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IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA 1

A FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO NA PALAVRA DE ALBERTO CAEIRO E MANOEL DE BARROS

ROSANA CRISTINA ZANELATTO SANTOS UFMS/CAMPUS DE DOURADOS

1. Introdução

O ensaio ora apresentado visa a divulgar os resultados parciais de nossa

pesquisa Em busca da essência da palavra em O guardador de rebanhos, de Alberto

Caeiro, e O guardador de águas, de Manoel de Barros.

Valendo-nos das concepções fenomenológicas, refletidas suscintamente no

desenvolvimento deste ensaio, ampliamos o horizonte de análise de nosso projeto para a

fenomenologia da imaginação, de inspiração bachelariana, a fim de estudar as referidas

obras de Caeiro e Barros.

A imagem poética seduz o ser do homem. Essa sedução, cremos, foge do

campo investigativo que intenta descobrir nas pressões da vida, na personalidade do

sujeito-escritor o mote de sua gênese. Para esclarecer o fenômeno da imagem poética,

uma das possibilidades é recorrer a uma fenomenologia da imaginação, ou seja, a um

estudo do fenômeno da imagem poética como fruto da consciência do estar-no-mundo

do sujeito-escritor, como fruto do ser do homem em sua totalidade e atualidade. O

sujeito-escritor está cônscio de que, toda vida, foi, é e sempre será presente e que a

literatura, bem como as demais artes, é forma de (re)apresentação desse estar-no-

mundo, o que a torna resistente ao processo empírico da vida e a confirma como

patrimônio permanente da humanidade.

Essa perspectiva, ainda que idealista, reconhece no ser do homem mais do que

o homo faber; ela lhe atribui o status de homo poeticus: sem a literatura, sem as obras de

arte, “não [haveria] um mundo humano reconhecível, apenas o processo interminável da

natureza, cada momento engolido e esquecido tão logo passasse” (MAY, 1988, p. 74).

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2. A perspectiva fenomenológica

a natureza forma um ser vivo mas qualquer, o artista forma um ser morto mas dotado de significação. (GOETHE)

A palavra, apesar de seu caráter fundador, não é capaz de dar conta de todas as

possibilidades de trazer à tona o mundo em sua completude, o que, no entanto, não

esgota a extensão do seu a priori. A forma lingüística pode ser sempre a mesma,

repetida infinitamente, contudo só existirá “palavra poética”, a “palavra viva”, quando

ela, como presença material/objetiva nas páginas do texto, trouxer aos olhos do leitor as

ausências (pre)sentidas, presentificando-as e atribuindo-lhes um significado não apenas

empírico e extrínseco à vida, mas também transcendental.

Se concluíssemos, com um gesto de estilo efetivamente muito husserliano, que os conceitos de vida empírica (ou em geral mundana) e de vida transcendental são radicalmente heterogêneos, e que os dois nomes mantêm entre si uma relação puramente indicativa ou metafórica, então é a própria possibilidade dessa relação que carrega todo o peso da questão. A raiz comum que torna possíveis todas essas metáforas nos parece, ainda, ser o conceito de vida (DERRIDA, 1994, p. 17. Grifo do autor).

As questões que nos incitaram – aliás, problemas fulcrais da ciência literária –

a levar a cabo nosso projeto de pesquisa foram a relação que se estabelece entre a

palavra e o mundo e como o sujeito-escritor, sem negar a exterioridade/o mundo

empírico, foca seu olhar sobre aquilo que se mostra a sua consciência de estar-no-

mundo, ou seja, o fenômeno. Recorramos a Edmund HUSSERL para esboçar os

contornos do fenômeno:

... o fenômeno da percepção de um som e, claro, da percepção evidente e reduzida, exige uma distinção entre o fenómeno e o que aparece, no interior da imanência. Por conseguinte, temos dois dados absolutos, o dado do fenómeno e o dado do objecto; e o objecto, dentro desta imanência, não é imanente no sentido incluso, não é um fragmento do fenómeno: a saber, as fases passadas da duração do som são agora ainda objecto e, no entanto, não estão inclusamente contidas no ponto-do agora do fenómeno (1990, p. 31-2. Grifos do autor).

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Logo, ao lermos palavras, divisamos coisas que existem, intuindo que elas

existem antes da e na consciência de estar-no-mundo do sujeito-escritor. A coisa/a

palavra está num determinado tempo, lugar e situação, sendo preciso apreendê-la. O

fato de a coisa/palavra “estar” não a reduz a um invólucro que se fecha em si mesmo: a

coisa/palavra está dada no fenômeno e em razão do fenômeno. Neste ponto, é preciso

trazer à tona o sentido da palavra fenômeno: fenômeno designa tanto o que aparece

como o próprio aparecer, em processo contínuo de aparição. Aparição é aqui tomada

não como simples processo de aparecer e parecer: ela é a forma sensível de uma

essência que abrange tanto elementos empíricos quanto elementos espirituais, sendo

movimento de significação até mesmo em seus aspectos mais aparentemente

desconcertantes e desconcertados.

Por extensão, entendemos que a fenomenologia do conhecimento – aqui

entendido como forma de apreensão ativa do mundo e da vida (tanto empírica quanto

transcendental) pelo sujeito – intenta dar conta do fenômeno em seu duplo sentido:

como manifestação, como ato da consciência que se mostra, tornando-se visível por

meio da coisa/palavra; e, por outro lado, como a ciência dessa coisa/palavra enquanto

exibição de si mesma. Com base nessa concepção, vemo-nos diante de sua essência, que

se não se assemelha, ao menos complementa o histórico, o empírico, ainda que o

sujeito-escritor se baseie naquilo que capta exterior, individual e intencionalmente:

... essa consciência intencional é sempre pessoal, o vivenciado nele pertence sempre a um eu. Os atos se dão a partir de um eu que os vivenciou e que vive neles. É conforme o modo como ele vive que se pode diferenciar o espontâneo do receptivo na consciência. Por causa de sua presença, esse eu pode viver os atos como presente a eles ou como interveniente neles (BORDINI, 1990, p. 36).

A imagem poética é a possibilidade de dissimulação do saber, que todos os

homens têm, de que apesar da existência de um eterno presente, a morte é certa, mas

não devemos nos deixar morrer antes de sua chegada. Paradoxalmente, a imagem

poética escamoteia a determinação objetiva da mortalidade do homem, ao mesmo tempo

em que nos coloca diante de uma questão-problema: quais são os tempos do ser do

homem?

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Só há e só haverá sempre presente. O ser é presença ou modificação de presença. A relação com a presença do presente como forma última do ser e da idealidade é o movimento pelo qual eu transgrido a existência empírica, a factualidade, a contingência, a mundanidade etc. E, para começar, a minha. Pensar a presença como forma universal da vida transcendental é abrir-me para o saber de que, em minha ausência, além da minha existência empírica, antes do meu nascimento e depois da minha morte, o presente é (DERRIDA, 1994, P. 63. Grifos do autor).

A imagem poética é um dos modos pelo qual o mundo e a vida são

reconhecidos, percebidos e mantidos pelo ser do homem. O parecer e o aparecer que a

dominam (de)marcam a presença de circunstâncias diversas que cercam o sujeito-

escritor: “olhando” indistintamente a paisagem, os ambientes, os seres, sem levar em

consideração as circunstâncias, tudo “parece” igual. Porém, ao analisarmos todo o

conjunto fenomênico, há nuanças que se dão a conhecer, enquanto outras se ocultam, se

desfiguram ou simplesmente desaparecem, exigindo um novo olhar sobre as coisas e

sobre o próprio homem.

... o critério do LOGOS, do discurso coerente, não é a verdade ou a falsidade, mas sim o significado. As palavras em si não são nem verdadeiras nem falsas. ... Assim, implícita no ímpeto da fala, está a busca do significado, e não necessariamente a busca da verdade (ARENDT, 1993, p. 76-7).

A criação das palavras, o nomear das coisas, serve para que o homem se

aproprie e, ao mesmo tempo, se desaliene do mundo empírico. Apesar das palavras, o

sol e a lua, por exemplo, permanecerão intactos no firmamento e diferentes daquele sol

e daquela lua estampados pela imagem poética: ambos são sóis e luas, porém, existentes

e peculiares nos limites de seus próprios universos. A cada novo “aparecer”, os astros

serão reatualizados e adquirirão nova existência, diversa da anterior, no entanto, não

menos significativa ou relevante. Não é possível apreender a natureza e a função da

imagem poética se a considerarmos reprodução do mundo empírico, rigidamente

delimitada por seus componentes individuais.

Aquilo que alguma vez se fixou numa palavra ou nome, daí por diante nunca mais aparecerá apenas como uma realidade, mas

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como a ‘realidade’. ... em lugar de uma ‘expressão’ mais ou menos adequada, apresenta-se uma relação de identidade, de completa coincidência entre a ‘imagem’ e a ‘coisa’, entre o nome e o objeto (CASSIRER, 1992, p.76).

Ou, por meio de uma imagem poética:

O que nós vemos das cousas são as cousas./ Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?/ Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos/ Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,/ Saber ver sem estar a pensar,/ Saber ver quando se vê,/ E nem pensar quando se vê/ Nem ver quando se pensa (CAEIRO, 1992, p. 217).

A imagem poética evoca e atribui sentido ao real por via da imaginação,

(re)apresentando-o. É o processo de variação imaginária que nos fornece a essência de

uma determinada coisa/palavra, considerando as inúmeras percepções dessa mesma

coisa/palavra. Mas de onde vem a coisa/palavra? Eis uma possível resposta, expressa

pelo poema Nascimento da palavra:

Teve a semente que atravessar panos podres, criames/ de insetos, couros, gravetos, pedras, ossarais de peixes,/ cacos de vidro etc. – antes de irromper.

Agora está aberto no meio do monturo um grelo pálido.

Não sabemos até onde os podres o ajudaram nessa/ obstinação de ver o sol.

Ó absconsos ardores!

É atro o canto com reentrâncias que sai das escórias/ de um ser.

Os nascidos de trapo têm mil encolhas... (BARROS, 1998, p. 11).

A coisa/palavra tem “mil encolhas...”

Em busca de uma alternativa que desvende (ainda que parcialmente) o enigma

da imagem poética, reunamos as formas lingüísticas às manifestações de uma ideação

mítica, uma vez que em ambas reside uma mesma necessidade de apreensão intelectual

que faça uso da imaginação:

... a novidade essencial da imagem poética coloca o problema da criatividade do ser falante. Por essa criatividade, a consciência

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imaginante se revela, muito simplesmente, mas muito puramente, como uma origem. Isolar esse valor de origem de diversas imagens poéticas deve ser o objetivo, num estudo da imaginação, de uma fenomenologia da imaginação poética (BACHELARD, 1993, p. 8-9).

3. A palavra que (re)apresenta

Quem fala ou escreve lembra a aranha na luta contra um tecido prestes a se romper. Falamos ou escrevemos para não morrer. Como poderíamos esquecer o que Sheerazade nos ensinou?

A teia, o espaço de cada um, estende-se no espaço comum, o de todos. A teia em cuja construção muitos colaboram distingue-nos das aranhas. Nela vibram as vozes mesmo dos que já não falam. (Donaldo SCHÜLER)

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3.1 Caeiro nos (des)venda o mundo e a vida

Fernando PESSOA sugeriu, em carta a Casais Monteiro, que a heteronímia

seria um fenômeno histérico:

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está a minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo (1990, p. 95).

No diagnóstico sobre o fenômeno heteronímico, sabiamente Pessoa omitiu

quaisquer implicações da heteronímia sobre o sujeito histórico e sua relação com o

mundo exterior, engendrando a heterogeneidade poética.

Na mesma missiva, PESSOA assevera que Caeiro é seu mestre: “E o que se

seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de

Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre”

(1990: 96).

Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa a 16 de abril de 1889 e morreu na

mesma cidade em 1915, conhecendo uma educação básica, sem cursar sequer o

secundário. Álvaro de Campos assim o descreve:

Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei eternamente como primeiro o vi. Primeiro os olhos azuis de criança que não tem medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo - nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de

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fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas... A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, - era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar. (PESSOA, 1990, p. 107)

A descrição de Campos é, diríamos, caeiriana...

Na edição da obra poética de Pessoa organizada por Maria Aliete Galhoz, são

atribuídos a Caeiro três conjuntos de poemas: O guardador de rebanhos, O pastor

amoroso e Poemas inconjuntos. O guardador de rebanhos é composto por 35 poemas.

De modo geral, O guardador de rebanhos, assim como toda a obra de Caeiro,

possui uma linguagem poética simples, fluente, em estilo prosaico, com idéias de

caráter dedutivo, dispostas logicamente/silogisticamente. É um poeta-filósofo.

Distanciado do verso tradicional, rimado/normatizado, as rimas parecem-lhe esvaziadas

convenções e sua proposta para manter o ritmo é o apelo à repetição e à reiteração, por

meio de palavras repetidas e mesmo da repetição de versos completos. Predominam em

seus poemas os substantivos concretos (o rio, a árvore, a flor), havendo a restauração de

um topos clássico: a invocação à Natureza. O locus amoenus clássico, com suas

paragens dominadas por árvores, campinas, fontes, rios e as variantes - vento, pássaros,

flores - é reabilitado por Caeiro. Por quê ? Talvez porque, numa visão clássica de

mundo, a Natureza participa do divino e na Natureza residem a simplicidade, a

espontaneidade, o equilíbrio e o eterno ciclo da vida:

Observe-se o ciclo das árvores: os frutos caem na terra, os quais, ao se decomporem, libertam a semente, origem de novas árvores. Enquanto caminhamos para a morte, cultivamos a vida. Células vivas substituem as mortas, por isso vivemos. Da vigília procede o sono, sono velho solicita vigília (SCHÜLER, 2000, p. 84).

Observamos ainda o uso freqüente do verbo ser, o que parece querer conferir às

coisas um estado de permanência e inerência. A palavra em Caeiro não é apenas uma

representação; ela é a própria realidade (re)apresentada. Segundo CASSIRER,

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Aquilo que alguma vez se fixou numa palavra ou nome, daí por diante nunca mais aparecerá apenas como uma realidade, mas como a realidade ... em lugar de uma ‘expressão’ mais ou menos adequada, apresenta-se uma relação de identidade, de completa coincidência entre a ‘imagem’ e a ‘coisa’ , entre o nome e o objeto (1992: 76).

Isso significa que palavra e objeto possuem existência dependente: quando

Caeiro nos diz “Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?” (1992: 207), não se

refere apenas às árvores que estão lá fora, mas às árvores que povoam o seu universo

literário. Elas têm tanta viva quanto as árvores empíricas:

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? / A de serem verdes e copadas e de terem ramos / E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, / A nós, que não sabemos dar por elas. / Mas que melhor metafísica que a delas, / Que é a de não saber para que vivem / Nem saber o que não sabem? (CAEIRO, 1992, p. 207).

Outro elemento natural presente na obra de Caeiro, o fluir hídrico, presente na

imagem do rio, sugere o eterno fluir poético que se renova a cada instante, renovando o

modo como o poeta sente e dispõe o mundo na criação literária, uma Weltanschauung

revista que faz o rio da aldeia ser mais belo do que o Tejo:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

.......................................................................................................

....................

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. / Quem está ao pé dele está só ao pé dele (CAEIRO, 1992, p. 215-6).

É o esforço para sintetizar o máximo de conteúdo num mínimo de forma sob a

aura aparente da sinceridade. Mas que sinceridade? Sobre ela PESSOA escreve: “A

sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem a vencer. Só uma longa disciplina,

uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as cousas, podem levar o espírito a

esta culminância” (1990, p. 240).

Voltemos à água. A água é um símbolo polissêmico: por ser inconstante,

simboliza a infinitude de possibilidades que se apresentam ao homem e ao mundo; os

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primórdios de toda a matéria (viva ou não); a regenerescência e a purificação física,

psíquica e espiritual (vejamos o batismo); é um princípio quase sempre feminino, por

sua força criadora/reprodutora, porém, paradoxalmente, destruidora, como a

Mãe/Natureza que dá à luz, mas que também castra seus rebentos. É símbolo da

eternidade: não se impõem limites cronológicos à força aquática. O rio era visto pelos

gregos e romanos como um princípio masculino, símbolo da transitoriedade, mas

também da constante renovação. No caso de Caeiro, da renovação poética.

Aos olhos de CAEIRO, o mundo é como é; os olhos enxergam e as palavras

traduzem o que é e não o que deveria ser:

Creio no mundo como num malmequer,/ Porque o vejo./ Mas não penso nele/ Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele/ (Pensar é estar doente dos olhos)/ Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... (1992, p. 204-5).

O olhar é importante, pois capta o mundo ao redor e capta também as

incessantes mutações pelas quais passa esse mundo. A essência do sol continuará a

mesma, no entanto, as percepções acerca desse mesmo sol variarão para sempre, apesar

das “verdades” apregoadas por filósofos e poetas. Caeiro busca alcançar uma

objetividade absoluta, num processo de constante depuração das variações, tentando

livrar a essência das coisas de suas variantes imaginativas.

Em Alberto Caeiro, o sujeito pretende fundir-se ao objeto no simples existir. Caeiro é a trégua nessa luta. O Eu deixa de perguntar-se ‘quem sou?’ para afirmar apenas ‘sou’. Em vez de ser olhado, por outro ou por si mesmo, Caeiro olha para fora. Caeiro não pensa; existe; não é uma mente que especula, é um corpo que sabe (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 90).

No universo de Caeiro, o ser é capaz de alcançar as dimensões daquilo que vê,

não daquilo que poderia ver:

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... / Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer / Porque eu sou do tamanho do que vejo / E não do tamanho da minha altura... (CAEIRO, 1992, p. 208)

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3.2 Manoel de Barros “coisa” a palavra

Apresentemos, pois, o poeta Manoel de Barros, por via do poema Auto-retrato:

Ao nascer eu não estava acordado, de forma que / não via a hora. / Isso faz tempo. / Foi na beira de um rio. / Depois eu já morri 14 vezes. / Só falta a última. / Escrevi 14 livros / E deles estou livrado. / São todos repetições do primeiro. / (Posso fingir de outros, mas não posso fugir de mim)./ Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro. / Em pensamento e palavras namorei noventa moças, / mas pode que nove. / Produzi desobjetos, 35, mas pode que onze. / Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um / abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios, / um prego que farfalha, um parafuso de veludo etc etc. / Tenho uma confissão: noventa por cento do que / escrevo é invenção; só dez por cento é mentira. / Quero morrer no barranco de um rio: - sem moscas / na boca descampada! (BARROS, 2000, p. 45).

Ao assumir seu lugar no mundo, o poeta exala vida, uma vida sempre à cata de

renovação e de possibilidades (“Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro”),

uma celebração dos sentidos: Barros volta-se para as possíveis (re)apresentações de si

mesmo e do mundo circundante, valorizando as imagens que vislumbra. Enquanto

“Minhocas arejam a terra; poeta [arejam] a linguagem” (BARROS, 1985, p. 55). O

poeta

... se faz vidente através de um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura a si próprio, extrai de si todos os venenos para guardar apenas as quintessências (RIMBAUD, apud GOMES, 1994, p. 51).

O objeto de nossa análise é o volume O guardador de águas. Publicado em

1989, encontra-se dividido em cinco partes: O guardador de águas, Passos para a

transfiguração, Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho, Retrato quase apagado em

que se pode ver perfeitamente nada e Beija-flor de rodas vermelhas. Debruçamo-nos

especialmente sobre poemas de O guardador de águas e de Retrato quase apagado em

que se pode ver perfeitamente nada.

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Em O guardador de águas, no Poema II, o poeta apresenta-nos Bernardo (o

guardador de águas?) e alguns de seus feitos:

Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento. / Ele faz encurtamento de águas. / Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros / Até que as águas se ajoelhem / Do tamanho de uma lagarta nos vidros. / No falar com as águas rãs o exercitam (BARROS, 1998b, p. 10).

Bernardo é glorificado por seus feitos aparentemente desconcertantes e

desconcertados, o que lhe garante um lugar significativo no mundo e junto ao leitor.

Bernardo mantém-se vivo graças a seus dons e enfrenta o desgaste corrosivo da morte

que se enreda na enganosa banalidade cotidiana. Ao encurtar as águas, Bernardo

manuseia a inconstância do elemento aquático, promovendo a união daquilo que vem da

terra, das barrancas do rio em movimento, àquilo que emerge das profundezas do

homem, imiscuindo circularmente elementos revivescentes. Bernardo “É homem

percorrido de existências” (BARROS, 1998b, p. 10), ser capaz de agregar numa única

personagem todos os papéis do theatrum mundi, (re)interpretando-se a cada momento.

Bernardo também escreve... na água, como lemos no poema IX:

Bernardo escreve escorreito, com as unhas, na água, / O Dialeto-Rã. / Nele o chão exubera. / O Dialeto-Rã exara lanhos. / Bernardo conversa em rã como quem conversa em Aramaico (BARROS, 1998b, p. 20).

Esse discurso ranítico, aquático-terrestre, levou Bernardo a montar “no quintal

uma Oficina de Transfazer Natureza” (BARROS, 1998b, p. 20): nela as palavras, as

frases, são desmontadas em seus estruturas banais e rígidas e reorganizadas

logicamente, abrindo-se ao diálogo com o aramaico, uma língua dos tempos de outrora,

afinal, “Bernardo é inclinado a quelônio” (BARROS, 1998b, p. 21) e com outros seres

que fazem parte do mundo.

No poema XII de O guardador de águas, lemos: “Ele tem pertinências para

árvore./ O pé vai se alargando, via de calangos, até ser / raizame. Esse ente fala com

águas” (BARROS, 1998b, p. 24).

Quem é esse “ele”? Cremos que seja Bernardo, espraiando sua copa e suas

raízes, tornado-se árvore completa, imagem poética dinâmica, exemplo da necessidade

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de convivência entre elementos aparentemente contraditórios: a copa a subir rumo ao

céu e os filamentos radiculares entranhando-se cada vez mais, como que magnetizados

pela força dos ínferos. Essa imagem já foi estudada por BACHELARD, bem se

adequando à árvore Bernardo:

... a árvore é um objeto integrante. ... Viver como uma árvore! Que crescimento! Que profundidade! Que retidão! Que verdade! ... A árvore está, em toda a parte ao mesmo tempo. A velha raiz – na imaginação não existem raízes jovens – vai produzir uma flor nova. A imaginação é uma árvore. Tem as virtudes integrantes da árvore. É raiz e ramagem. Vive entre o céu e a terra. Vive na terra e no vento (1990, p. 230. Grifo do autor).

Bernardo é uma das muitas árvores de Barros: o objeto presente nos poemas é

o mesmo, porém sempre apresentado mediante uma série de modificações incessantes,

permitindo que apreendamos as variadas percepções acerca de uma mesma, mas outra,

árvore. Portanto, se vão criando novas percepções de um mesmo objeto, uma mesma

coisa, que, essencialmente, permanecerá a mesma.

No poema VIII de Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente

nada, Barros remete-nos às metamorfoses de Ovídio:

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, / Ovídio mostra seres humanos transformados em / pedras, vegetais, bichos, coisas. / Um novo estágio seria que os entes já transformados / falassem um dialeto coisas, larval, pedral etc. / Nasceria uma linguagem madrugenta, adâmica, / edênica, inaugural – (BARROS, 1998b, p. 64).

Os tais “entes já transformados” revelam a existência de uma paridade, de uma

igualdade essencial entre todas as coisas. O que se lhes altera são certos atributos, certas

qualidades

... que definem a diversidade de cada coisa, cada planta, cada animal, cada pessoa; mas não passam de simples e tênues envoltórios de uma substância comum que – se uma profunda paixão se agita – pode transformar-se em algo totalmente diferente (CALVINO, 1990, p. 21).

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Essa constante transmutação/transfazimento é alvo da poética de Barros,

proposta de expansão para todo homo poeticus. Ainda no poema VIII, o poeta propõe

que se aprenda o “dialeto coisas, larval, pedral etc”,

Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às / crianças que foram / Às rãs que foram / Às pedras que foram. / Para voltar à infância, os poetas precisariam também de / reaprender a errar a língua (BARROS, 1998b, p. 64).

É o retorno ao limo das existências primevas, num processo de fecundidade

contínua, como foi expresso por BACHELARD:

O limo é a poeira da água, como a cinza é a poeira do fogo. ... O limo é uma das matérias mais valorizadas. Parece que sob essa forma a água trouxe à terra o próprio princípio da fecundidade calma, lenta, segura.

... É o casamento substancial da terra e da água, realizado no charco, que determina a potência vegetal anônima, gordurosa, curta e abundante (1997, p. 114-5).

Ler Manoel de Barros é como (re)encaminhar-se rumo à argila que deu origem

ao primeiro ser, resgate otimista de coisas, plantas, animais, homens, sentimentos,

atirados à inutilidade, ao esquecimento, por descuido ou por obra de muito uso. O homo

poeticus Manoel de BARROS diz assim o seu ofício: “A gente aceita um vocábulo no

texto não porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas ancestralidades. O

trabalho do poeta é dar ressonância artística a esse material” (1998a, p.6).

4. (Em) considerações finais

O aparente esvaziamento dos conteúdos conscientes/racionais da poética de

Alberto Caeiro e Manoel de Barros acaba desembocando numa visão de mundo

fenomenológica, isto é, numa abordagem das questões filosóficas/humanas rumo ao

retorno às coisas mesmas, buscando nas vivências e nas coisas sua (quint)essência, o

seu sentido primordial. É a procura pelas “pré-coisas”. Barros tenta vislumbrar essa

essência, que é ancestral e sagrada, e desvelar ao leitor os seus segredos, os segredos da

ancestralidade quimérica onde tudo começou:

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O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. / Há que se dar um gosto incasto aos termos. / Haver com eles um relacionamento voluptuoso. / Talvez corrompê-lo até a quimera. / Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. / Não existir mais rei nem regências. / Uma certa liberdade com a luxúria convém (BARROS, 1998b, p. 63).

É a (re)descoberta da vida; é a materialização/a humanização do Absoluto, tão

almejada por Caeiro:

O Menino Jesus adormece nos meus braços / E eu levo-o ao colo para casa.

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..........

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. / Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. / Ele é o humano que é natural, / Ele é o divino que sorri e que brinca. / E por isso é que eu sei com toda a certeza / Que ele é o Menino Jesus verdadeiro (CAEIRO, 1992, p. 210).

Como deixar de notar na poesia de Manoel de Barros a presença de Alberto

Caeiro? – ouçamos/olhemos o eco de O guardador de rebanhos em O guardador de

águas. Essa presença demonstra que as necessidades estilísticas e estruturais dos vários

momentos e estéticas literárias relacionam-se de modo indelével. Como bem assevera

CALVINO: “Cada vida [, cada obra,] é uma enciclopédia, uma biblioteca, um

inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente

remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis” (1990, p. 138).

5. Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio

Abranches et al. 2 ed. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1993.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo

: Martins Fontes, 1997. (Coleção Tópicos)

_______. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo : Martins

Fontes, 1993. (Coleção Tópicos)

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_______. A terra e os devaneios do repouso. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo :

Martins Fontes, 1990. (Coleção Tópicos)

BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro : Record, 2000.

_______. Entrevista. Cult – Revista Brasileira de Literatura. São Paulo, n. 15, out.

1998a.

_______. Livro de pré-coisas: roteiro para uma excursão no Pantanal. Rio de Janeiro :

Philobiblion; Campo Grande : Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul,

1985.

_______. O guardador de águas. 2 ed. Rio de Janeiro : Record, 1998b.

BORDINI, Maria da Glória. Fenomenologia e Teoria Literária. São Paulo : Edusp,

1990. (Criação & Crítica; v. 3)

CAEIRO, Alberto. O guardador de rebanhos. In: PESSOA, Fernando. Obra poética. 3

ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1992.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo

: Companhia das Letras, 1990.

CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Trad. J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. 3

ed. São Paulo : Perspectiva, 1992.

Cult – Revista Brasileira de Literatura, São Paulo, n. 15, out. 1998.

DERRIDA, Jacques. A voz e o fenômeno. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro :

Zahar, 1994.

GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. 2. ed. São Paulo : Atlas, 1994.

HUSSERL, Edmund. A idéia da Fenomenologia. Trad. Artur Morão. Lisboa : Edições

70, 1990.

MAY, Derwent. Hannah Arendt – Uma biografia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro

: Maria Editorial; LTC, 1988.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa – Aquém do eu, além do outro. 2. ed.

São Paulo : Martins Fontes, 1990.

PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.

SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre : L&PM, 2000.