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Lírica Camoniana Autobiografia É sobretudo nos poemas de carácter autobiográfico que mais podemos descortinar a pessoa de Camões. O poeta apresenta-se como um ser diferente, perseguido pela má sorte, por um destino cruel. Segundo José Augusto Cardoso Bernardes , “[…] exceptuando algumas redondilhas ou um ou outro raro soneto de teor exclusivamente lúdico ou circunstancial, pode afirmar-se que toda a obra lírica de Camões se centra na evocação de um itinerário pessoal, assinalado pelo Engano e pelo Desengano, pela Carência e pela Culpa, pela amargura do desconcerto e pela aspiração a uma plenitude em que o Amor ocupa, de facto, um lugar subordinante.” (in História Crítica da Literatura Portuguesa II, Ed. Verbo) Na revista Camões, n OS 2/3 (Ed. Caminho, Set. a Dez. de 1980), editada no âmbito das comemorações do 4º Centenário da Morte de Camões, Baptista-Bastos publicou uma “entrevista” imaginária em que as respostas às perguntas feitas são versos de poemas de Luís de Camões. A título de exemplo segue-se um pequeno excerto: — Camões, você parece ser um homem triste. — Tudo passei; mas tenho tão presente / A grande dor das cousas que passaram / Que as magoadas iras me ensinaram / A não querer já nunca ser contente.

Lírica Camoniana Autobiografia

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Lírica Camoniana Autobiografia

É sobretudo nos poemas de carácter autobiográfico que mais podemos descortinar a

pessoa de Camões. O poeta apresenta-se como um ser diferente, perseguido pela má sorte,

por um destino cruel. Segundo José Augusto Cardoso Bernardes, “[…] exceptuando algumas

redondilhas ou um ou outro raro soneto de teor exclusivamente lúdico ou circunstancial, pode

afirmar-se que toda a obra lírica de Camões se centra na evocação de um itinerário pessoal,

assinalado pelo Engano e pelo Desengano, pela Carência e pela Culpa, pela amargura do

desconcerto e pela aspiração a uma plenitude em que o Amor ocupa, de facto, um lugar

subordinante.” (in História Crítica da Literatura Portuguesa II, Ed. Verbo)

Na revista Camões, nOS 2/3 (Ed. Caminho, Set. a Dez. de 1980), editada no âmbito das

comemorações do 4º Centenário da Morte de Camões, Baptista-Bastos publicou uma

“entrevista” imaginária em que as respostas às perguntas feitas são versos de poemas de Luís

de Camões.

               

A título de exemplo segue-se um pequeno excerto:

— Camões, você parece ser um homem triste.

                    

— Tudo passei; mas tenho tão presente / A grande dor das cousas que passaram / Que as

magoadas iras me ensinaram / A não querer já nunca ser contente.

                    

(Do soneto “Erros meus, má fortuna, amor ardente”)

                    

                    

— Pode definir o amor, você, que foi a ele dado?

                    

— Amor é um fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento

descontente; / É dor que desatina sem doer. / É um não querer mais que bem querer; / É um andar

solitário entre a gente.

(Do soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”)

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— A sua vida foi, portanto, difícil?

                    

— Em prisões baixas fui um tempo atado, / Vergonhoso castigo de meus erros; / lnda agora

arrojando levo os ferros, / Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado. / Sacrifiquei a vida a meu

cuidado, / Que Amor não quer cordeiros nem bezerros; / Vi mágoas, vi misérias, vi desterros, / Parece

que estava assi ordenado.

                    

(Do soneto “Em prisões baixas fui um tempo atado”)

— Mas acredita na permanente transformação das coisas, na transformação do Mundo?

                    

— Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo o

Mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.

(Do soneto “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”)

— No entanto, você, Camões, parece um homem preocupado.

                    

— Tanto de meu estado me acho incerto, / Que em vivo ardor tremendo estou de frio; / Sem causa,

juntamente choro e rio; / O mundo todo abarco e nada aperto. / É tudo quanto sinto um desconcerto; / Da

alma um fogo me sai, da vista um rio; / Agora espero, agora desconfio, / Agora desvario, agora acerto.

                    

(Do soneto “Tanto de meu estado me acho incerto”)