tiro, que é árduo, mas aconselho capricho, pois assim serás um “menino aplicado”, ato este “muito chic”, como dizia o profeta Lamartine Babo, na Idade Média.

Gostei imensamente das ilustrações da carta, especialmente do “realismo” (par-tículas misteriosas – termo do Meira).

Por falar em mistério, tua avó já voltou do Egito?Dando por fim, peço que escrevas mais seguido. Lembranças ao pessoal de casa

e a você um abraço do “amigo admirador”

158 José Antonio Mazza Leite

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 159

Documento 2

Transcrito conforme o original

Bagé, 4 de março de 1951

Amigo Ennio

Ao regressar da Europa, onde estive por um ano e dois meses, vim encontrar tua carta que me deu notícias da provável vinda a Bagé que se realizaria mais tarde. Lamen-to muito nosso desencontro, pois teria imensa satisfação em te ver. Fiquei, ao chegar, sem saber para onde escrever nem mesmo sabia por onde andavas. Agora tenho o con-tentamento de receber a de 25 de fevereiro, a qual, devido aos inúmeros afazeres, do momento, só vim responder hoje.

Vejo que não te afastastes das atividades do pincel faço votos que continues aproveitando as qualidades de teu talento para o desenho. São interessantíssimas as incumbências tuas com respeito à litografia ou outro gênero da gravura. Eu também me interesso bastante pela gravura, tenho praticado mais na xilogravura. Estou tra-balhando numa atualmente e te enviarei. Ficarei imensamente grato se me enviasses as aquarelas de Portinari de que me falastes. Sou um fervoroso admirador do mestre, é ele o meu pintor predileto do século que vivemos. Aguardo tua oferta ansiosamente. Prometo te enviar meus modestos trabalhos em gravura à medida que forem surgindo.

Fundamos em Bagé um “Clube de Gravura” que terá atividades culturais bem utilitárias. Ao mesmo tempo teremos na rua 7 de setembro (a rua principal) uma galeria para exposição. Pensamos expor trabalhos de gente do Uruguai, Argentina e de muitos estados de nosso Brasil. Mais tarde falarei positivamente sobre isso.

Esperamos inaugurá-la talvez fins deste mês com uma exposição de gravuras ja-ponesas do século XVIII e XIX.

Da velha Europa trouxe muito que contar. Andei por muitos países (Espanha, França, Itália, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Áustria, Suécia e Alemanha) percorrendo museus e tudo que se relacionasse com artes plásticas.

Vim inteiramente reformado como se a vida começasse de novo para mim.Livrei-me das dúvidas que me torturavam no seguimento artístico. Venci todas

impurezas que me atormentavam pela confusão, enfim... caiu a máscara dos Matisse, Braques, Picasso, etc. Há muito de falso e decadente nessa gente que monopoliza ain-da a arte mundial. São pequenos quando equiparados as antigas, principalmente ao lado da grandiosa pintura italiana das primitivas, a Renascença. Junto, pela entrevista, saberás qual o meu conceito atual sobre a arte. Se não concordares gostaria que me expusesses teu ponto divergente ou se pensas oposto as minhas declarações.

Devemos, os trabalhadores de todos os ofícios nos unir para conquistar um mun-do melhor: basta já de individualismo, de “destino” ou do conformismo cretino que virá beneficiar a classe dos opressores mundiais. A cada dia aumenta a cadeia extraordi-

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nária dessa corrente fabulosa que cercará cada vez mais aos gangsters, aos facistas, nazistas, etc. Revolta-me saber que os dirigentes norte-americanos libertaram inimigos de guerra alemães (condenados já a morte!!!) para formarem exército. E que condenam o “Congresso da Paz” por ser uma iniciativa de paz. Mesmo que partisse do Papa seria louvável, já que se trata de PAZ!

Bem, deixo o resto para leres em uma entrevista.

Cordialmente, abraça-te o amigo

Danúbio

Nota: Gostaria de manter correspondência contigo, um dia nos encontraremos e então teremos milhões de coisas a conversarmos sobre nossa comunicação.

Desculpa se me aventurei em ser claro demais sobre certas ideias e se o fiz é para que, se não concordares me critiques violentamente.

Nada mais são do que o debate inteligente e honesto.Manda-me dizer sobre tuas atividades artísticas, pois que poderias encontrar

tempo para o desenho.Contento-me saber que esteja caminhando satisfatoriamente na agronomia. Dia

sonhado este em que o Brasil tiver sua “Reforma Agrária”.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 161

Documento 3

Transcrito conforme o original

Bagé, 4 de março de 1951

Admirado mestre Portinari:

Sinto-me satisfeito por estar lutando pelas mesmas causas que o levaram a tão grandes realizações. Só agora, depois de captar explêndida lição europeia, vim me asso-ciar aos que veem na pintura não um motivo para decorar paredes, mas sim para que um quadro seja um grito de revolta contra os opressores atuais.

Nesta pequena cidade temos o nosso grupo que dirigido por um ideal justo, que virá triunfar futuramente, sentimos despretenciosamente que nossa contribuição será bem valiosa para um Brasil digno de ser vivido pelo homem. Nossa entrevista foi o pri-meiro passo da congregação dos artistas de Bagé, seria portanto para mim e para eles imenso estímulo ter sua opinião sobre ela. Suas palavras representarão o conforto para cumprirmos nossa difícil missão. Assim sendo, espero ansiosamente sua resposta, eu que sempre segui suas atividades como exemplo para o artista do nosso século.

Desde já, muito grato amigo e admirador fervoroso

Meu endereço: Rua General Osório – 1355Bagé – Rio Grande do Sul

162 José Antonio Mazza Leite

Documento 4

Transcrito conforme o original

Bagé, (...) de maio de 1951

Caro Ennio

Venho me desculpar pela demora em responder tua última carta que por vonta-de haveria feito imediatamente, mas que pelo acúmulo de tarefas vim cumprir somente hoje. Trabalhamos quase sem descanso e apesar de Bagé ser uma pequena cidade, as horas são curtas mesmo estendendo-as até meia noite como sempre fazemos. Leio até a 1 hora assuntos doutrinários que são a base da vida do homem futuro e da luta dos companheiros de agora nesses países onde o sistema social vive sob o regime de explo-ração vergonhosa. O “Clube de Gravura” já fundou sua “Escolinha Juvenil de Arte” e tem cerca de 160 crianças bageenses, sendo a maioria filhos de proletários. Devido ao su-cesso da frequência e ao aumento dos interessados pretendemos inaugurar mais duas. Outra realização que abalou a cidade foi a “Galeria de Arte” que no momento tem tido sucesso sem precedentes na “Rainha da Fronteira”. Decorada por mim, Glauco e Glênio (dois companheiros pintores) e realizada em quase sua totalidade por nossas mão, saiu bem “bacana”. Sua frequência nos entusiasmou porque não se nutre unicamente de ele-mentos burgueses, lá entram todas as classes e este era o nosso desejo. No atelier temos um instrutor de ginástica e praticamos exercícios diariamente (inclusive alterofilismo). Assim é que nos sobra vasta disposição para o trabalho cotidiano e nos depuramoos das podridões da classe a que pertencemos.

O “Clube de Gravura” entregará, dia 5 do próximo mês, sua primeira gravura que foi executada por mim. Junto te envio uma cópia.

Não me satisfiz e sei que minhas possibilidades vão muito além, no entanto, tive que trabalhar num período agitadíssimo em que não houve tranquilidade nem tempo para gravá-la continuamente. Em minha estadia na Europa, percorri 9 países e os desastres da guerra me fizeram partidário da PAZ, por ver os notáveis filmes e desenhos animados soviéticos que me documentaram da situação admirável do país socialista. Não posso rebater tua carta porque seria um assunto muito com-prido. Se conversássemos, então teria a oportunidade de te relatar porque estou nesta nova linha. Quero frisar que nossa posição ideológica não interferiu em nossa amizade. Continuarás a ser o Ennio de sempre e sei que um dia virás para o nosso lado. Por enquanto, todo cidadão é digno de respeito se lutar pela PAZ, não importa se seja católico, existencialista, comerciante, anarquista ou outras modalidades de posição social.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 163

Continuo a pensar na gravura do Portinari que me prometeste.Esperando que não demores tanto quanto eu, aguardo resposta. Agora, sobrará

mais tempo para a correspondência, pois vencemos a etapa mais difícil: a do início.Abraça-te o amigo

Nota: Para aproveitar a gravura, podes molhá-la (a tinta é a prova d’água, me parece) e depois impressá-la entre as páginas de um livro grosso. Depois de seca, desa-parecerão as dobras do papel.

Danúbio GonçalvesRua General Osório, 1355 – Bagé/RS

164 José Antonio Mazza Leite

Documento 5

Transcrito conforme o original

Curitiba, 27 de março de 1957

Danúbio

Em meados do ano passado enviei-lhe uma carta, contando coisas e convidando a participar do Salão Paranaense dêste ano. Infelizmente não sabia de seu endereço e, certo do interêsse dos carteiros pelas Belas Artes, subscritei-a apenas com seu nome e Clube de Gravura de Porto Alegre. Deve imaginar que a missiva voltou incólume às minhas mãos meses depois...

Ontem Scliar esteve em casa, ocasião em que fizemos uma agradável “retros-pectiva”, a partir do Sto. Inácio. Soube então do seu endereço e também, constrangido, do falecimento de seu pai. Aceite as condolências deste seu amigo há muito afastado, mas que procura acompanhar de longe os seus passos, vibrando intimamente com seus progressivos êxitos.

Vi no Rio, anos atrás alguns trabalhos seus no Salão de Arte Moderna e em Curiti-ba, na exposição dos gravadores gaúchos trazida pêlo Marcel. Em “Gravuras gaúchas”, revi algumas da série “Xarqueada”.

Devo a você, Danúbio, o pouco que sei de arte. Por sinal, sempre fui um mau alu-no, daquele que se esforçava para meter nesta cabeça todos os segredos de beleza e as maravilhosas descobertas do campo estético.

Cheguei a pintar alguma coisa, desenhar e modelar. Parei, entretanto há três anos, por não ter força de vontade ou não poder me exercitar racionalmente, pelo pou-co tempo que possuia disponível. Entrei todavia no Salão dêste ano com trabalhos de 53 e recebi, para meu espanto, uma medalha de bronze (desenho) e menção honrosa (grupo de ceram).

Como estava entranhado de “miasmas” artísticos, mesmo sem ser propriamente um artista, procurei, desde os bons tempos do Rio, me infiltrar nesse meio. Conheci en-tão muita gente boa e muita gente medíocre.

No comêço de 1953 resolvi imigrar para Curitiba, entrando para uma Funda-ção de Colonização como agrônomo. O isolamento em que me achava e o latente desejo de ver, ouvir e até fazer arte, me impeliram àquele ambiente,que é aqui, diga-se de passagem, bem fracote e até então dominado pelos encarquilhados acadêmicos fotográficos.

Em fins de 55, juntamente com um conhecido, montei, a custa de suor e “pa-pagaios”, uma lojinha de molduras e “arte”. Com altos e baixos, com mais baixos que altos, temos conseguido aguentar o “repuxo” sem nunca tirar o pouco lucro que se pode apurar (!), em benefício da melhor qualidade do negócio. Está hoje com seu conceito

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 165

firmado (moral e artisticamente) e, aos poucos, vamos fazendo coisas interessantes e novas em matéria de molduras, transformando por sua vez, lentamente num incipiente “marché aux tableaux”. Constitui o ponto de reunião de pintores e literatos, de vanguar-da, dali se irradiando um movimento de renovação que está começando a fazer grandes ondas na lagoa do marasmo local.

A lojinha é pequena e muito modesta. Fizemos nós mesmos a decoração na parte da frente e uma oficina atrás. Como o serviço tem aumentado, pretendemos transferir esta última para um barracão, onde, com a entrada de outro sócio (financista), ten-taremos industrializar a moldura – indepedentemente dos trabalhos quase artesanais da loja. Na atual oficinazinha, teremos espaço para uma pequena galeria destinada a exposições.

Desde já o convido para inaugurá-la. Será na segunda quinzena de abril, eu espe-ro. Acredito que somente desse modo terei o ensejo de reve-lo e também hospeda-lo em casa. A comida e a dormida são fracas, mas o acolhimento, tendo certeza, será amigo e confortador.

A cobertura pela imprensa será convincente, os jornalistas são nossos e procuram colocar em destaque as boas coisas surgidas.

É só isso que poderemos oferecer, Danúbio. Economicamente nada garantimos e, por razões íntimas, não desejaria dar um cunho comercial a essa primeira mostra. Que acha do programa? Sei, por Carlos, que você anda absorvido com a construção de sua casa. Seria um bom motivo e uma ótima desculpa para não atender ao convite, mas então eu entro argumentando e apelando pelos velhos laços de amizade que nos uniam, as quais, creio não terem sido embotados por êste lapso de tempo em que nos mantivemos em silêncio. Conto com você.

Gostaria de estender esta carta por muito mais tempo, porém prefiro receber logo uma resposta sua. Escreva-me e também conte coisas.

Aceite um grande e saudoso abraço do amigo certo e firme

Ennio

166 José Antonio Mazza Leite

manteiroDesenho aquarelado

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 167

Bento Gonçalves da Silva era filho do capitão de ordenança Joaquim Gonçalves da Silva (português) e de Perpétua da Costa Meireles (natural de Viamão).

Bento Gonçalves nasceu na freguesia de Triunfo, a 23 de setembro de 1788. Em 1811, Bento Gonçalves, com 23 anos, é incorporado ao exército de Dom Diogo de Souza, o chamado exército pacificador, que invadiu o Uruguai. Um ano depois, de volta a vida civil, foi residir em Cerro Largo (Melo) com casa de negócios e fazenda de criação de gado.

Foi em Cerro Largo que conheceu Caetana Joana Francisca Garcia, dez anos mais jovem do que Bento, filha de abastado fazendeiro. Casaram-se a 7 de setembro de 1814 e desse casa-maento tiveram oito filhos (cinco homens e três mulheres). O quarto filho chamou-se Caetano Gonçalves da Silva e é dessa descendência que nasceu, em Bagé, a 30 de janeiro de 1925, o artista plástico Danúbio Gonçalves.

Filhos de Bento Gonçalves:

F1- Perpétua Justa Gonçalves da SilvaF2- Joaquim Gonçalves da SilvaF3- Bento Gonçalves da Silva FilhoF4- Caetano Gonçalves da SilvaF5- Leão Gonçalves da SilvaF6- Marco Antonio Gonçalves da SilvaF7- Maria Angélica Gonçalves da SilvaF8- Ana Joaquina Gonçalves da Silva

O coronel Caetano, nasceu em Cerro Largo, Uruguai, em 21 de janeiro de 1822, fale-ceu em Bagé em 16 de junho de 1885. Seus pais foram Bento Gonçalves da Silva e Caetana Garcia. Foi capitão de lanceiros da República Rio-Grandense. Mais tarde, fez toda a Guerra do Paraguai, onde regressou com o título de Coronel. Casou-se com Clara Soares da Silva, natural de Bagé, em 1845.

O coronel Caetano, quando faleceu em 1885, deixou quatro filhos adultos, casados, dos quais houve grande descendência.

F1- Bento Gonçalves da SilvaF2- Dorotéa, (falecida)F3- Caetana Gonçalves da SilvaF4- Amélia Gonçalves da SilvaF5- Ismael (falecido)

Breve história do Coronel Caetano Gonçalves da Silva e de sua descendência, a partir de seu filho mais

velho, Bento Gonçalves da Silva

168 José Antonio Mazza Leite

F6- Genuína Gonçalves da Silva

Bento Gonçalves da Silva – nascido a 21/08/1846, em Bagé, onde tornou-se es-tancieiro e onde faleceu. Casado com Jacinta Barcelos, natural de Bagé. Tiveram 8 filhos.

O último filho levou o nome do pai, chamou-se Bento Gonçalves da Silva, nasci-do a 02/07/1894, em Bagé, onde faleceu em 20/06/1955, aos 61 anos. Era fazendeiro. Casou-se em Bagé, a 13/06/1912 com Helena Lopes Villamil, nascida a 21/05/1895 em Bagé. Tiveram quatro filhos.

Bn- zoraida Villamil GonçalvesBn- Bento Villamil GonçalvesBn- Danilo Villamil GonçalvesBn- Danúbio Villamil Gonçalves – nascido em Bagé no ano de 1925, onde casou com

Aida Ferreira. Consagrado artista plástico é professor de artes plásticas em Porto Alegre.

Tiveram duas filhas.

1- Sandra Helena Ferreira Gonçalves, casada com o médico Rubem Wolkind, tem um filho chamado Federico.

2- Tânia Soibelman – casada com o engenheiro Lúcio Soibelman, tem dois filhos. Lívia e Eric.

Tânia é artista plástica e leciona nos Estados Unidos, onde vive o casal. Da-núbio Gonçalves descende, por linha direta do General Bento Gonçalves da Silva, o herói Farroupilha e, do não menos heróico, coronel Caetano Gonçalves da Silva.

Oriundo do patriciado rural sulino, foi o artista plástico que gravou para a posteri-dade a vida dos mais sofridos trabalhadores gaúchos, os empregados das Charqueadas

e os mineiros de Butiá.Com o desaparecimento das Charquea-

das, seu testemunho artístico dessa atividade entra para a história social do Rio Grande do Sul.

Coronel Caetano Gonçalves da silva - nas-ceu em Cerro largo - Uruguai - 1822. Morreu em bagé em 1885.

Capitão dos lanceiros da república riogran-dense (1835-1845).Fez toda a Guerra do Paraguai de onde re-gressou com o título de Coronel do exército nacional.

Fonte: arquivo Histórico do rio Grande do Sul.Fundo iconografia - af08 - (Álbum arquivo Público do estado).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 169

Nasceu em Bagé, RS, mudou-se para o Rio de Janeiro aos dez anos, onde ficou por quatorze anos. Desenhou histórias em quadrinhos e publicou caricaturas em jornais e revistas, estimulado pelo destacado caricaturista Mário Mendez.

Frequentou, neste período, o ateliê de Cândido Portinari e de Roberto Burle Marx, estudando na Fundação Getúlio Vargas gravura com Axl Leskoshek e Carlos Oswald.

Em 1943, em Bagé, realizou sua primeira mostra individual.Entre 1949 e 1951 residiu em Paris, frequentando curso livre na Academia Julien

e diversos museus da França, Espanha, Portugal, Suíça, Itália, Alemanha, Inglaterra, Bél-gica e Holanda.

Retornando a Bagé, participou da fundação do Clube de Gravura de Porto Alegre e de Bagé.

Em 1953 mudou-se para Porto Alegre. Lecionou no Instituto de Artes da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul e no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, onde foi diretor por quinze anos.

Participou das Bienais de São Paulo, das Bienais de Gravura de Porto Rico e Venezuela.

mosTras E EXposiçõEs

1925 - Nasce em Bagé, em 30 de janeiro, trineto de Bento Gonçalves da Silva. 1935 - Reside no Rio de Janeiro por 14 anos.

1939 - Dedica-se à caricatura estimulado por Mário Mendez e J .. Carlos. 1939-Colabora na Revista Cena Muda e Mirim, RJ. 1943 - Desenha com modelo vivo na Sociedade Brasileira de Belas Artes, no Ate-

liê do escultor zamosky e no de Cândido Portinari, sob sua orientação. 1943 - Frequenta o ateliê de Burle Marx. 1946 - Estuda na Fundação Getúlio Vargas, xilogravura com Axel Leskochek, me-

tal com Carlos Oswald e desenho com Santa Rosa. 1946 - Retorna a Bagé onde, com Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti, traba-

lham em ateliê coletivo.

Danúbio Gonçalves sobre o artista

170 José Antonio Mazza Leite

1948 - Premiado com Medalha de Prata e Menção Honrosa no 53° Salão Nacio-nal de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.

1949 - Viaja para a Europa como bolsista do Governo Francês, permanecendo em Paris, onde desenha na Academia Julien e frequenta o Museu do Louvre; durante esta estada conhece vários países europeus; neste período, encontra-se com Portinari, José Moraes, Iberê Camargo e Carlos Scliar.

1951 - Retorna a Bagé e funda com Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti o Clube da Gravura de Bagé, RS e também colabora com o Clube da Gravura de Porto Alegre.

1951 - Medalha de Prata no 5° Salão de Artes Plásticas da Associação Francisco Lisboa, Porto Alegre, RS.

1952 - Desta data até 1998 participa de importantes exposições coletivas em Denver, Colorado, Washington, San Francisco da Califórnia e Nova lorque (EUA); Tóquio, Sakata, Mikko e Suzu (Japão); Porto Rico, Beirute, Jounich, Paris, Haifa (Israel), Rio de Janeiro, São Paulo; além das Bienais do Rio de Janeiro, São Paulo, Latino Americana de Porto Rico, Grabado de América e I e II Bienais da Bahia.

1953 - Recebe “Prêmio de Viagem ao País” no 11 Salão de Arte Moderna, RJ quando viaja para Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.

1953 - Por indicação de Jorge Amado, viaja com a delegação de cultura pela União Soviética, Polônia e Tchecoslováquia, junto do arquiteto Vilanova Artigas e dos pintores Clau Deveza, Carlos Scliar e Djanira.

1958 - Constrói residência-ateliê em Porto Alegre, RS, onde permanece com a família até hoje, dedicando-se à gravura, mosaico, desenho e pintura.

1961 - Recebe 1° Prêmio Medalha de Ouro no Salão de Arte Rio-grandense, Porto Alegre, RS.

1962 - Leciona Iitografia e dirige o Ateliê Livre da Prefeitura de Porto Alegre, RS até 1995. ,

1963 - Recebe 3° Prêmio no 18° Salão de Belo Horizonte, BH. 1965 - Recebe Prêmio Aquisição em Pintura do Museu de Arte Contemporânea

de Paraná no 30° Salão Paranaense, Curitiba, PR. 1969 - Leciona gravura no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Gran-

de do Sul até 1970. 1971 - Expõe no Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, BA. 1974 - Prêmio em Gravura no Panorama de Arte Brasileira Museu de Arte Mo-

derna de São Paulo, SP. 1976 - Expõe no Museu Guido Viaro, Curitiba,PR. 1981 - Retrospectiva no Museu de Arte Moderna de São Paulo, SP. 1982 - Retrospectiva de Gravura no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto

Alegre, RS. 1987 - Retrospectiva na Galeria de Arte Caixa Econômica Estadual do Rio Grande

do Sul, Porto Alegre, RS. 1987 - Expõe no Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis, SC 1991 - Expõe no Museu de Gravura Brasileira, Fundação Átila Taborda, Bagé, RS.

1992 - Expõe na Galeria L’Oeil de Boef, Paris. 1994 - Prêmio Anual de Artes Plásticas da Associação Francisco Lisboa, Porto Ale-

gre, RS. 1995 - Exposição no Museu Leopoldo Gotuzzo, Pelotas,RS. 2000 - lntegra o Conselho do MARGS Ado Malagoli, até 2003. 2000 - Exposição Galeria Mosaico, Porto Alegre, RS.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 171

2000 - Viagem à Capri convidado pelo “Prêmio Capri DeII’Enigma”. 2001 - Homenagem nos 190 anos do município de Bagé, RS, e Fundação do Gru-

po de Bagé pela Prefeitura Municipal. 2001- Recebe medalha “Cidade de Porto Alegre”, conferida pelo prefeito Tarso

Genro, Porto Alegre, RS. 2002 - Representa o Brasil como jurado no Concurso Internacional do logotipo

para “Comino dei Gaúcho” em La Plata e Buenos Aires, Argentina. 2002- Edita o livro “Caminhos e Vivências” com apoio FUMPROARTE. 2003 - Exposição na Casa Arte, em Canoas, RS. 2004- Lançamento do livro “Ser ou não ser arte” em Porto Alegre, RS. 2004 - Exposição “Retrospectiva” no MARGS Ado Malagoli, itinerância pelas cida-

des de Porto Alegre, Bagé e Caixas do Sul, RS; Rio de Janeiro, RJ; Brasília, DF. 2004 - Homenageado pela RBS e Clube de Gravura. 2005 - Participa de Sala Especial do Clube de Gravura na exposição “Impressões”

no Santander Cultural em Porto Alegre-RS. 2005 - Recebe a Comenda Pedro Weingartner da Câmara de Vereadores de Porto

Alegre,RS. 2005 - Recebe Prêmio com Melhor Ilustrador do Ano de Porto Alegre, ilustrando

o livro da Câmara de Comércio Italiana. 2005 - Recebe Prêmio Destaque pela obra, da Secretaria de Estado da Cultura

do RS. 2005 - Faz Painel Comemorativo ao Centenário da Imigração Judaica no RS, insta-

lado no Viaduto Jorge Alberto Mendes Ribeiro, Porto Alegre,~S. 2005- Expõe na Galeria Solaetela, nos 147 anos da cidade de Bagé, RS. 2005 - Expõe na Casa de Cultura Pedro Wagne e no Museu de Gravura Brasileira.

2005-lIustra o livro “Rio Grande em receitas” de Carlos Castilho. 2005 - é homenagiado com placa de bronze, pelos seus 80 anos, no Ateliê Livre

da Prefeitura de Porto Alegre, RS. 2006 - Participa no painel urbano “Memoriéil de Epopéia Rio-Grandense Missio-

neira e Farroupilha”, para a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, RS. 2006 - Trabalha em imagens animadas’ para o filme do cineasta Henrique de

Freitas Lima, sobre a obra de Simões Lopes Neto. 2008 - Exposição na Galeria Casa da Arte, em Porto Alegre. 2008 - Exposição Balonismo, em Torres, no espaço Cultural CEEE, Porto Alegre 2009 - Retrato da Reitora Mirian da Costa Oliveira, para a Universidade Federal

de Ciências da Saúde de Porto Alegre e inauguração deste local. 2009 - Ilustra, com animação gráfica, o filme sobre Oswaldo Aranha, de Julio

Wohlgemuth, a ser gerado na Internet. 2009 - Entrevistado por Ruy Carlos Osterman no “Encontros com o Professor” ,

em Porto Alegre. 2009 - Desenha o selo e comenda comemorativa para “Bagé Duzentos Anos” . 2009 - Exposição Grandes Mestres em Pelotas e Bagé promovido pelo ArtSesc.2010 - Exposição Grandes Mestres em Porto Alegre, Montenegro e Uruguaiana

promovido pelo ArtSesc.2010 - Filme do cineasta Henrique de Freitas Lima da série “Grandes mestres” .2010 - Exposição aos grandes mestres - Danúbio Gonçalves - Centro Cultural Eri-

co Verissimo fazendo itnerância em todo Estado - ArteSesc - IAD-UFPEL.

172 José Antonio Mazza Leite

EXposiçõEs inDiviDUais DE maiorimporTÂnCia

1971 - Museu de Arte Moderna da Bahia (Salvador)1976 - Museu Guido Viaro (Curitiba)1981 - Museu de Arte Moderna de São Paulo (retrospectiva)1982 - Restrospectiva de gravura no Museu de Arte do RS (Porto Alegre)1987 - Museu de Arte de Santa Catarina (Florianópolis)1991 - Museu de Gravura Brasileira, Fundação Átila Taborda (Bagé RS)1992 - Galeria L’Oeil de Boef – Paris1995 - Museu Leopoldo Gotuzzo (Pelotas RS)2000 - Retrospectiva Itinerante: no MARGS (Porto Alegre), no Museu dos Cor-

reios (Brasília), no Espaço Cultural dos Correios (Rio de Janeiro), no Centro Cultural Dr. Henrique Ordovás Filho (Caxias RS), no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (Pelotas RS) e na Casa de Cultura Pedro Wayne (Bagé RS)

EXposiçõEs ColETivas DE maior imporTÂnCia

De 1952 a 1998 - Denver, Colorado, Washington, San Francisco da Califórnia e Nova Ior-que, nos Estados Unidos. Tóquio, Sakata, Mikko, Suzu, no Japão. Porto Rico, Beirute e Jounich, Paris, Haifa (Israel), Rio de Janeiro, São Paulo, Bienal Latino Americana de Porto Rico, Bienais de São Paulo, Bienal de Grabado de América (Venezuela) I e II Bienal da Bahia.

prEmiaçõEs

1948 - Medalha de Prata e Menção Honrosa no 53o Salão Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro)

1951 - Medalha de Prata no 5o Salão de Artes Plásticas da Associação Francisco Lisboa (Porto Alegre)

1953 - Prêmio Viagem ao País no 2o Salão de Arte Moderna (Rio de Janeiro) 1961 - 1o Prêmio Medalha de Ouro no Salão de Arte Rio-grandense (Porto Alegre)

1963 3o Prêmio no 18o. Salão de Belo Horizonte1965 - 1o Prêmio em desenho do 2o Salão da Cidade de Porto Alegre1973 Prêmio Aquisição em pintura do Museu de Arte Contemporânea do Paraná

no 30o Salão Paranaense (Curitiba)1974 - Prêmio em gravura no Panorama de Arte Brasileira Museu de Arte Moder-

na de São Paulo1994 - Prêmio Anual de Artes Plásticas da Associação Francisco Lisboa (Porto Alegre).2001 - Recebe medalha de Porto Alegre, conferida pelo prefeito Tarso Genro.

2005 Recebe a Comenda Pedro Weingartner, entregue pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre;

Recebe prêmio de Melhor Ilustrador do Ano, em Porto Alegre, pelas ilustrações feitas no livro bilingue da Câmara de Comércio Ítalo-Brasileira.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 173

obras Em mUsEUs

Museu de Arte do RS, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Mu-seu Dom Diogo de Souza (Bagé-RS), Museu de Gravura Brasileira (Bagé-RS), Pinacoteca da Prefeitura de Porto Alegre, Museu de Arte Contemporânea do Paraná (Curitiba-PR), Pinacoteca APLUB (Porto Alegre), Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, Museu de Artes Plásticas Puchkin (URSS), Museu de Arte de Santa Catarina (Florianó-polis), Museu Coleção de Ceres Franco (Lagrasse, França), Casa de Gravura (Campos do Jordão-SP).

livros

“Do Conteúdo à Pós Vanguarda” (1995)“Processos Básicos da Pintura” (1996)“Caminhos e Vivências” (sobre a obra de Danúbio Gonçalves, 2002).

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 175

Mais alguns esboços de Danúbio Gonçalves

176 José Antonio Mazza Leite

Ensacando o charque

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 177

Fisionomias de trabalhadores de Charqueada

178 José Antonio Mazza Leite

trabalhadores de charqueada em ação

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 179

Carneadoreslitografia, 1964

180 José Antonio Mazza Leite

Descanço

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 181

Matambreiro com o agarradorbraço e mão empunhando a rabada

182 José Antonio Mazza Leite

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 183

trabalhadores de Charqueada. Seus rostos retratam o autêntico gaúcho de fronteira, os chamados “pelo duro”

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 185

A terceira edição de Xarqueadas de Danúbio Gonçalves um resgate para a história, será acrescido com as documentações fotográficas Wolfgang Hoffmann Harnich Jr. Danú-bio ao ser consultado em partilhar esse livro com a companhia desse fotógrafo alemão ficou entusiasmado, pois os trabalhadores da campanha gaúcha seriam apresentados também através da arte fotográfica (Extraído do livro sobre o RS de Wolgang Hoffmann Harnich do IHGPel).

Introdução para as fotos do Wolfgang Hoffmann Harnich Jr.

Mandei fazer um laço/do couro do Jacaré/Pra lançar meu boi barroso/e meu cavalo Pangaré (Popular).

186 José Antonio Mazza Leite

retomei as boleaderasnova nhapa o laço tem

Heup! Heup! a toda a rédeaPrisco a prisco rompe o além ... iriema (achylles Porto alegre)

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 187

na sombra esparramada do umbu, entre as raízes grossas como lombo de jacarés, os três peões chimarreavam, recostados as caronas, enquanto dos espetos pingava a

gordura do churrasco (Darcy azambuja: no galpão)

188 José Antonio Mazza Leite

Guampa – subst. Corno, chifre do animal vacum. Sua ponta convenientemente prepa-rada serve de copo para o gaúcho beber água ou qualquer outro líquido, em viagem.

O gaúcho conduz a guampa de preferência nos tentos. Há guampas custosamente trabalhadas em ouro ou prata, apresentando também bizarros trabalhos de escultura

feitos no próprio chifre, trabalhos esses que são executados na ponta do canivete. roque Callage.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 189

lá fora, no galpão, à beira do fogo, os peões também, mateando, contavam os rudes “casos”. Ora da vida campeira, das marcações ao pó e ao sol dos dias quentes, dos ro-deios pelas madrugadas frescas, de estouros de tropas de trabalho e perigo; ora casos de amor, de guerras de entreveros. as chamas inquietas davam tons vermelhos à face

dos mateadores, chupavam cigarros, sentados em círculo, atentos ao relato. Darcy azambuja: no Galpão.

190 José Antonio Mazza Leite

Grande harmonia entre elesQuando estão a conversar,

a respeito do animalÉ só o que se ouve falar

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 191

Patrão agregadoOficial e soldado

192 José Antonio Mazza Leite

O poncho-pala enfiadolenço branco a tiracolo;

Meu sombreiro desabadoContra os rigores do sol:

Montei... riscamos na marca:num trote de aproximar,

Deixando queda a comarcaÀs duas, à ressonar

m. Faria Côrrea

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 193

Serviços de campo – marcação

194 José Antonio Mazza Leite

Serviços de campo – marcação

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 195

Serviços de campo – descornação

196 José Antonio Mazza Leite

Serviços de campo – banho carrapaticida

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 197

Gaúchos não costumam dançar juntos, exceto por farra

198 José Antonio Mazza Leite

“... escuta, amigo, não quer ver as nossas galinhas de raça?”

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 199

balada para os carreteiros:A carreta, avança, parada no tempo gemendo a mágoa da roda vagarosa,Verão e inverno, toldo curvo humildemente,Passividade, estrada a fora.– ôooo... ôooooMal resolve a linha rara do horizonte.Monotonia de partir e de chegarOs bois refletem na pupila a indiferença

200 José Antonio Mazza Leite

E a dor confusa de quem fosse para longeSem a confiança de ficar numa querência– ôooo... ôooooA uma doçura fatalista na lonjuraOuço a canção do carreteiro muito de longeTudo é longe como um sonho, por que a gente, quando chegar não acha pouco

no repousoE há de volver há uma infinita carreteadaEternamente– ôooo... ôoooo

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 201

Na charqueada – a matança e...

varais...

202 José Antonio Mazza Leite

Cooperativa Sudeste de Carne acervo do instituto Histórico Geográfico de Pelotas, data provável de 1950

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 203

Charquedas no século XX e XXi

As charqueadas que até o lançamento desse livro, setembro de 2011 estão aber-tas para comemorações são: A Santa Rita, onde está o Museu do Charque, a São João, que foi de José Gonçalves Chaves, a Boa Vista e Avolengo, mais direcionadas a festas sociais, embora todas elas sejam usadas como magnifi cos espaços de lazer.

Conforme Antenor Peixoto de Castro, a charqueada do Coronel Pedro Osório funcionou até 1939, sendo que no últi mo ano, 1938, abateu 38.000 bovinos.

Antenor era também um óti mo escritor e poeta, imortal da Acadêmia Pelotense de Letras.

Escreveu sua reminiscências da Charqueada que foi administrada pelo seu pai. a charqueada da viúva do Coronel Pedro Osório. é uma minuciosa descrição que, com apoio e licença do autor, inseri em meu livro “Xarqueadas” de Danúbio Gonçalves em todas as suas três edições.

Aconselho vivamente a este capítulo escrito por Antenor, Peixoto de Castro uma testemunha ocular das derradeiras charqueadas. O que Danúbio trouxe para as artes plásti cas com seus desenhos e xilogravuras, Antenor perpetuou em seu verídico e co-movente arti go sobre o trabalho nas mangueiras das charqueadas de Pelotas.

recordações da infância

Na década de cinquenta na metade do século XX, Brasil havia mudado. Duas guerras haviam haviam abalado o Mundo. O Brasil ultrapassou a República Velha e o Estado Novo.

Getúlio Vargas havia voltado nos braços do povo e em 24 de agosto de 1954 saíra da vida para entrar na História.

A Charqueada do Século XX e XXI

204 José Antonio Mazza Leite

Pelotas era a segunda cidade do Rio Grande do Sul, acima dela só a capital. O comércio era forte e se benefeciava do progresso das fábricas de conserva, do arroz e dos frigoríficos e matadouros. Os estancieiros vendiam bem a lã de suas ovelhas para as cooperativas de lãs.

O Bazar de Moda passava por uma ótima fase As lojas vendiam muito bem e a família Mazza, com o comendador Raphael Mazza a frente resolveu comprar a char-queada São João que pertencera a José Gonçalves Chaves. Passado algum tempo foi também adquirida a charquada Santa Rita e a Colônia de Férias que seria restaurada para os funcionários da loja. Foi chamada Colônia de Férias Dona Branca Dias Mazza. E de fato, nos finais de semana, meu tio Geraldo ia com os funcionários da loja ajudar os pedreiros da obra que seguia o estilo colonial português, mas com comodidades como lareiras e outras inovações. Após as modificações a casa ganha formas muito claras, com tijolinhos de forma a não ser confundida com a construção original.

A charqueada São João tinha um movimento intenso no final de semana, parecia um clube náutico, alegre e descontraído.

Sob a grande fiqueira do jardim foi realizada a festa de quinze anos de Branca Maria, filha da Tia Noris e Tio Rafael.

As três charqueadas adquiridas pelas lojas Mazza. Depois os irmãos Mazza deci-diram que a São João ficaria com Raphael e a Santa Rita com Geraldo.

A Colônia de Férias era para os funcionários das Lojas e houve muitas comemo-rações de aniversários, visitas de escolas com a presença do Papai Noel. A Colônia Dna. Branca Dias Mazza mostrou como era possível uma convivência harmoniosa e criativa entre capital e trabalho.

Hoje esse belo casarão pertence ao arquiteto Ricardo Ramos, um dos campeões das restaurações dos prédios históricos de Pelotas. Essas três charqueadas, foram preserva-dos graças ao amor que pelotenses como os irmãos Mazza e seu pai Rafael tiveram com essas relíquias históricas que margeiam o arroio Pelotas.

A cidade nos anos cinquenta era bastante pacata e segura comparada com a movimentada Pelotas de 2011.

Nas noites de verão as famílias colocavam as cadeiras na calçada e na fria noi-te de São João era comum vermos fogueiras nas ruas. Recordo da General Vitorino, hoje Anchieta onde moravam meus pais e meu avô Mazza, na casa ao lado. Os ir-mãos de meu pai tinham casa na Vitorino também. Havia a Estrela d’ Alva, armazém do seu Froes, a praça da Faculdade de Direito e a casa do professor Machadinho, a dos Oliveiras, a família Curi, o Santa Margarida a casa do seu João Mascarenhas e no final, junto a praça Pedro Osório, o imponente prédio do Grande Hotel. Por essa rua passei os anos de meninice e juventude, muitas vezes, depois do jantar, caminhava ao lado do meu pai rumo a praça Coronel Pedro Osório, nossas conversas geral-mente versavam sobre História e a Segunda Guerra. Nessa época vivia com minha família e meus amigos os belos anos de Pelotas na década de cinquenta.

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 205

Foi comemorado no dia de sete de julho de 2011 os 199 anos da fundação de Pelotas. Os festejos foram muitos. Começa a contagem regressiva para que em 2012 sejam comemorados os 200 anos de nossa cidade.

Achei que esse evento deveria estar presente no meu livro, pois é o coroamento de uma cidade que deu certo, não esqueceu seu passado e se prepara, em cultura e técnica para enfrentar o futuro. Estive presente no momento em que o grande reló-gio digital começou a funcionar contando as horas que faltam para chegarmos aos 200 anos. Após o rufar dos tambores das bandas, o vice-prefeito, Fabrício Tavares, proferiu um belo discurso. Por isso resolvi incluí-lo neste livro. Fabrício Tavares é vice do prefeito Adolfo Antônio Fetter Júnior cujas realizações alavancaram Pelotas. Homem probo, cul-

Relógio que marca a contagem regressiva aos 200 anos de Pelotas

206 José Antonio Mazza Leite

to, através de múltiplas obras, inclusive o asfaltamento da cidade termina seu governo respeitado e aplaudido por grande parte da populção.

Discurso do vice-prefeito Fabrício tavares

Senhoras e Senhores.

Ao completar 199 anos e iniciar a contagem regressiva para os seus 200 anos, quero convidar toda a nossa comunidade, independente de crença política ou religiosa, a prestar homenagem à nossa querida Princesa do Sul.

Fundada em 07 de julho de 1812, a Freguesia de São Francisco de Paula teve o seu desenvolvimento alavancado pela indústria do charque estabelecida às margens do Arroio Pelotas, caracterizando-se como capital econômica e cultural.

Pelotas é uma cidade hospitaleira por vocação, está na essência da sua forma-ção: foi construída com a força de trabalho dos negros e acolheu também portugueses, alemães, franceses, árabes, iltalianos, asiáticos e vários outros povos.

Passado os anos dourados do século XIX, cuja pujança econômica é visível hoje nos casarões e prédios históricos, vários deles restaurados pelo poder público e pela iniciativa privada;

Depois das dificuldades enfrentadas no século XX; Agora no século XXI, Pelotas desponta como um pólo intelectual formador de

mão de obra e conhecimento, com diversas universidades e cursos técnicos;Como referência regional no comércio e na prestação de serviços;Com a agricultura, a pecuária e a agroindústria impulsionando a economia;E o que é melhor, com a possibilidade iminente de alavancar ainda mais o seu

desenvolvimento econômico e social a partir de investimentos como o Polo Naval com-plementar e o Polo Tecnológico, que vão gerar trabalho e renda para a população, ga-rantindo um futuro promissor para a cidade de Pelotas.

Os desafios são grandes. O desenvolvimento acumulou muitas demandas sociais. Sabemos que temos muito a fazer, mas são notórias as melhorias feitas na cidade nos últimos anos.

Tenho absoluta convicção que vamos chegar nos 200 anos com uma saúde me-lhor, com avanços na educação, com mais empregos, com melhor infraestrutura urbana e rural, e muito perto de ter toda a cidade com esgoto tratado, o que significa mais qualidade de vida e um futuro com mais saúde para os nosso filhos, netos e bisnetos.

Por fim, quero agradecer a todos os colaboradores que até agora participaram de alguma forma do planejamento e da organização da programação dos 200 anos, que inicia hoje e vai até o dia 07 de julho de 2012, com a realização de várias ações e eventos que vão divulgar a cidade e atrair investimentos e visitantes.

Quero desejar que o ano do bicentenário fique registrado na história como mais um momento de prosperidade da cidade e do povo de Pelotas.

Venham participar dos 200 anos de Pelotas!Vamos abraçar a nossa Princesa do Sul!

Pelotas, 7 de Julho de 2011

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 207

Noiva - ao fundo charqueada do Barão do Jarau

Glória Menezes no Museu do Charque segurando uma réplica de uma “pelota” ao fundo a sede da Charqueada Santa Rita.

Arroio Pelotas hoje é navegado pelas noivas. No passado levava os iates com charque

208 José Antonio Mazza Leite

Grupo de formandas de psicologia da Universidade Católica de Pelotas 2011.Charqueada Boa Vista.

Charqueada Boa Vista

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 209

Charqueada Boa Vista

Barco de passeio turístico pelo Arroio Pelotas patrimônio cultural do Estado. Em suas margens estão as principais charqueadas

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Museu do Charque - Charqueada Santa Rita

Vista da Charqueada Santa Rita

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Presidenta Dilma Rousseff, Luis Inácio Lula da Silva, o casal Roderick e Suzete Clarck mostrando a maquete da Charqueda do Museu do Charque. Na charqueada Santa Rita

Presidenta Dilma Rousseff, entre o casal Roderick e Suzete Clarck

212 José Antonio Mazza Leite

Presidenta Dilma Rousseff na Charqueda Santa Rita

Glória Menezes - ao fundo Charqueada Santa Rita

“Xarquedas”, de Danúbio Gonçalves: um resgate para a História 213

Charqueada São João onde se hospedou o sábio francês August Saint-Hilaire em 1820

Deslumbrante Pôr do Sol no Arroio Pelotas Patrimônio Histórico do Estado