Cartas sem Moral Nenhuma

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CARTAS

SEM MORAL NENHUMA

OBRAS DO MESMO AUCTOR

Inventario de Junho — I vol,

NO prelo :

Londres DiCaravilhosa— i vol.

a seguir:

Sabina Freire — comedia.

AC Teixeira-Gomes

FU>UWH

CARTAS

SEM MORAL NENHUMA

LISBOA I-lVRAklA F.DITOHA

TAVARES CARDOSO & IRMAO 5, Largo dc Camões, 6

1903

Porto — Imprensa Portuguesa — igo;

TJRA O MEU ^MIGO

LUIZ BOTELHO

I

Sevilha —Janeiro.

Meu querido amigo:

Varias foram as razões que de- moraram tanto o meu agradecimen-

to á sua carta de novembro, avul- tando entre ellas o serio estorvo que

nasce de uma doença de olhos, bas- tante, penso, a antecipar-me na cer-

teza do seu perdilo e que me dis-

pensa de enumerar as outras. Não é grave o mal, mas imper-

tinente, e já lá Vao dois mezes que

1

2

me acho privado de toda a leitura

aturada e escassamente posso cum-

prir com o que seja de imprescíndi-

vel obrigação escrever.

Tudo seria coisa nenhuma sem o cfiei to moral da moléstia, o qual de-

veras me apoquenta. Tenho arreca-

dado por estes olhos tanta impres-

são valiosa, e deve-lhes tanto e tan-

to, a minha* alma, a esses dois infa-

tigáveis transmissores de tudo quan-

to o mundo exterior resume de mo-

vimento, côr ou forma, que um se-

creto presagio, uma suspeita de cas-

tigo não cessa de me remorder no

pensamento: não sejam estes os avi-

sos precursores de outra penalidade

mais forte, correspondente ao meu

tão fundo sensualismo.

Vou porém melhor. Com estas

3

•distracções andaluzas se me teem

desvanecido as inquietadoras imagi- nações e sinto-me hoje tão bem que

ouso até, para conversar com os

meus amigos, valer-me d'esta escri- pta aborrecida, sim, mas que se eu

me ativesse exclusivamente ao pra-

zer que d'ella aufiro quando se tra-

ta d'elles, me tomaria todo o meu

tempo.

O que é para surprehender, e bem se pôde taxar de extravagân-

cia, dada a minha quasi mania epis-

tolar, é o pouquíssimo que eu lhe

escrevo, a v., talvez o mais estreme- , •

eido dos meus amigos, e cm quem

penso com tanta constância. E isso

não provem de julgar cu que as ex-

cessivas occupações da sua vida lhe

empecerão a rapidez nas respostas,

4

roubando-me o beneficio que delias

haveria; para mim, melindres taes

nada significariam no presente caso.

Perscrutando bem vejo que tudo se

origina da natureza dos pensamentos

que a sua lembrança forçosamente

me suggere e que são mais graves,

mais penetrantes, mais em harmonia

com a consciência do nosso destino

e sempre fugindo á esphera dos con-

ceitos «espirituosos» ou vãos, onde

a minha intclligencia se ageita tanto

a meu gosto.

Sem o representar calçando o

cothurno do «imperativo categórico»

nem pel land o-se ao sopro ardente da

«Ethica» acostumei-me a vêr em v.

um exemplo de incorruptível tenaci-

dade e rectidão intransigente, capaz

de resistir a quantas afagosas tenta-

s

Ções incitam ao abandono do cami-

nho direito e isso sem que a bonda-

de se lhe embotasse ou, mais, sem

que se lhe liypertrophiasse o egois* moi e, ainda, sem prejuízo d'esses thesouros dc indulgência que o meu amigo tão liberalmente accnmula em

proveito dos outros.

Scr-lhehia difficil, caro amigo, mesmo á luz de bem deduzidas di-

lucidaçQes, avaliar até que profundi- dade v. influiu na reconstituição da

minha alma e porque, d'esta, a par- to sã seja seu reflexo.. ,

Como escrever-Ihe pois no tom oco que afina toda a correspondeu"

cia «agradavel», urdindo-a cm gra-

cejos comesinhamente inspirados no

convencional scepticismo de que se usa e abusa tantof e, procurando al-

6

cançar o austero diapasão das «per-

feitas harmonias», como descobrir ex-

pressões que nío enfastiam e, real-

mente alado, provar que ha enver-

gadura bastante a accommetter — es-

perançoso— as máximas alturas, ali-

jado da conspicuidade e purificado

de todo o fartum do Pedantismo?...

Desejaria quando projecto escre-

ver-lhe, querido amigo, dar ás mi-

nhas cartas o cunho irrefragavel do

que 6 infrangivelmcnte bcllo; mas

jóias de um tão puro quilate não

lh'as posso cu offerecer e seria bal-

dada a pretenção de prender á rea-

lidade aquillo que íluctua livremente

no sonho, e só ali. . .

Tal o obstáculo, agora posto de

lado, para cumprir com o que seja

dever restricto.

7

V. acceita-me a intenção e con-

versaremos acerca do que se nos

deparar pelo caminho plano e sem mais modelado da vida de sem-

pre ..,

II

Sevilha—Janeiro.

Eis o que me ia pela mal tem-

perada alma, vespera da minha sabi- da de casa:

«N'este vil escaninho do mundo, que a arte não alumiou nem alu-

miará nunca, e onde o indígena se

fortifica com as vaidades do dinhei- ro guardado, ou da usura gadanho- sai a ellas se restringe, e d'ellas ti-

ra a única razão de ser, dias tenho cu, na verdade, deliciosamente tris-

tes, mas o morno dia de hoje é ex-

cedente de amargura!

IO

«Em papa-me o espirito a impres- são — o terror — de que nunca mais

deixarei este buraco do niundo, lo-

gar sem interesse para ninguém, lon-

ge da tangente de toda a civilisa-

ção. Que peregrino acaso, que nau-

frágio, que desventura, poderia tra-

zer aqui a qualquer das mulheres

que eu amo, tao dispersas e absor-

tas no que a vida oíferece de me-

lhor; e onde estão esses senhoris re-

tratos de Piero delia Francesca, ou

essa orgulhosa cathedral deslumbran-

te, em cuja vista a solidão se recon-

forta?. . .

t Convém renunciar a toda a

sympathia, a todo o amor! Ou an-

tes, sem disfarce, empedernir-me no

isolamento, varrer da memoria tudo

quanto lembra essas creaturas que

11

deixaram de ser meus pares e, so- bretudo, furtar-me á vulgaridade, á

miséria, de admirar incondicíonal-

mente a ambigua primazia de enti-

dades cuja existência é superior só,

talvez, porque palpita nas regiões

privilegiadas, invejadas, para mim, pouco a pouco, pela distancia, pela

ausência, phantasmagoricas... »

Achava-me na praia esbaguando d este modo os meus tormentos e 0 ar que respirava, arrefecido pelo mar, tfio inebriante, de ordinário, tSo

proprio para alagar o coração de es-

perança, resequia-me o peito. Mal-

dosamente corria sobre as delica- das medusas, cuja rara estructura

marchetava a areia de tâo capricho- sos moldes, como nunca em Mura- no artista algum soprou no vidro

12

tenue, e ia-as pisando, contente de

mudar em escarro nojoso a inflores-

cencia nacarada—violeta e purpura;

carmim, violeta e rosa — d'aquellas

mimosas formas, imagens das mi- nhas phantasias, ali, obscuramente

abandonadas á mercê do tacão de um bruto 1. . .

Em balde se me torvava a con-

sciência clara com o que pungia de

injusto e de perverso n'estas imagi-

nações. 1 ão feliz sempre na minha

vida, tão intensamente feliz, e só por

haver penado cem dias escassos n'es-

se meio hostil, falho de suggestões

afinal tão leves de prescindir, em-

bora figuradas urgentíssimas, tudo se

me cortava em infinitas avenidas de

resentimento e de tédio ao fundo

das quaes luzia teimoso, o festivo,

13

supposto, portico da felicidade, ar* chitectado na miragem da «parti-

da».., A iiora da partida, talvez na

Existência o mais delicioso, esquisito

momento, onde tudo é alacridade, g°so. esperança... Fugir a todas as

Pnsões, mesmo ás mais doces, sup- por que um instante basta para bor-

rar todo o usado scenario da vida

actual e que outra vida começa, en-

redada de incertezas, sim, mas peja- da de larguíssimas promessas, de in*

qutetadorâs visões, de fructuosas chi- meras, nada que se compare a esse

momento de alvorada, tanto mais in- cit.uite quanto mais a miúdo repeti- do ' a cujo feiticeiro rejuvenescimento a alma se dilata illimitadamente. . .

í uz-mc a caminho e logo o es-

14

pirito se alimpou dos requentados

azedumes. . .

Que lindíssima terra esta, excla-

mava eu, ainda na passagem da pon-

te, e o que temos nós a invejar á

Sicilia do Theocrito e mesmo ao

panorama voluptuoso da Bahia de

Baias? E assim era que n'aquelle

momento, a minha de ordinário tão

embellezadora paysagem algarvia se

idealisava, graças á magnificência do

poente. O ceo alaranjado em pana vq-

se de escumilhas doiradas com fran- jas de purpura, e pelo setim do rio

corriam, leves, para a barra, as ve-

las côr de açafrão, cruzando outras, brancas de cal e curvas, que corta-

vam o ar com o movimento sereno

de azas livres no espaço.

Já fóra da ria, ao entrar na terra

IS

firme, começou a cahir a noite; mas

iavrava-se ainda na varzea, junto á

estrada e a traz dos bois os rapazes

entoavam, alto, as lamentações do fado, n'um rythmo apressado e rús-

tico.

Nenhum outro ruido perturbava o adormecer dos campos. No povoa-

do proximo, á minha passagem e a meio da rua, ateiou-se um fogareiro em alas; alguém o tomou nas m5os, a altura do rosto, correndo, e as la-

baredas cresceram na escuridilo, em

madeixas de cabelleira solta. A noite esfriou perto de Silves

com o despontar da lua, cuja luz

desmaiada, curta, reintegrava os tor- reões da cidade na sua lendaria ar-

rogância, Tudo rescendia á flor das

amendoeiras, que branquejavam, jun-

i6

tas, no fundo dos valles, como um

luar mais denso. . . e d'esse perfu-

me se repassava o primeiro somno

da minha viagem...

O dia seguinte foi de alegria sem

mescla, a alma presa no contenta-

mento de viver, só por viver e toda

attenta, ao goso do «momento pre-

sente liberto dos puxões do pas-

sado importuno e do aventar des-

assocegado do futuro.

Eu ia correndo o littoral algarvio

que é um in interrompido jardim, mui-

to povoado de gente e de arvoredo;

as amendoeiras, agora, na realidade

do sol, attrahiam de novo as mi-

nhas imagens, que n'cllas pousavam

de envolta com as abelhas. Havia-as

tao fechadas em flores que perdiam

a sua fornia de arvores e plagiavam

I? "

formas fabulosas, ou ajoelhando, co- roo anjos vestidos de arminho, ou

tremendo dentro de immensos veos de noivas, ou arremettendo, de pé, a rooda dos ursos brancos, ou cor- rendo sobre os esgalhos curvos,—

despropositados aranhiços de flores rosadas.. ,

Mas os tons, do branco de neve,

pulchro, até ao vermelho cereja, nos tjnaes aquella absurda effloresccncia

disparava a sua pyrotechnia chroma- fica, arrebatavam, e a retina, gulosa,

provia-se de festões e grinaldas para 0s sonhos de grande magica.

De ver. me quando, atravez "dos

helices cm que as figueiras da Bar- baria se armam pelas sebes da es-

trada, accendiam-se vastos espelhos de mar, onde a luz se quebrava ao

a

i8

sabor da aragem, em mil facetas ar-

dentes, até que, empecendo-lhes de

todo o brilho, as dunas principia-

ram a ondular, miseravelmente...

Do lado de terra, pouco a pou-

co as serras altas foram-se coando

pelo azul do ceo; as colinas nivela- ram-se; por fim as arvores faltaram:

a estrada rastejou, em lanços rnono-

tonos, na campina lavrada, como um

risco de giz na ardósia limpa. Alar-

gou-se o terreno em planície areno-

sa, malhada com o azebre dos hor-

tejos definhados onde o hálito do

mar se sentia arrefecer e, á vista de

Ayâmonte, um leve aperto do cora-

ção dizia-me já que a saudade da

paysagem familiar e amada começa-

va ali. . .

Ill

Sevilha —Janeiro.

Eu quasi que tornei agora — se bera que atravez de novo prisma — aos meus primeiros amores, a esta

Ilespanha carnal e grosseira mas de cujo poderio e riqueza passada ao

menos se conservam mil maravilho-

sas memorias. O mundo inteiro deu para aqui, no decorrer de séculos, os

primores da sua arte, que as ca- thedraes arrecadaram, conservando-os

ciosamente até hoje na pureza da sua hora primitiva.

20

Fatiei-lhe, por certo, em tempo,

da fabulosa paixão que Sevilha me

inspirou durante annos, paixão rija

e exigente a ponto de me não con-

sentir nem velleidades de resistência

á necessidade forçosa de a vir vêr a miúdo. Aos frequentes rebates da

saudade me punha eu logo a ca-

minho d'esta alliciadora terra e era

sentindo esse mesmo alvoroço, essa

mesma perturbação, que nos causa a

presença da mulher appstecida que

eu me aproximava d'ella.

Era uma entidade cuja vida se

traduzia para mim nas embellezado-

ras manifestações da alegria e da

lascívia, e que se me figurava sem-

pre envolta num manto por tal fór-

ma opulento e de uma tão soberana

magnificência, que á minha visão era

vedado designar-lhe o conjuncto e só á força de ligar detalhes a outros

detalhes lograva reconstituir-lhe algu-

ma das infinitas pregas.

Ao calor da soberba mocidade

que acertei de conservar até tarde

se me exacerbava a embriaguez da

paixão, cegando-me para o que não

fosse elemento de belleza e de pra-

zer a ajuntar ao sentimento já en-

thesourado de uma perfeição acabada e só aqui existente.

Mas, força é confessai-o, essa in-

gente fogueira do enthusiasmo esmo-

receu e consumiu-se, e hoje recordo com a desvalida saudade de tudo o

que se não repete na mesma vida,

os trechos mais turbulentos da vida

de aventuras— que as tive — aqui pas-

sada.

22

Eu quereria soltar d'entre essas

aventuras alguns quadros da mais

tragica, d'aquella onde a minha al-

ma ia sossobrando c pintar-lhc a

encantadora figura de uma creança

ambiciosa e intellígente, que fez de

mim o seu idolo e me levantou na

febre do seu amor ás cumiadas da

adoração que só o génio merece;

depois, quando esclarecido na expe-

riência e amesquinhado o ideal de

que eu fôra a miragem, coiitar-lhe

os tormentos nos quaes essa capri-

chosa e cruel menina me fez expiar

a perda da sua illusão. E contar-

lhe mais como fui eu proprio quem

lhe sopeou a imaginação e, no te-

mor da queda irreparável, a chamei

á realidade d'esta vida por um ca-

minho cujas asperezas se amaciavam

23

ao amparo dos meus soífrimentos; e como, para satisfazer ao carinho de om amor tão límpido que, em mim,

só podia guiar-se pela probidade, fui eu quem lhe arrancou do coração as ultimas raizes do seu amor, mau

grado o receio de que, ao penoso

esforço, se me afundasse a intelligen- cia e a vidai. ..

Mas não se morre de paixões si-

tnilhantes e tal qual os heroes do romantismo me metti eu pelas cafur- nas da crapula e da devassidão, á

busca — e com êxito — do esqueci-

mento por onde restituísse nova-

mente ao espirito a descuidada in-

diflerença da mocidade.

Dizer-lhe então, meu amigo, as noites sensuaes de Sevilha, essas

noites de cruciante deboche, de bes-

24

tialidade, de sadismo, algemado á

embruxada carne de umas bailarinas

desgorjadas e sovadas, mas cujo

suor e cujo sangue me eram suaves

e deleitosos, como no abrazamento

da sede o sumo de sazonados fru-

ctos; de umas bailarinas que resus-

citavam da suffocação do meu cor-

po, do apolear mortal dos meus bra-

ços, para os moventes frisos em

que desdobravam as suas danças en-

gendradas nos mysterios infames de

n3o sei que lascivos e olvidados ri-

tos ou que infernaes liturgias, e se

faziam assim cada vez mais deseja-

das, mais appetecidas, mais necessá-

rias; e d'entre ellas — como num

canteiro de flexuosas papou ias le-

vantinas, dobradas ao peso dos tú-

midos novellos purpúreos em que

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florescem — traçar o altivo, puro ja- cto, do lirío branco que foi o cor-

po insexuado da minha — única 1 —

«Rosario», dulcíssima caçoila de per- fumes onde se acoitava a alma en-

xovalhada da rameira — como em

adorado relicário um gaz mepliitico

— corpo, que eu comprei, á viva força violado—o impudor da alma

o2o sujeitara ainda o pejo da sua

carne — corpo mimoso e cheio como

u rosa de cem folhas, por onde me

integrei nas beatitudes de um altís- simo gozo; descrever-ihe a consum-

PÇSo d'essas noites ao ardor d'utna

pungente febre que, gulosa, nos phos-

phorecia em lúbricas faiscas no olhar, °u, languorescente, o encarvoava de

vazias negridões, quando aos arran- cos dos derradeiros espasmos os ner-

26

vos se sepultam no lodo da sacieda-

de; e—ao compassivo canto das

violas, o acariciar das dolentes me-

lodias que se tecem em brandas

teias de arpejos abafados—as noites

desveladas, noites sem descanço, no

agoniar das quaes se nos rompem

os nervos retezados, com o desfalle-

cer da consciência e o torvar do

cerebro nos veos da incerteza gemea

da loucura, noites angustiadas, que

nos vomitam para o dia, desampa-

rados espectros—já á luz frouxa dos

primeiros alvores, quando a manha

oscilla levemente no céo e se adean-

ta ás revessas, trazida na immensa

aza d'um cysne branco... Mas deixe-me cobrir de cinzas o

rosto e a cabeça e, arrepellando-me,

bater com fúria n'estes peitos, para

2 7

que me nao doa tanto o corrosivo

remorso de outras noites bem mais

criminosas, relembradas ao travo, que mesmo agora me amaruja, de uns

innocentes corações vilmente desflo- rados; noites singulares, noites de

exaltação e de iniquidade, noites de toda a noite mas breves, mas arden-

tes, das quaes uma só bastava á

polluçSo da mais pura das almas Puras, sorvendo-lhe a candidez e a

castidade para a despenhar na de-

pravação e na infamia já amortalha- da nas dobras lívidas do fastio,. á

violência de unia só noite mais effi- caz do que o rondar de vidas intei- ras, quando atravez do corpo tres-

passado nas mil púas do delicioso cilicio da luxuria se vae para todo

° sempre eivar uma alma que para

todo o sempre ficou perdida. De-

vastou-se a ferro e fogo a espessís-

sima floresta para que aos ouvidos

da nympha graciosa e scismadora

que a habita, chegue o dobre de

finados, eternamente retumbando no

bronze do nosso egoismo.

Pois muito embora — que basta

de imposturai—eu desejaria reviver

os horrores voluptuosos de todas es-

sas noites. . .

IV

Sevilha—Janeiro.

Mas não divaguemos que muito

diverso d agora o meu objectivo,

quando toda a curiosidade de novo s& me concentra nas figurações ex-

cel lentes onde se materialisou a ins-

piração de tanto artista esquadrinha- dor e requintado.

li para melhor resumir, fugindo :i dispersão saborosa e habitual em quem recorda, imagino momentanea-

mente que lhe devia dirigir os pas- sos — peregrino prazer quando não

30

• resvale da phantasia á realidade;

aqui, n'esia hora, até a sua affavel

presença me seria importuna. De

resto v. não ignora que, se acontece

porem-se dois amigos a correr mun-

do de conserva, breve se lhes mu-

dará a afieição em odio.—Imagino

pois que o devia encaminhar nos gi-

ros d'este attrahente labyrintho, c

d'eile delinearei o breve roteiro.

A cathedral é aquella acrea ma-

china gothica, abrolhada de vazados

corucheos que, amparando-se á es-

quinada torre arabe, mais tarde se

fortificou nos envolventes baluartes

da renascença— cujas macissas su-

perficies a arte platcresca cobriu de

escudos e medalhões — se avista de

muito longe, movente e recortada,

ao de cima da fluctuantc casaria da

31

cidade. Porque de longe e de toda

a parte a immensa articulada machi-

na arremeda alguma phantasiada ga-

lera, levando a «Giralda» por mas-

tro á pôpa, navegando em mar coa-

lhado de bateis.

Ali o conduziria eu, caro amigo,

como se fossemos cumprir voto de

peregrinação piedosa, tao depressa

nos encontrássemos em «Sevilha» é ali tornaríamos todos os dias, tenha-o

por certo, mesmo quando houvésse-

mos de permanecer mezes e mezes

na capital andaluza.

Concebida e levantada pelos úl-

timos moldes da arte gothica, em chao que sustivera o templo moiro,

enfeitou-a — exteriormente — a arte ita- liana. Da antiga mesquita só poupa- ram a torre c a tuniida ogiva que

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dá accesso ao «Pateo das larangei- ras». A conservação d'aquella velha

torre, assim intacta nas suas arestas

vivas, e ainda entalhada de geomé-

tricos lavores surprehende; o «Pateo

das larangeiras» é recompensa fali az

ao que a túmida ogiva promettia.

Das numerosas portas da basilica

somente quatro, as mais pequenas,

exigem a nossa attenção e- isso gra-

ças, principalmente, aos altos-relevos

das arcliivoltas, obra exquisita, em

barro cosido, de mestres florentinos

e lombardos. Na «adoração dos pas-

tores* da porta de S. Miguel, certa

figura de turbante, rústica e risonha,

que se adeanta para o presepio, en- tranha-se-nos obstinadamente na me-

moria e ahi se fica a par das mais

vibrantes creações da arte. Algumas

33

imagens de santos, postas nas misu- !as lavradas, ao abrigo de rendados

doceletes, embebem-se em profundas e pias meditações ou exprimem in-

tensamente arroubos mysticos. Com t3o apurada arte lhes ' compuzeram as attitudes que o proprio scepticis-

mo as reputaria verosímeis ou natu-

res.

Por essa mesma porta entrava-

mos ao templo e o dia seria breve

para lhe admirarmos, na magestosa

vastidão, a harmonia das insólitas

proporções e o milagre, mercê do Çua], as altíssimas abobadas se sus- tém na leve ramada que brota dos

pilares, armando em feixes de lias- tes delicadas, de modo a deliciar a

vista por engenhosas convergências e successivas eurhythmias.

34

Ao simples relancear de olhos, no

rápido exame de certos arranjos bem

caracterisados, genuínos, da terra que

pisamos, e embora o coração do tem-

plo—a capei la-mÓr e o còro levanta-

dos no centro do cruzeiro—não res-

plandeça á similhança de chamma

crepitante em vasta urna de crystal,

como em «Leon»; ou pelo tumulto

de figuras e ornatos, deslumbrante,

estonteador, como em «Toledo»; ou

jóia de primorosos lavores, comple-

mentar do mais adoravel dos escrí-

nios, como «Burgos»; ou jacente dia-

dema recamado de esmaltes d'onde

se erguem altivos e floridos thyrsos,

como « Palencia»; ou circulo lanceo-

lado de agudíssimas pontas guardan-

do o mysterio de uma crypta sagra-

da, como «Barcelona»;—ao simples

35

relancear de olhos e rápido exame do interior do templo, bem veríamos tJUe este só poderia ser obra da de- voção hespanhola. ,.

N'esse primeiro dia pois consen-

tiríamos que a imaginação se pren- desse ou se dispersasse, absolutamen-

te livre, nos contornos d'aquellas au-

gustas naves, ao fundo das quaes a

luz chega tremula e desfeita, coada nas cambiantes dos vitraes, como pe- las doiradas frondes de uma floresta

roillenaria.

Isssas mesmas vidraças proporcio- "ariam á nossa visita do dia seguin- te o gostoso thema para admiração e estudo de uma arte preciosa que,

alcançado o ultimo grau de excellen- Clai se perdeu. Permutaríamos as nos- Sas impressões na surpreza de vêr

36

refulgir as prestigiosas scenas bíblicas

em pompas veridícamente orientaes,

mercê das gemmas com que se en-

feitam aquelles faustuosissimos, trans-

lúcidos, quadros.

Então passaríamos revista ás gra-

des que, obra de ferro batido, doira-

do, esmaltado, são também obra da

phantasia hespanhola, nunca attingi-

da, nem por sombras, da arte dos

outros paizes. E de taes prodígios é,

por certo, esta egreja optima parada. Começaríamos no altar-mór, pela ces-

ta de vergas de oiro que o envolve,

armando no ar em teias onde se

prendem, ao amparo dos arabescos,

mil diversas figurinhas; depois iría-

mos ás capei las latcraes, e como o

acaso o désse, á archivolta da «Ca-

pella do Espirito Santo» com a in*

37

florescência extravagante dos após- tolos sahindo, a meio corpo, dos cá-

lices de fabulosos lirios; aos monstros

mythologicos que emirtolduram certos

medalhões nas grades que ladeiam a porta de S. Christovam; e á scena

completa do enterro do Salvador, es- boçada com a amplidão do génio,

que se move no arco da «capella do

Mariscal », e, sem preferencia, ás for- mas caprichosas que guardam a en-

trada de todas as demais capellas.

Viríamos depois um dia todo só para examinar as cadeiras do coro—

hoje quasi restituído da medonha, co-

nhecida, catastrophe que por pouco o não pulverisa e que, eu, agora, para

maior simplicidade darei já como aca-

bado de restaurar — as cadeiras do coro onde um formigueiro de figuras

38

miudinhas ri e vive em scenas sem-

pre diversas, mas como que dispos-

tas 11a mesma incendida realidade, por

combinações ditadas ao sabor de uma

arte imaginosa e superior, a qual, é

certo, também arranca em vôos in-

sensatos para o desvairamento mys*

tico, e outros de nevrose, pelos do- mínios da magia, ou cruelmente sa-

tyricos, e obscenos, assim aquella ex-

cedente pagina da desgrenhada mu-

lher nua, que uma descommunal ser-

pente cerca e aperta em frenéticas

roscas, ao passo que a vai sugando

pelo, . , golpe sexual. ..

E como palpita a carne por essas

formas apenas esboçadas que se ani-

nham ou, levissimamente, se encres-

pam nas molduras do facistol, qual

um sonho gracioso do Miguel Ange-

39

1(V—se elle o tivesse que a dôr o não baldasse!. ..

Logo acudiríamos ás pinturas, ao

S'gante S. Christovam que as dimen- sões da parede onde o puzeram fa- Zeni aqui mais gigante do que em

nenhuma outra parte e, a seus pés, aquelle retábulo — toscano mas já re-

passado de funestas imaginações hes-

Panholas —110 qual uma franzina prin- cezai toda formosura e mimo, sorri

disfarçadamente, por entre lagrimas, junto ao corpo, putrefacto mas ainda

estrellado de chagas vivas, do Chris-

morto. Sobre essas chagas levan- ta ella as mitos diaphanas, flores que

germinaram na pompa das mangas

enfunadas do seu roupão de brocado, a° Premer dos fios de pérolas que as

estrangulam; mãos torneadas no am-

4o

bar pállido que eu vejo, nem sei por-

que, mais erguidas peia noite fóra ir

seguindo a rotação tia lua, se um raio

furtivo lhes vem afagar as doces pal-

mas.

Outros velhos pintores hespanhoes

— aparte as «dolorosas» do Morales

— tomam o colorido de Carpaccios

em retábulos de madeira polilhada.

Mas só aqui será possível ver

quem foi o admirável flamengo,

«Campana», na sua grande obra

«o descimento da cruz», agora na

sacristia nova, e nos retratos de do-

natários d'esse fascinador retábulo da

« Capella do Mariscal». Outro pintor raro, mas sevilhano,

«Luis de Vargas», cujo temperamen-

to reponta nas fórmulas clássicas que abraçou, tem aqui também a sua

41

obra-prima, o quadro, celebrado, «del-

ia gamba ».

Do «Murillo» não direi hoje coisa

alguma que a sua lembrança, agora, me impacienta, mau grado o «Santo

Antonio de Padua» e o «Anjo da Guarda »—tão graciosamente andaluz

■— e a «Immaculada» da Sala capi- tular, e tudo o mais que, d'elle, a

cathedral encerra. Esse, por vezes de-

licioso, mestre era captivo de um es-

pirito plebeu e usando de grosseiros

recursos, em mira a gabos gregários,

usurpou a fama dos consummada-

niente grandes; os Zurbaran, os Roe- las. .. Mas louvaremos os recreativos

frescos do «Cepeda» e esse pequeno quadro da «sacristia dos cálices» com

° passamento de Nossa Senhora, cuja

paternidade íluctua, ao sabor dos ex-

42

pertos, dos píncaros do Durer para

as cumiadas dos Van Eyck (!) e per-

manece sempre, imperiosamente, abso-

luta obra-prima.

De caminho haveríamos de repa-

rar nas esculpturas santas entre as

quaes foi, pela injustiça, assign alada

a primasia ao Crucificado — quasi de

carne e osso — do «Montanezho-

je na «sacristia dos cálices». Este

mestre, no beneficio que soube tirar

da sua arte equiparou-se ao Murillo,

mas plagiário e in tencionada mente,

senSo fundamentalmente achavasca-

do, procurou assombrar o publico

soez por meio de transfusões d'uma realidade crua. N' cl las frisou as raias

do génio e felicíssimo no êxito, du-

rante vida e posthumo, até obscure-

ceu a' gloria d'esse prodigioso «Pe-

43

dro Roldan», cuja obra capitai res-

plandece n'esta mesma basilica, mas a° fundo da despropositada capei la do <Sagrario * onde architectura, or-

namentação, tudo, emfim, se torna liostil a nervos que vibrem por sen-

sações de arte.

Como se tratasse de esculptu- ra passaríamos á «Sacristia nova»

acaba concepção «piateresca» e á qual este rotulo, — t plateresco » —

mais applicavel a trabalhos de ou-

rivesaria, cabe com extrema proprie- dade, pois n'ella tudo lembra, guar-

dadas as proporções necessárias, as

harmonicas phantasias que, primeiro, os grandes cinzeladores italianos se

compraziam em repuxar e lavrar nos metaes preciosos. A abobada é bem uma d'essas celebradas salvas da Re-

44

nascença, invertida sobre columnelos

que dividem as paredes em quadros

graciosamente ornados e veem nas-

cer aos lados das amplas commodas

de cedro entalhado onde se arreca- da o melhor dos paramentos reli-

giosos, mas tudo envolto em linhas

e relevos que se completam e com- binam para alcançar um conjuncto

de leveza, e suprema elegância,

A «sacristia nova» serve de ar-

ca ás preciosidades sem numero, e ao mesmo tempo raríssimas, que são

o thesouro da cathedral, A um can-

to o * Tenebrario» de «Bartolome *

que é de bronze e deveria ser de oiro se outro metal não ha mais es-

timado e digno das tão nobremente

modeladas figuras que o enfeitam;

cm armario especial a «Custodia &

45

afamada de «JoSo de Arfe», nome

consagrado, summidade, que levan- tou ao zenith a ourivesaria; e, de

todos os lados, toneladas de prata, 01 as afeiçoada em gomis, bandejas,

cálices, cruzes, castíçaes, turibulos,

aavetas, lanternas, tudo lavrado e

repuxado e burilado e cinzelado, para d'uma vez se fixar, até nas

niniudencias que s3o do exclusivo

domínio do microscópio, quanto a ^'lora e a Fauna da natureza, da

"Paginação e do sonho, prestam ás

transfigurações da arte. A collecção dos paramentos da-

lia para mezes de serio estudo; ve- lhos brocados onde coalharam refie- xos de carne moça, ou que se en-

crespam como a derme, ao estreme- CIniento do caiafrio, ou que se enru-

46

gam em pregas hirtas sob a lepra

d'oiro oculosa de infinitas gemmas;

outros tecidos de incalculável vetus-

tez, teias poidas onde mal se segu-

ram miúdas flores naturaes tão vi-

vas ainda como na propria hora em

que mãos de princezas as bordaram,

á sombra' de byzantinos claustros;

uns veos de fio de prata estrellados

de pepitas de oiro; entalhos de oiro

mass iço a guarnecer mantos de vel-

ludo cada um dos quaes dava para

vestir de gala a dez imperatrizes;

theorias de ternos bordados á mão

a froco, num mesmo estylo, com as

imagens de todos os santos da corte

do ceo, para arroupar centenas de

padres em determinadas funeções, ca-

sulas de torçal e pérolas, rigidas e

tidas de pé, como cascas d'uma in-

47

ventada especie de tartarugas; sen- daes multicores, de imponderável se-

da, que um sopro de creauça agita e

desfralda, desfranzindo-lhe no ar a superficie illuminada a castellos e leões heráldicos, assim o guião, pe- iegrina relíquia, d'el-rei Fernando o Santo.

Mas o extranho resplendor d'esse

diesouro jaz sobre o altar da sacris- tia, em um desvão que quasi toma a parede de lado a lado, e se paten- teia ao publico, diariamente, a hora llxa> como de costume nas cathe- draes hespanholas. Atravez dos límpi- dos crystaes vê-se então mexer e re-

luzir todo um microcosmo de ouro,

de esmaltes, de pedrarias. Muitas d'es- ias jóias consumiram a vida inteira

d° artista de génio que as engen-

48

drou; eu não tenho o génio neces-

sário para as descrever. . . Registrados que fossem estes pri-

mários retalhos e soltos nós, já, dos

fitos obrigatórios, penetraríamos deli- ciosamente á intimidade do monu-

mento por visitas que outra bússola

não tivessem além do capricho e do

acaso.

São innumeras as capellas que,

por não offerecerem particularidades

tão principaes, nem por isso mere-

cem menor attenção; acharíamos ma-

ravilhas, ainda não maculadas pelo

louvor de assalariados charlatães, ali,

n'aqucllas pequeninas igrejas, redu-

cções da grande basílica, em alvéo-

los que á similhança d'ella, nas min-

guadas proporções, encerram altares,

tribunas, cryptas, sacristias e coros.

49

E, já de vez para os passeios

contemplativos, voltaríamos a miúdo errar, descançar, viver, na magestade das assombrosas naves.

Principiaria então o embeveci- oicnto. Tal recanto ignorado desper- tará inesperadamente, borbulhando

fórmas desusadas, ao clarão de uma

madrugada radeante que se filtrou nos cristaes matizados das jancllas; em certos dias e ainda ao sabor de

determinadas claridades, o oiro, tão

Prodigamente esparso, que envelhe- ceu nas trevas de uns altares cava- dos no coração dos muros, refulgirá a niodo de prodígio e povoará essas

cavernas de sumptuosas chimeras; ncs immensos pan nos das vidraças resurgirão' theorias de personagens

magníficos, descollando se á introção

So

de uma luz propicia: haverá n'ellas

transparências astraes e horrores de poentes e uma vida mysteriosa que

agite em cambiantes os protogonis-

tas d'aquellas scenas... Recrudesce-

rá o vigor — a leal firmeza — na dis-

posição das grades, nos truculentos

Ímpetos com que respondem ás in-

vestidas dos crepúsculos nocturnos,

arremettendo contra a sombra nas

pontas triangulares, nos cardos de

ferro, nas macetas ouriçadas de pá as,

aggressivos remates das suas lanças,

congregando-se em cerradas fileiras,

á entrada das capellas — alabardeiros

gigantes, de guarda a thesouros de

magos. , . Desfallecerão as cores, a

certas horas de encantamento, ven-

cidas pelo arrojo das linhas que se

encurvam aereamente; a população

5i

microscópica, que gorgulha no córo, er>grossará e tomar nos ha posse da imaginação; pela «sacristia nova» accommetteremos a realidade do que era fabuloso nas ® mil e uma noi- tes» . .,

Por fim estabeleceremos morada a'i. n'aquella cathedral; fora d'ella, terra de extranhos, casas de vizinhos,

^al o palacio porque anceia a pom-

posa loucura da nossa phantasial

E eu sei o que vale viver assim, d'gno da inveja de príncipes e de reis. ..

Mas para integrar o gozo urgia viver ali também de noite. O que

Posará então o silencio d'aqucllas na* ves, e a deslumbrante princeza da velha «pietá» hespanhola, se estre-

mecerá ella quando um raio furtivo

52

da lua, decantado nos olhos de ame-

thista d'algum Salomao fulvo que se

estadeie nas vidraças, lhe vier afagar

as palmas das mios ambarinas. . .

V

Sevilha —Janeiro.

Por pouco me não engasgo com a

inchada exposição de bellezas atraz

especificadas, no recheio da cathedral de Sevilha. Não confeiçoei ainda xa- ropada assini tão grossa e não era eu que engulia similhante medicina,

quando fossem outras as mãos que,

mesa do espirito— m'a propi- nassem .. ,

Ó supremo fastio de «descre- ver »[

Muito boa bocca terá V. se a

54

droga lhe chegar ao estoniago sem

nausea...

Que, afinal, eu fui «descriptor»

puxado pelas minhas excellentes in-

tenções e relacionando quanto a mo-

cidade portugueza perde em não vir

aqui «tentear» o que seja arte, vis-

to não ter havido em toda a penin-

sula mais accendido centro artístico

do que este, e á nossa nativa indi-

gência bem conviria ver coisa cm

termos de proporcionar formento á

phantasia que se nos vae resequindo.

Esses jovens íisbonenses, ou por-

tuenses, ou bracarenses, ou o que se-

jam, aqui veem nas «semanas san-

tas » mas para dar ensanchas á pan-

dega indígena, liando, no decorrer

dos breves dias, os deleites dos gy-

neceos áquelles igualmente acírrantes

55

praça de toiros, e apenas conse- guem— na obra da civilisaçâo — ibe*

risar a syphilis.

Hem prevenido desejaria eu con-

clamar o que aqui ha de sublime ou

pittoresco a par dos regalos sensuaes — não para condemnaçSo d'estes — e no tentamen de caracterisar quasi encetei um «guia official* que me

entenebreceria a existência, nos em*

maranhados crepes do aborrecimen- to. se porventura profiasse em o le- var a cabo, correndo todas estas Igrejas e palacios.

Mas sem refransear: á inexperta

juventude portuguesa tflo bem como a prudente, sagaz, velhice luzitana,

56

conviria servir-se d'esta vísinhança afagosa para efieituar sortidas contra

a envolvente estupidez e, fora das

suas redomas — os pequeninos aquá-

rios onde luzem as suas gracinhas — dar realidade aos domínios, hoje ape-

nas illusorios da esthetica cujas cul-

turas, á mingua de adubo convenien-

te, mal conseguem transformar em

forragem vergonhosa.

D'alu resulta a farta insipidez

dos nossos predestinados mestres e

cavillosos psychologos, em todos òs

variadíssimos ramos da Arte, E para lamentar que tão estre-

madas aptidões — assim as ha, sem

duvida — andem ás marradas de en-

contro a meras sombras. Cá fora,

ao menos, os críticos sabem ao re-

dondel para escoucinhar as corpo-

57

1 e<is revelações plásticas e á força c'c lhes assentarem nos peitos as 111 arcas das ferraduras conseguem por Vezes fazel-as verter sangue, provan- d° 9lle esses productos da intelligen- Cla lambem podem encarnar.

Na patria nossa parecem andar as coisas tâo torcidas que até se

Comment am e falseiam obras littera- rias P°r glosas e deturpações de se- gunda e terceira m5o, como nesses dois espeques, o «Schiller» e o «Goe-

the», indispensáveis ao acrobatismo

prefaciai de livrinhos de versos, onde elles devem figurar com a opportu-

'hdade de Pilatos no Credo.

O que admira entSo vêr a quem "em1 por photographias conhece a

^sacristia nova de S. Lourenço», ou d ahobada da «capella Xistina», an-

58

dar aos boléos com o desgraçado

Miguel Angelo, só porque certos

phantasistas obnoxios abriram coróa

nos phalus de cantaria, a que nós

chamamos «frades de esquinas, e desrespeitosissimamente os trazem a

publico, como características imagens

de um «S. Gonçalo» ou de um

«S. Gil»?

Ha gravosa desproporção cm tu-

do isto, pois nXo ha?

peor ainda quando os críticos

se pranteiam sobre as glorias pas- sadas ., .

Pôde parallelamente vir aqui á

bailia a menina que dizia: «Vae má

mez pra nós, mana, morreu-nos o

nosso pae e agora a mula não mi-

ja.:.»

59

* * *

Sevilha é um muito completo e bem commentado livro d'arte, lumi-

noso em todas as suas paginas, de

fácil comprehensâo e, por vezes,

Profundamente sentido, a ponto de satisfazer as mais nobres exigências estheticas em capitulos que n5o fo- ram reproduzidos ou arremedados: o

austero, extático e expressivo «S. Je-

ronynio do Torrijano» de onde se

derivou toda uma levantada escola de esculptura; as pinturas do «Zur-

baran > cuja especial eloquência se-

greda maravilhas espírituaes, que silo

""cações de natureza divina; a por- tada de «Santa Paula», immorredoi- ra na fragilidade do barro, ornada

óo

e esmaltada qual a ampliação de um amuleto- ritual dos sacerdotes de

cKarnak»; e as rajadas de harmo-

nias trazidas das tragedias cósmicas

para encarecer a paixão do Christo

com que o nosso «Padre Guerreiro»,

mestre de capella da cathedral, nas

suas composições musicaes se ante-

cipou quasi tres séculos aos desva-

riados arrojos dos maestros actuaes.

Para cortejo á cathedral pullu-

iam n'esta cidade egrejas — muitas incondicionalmente merecedoras de

admiração e exigindo minucioso es-

tudo, taes a da «Universidade», de

«Sant'Anna» da « Caridade» — onde sempre, algum surprehendente deta-

lhe serve de preciosa lição artística.

Não cansa ir em busca d'estas

egrejas porque o aspecto das ruas

6i

c> aqui, iliinjitadaraente variado e

attrahentc, emmaranhando-se ainda nas mesmas circumvoluções traçadas

pelos moiros e que hoje apenas se

reproduzem, assim empeçadas, em volta dos bazares naquellas já rarís-

simas cidades levantiscas onde foi

vedado ao europeu sapar á vontade. Ruas tortuosas e estreitas e que a

nimdo mais se adelgaçam, entre pa-

redes altas de prédios cujos telhados

cabecearam até se juntarem para in- terceptar a luz do dia, a qual, por fim, sempre côa pelas portadas das

casas, alumiando su/íicientemente do

mterior dos pateos, vastos estes e

cercados de galerias á moda arabe.

Esses pateos que, scenarios en-

cantadores, lindamente adornados de plantas verdes, desafogam da estrei-

62

teza das ruas e dao ao transeunte o

risonho espectáculo dos seus vistosos

quadros, íacil é povoal*os convenien-

temente, accommodando em redor

do fio d'agua que repucha no tanque

de mármore e cae sobre as lageas,

familiar, esperto e sonoro, grupos de

airosas raparigas e com ellas a ani-

mação, a vida, o doído canto andaluz

e os movimentos rhythmicos da or-

chestics hespanhola.

O canto é qualificadamente triste

e parece detalhar as maguas de uma

alma namorada ao despedir-se de tu-

do quanto amou.

O anhelo d'aquellas danças que attrahem, juntam, separam dois cor-

pos, de leves alados quasi, na tan-

gente infrangivel de um desejo nunca

satisfeito, denuncia origens sagradas e

63

lrnprime a dignidade propria do sa-

cerdócio a quem as executa com pai-

E uma arte capaz de ennobre- cer scenas triviaes de intimidade ca- seira.

A par da arte que modula os

movimentos do corpo humano, outra se aperfeiçoou aqui, vinda também d° levante, de uma expressão admi- rável, rimando especialmente o ex-

plcndor das côres em sumptuosas

ymphonias muraes: a ceramica. A industria hespanhola- rival da

Ita'iana — robusteceu e fecundou os e'ementos arabes por livres amplia- cões< ás quaes o arrojo — o desacato

64

— só accrescentou diversidade e bri-

lho, sem prejuízo do mimo, de uma

certa graça melindrosa que é pecu-

liar a esta arte.

Convém n3o perder em Sevilha

o ensejo de observar a magnificência

das antigas tapeçarias de azulejos,

tao profusamente colgadas nas pare-

des dos palacios, das igrejas, dos con-

ventos.

Por vezes de uma tonalidade

amortecida, quando expostas á luz

crua, 110 ar livre dos pateos e das

varandas, sensibilisam-se de líquidos

esmaltes no fausto das ante camaras

e dos salões, scintillam na penumbra das alcovas e quasi crepitam, revo-

gando as leis naturaes, para denun-

ciar a sua presença nas trevas dos

santuários e das cryptas.

65

^■rn pequenina e arruinada capei- la, agora ao abandono, da «Casa de las dueiias» o frontal do altar é de

0)ro fiavescente que se alaranja como 11111 c^° d'aurora, no seio de topázios esvaídos; visto um pouco mais de lado craveja-se de esmeraldas reful-

gindo no fundo das aguas puríssimas t,c uma gruta marinha; do ponto

°Pposto veem-se-lhe os leves dese- 11 lios gris e symétricos avultar, como aPplicações de velludò na superfície Selada e lisa de um setim acobreado.

Coincidência milagrosa: por Hes- Panha abundam as ruínas romanas, tenipl°s. amphitheatres, aqueductos,

66

necropoles; os supremos monumen-

tos sarracenos ficaram encravados no

seu solo. a par das graciosas cons-

trucções bysantinas, de tão miúda

estructura e tão cinzeladas, estas, que

foram modelos consagrados para sa-

crários; o período gothico petrificou

a sua anciosa aspiração mystica, a

poesia das suas crenças, o desvario

das suas imaginações, a ingenuidade

do seu sentir, em cem cathedraes gigantescas, rainhas do enxame de

igrejas e capellas, floridas nas infini-

tas variações do mesmo estylo, que illustram a nação inteira; ao remode-

lar as formulas clássicas, os italianos mandaram para aqui do melhor e

mais exquisito que inventaram, se-

mentes para novas, muito mais li-

vres, atrevidas, pujantes phantasias:

<5;

a renascença hespanliola tomou cara- cter e moldes particulares, divulgan-

do-se nos requintes dornamentação

inconfundível com que todo o pair, ainda hoje se enfeita,

A magestade augusta das múlti- plas arcadas sobrepostas do aquedu-

cto de «Segovia», a obra de magia

por onde se inflorou esse visionado

paço de Sultanas, a «Alhambra»; os

alvéolos arrendados do claustro de «Ripoll», o ideal dos palacios satis- feito em «Salamanca» para gloria

dos «Montrey» de quem tomou o

nome, exemplares de belleza peregri- na que baldam quantos esforços a

imaginação ponha em os aperfeiçoar, estão longe de Sevilha, mas aqui, nas vastas ruínas da «Italica», nas Sl|mptuosidades orientaes do «Alca-

68

zar», nos plate res cos lavores do «pa-

lácio municipal» e nas infinitas divi-

sões d'esse inexploravel universo, a

cathedral, fácil é topar com subsídios suficientes ao conhecimento acabado

do que a arte produziu cm volta do «Mediterrâneo» ou seja no niundo civilisado, depois da vinda do Christo.

Sevilha é dos mais bem ajusta-

dos compêndios que existem da c Ar-

te atra vez as idades modernas».

(Entre parenthesis obscrvar-lhe-

hei sem exagerada modéstia "que os paragraphos findos, todos em cy-

cloides de eloquência, bem pode-

riam pertencer á mortalha do ilius-

6g

tre Dom Emilio; pois sejam elles

mais uma «palma de homenagem s

que a minha adiniraç3o depõe no

pantheon das glorias hespanholas).

Por tanto motivo ponderável é que me n3o canso de repetir; de-

veria ser t Sevilha» o escopo das

romarias estheticas dos nossos pa- trícios.

Mas aproveitariam elles mais

quando aqui viessem dispostos a * vêr» do que quando veem exclusi-

vamente decididos a «gosar»?

Aquelles que respiram e vivem Cm atmosphera assim carregada de tão suggestivos elementos, os mes-

mos sevilhanos pouco lucram. Insen-

síveis á ineítaçSo instante para in-

vestigar de suas curiosidades histó-

ricas nas próprias pedras que pisam;

indiferentes á poesia de um ines-

gotável manancial de lendas varonis

e romances divinamente phantasia- dos, herança do seu passado he-

róico e aventuroso; alheios á intrín-

seca estimaçílo que requerem as ma-

nifestações tilo patentes da solici-

tude artística dos seus antepassados,

mais parecem fructos peccos penden-

tes por fios de guita de uma arvore

que o seu peso esterilisa.

Á sua lembrança occorre-me re-

petir o dito de certos gaiatos que

matraqueavam um pobre companhei-

ro cujo pae morrera de mal-bruto:

« de teu pae só herdaste o bruto».

7'

E porque os não havemos de

considerar libertos da tradição im-

portuna?

Tal velhinho teso e secco como

boneco de sabugo; o redenhoso, re*

foucinhádo notário cujo vozeirão sôa fundíssimo e parece, * derivado dos

calcanhares, arrastar para fóra as

trovoadas intestínaes; o cavalheiro

importante e pisa mansinho, que passa colleando como um cysne; o sara-

cotear das esculpturaes nadegas dos

toureiros, quando não parece que as levam em andores — a vaidade da

belleza plastica, no homem, é talvez

° único ridículo de que clle não

conseguirá libertarse —; tudo reçu-

pittoresco «natural * e esponta- »eo, não inspirado nos ancestraes ensinamentos.

73

As damas, em sua apregoada

formosura, tão pouco plagiam os

modelos que lhes legaram, á laia

de figurinos, os mestres da pintu-

ra. Deixam desenvolver livremente a

ucharia das suas formas até ao acu-

me da monstruosidade, perturbando

e empecendo a circulação por estas

ruasinhas estreitas. Assim aquella

.senhora que, ha pouco, trancava a «calle Martin Villa s, obrigando a

retroceder quem em sentido contra-

rio vinha.

Que mulher! que assombrosa

mole! que roda de saia, que volu-

me de ventre, que dimensões de

pousadeiro, forte, circular, pomposo

como a pôpa d'uma galeota hollan-

deza! Um signal pardo que lhe cres-

cia na face esquerda tinha traça de

73

verruga ferrea, desvio de blindagem, ou quando menos insignia, distincti-

ve de petrecho guerreiro. Era mu-

lher apropriada a exercícios para

manobras alpinas; de se lhe mari- nhar pelas obras da frente e des-

cer pelas trazei ras com o auxilio de

cordas de nós e escadas de incêndio.

Para acudir a tudo isto, penso eu, exhibem os chupados indígenas

do sexo forte, no sitio proprio, como

em idoneo escapara te, volumes que,

a não serem artefactos de embustei-

ros, excedem o pão de trinta réis,

torcido em forma de garrocho, com o

qual certo pintor parisiense de gran- de fama augmentava a freguezia, en-

feitando-se quando tinha de retratar,

estando presente o modelo, alguma dama d'alta gerarchia.

74

Verdadeiramente os nossos patrí-

cios bem fazem em impregnar o sen-

lido de volições didácticas, todas ade-

quadas ao campo d essa sciencia es-

pecial, se aqui vecm e n"estas ma- nhas são elles exccllentes mestres. E

por vezes ainda mais industriosos quando inutilisados, tal um velho

mendigo lá da minha terra que pu-

nha toda a sua complacência em

exhibir a enorme potra que o afíligia

e assim invocava fructuosamente a

caridade publica.

. ■ - . - • . - • . - - . ~

VI

Cadix — Fevereiro.

* Deixei me ficar, esquecido, todo

o mez de janeiro em Sevilha níSo

a passear utn gallo, como ha quem

julgue ser occupação minha favorita,

mas a' tomar sol, comquanto inve-

joso d'aquelles que realmente vivem de passear gallos, chupando cigarri-

nhos e repimpando se 110 sabor das

fortunas e venturas que lhes hão de

trazer as chimericas victorias d'essas

aves, nas luctas t3o estimadas do

publico sevilhano.

As manhas na cathedral ou no

museu; as tardes nas «Delicias» —

jardim rescendente, paraizo de ma-

foma que a tarde povoa de huris

obesas—e dois passeios fora de por-

tas: Alcalá e Carmona.

«Alcala» é o rebanho do casa-

rio caiado andaluz a trepar na en-

costa íngreme de uma alta collina; guardam-no as ruínas do formidável

castello cujos torreões espreitam to-

do o horisonte em volta; uma ri-

beira melancólica, o «Guadairai, ser-

penteia ao fundo do valle, por can-

tos mimosos de paysagem que os

pintores de Sevilha celebram.

A cidade acastellada de «Car-

mona» coroa outra collina mais le-

vantada que a de «Alcala» e serve

de peanha ao alcaçar ainda orgulho-

77

so na desformidade das suas ruínas,

cuja grandeza se abalou, por certo,

n'algum estremecimento da terra. É

uma povoação silenciosa, habitada

por lavradores e beatas, onde super- % abundam as igrejas faustuosas. As

ruas animam um quasi nada ao cahir

da tarde, quando os lavradores vol-

tam do campo e o estrupido dos ca- vallos chama ás janellas as meninas

curiosas ou namoradas. Lindos são

os ginetes que elles montam com as

pernas encolhidas nos estribos cur-

tos á maneira arabe. Depois ouvem- se as fontes a cantar, abundantes e

solitárias, junto das portas monu-

nientaes que defendem a cidade con-

tra todas as turbulências do pro-

gresso.

A tarde da minha sabida de Se-

vilha era tépida que nem de prima-

vera; perto da estação cantava-se e

bailava-se. O comboio silvou, festivo,

e metteu por entre pomares de la- ranjeiras em fiôr que tapavam o ho-

risonte; só a cathedral apparecía, ar-

mando longe, no esmalte do céo, os

cardos dos seus corucheos. Mas de-

pressa a paysagem se limpou do ar-

voredo e, suavemente, por collinas

abatidas e varzeas infinitas ondulou

até «Jerez »,

A cidade do bom vinho não en-

cerra maravilhas. Algumas igrejas pequenas, de escrupuloso gothico.

Mas a fachada do * Cabildo Viejo»

e os seus truculentos grupos, — de inspiração naturalista pelos moldes

da renascença allemS — accendem

110 espirito uma desacostumada sur-

79

preza que se raciocina gostosa-

mente.

Fóra de portas as ruínas da

«Cartuxa s vastíssimas e confusas.

Todo o claustro grande desfeito,

gasto; pulverisado em parte, ou me-

ro esboço do que foi. O refeitório

ainda intacto nas suas linhas do mais nu ogival, tem a desacatar-lhe o as-

pecto austero a estouvada ornamen-

tação dum púlpito plateresco, e o

claustro pequeno, de architect ura flo-

rente e gracil como a ampliação de

um canteiro de lyrios desabrochados,

por tal modo o roeu a carcoma, sem

lhe tocar nas tenuíssimas nervuras,

que a sua existência parece prodígio

de scenographia.

De «Jerez» a «Cadix» vai uma

hora de caminho, passando ao lado

So

das extensas salinas de «Puerto de

Santa Maria», especie de Memphis

com as pyramides caiadas, e «Puerto

Real», povoação risonha onde se pre- sente que as ruas vão dar alegre-

mente ao mar, o que deve ser a su-

prema consolação d'uma rua. . . A vaporosa «Cadix» das manhãs

ciaras, cuja mancha rosada fascina o

viajante na derrota do «Estreito» é

uma cidade horrorosamente triste.

Cercada de muralhas ás quaes o mar

arremette raivoso e lamentoso, açoi-

tada dos ventos, imniove) na perpe-

tua agitação da agua, atulhada de al-

tissimos prédios inexpressivos e mor-

tas alvenarias de casernas, tudo a

ageita para encerro de degredados.

Ao forasteiro anonymo ou impu-

dico— feliz em summa — resta no em-

Si

tanto o apreciável recurso de explo-

rar dia e noite as ruas tortuosas que

se enredam ao redor da cathedral:

o bairro dos pescadores e das mere-

trizes.

A mesa do hotel — recurso dos tí-

midos— pom peiam tres proeminentes

figuras: o coronel inglez, o tenor e a

dama deste, que chupa pelos dedos

afuzados quantos molhos lhe cahem no prato, quando não ejacula tril-

los ferinos, remexendo circularmente

dois olhos como dois busios, á som-

bra do seu chapéu de palha, onde

esfuziam mais pennas de capão do que nas barretinas de todo uni re-

gimento de «bersaglieri». .. O tenor é tenor italiano typíco,

do fortíssima grenha luzente, satis-

feitio de si só e triste da pobre gen-

82

te que ri3o é elle, o burro, sempre

a benzer o ar com as mSosinhas gor- das, faiscantes de joalheria falsa e a

ajuntar o sebo da barba rosquilha

numa faustuosa gravata cor de fer-

rejo.

Vivem os dois em santa harmo-

nia com o coronel inglez o qual, no

regresso da índia, aqui arribou por

lhe ter peorado a mulher, senhora

invisível mas canora também, tanto

quanto lh'o exigem os intestinos

mortificados. É minha visinha de

quarto.

Baixinho, cheio, reforçado, ex-

pressão de supremo espanto nos olhos

redondos, nada inglez, nada guerreiro,

o coronel tem muito de velha judia

barbada e é fóra de duvida que hon-

tem á tarde, á mingua de leite, a

S3

cujo regimen está condem nada a do- lorida esposa, elle a consolou met-

tendo-lhe nos lábios o bico hirsuto

duma têta escorrida, generosamente

exhumada da sua, d'ellc proprio, ca- misa de flanela. . .

Os demais hospedes são de so-

menos importância, muitos d'elles em-

barcarão comigo amanhã 110 «Mont-

serrat» que vae para a cHavana»

com escala nas c Canarias».

1 VII

A BORDO DO «MONTSEKRAT» f JHrr-,

Fevereiro, 8,

Merecerá a pena de narrar a pe-

quenina aventura, legitimamente hes-

panhola, que insufílou certa alegria ao episodio do meu embarque, esta

manha ?

Foi o caso que, seguindo á risca as prescripções da «Compafiía trans-

atlântica j, tomei ás dez horas o re-

bocador atracado ao caes para ser-

viço dos passageiros do «Moutserrat».

86

— «A las diez en punto, Caballe-

ro, e sepa v. que el vaporcillo es gratis»_ dissera-me ao escriptorio da

companhia um senhor de mais bar-

bas do que a mythologia punha nos queixos de Neptuno,

Mas a meio caminho de bordo

surgem das carvoeiras tres figurões

de zarzuella—andrajosos, para real-

çar os galões doirados dos bonés —

e começam a cobrar tantas pccetas

por cabeça e mais tantas pccetas

por volume de bagagem. Um d'elles requisitava, mellifluo, a espórtula; o

segundo, diligente, ministrava bilhe-

tinhos impressos; o terceiro, desa-

vergonhado, recolhia a paga n um

mialhciro de igreja e assim a coisa

quasi que revestia cores honestas.

Quando chegou a minha vez re-

«7

cusei-me ao pagamento e com tanta

pachorra o fiz e em tão acertados

termos, protestando voltar a terra

para averiguar da justiça d'aqueile

inesperado imposto, que alguns pas-

sageiros exigiam já a restituição das

quantias pagas.

A repentina apparição de outro

comico — quasi nada menos esfranga-

lhado e muitíssimo mais agaloado —

que, por dulcíssimos modos e capti-

vantes falias deixava ao meu alve-

drio decidir a contenda a bordo pe-

rante o agente da companhia, con- seguiu calar-me, permittindo seguir na cobrança e leval-a a cabo sem

°utro incidente.

Chegados ao «Montserrat» não somente ninguém insistiu pelo paga- mento a que me recusara, mas, ven-

88

do-me ficar no rebocador com geito

de querer voltar a Cadíx, o quarto

comparsa veiu para mim, tio insi-

nuante como affectuoso, a sorrir, todo

finorio, assim a modo de collega ou

de quem me cobiçava para o seu

elenco: — «Suba v., caballero, que no

nos debe v. ni un centimito. , .

Todo esto no fue mas que una

equivocacion. ..»

E foi elle quem auxiliou os gal- legos na conducção das minhas ma-

las até á camara do vapor, não lhes consentindo acceitar gorgeta alguma.

— i Repito, caballero, no nos debe

v. nada. Todo esto no fue mas que

pura equivocacion. . .»

Mas um quarto d'hora depois já

o velhaco me «apresentava» ao com-

8g

missario da polícia gaditana o qual

carrancudissimamente exigia provas

certas da minha identidade.

—«Pues tiene v., caballero, to-

das las serias de un capitan crimi-

nal que buscamos...»

Por milagre levava comigo papeis

bastantes a suffocar as argucias poli-

ciaes de um Pina Manique. Satisfei-

ta a quadrilha não me contive que

não dissesse alto c bom som o bem

que d'ella pensava e o bonito, então,

foi vêl-os, atrapalhados, para masca-

rar a patifaria irem dar com um gi-

gantesco biscainho ruivo, o qual tam-

bém «tenia todas las sefias dei capi-

tan criminal» —os mesmos signaes

que em mim correspondiam a uma

estatura mediana e barba preta. , .

90

Fevereiro, 9.

O tempo que vinha calmo mu-

dou de tarde e embora o ceo sere-

no, apenas muito esgaseado para o

lado do norte, nSo indicasse a olhos

de profano indícios de tormenta, a agitação do mar sobre ser grande

crescia gradualmente.

Era convite indeclinável para a

cama onde me fui metter ainda sem

excessivo esforço acrobático. Mas lo-

go principiou o magnifico bailado,

por balanços rythmicos e espaçados,

do impulso da vaga dando paralela-

mente ao eixo do barco, que depres-

sa se alteraram com alternativas sur-

prehendentes, tomando o navio 11'uma

arredouça entre oscillações leves e

91

arrem et tidas impetuosas, de lhe pôr

a quilha ao ar. . .

Refiectía-se o movimento dentro

do barco. No meu camarote mexe-

ram-se as malas, chocaram os fras-

cos no lavatório, resvalaram as almo-

fadas do sofá e a mais e mais a es-

curidão se povoou de formas move-

diças que se buscavam e se encon-

travam com baques amortecidos, e

se dispersavam, deslisando silenciosa-

mente. Malas, bancos, sapatos, al-

mofadas, em preparativos d'investir

as paredes hesitavam, á sirnilhança

de entes autonomos, parando, receo-

sos, em volta dos pés fixos do lei-

to e do sofá. Pelo cristal redondo

da clarabóia "coava uma amarellenta

reverberação de luz mortiça c lon-

gínqua a afírouxar e a alterar as li*

92

nhãs e os contornos de tudo quan-

to me cercava.

De repente o barco teve um es-

tremecimento convulsivo, obrigando

o lavatório a cuspir todos os seus

frascos e juntamente o estojo de

viagem cujo recheio de vidro e aço

se espalhou no tapete.

Eu via agora juntarem-se as for-

mas volumosas—mais volumosas, pe-

sadas, e por assim dizer brutaes —

das malas, dos bancos, das almofa-

das, as espertas facetas dos frascos

de toucador que retiniam e rolavam

miudamente pelo chao, e, mercê da

pontinha de febre que entrara co-

migo, cada vez mais me ennovelava

nos cobertores, espavorido com a

ideia de pousar os pés no tapete,

preferindo a conjectura de me se-

93

pultar, inteiro, nas ondas, a ex-

pôr-me, nu, ás gélidas punções de

uma tesoura aberta, ou das puas do

cristal estalado das caixas dc sabo-

nete .. ,

O vento, no emtanto, assobiava

com sibilos de respiração cançada,

mas fazia-o ás vezes discretamente,

amimando-me por clareiras de re-

pouso, a suggerir-me afifoitesas de

peixe, como se tudo isto se pas-

sasse, normalmente, no seio de uma

baleia adormecida... Passageiras acal*

mias no horror do medo, pois eu ia pouco a pouco desviando a atten-

çâo do risco proprio para me en-

volver 11a calamidade commum, e

todo ouvidos para os retumbantes

cataclismos que occorriam pelo na- vio fóra e m'os trazia, diabólica-

94

mente orchestrados, a musica da de-

vastação e da ruína. . .

Na sala de jantar desabavam ri-

mas, torres, de pratos sobre par-

ques de copos e logo adeante sol- tavam-se camadas de bandejas, dis-

persando se com um som que pare-

cia abrir em fórma de leque, e arre- banhava outros sons bruxoleantes,

mas humanos, assim de imprecações

e de risos quasi extinctos. . . Um

episodio novo conccntrou-me outra

vez os sentidos nos limites do meu

beliche, O cubo de zinco onde se

baba a clarabóia quando lhe bate o

mar, saltou do alvéolo e cahíu es-

trondosamante no chão, despedindo

um jacto de agua que veiu molhar-

me o travesseiro; durante alguns

instantes tudo parou e cmmudeccu

95

corno que escutando o vascolejar da

agua que ainda lhe ficara dentro...

Então duas portas bateram ao mes-

mo tempo, no corredor; bateram ri- jo, trincolejando ferragens mal pre-

gadas, com o ruído relasso de mui-

tas tijellas a desfazerem-se em cacos.

Foi signal este para a continuação

da batalha entre os meus moveis,

os quaes, de concerto, se atiraram

ao cubo de zinco, levando-o repeti-

das vezes ao ar, forçando-o a verter

todo o seu liquido até que, vazio e

sonoro, o arremessaram para debai- xo do lavatório onde permaneceu o

resto da noite em sobresaltos e tre-

mores. . .

Quando acordei da passagem bre- ve pelos sonhos quasi delirantes de

um som no febril, mudara completa-

96

mente o regimen que regulava os

movimentos do barco, cujo eixo, ago-

ra, cortava perpendicularmente o eixo

das vagas, E com que esforço o fa-

zial Como se não desconjuntava todo,

ou como se não afundia de vez, n'es-

ses momentos de angustiosa suspen-

são, de arquejante paragem, em equi-

líbrio sobre a aresta da onda ou,

inerte, 110 seio da montanha fluida!

O navio tremia todo, revolvendo

os intestinos de ferro, rangendo as

articulações, arrastando cadeias, jo-

gando-se ao mar, ficando perdido, a

popa toda fora da agua, exasperado

pelo giro solto dos helices inúteis, .

Mas de envolta com tanto ruido

proprio da lucta pavorosa que se

travava, o quer que fosse gemia a

espaços, chorando lagrimas sentidas,

97

no referver d'aquelle embate de ele-

mentos insensíveis. O que era que

assim se lamentava tão doridamen- te?. . ,

Ao atropello dos arrancos violen- tos que me exacerbavam as sensa-

ções pavidas, toda a minha angustia

ora buscar nos meandros tenebrosos

de uma anatomia phantastica, á qual

a hallucinação sujeitava o interior do

monstro onde eu jazia, a origem, a

razão dessas lamentações tão fundas, e tão breves que se furtavam ás agu-

díssimas espias dos meus sentidos, para os inquietar de novo se por

acaso outro fito os absorvia um mo-

mento , ,

■ . . mas essas lamentações perse-

guem-me e, evidentemente, nascem do mar, e cercam o navio, e são-me

T

98

segredadas á cabeceira do meu lei-

to. . . E, se realmente existem se-

reias, mulheres cruzadas de peixes,

folgando cm grutas de coral, á luz

lunar das pérolas, sobre o velludo verde das algas flacidas, quanto lhes

nao custará a passagem do immun-

dissimo monstro que é um vapor,

sempre a conspurcar o seio immacu-

lado das aguas!,.. Ah! eu compa-

deço a dôr das sereias!...

99

Feverfiro, IO.

— f Amphitrite, és tu?. . .> — mur-

murava eu, no desfecho de um delei- toso sonho submarino, para o creado

que vinha prevenir da proximidade

do jantar e me annunciava também

a volta do bom tempo.

Comi pantagruelicamente e fui di-

gerir a copiosa refeição sobre o tom-

badilho, recostado em preguiçosa ca- deira articulada, banhando-me de luar

branco e a vista entretida a seguir- ihe as esteiras da tremulina accesas

pelo mar fóra. Sentia-se o ar morno o embebido d'aromas das noites de

setembro no Algarve e a memoria

pesquisava pelo passado themas apra-

IOO

ziveis que viessem completar a feli-

cidade da hora presente.

Toda uma riquíssima série deri-

vou da palavra «Montserrat» lida ao

luar sobre as taboas d'um bote de

bordo e ao luar surgiu ali logo, da

superfície rasa do mar, tal como nas

planícies da Catalunha, o barbara,

golpeado, contorno da mole abrupta

onde o convento d'aquelle nome

está.

V. conhece descripções do mos-

teiro e também, decerto, estampas que reproduzem a agglomeração das

cilíndricas pedras perpendiculares, al-

tas de quinhentos metros e mais,

que caractcrisa essa estranha serra

de <t Montseri at» e lhe dá aspectos

de orgão no qual reboassem os con-

certos cosmogonicos. . .

101

Muitos outros mosteiros da Cata-

lunha vieram apoz este expôr ali os seus melhores trechos: grutas circula-

res em que se ageitam as perspecti-

vas darcos miudamente lavrados nos

porticos românicos; as projecções ca-

prichosas de que a lua reveste as

sepulturas históricas nos claustros go- thicos; a magnificência geométrica

das salas capitulares, com o echo

lamentoso dos refeitórios vazios; as

meias trevas que empapam, desfigu- ram, dilatam, as naves dos templos

abandonados; as cicloides aereas onde

poisam, leves, os lanços d'escadaria aos pateos abbaciaes e as ruínas gar-

ridas occultando as suas lepras nos

largos pannos das trepadeiras gulo- sas e espessas, nas cercas hortadas

d esses mosteiros que, a exemplo de

102

«Poblet# e «Santas Creus», foram

também fortalezas, pantheons e alca-

çares reaes, por onde eu peregrinei

toda uma lua propicia de maio...

Mas singrando assim, feliz, a

phantasia aproou direito a outras

terras preferidas, para chamar outra impressão mais completa, mais for-

te, mais definitiva. Sítios são esses por onde se co-

mia ainda ha bem poucos annos o

pão de trigo rústico, perfumado, tri-

gueiro e levemente glutínoso, de

quando a industria das farinhas bal-

buciava as suas primeiras trapaças.

Comi d'esse pão com surpreza e de-

licia, pensando ser do mesmo que a «Sulamitis» mastigava nas pérolas

dos seus dentes. Pão trigueiro, ma-

cio, á imagem do ventre d'ella:

103

«monte de trigo cercado de açuce-

nas»; ventre morno, minheiro, com

efifluencias de pão quente, para ser

beijado c mordido. . .

Não julgue que eu viajava en-

tão na Palestina mas em Portugal e

se me soccorria de comparações taes

— favoritas na prosperidade da mi-

nha vida imaginativa—era para me-

lhorar o sabor ao pão e n'elle ta-

lhar formas mimosas e vivas, como

as devia ter a gracil donzella, e por

essas formas haurir os balsamos de

que se ungiam e, assim, levado pelo

guia minucioso e indulgente da Bí-

blia, transportar me aos frescos hor-

tos da Siria de Salomão, quando

na realidade eu ia, suffocado pela

calma de um dia de julho, atraves-

sando os pinhaes de Aljubarrota, a

104

caminho do mosteiro de «Santa Ma-

ria da Victoria».

Comecei a divisar por entre os

alamos da estrada as agulhas da

«Batalha» ao cahir da tarde, já

quando o sol arrefecido pouco mais

era do que uma braza a extinguir-

se em tenuc poeira de cinzas aver-

melhadas. Pouco depois, alumiado

por esta claridade prestigiosa que

lhe deixava a base envolta em ful-

vas penumbras, !evantava-sc o mo-

numento no mais encantador dos

seus aspectos, soltas pelas abobadas,

prezas nos cardos dos espigões, cin-

gidas ás arestas dos muros, as ren-

das de pedra que o enfeitam. A luz

do sol poente inflammava essas ren-

das, recortando-lhes os desenhos em

fundos esmaltados: matiz d'oiro so-

105

bre oiro, frágeis relevos preciosos

subtilisados por mudanças successi-

vas de effeítos fulgurantes..,

Não me puz a desembainhar es-

toques de critico para retalhar con-

venientemente a sensação recebida:

contemplei emquanto durou o cre-

púsculo e depois sopeei a impaciên-

cia na leitura dos «Luziadas», espe-

rando a hora em que, alta já a lua, o sacristão iria mostrar-me os claus-

tros.

Levantou-se a lua pelas transpa-

rências esverdeadas do horisonte que

parecia recuar lentamente, já cerca

da meia noite, 110 absoluto silencio

onde tudo cahira em redor do po-

voado. Aguardara a apparição da luz

phantasmatíca no alto de uma colli- na que melhor vista dá sobre o mo"

io6

numento: sombra mossiça ouriçada

de sombras agudas, tomando á clari-

dade incerta das estrellas relevos de

um instante, logo absorvidos por ou- tras sombras mais vagas. O luar ba-

fejou o grande corocheu de poeira

alvacenta, como o primeiro, frio, re-

flexo da aurora, mas promptamente

se fez opalino e mais penetrante, in-

sinuando-se nos lavores das agulhas,

nos liríos de pedra que anieiam as

cornijas, nas teias de frisos que arri-

piam a superfície das paredes e mer-

gulhando, por fim, na tinta opaca

em que se condensava o interior dos

claustros, libertou das trevas toda

aquelta maravilha e como que a re-

fundiu em espumas de prata fina. . .

Em noites taes a vista nilo se

detem na rude fórma natural das

io;

coisas, nias passa-as á alma que as

transfigura e, luar ainda mais doce,,

mais fecundo, mais intimo, as devol-

ve, repassadas de poesia, puras subje-

ct ivações, enlevo da imaginação, or-

gulho do pensamento,Essa noite foi

juntar-se áqucllas — numerosas, inol-

vidáveis— passadas a reconstituir len-

das do alto das varandas da «Alham-

bra», que dominam quasi a pique,

de bem alto, a cidade, branca de cal,

derramada na veiga fragrante; essa

noite ficou a par d'aquella em que, na

ilha «Caprea» visitei a «gruta azul»;

e as noites contemplativas por entre

os cyprestes de «Scutari»; e as noi-

tes d'apaziguamento no immutavcl

scenario do «Nilo»; e, as mais ra-

ras de todas, as noites de «Veneza»

de luar venenoso, 110 ataúde das

ioS

gondolas que vSo mollemente direi-

to ao Lido, ao agasalho das quaes

a luxuria se exacerba divinamente. . .

Mas essa noite antecipou-se erra-

damente a outra, absoluta, que para

mim só o meu querido amigo, Frank

Holman, o pintor, fixou em moldura de oiro, n aquclle quadro que eu res-

guardo das polluções dos philisteus,

onde a sua alma deu realidade á vi-

sito fluctuante, desfallecente, incerta,

das apparições ephemeras, as formas

silenciosas que a noite cria e que mal,

a custo, se reflectem, ou morrem, ou

repousam na laguna, como sombras

coadas de outras sombras. , .

VIII

Santa Cruz de Tenerife

Março.

Cheguei a amimar o projecto de

vêr miudamente todas quantas ilhas ha n'este archipelago das Canarias,

que são muitas, e, segundo contam,

todas egualmente dignas de estudo,

mas o clima, a brandura do clima

tão bafejado de aragens mornas, tào

preguiçoso, minou-me a energia e

porque as communicações não apre-

sentem aqui facilidades extremas só

I IO

vou aonde forem carruagens e d'este

modo limito as minhas digressões á

«Grande Canaria» e a «Tenerife».

Eu nSo sou d'aquclles que figu-

ram de antemão a paysagcm das re-

giões que visitam; a realidade des-

mancha acintosamente os quadros

da phantasia e assim a decepção ou,

pelo menos, a contrariedade tornam?

se frequentes e perturbam o goso de

ver. Mas a ideia bem arreigada que

me suggeriam umas ilhas já do tem-

po dos romanos sujeitas ao rotulo

de «afortunadas» e, depois, civiltsa-

das ao calor da «renascença», orgu-

lhosas do seu «Pico»—o seu «Tei-

de» — visinhas dos tropicos, era qua-

si paradisíaca e quaesquer serras pel-

ladaa, ou áreas áridas, ou de cara-

cter menos assignalado, com que a

I [ I

principio deparava, tinha-as quasi na

conta de offensas pcssoaes. ..

O clima foi-me d'csta vez bafo *

lustral nos meus resentimentos, res-

tituindo- mc a paz confortativa ao es-

pirito alvoroçado e balouçando-me na

vida suave de uns dias inintcrrompi-

damente aprazíveis . . Deixeí-me de

lançar em rosto ao «Pico» —ao

«Teíde»—as intangíveis bellezas do

«Etna», e conformei-me na supposta

indigência pittoresca d'estas ilhas a

ponto que tudo agora me é surpre-

za e delicia. . .

Nào lhe encareço os meus últi-

mos dias, passados em «Orotava»;

o magnifico vaile deslumbra 110 seu

revestimento de opulenta verdura vi- çosa, mas povoado de condemnados

que ali esperam allivio a insanáveis

112

softrimentos e, á custa de penosos,

mal encobertos esforços, alardeiam

sorrisos de felicidade, entristece o fo-

rasteiro são a quem repugnam paro-

dias dos « Campos-EIyseos ». , ,

E tão flagrante o contraste da

natureza a ferver de seiva crassa em

volta dos seres definhados, cuja vida

se esvae no doloroso dessorar lento,

que a ideia de um «Ser Superior»

infinitamente poderoso e bom, ganha ali foros de abominável escarneo., .

Busquemos diversão á molesta

lembrança e busquemol-a aqui, em

«Santa Cruz», no hotel do nosso

patrício, se bem que internacional

Camacho, onde se hospeda o ma-

gnetisador «O.» com a mulher e a

filhinha. Que extravagantes olhos

são os dessa gentel

ii3

Comem á meza na minha frente e eu não me canço de perscrutar os olhos da creança, que teem as íris de aventurina c scintillam, meio

Cerrados, no rosto esmaecido, como

° brilho de certas estrellas rompe

ã alvura leitosa de um ceo satura- do de luar. Devo soccorrer-me de

dulcíssimo lyrismo para alludir á mi-

sericordiosa ternura que parecem de- cantar os olhos, húmidos de inefla- vel luz, da mãe; e o geito das

niãos, todas caricias de arminhos,

polvilhando perfumes! ..

ltsta gente estraga-me o esto- mago, onde os remoinhos de tanta

poesia encruam as chorudas igua- nas do Camacho. . .

Sem embargo suspeito que le- garei da «Grau Casaria» melhores

114

recordaçOes, . . Ali não ha «Pico»

nem «Valle d'Orotava» mas sítios

como «San Mateo», serra armada

em pequenos calvários de presepio,

que são outros tantos cestos de ver-

dura a coar fontes cristallinas em alvéolos de rochas cinzentas.

Depois, em «Tenerife» não ha

mais do que uma única estrada, a

de «Orotava», via sagrada por on-

de só transitam landós pomposos,

aos tirões intermittentes de umas pilecas vacillantes e estafadas, em-

quanto que a «Gr an Canaria» é sul-

cada de estradas e existe n'ella uma

raça de cavai los pequenos, fogosos

e infatigáveis, excedentes para sella,

os quaes também tiram as leves s tartanas» da ilha tão lestos que

vôam e essa febre dc movimento

US

ao ar livre encanta, quando não é

indispensável, á mingua de melhor

excitante, na vida acanhada das ilhas pequenas. . ,

De duas relativamente largas jor-

nadas, aos pontos extremos de «Agiiimes # e « Agaete», conservo

lembranças vivas, que reproduzem

pan nos de paysagem muito diversa em serie apressada de mutações.

Ambas as estradas serpenteiam á

beira-mar mas aquelta, de «Agiii-

mes», passa primeiro ao travez da

rocha viva, por elevadíssimos arcos,

sobe, depois, a excessivas alturas,

junto de um abysmo onde o mar

vae aguçando os gumes de muitos

leixões retalhados e dispostos cm cir- culo, sobre os quaes pairam bandos

de abutres, e entra, em seguida, pela

116

terra dentro cortando o mais tene-

broso vaile que os meus olhos vi-

ram. É uma região formada de es*

coreas mineraes sem outra vegetação

a empecer-lhe a cor ferrugenta, além

dos fartos molhos de cactos gigan-

teos que a largos espaços crescem,

e cujas delgadas ramificações cylin-

dricas se extorcem, cmmaranhadas,

e agitam no ar as extremidades sol-

tas, de verdosas serpentes iradas...

Na igreja de «Telde», povoação situada a meio caminho de «Agiii-

mes», vcem-se pinturas «desculpá-

veis » e um retábulo de esculptura

delicada; são, julgo eu, os únicos

vestígios d'arte que as «Canarias»

encerram. . .

Perto de « Aguimes» um leito

sécco de ribeira, semeado de pedre-

i'7

gulho negro, amplo bastante a per-

mittir passagem ao Amazonas, aguar-

da os enxurros que as serras lhe en-

viam com frequência.

Entre «Las Palmas» e «Agaete» ha tres léguas dc estrada quasi toda

no littoral. Alguns lanços imitam ar-

redoiças com as pontas presas em

duas eminências nivelladas e a cur-

va a roçar na babugem do mar;

outros foram abertos, a meia altu- ra, nas paredes lisas de fundíssimas,

assombrosas, exeavações que sobem do mar a pique; outros estiram se

ao lado de extensas varzeas planta-

das de bananeiras, resguardando-as

da areia da praia.

Convém passear sósinho no «valle de Agaete» que é magestoso e* pro-

picio a evocações sobrenaturaes, fe*

nS

chado, como a arena de um circo,

em serras sobrepostas cujos cimos

as nuvens occultam. Lembrar-Me-hei também, decerto,

de «Las Palmas» a capital da «Gran

Canaria» que uma ribeira polluida

divide em duas encostas accidenta-

das e pittorescas, d'onde reluz o mar

por todas as perspectivas, e dos vi-

rentes jardins em socalcos sobem as

palmeiras a espanejar o ceo; lem-

brar-me-hei, saudoso, das suas airo-

sas mulheres, indolentes e morenas,

cujo olhar, dardejado sob a alvíssima mantilha de 13, desassocega e pertur-

ba o forasteiro desvalido; e lembrar-

me-hei, sorrindo, da hospedaria de

«Dona Pino» aviario exotico, ruidoso,

tumultuado caravançará, onde entra

e sáe quem quer, e come e bebe

119

quem quer, e paga quem quer por-

que ali — embora s Doria Pino» pros-

pere— ninguém pede ou presta con-

tas; e lembrar me-hei, eternamente,

mesmo nos ceiestiacs saraus, das fei-

ções, do sorriso, dos olhos leaes

d'cssa menina que cm noite de tbea*

tro eu contemplei durante os tres

actos da peor ganida das zarzuellas;

não era um lypo liespanhol mas um

rosto amoravel de portugueza quasi

envergonhada de ser tão linda. . ,

IX

Funchal — Abril.

O «Aline Woermann», o sujo • vapor que me trouxe das Cariarias

á Madeira, approximou-se de terra emquanto eu dormia; foi já quasi

no ancoradoiro que eu vi, do tom-

badilho, a ilha toda estofada em ve-

getação de um profundo verde-gar-

rafa, subir como um panno de vel-

ludo esticado, que as nuvens esti-

vessem puxando do mar.. .

Cortina espessa, húmida e fera-

cissima, sem delineamentos nem con-

122

tornos, absorvendo tudo no seu ni-

velado plano ascendente, appareceu-

me tal a convencionada anti these

das ilhas clássicas do Mediterrâneo,

descarnadas, sinuosas de recortes ca- prichosos, cujo effeito é meramente

ornamental e repugna a qualquer

suggestão utilitária como abundancia,

riqueza, fertilidade... N'estes enfei-

tes do mar c do ceo, peanhas pro-

picias a obra d'arte humana, onde

uma columna truncada ainda realça

tão bem como o cabuxão no en-

gaste de oiro, apurou a nossa raça

os modelos definitivos da paysagem

espiritual e poética, escravisada á

architectura.

A primeira impressão da «ilha

da Madeira» — tenebrosa e farta — é

flagrante desacato a esses modelos

123

respeitáveis c vem trilhar nos, a des-

peito de tudo, a esthesia que hon-

ramos. . ,

Mas como chega depressa a re-

conciliação e como esmaece a appa-

rente hostilidade suavisada cm tre-

chos surprehendentes, infinitamente diversos c de engenhoso arranjo...

Pois haverá no mundo paysagem

mais alliciadora do que esta que eu

disfructo agora mesmo, do jardim embalsamado e silencioso da «Quin-

ta Vigia»? Tudo é immobilidade e soccgo

no panorama em gris que a minha

vjsta abrange: mar de calmaria, adamascado, com a sua orla borda-

da de barcos em relevo—cascos de

seda frouxa e mastreações de retroz

— á luz egual, branca, branda, que

124

o alto ceo leitoso côa do sol que

se não vê; as verduras mossiças da

serra alliviando-sc da espessura em

verduras mais tenras, ao contraste

dos casaes caiados e longe, sombre-

jando o horisonte, uns arremedos

de Capri, ilhas perdidas cujas cor-

covas montam por sobre a ultima

linha do mar. . .

Os jardins aereos da «Quinta Vi-

gia » são refugio inviolável a quem

busca isolamento durante o dia, e

o predilecto logar de reunião, du-

rante a noite, para quem não pres-

cinde de diversões mundanas — com

paradas á roleta. — «Faraizo com sol

e inferno com lua» — sentenciará,

talvez, o moralista minaz e impor-

tuno. Eu não tnoraliso, amigo, bem

sabe e venho aqui de dia, quan-

do fico no «Funchal» a descançar

dos meus continuados passeios pela

serra.

Dentro da cidade não lia local

mais adequado a retiros intellectuaes

e, decerto, merecem preferencia a

quaesquer outras as horas de calor,

comtanto que se aviste e oiça o

mar, para, socegado o corpo, abrir

ensanchas á imaginação e sen til-a

então largar panno, pouco a pouco,

buscando rumo, e hesitar na derrota

até que, ao leve sopro do mais for-

tuito indicio, se faça de vela direito

a remotas, desconhecidas, almejadas

plagas. . .

Hoje vim aqui mais porque o

desejava chamar á minha presença

e lhe queria dar participação e di-

zer-lhe muito bem da vida sã e

126

feliz que levo n'esta ilha selvagem: o local é egualmente propicio para

fugazes devaneios c evocações affe-

ct uosas.

Eis a fornia como emprego o

meu tempo.

Subo á serra logo de manhã

cedo e é já noite cerrada quando volto ao hotel, moido como um sal,

bem disposto a entrar de surpreza

no plenissimo remanso do sonmo

solto. ., Trinta kilometros d'exerci-

cio na livre amplidão do ar impol-

luto e dez horas forras ás prodiga-

lidades da vida, dez horas de cris-

talina insensibilidade, limpas de reali-

dades e de sonhos. , . em cama fófa.

O meu creado, que é também

o meu guia, espera-me á primeira

ascensão do elevador junto á igreja

do í Monte», obrigado ponto de partida para quasi todas as excur-

sões na serra.

É já unia elevação grande, o

«Montei, e o seu accesso, ao tirar

da locomotiva arquejante, pela Ín-

greme pendente acima, remette-nos

á phantasia de certos contos diabó-

licos onde se violam sem escrúpulo

as leis naturaes. A paysagem tor-

na*se ludibrio da vista, invertendo perspectivas, deturpando curvas, ma-

chucando casas, bandeando rochas,

cavando abysmos infernaes sob a

gaze esverdinhada das trepadeiras

em flôr, desencantando valles idytli-

cos a meio de ravinas lobregas e re-

voltas, arrancando os pinhaes á sua perpendicularidade magestosa para

os arrojar como feixes de lanças

128

d'encontro aos broqueis espelhados dos tanques d'agua...

Todos estes elementos de discór-

dia, aquietados á paragem do eleva-

dor, tecem, sumptuosamente, a dal-

matica, a capa de asperges, admira-

çSo e enlevo dos olhos, sob a qual o «Monte» avoluma desde a roda

do mar ao adro da igreja. Os pi-

nhaes fazem-lhe o fundo de vellu-

do escuro, cercados e lavrados da

doirada ramagem das carvalheiras,

por onde reluz a pedraria das fon-

tes. ,.

K dentro de uma canastra de

verga, assente em duas tiras de ma-

deira ensebada —trenó rústico —que

eu desço, á tarde, do «Monte» á

cidade, resvalando vertiginosamente

pelos declives arrebatados da cal-

I2Ç)

çacia estreita, onde ha traços quasi

vertícaes cuja passagem provoca an-

gustias de queda mortal...

Os meus primeiros passeios fo-

ram pelos pinhaes que se alastram

por cima do «Monte» á cata de

novas perspectivas, com mira nos

cabeços de granito quasi inaccessi-

veis que a miúdo calvejam na den-

síssima vegetação das mattas, em-

prezas por vezes temerárias mas ge-

nerosamente recompensadas na exul- tarão dos horisontes larguíssimos, a

mais e mais despejados ao successi-

vo desdobrar de ondulações monta-

nhosas.

Adeantei-me depois para léste,

dando volta á escavação fragosa do

«Curral pequeno», descançando na

passagem da «Choupana»—trecho o

de composição alpestre — ate aos

prados da «Camacha», campina, em

planos curtos de relva, quebrada

por sebes de vimeiros.

A poente visitei «Camara de

Lobos» que é um porto de pes-

cadores fechado em rochas de ba-

salto, crespas como ficam as gottas

de chumbo derretido que as crean-

ças deitam na agua fria, para tirar

sortes, em vespera de S. João. Ahi

perto levanta-se do oceano uma des- propositada mole, de temeroso es-

boço elephantino, aguentando a en-

costa risonha do vastíssimo valle

que deu entrada aos descobridores

da ilha.

A estrada que liga «Camara de

Lobos» ao «Funchal», nos lanços

arrojados, no modo de galgar as

I3i

agrestes, apertadas ravinas, nos en-

curvamentos pittorescos por onde se

esquiva, plagia agradavelmente a es-

trada de «Posilipo».. ,

Mas se as paysagens observadas

até aqui embora preciosas não esca-

pam á humilhação das analogias de-

primentes, urge notar-lhe que divisei

aspectos de irrefutável originalidade

na minha recente jornada ao «Curral

grande» ou «Curral das freiras».

Esta pavorosa depressão geoló-

gica encerra 110 circulo das suas

muralhas de granito negro, á pro-

fundidade de mil metros, um vastís-

simo e deslumbrante tapete de tin-

tas fundidas a primor em culturas

variadas e prosperas. Tal é a sur-

preza de encontrar assim entregue

á monstruosa agglomcraçSo de ro-

r32

chas bravias, a guarda d'aquella ma-

ravilhosa alfaia, cujo desenho e co-

lorido somente se explicariam nas

combinações de uma arte reflectida

e consummada, que não sopeamos a

phantasia e, á incitação do conjun-

ct© fabuloso, para ali trasladamos

instinctivamente quadros mythologi-

cos, imaginando que ali mesmo se

congregaram os exércitos de titans

para occultar o seu palladio, antes

de accomnictter o ceo.. .

Prcstava-se a luz á visão per-

feita, exaltada na transparência do

ar que accendia as côres como cris-

tal puríssimo, das alturas onde me

assomei. Tudo ali era pintura; ne-

nhum relevo perceptível destrinçava

as arvores da outra vegetação mais

chã; as casas denunciavam-se no ri-

133

gor geométrico das .suas manchas e

movimento algum traduzia o gorgu-

ihar do homem n'aquelle fundo ma-

tizado onde a impressão de isola-

mento absoluto, de alheamento ex-

piatório, de natureza enclaustrada,

sobrepujava a qualquer outra. . .

O meu guia, a quem não foi

indifferente o assombro que se me

transluzia no rosto, prometteu-me

passagens ainda mais portentosas

n'esta ilha desconhecida. Fallou-me

do sitio de « San t'Anna» como se

pintasse a thebaida dos poetas; er-

gueu a mão, lentamente, sobre os

abysmos e aguçou no espaço uma

ponta diabólica: o «Pico ruivo»; os

seus grandes olhos reflectiram cam-

biantes infinitas: eram as cascatas

do «Rabaçal».

134

Calculo que um niez chegará,

escassamente, para tudo isto, pois

a ilha é extensa, eu ando a pc e

os caminhos sSo de cabras. . .

No regresso, voltando do «Curral

grande», entrei para descançar n'uma

especie de boceta oval, toda alcati-

fada a musgo rôxo, genuina gruta

de poema pastoril, a cuja entrada

rectangular pendia uma cortina de

agua desfiada, e os fios tSo juntos

e distinctos como nos reposteiros

de miss an ga japonesa.

* ♦ *

A approximaçâo de um grande

vapor branco, ha meia hora já

aproado ao «Funchal», que deve

135

ser um a Castle» conduzindo tropas

frescas para o iCabo», vein ata*

lhar-me a febre epistolar.

Vou deixal-o, por agora, amigo.

Não quero perder o ensejo de

admirar ainda uma vez o aprumo,

a elegância, o asseio dos nossos

cruéis alliados. Os mesmos soldados

rasos, apoz travessias medonhas na

promiscuidade das casernas fluctuan-

tes, desembarcam limpos, garridos

quasi, empertigados nos seus mo-

destos uniformes de kaki engomina-

do, c mais guapos do que os aju-

dantes de campo da Magestade

portugueza em dias de parada. . .

Também os desejo ver duas

horas depois, na occasião de re-

gressar a bordo, amarfanhados, mas

não combalidos, pelos eft eitos das

•3^

bebe rage us venenosas—que sob o

rotulo de «Madeira genuíno velho»

os taberneiros lhes ministraram —

distribuindo pontapés e soccos, em

guisa de paga, aos assassinos que

os perseguem, . .

Vem a pello notar-lhe que a

guerra do «Transvaal» ateou na po-

pulação madeirense o fogo da dis-

córdia. Por serem de diversa ten-

dência partidaria muitos namorados

retractaram as promessas matrimo-

niaes, muitos amigos se esbofetearam publicamente, e muitos co herdeiros,

embora de maioridade, exigiram par-

tilhas judiciaes. Ou elles não fossem,

os dignos filhos da briosa raça por-

tuguesa, capazes de affrontar as

maxímas catastrophes para que «Ro-

berts» ou «Kruger» levem virtual-

137

mente a melhor nas suas conten-

das, n'esse empenho tao accesos

como indiferentes a tudo quanto

lhes vae por casa e sem animo

para — ao menos — metter facas aos

cevados nacionaes que lhes trans-

formaram a patria em pocilga. .

Este bonito — ardente — periodo

deve ser relido ao som da «Portu-

gueza» assobiada, ou do «Hymno

da Restauração > na guitarra con-

soante, caro amigo, a musica das

suas actuaes disposições patrióti-

cas. .,

Aproveitarei a tarde para dar

uma volta pela cidade que ainda

não vi; nem sequer entrei á Sé. Contento-me, quando vou a caminho

do «Monte», em parar um momen-

to deante da torre quadrada que

US

se ergue das abobadas do abside.

É um arranjo de linhas e de eôr

altamente pittoresco.

A construcçfto ampara-se a gi-

gantes toscos — rematados por agu-

díssimos fusos de pedra torcida en-

tre os quaes corre uma renda ma-

nuelina—para formar terraço. Apoia- do em parte n'este, e sustido late-

ralmente por gigantes mais solidos,

outro terraço mais elevado cerca-se

de balaustres, donde se levanta o

carnpanario de pedra negra faustuo-

samente mitra do d'azulejos claros. A

ramagem de duas viçosas palmeiras,

que repuxam dos alicerces, espaneja-

lhes as pedras carcomidas.

Funchal — Abml-

Não eram fal lazes as promessas

do meu creado e guia Gregorio e

pela primeira vez tias minhas pere- grinações senti a realidade, logo de

chofre, sanar as desconfianças gera-

das no encarecimento prévio.

Verdade seja que o rapaz não

especificara taes ou taes caracteres

de encanto — impertinentes croques

da esthetica official a que a repulsa

acode instinctivamente — mas gene-

ralisando, evocara com ingenuidade

uma região sublime.

140

Levei quinze dias dineffavel rego-

sijo contemplativo ena «Sant'Anna»

a filtrar a alma por sitios. tão altos,

tão luminosos, tão desafogados, que

m'a restituíam límpida, serena, per-

meável ás mínimas irradiações de

belleza exterior. Movimentos, formas,

cores, reverberavam-se-nie no cére-

bro por clarões iriados da alegria

de viver.

Durante essas duas semanas ali-

jei saudades, raciocínios, concupiscên-

cias, philosopliias. . .

Eu sorvia o mundo pelos senti-

dos, abrindo os olhos ás perspecti-

vas infinitas, aos ceos ampliados na

circuinferência do mar que a eleva-

ção das montanhas dilata, as prodi-

giosas transfigurações da paysagem,

ora apparecendo em miniaturas es-

i4t

maltadas, nas profundíssimas cavida-

des dos valles, pelo rasgSo de uma

nuvem opaca, ou, deslocada no cai-

xilho movei do arco-iris, esbatendo- se sob a musselina fluGtuánte das

neblinas leves, ou sepultando-se nos

nevoeiros crassos, que a abafam por

fim em borrões quasi líquidos — re-

domas de vidro cheias de fumo ne-

gro... E, logo, á súbita rajada do

vento a resurreiçâo das mattas cer-

radas que sobem pelas encostas ar-

rebatadamente, como exércitos, le-

vando, a modo de guiões, nas pon-

tas mais altas dos pinheiros farra-

pos de névoa doirada; e na volta do atalho, a terra a resvalar por

vinte espinhaços, varetas de um le-

que meio aberto cujo panno mati-

zado o mar arredonda.

14~

Ao cahir da tarde o sol obliquo

ardia nas poças dc agua tão violen-

tamente que encandeava c mais in-

tensa do que á excitação do álcool

a vida accelerava-se na embriaguez

das excessivas altitudes. . . O meu

som no era suave e continuava du-

rante a noite o embevecimento dos

dias generosos, em sonhos cujas ima-

gens buscavam o meu travesseiro,

bailando como pérolas brancas nas

resteas de luar. . .

A travessia do «Funchal» a

«Sant'Anna» foi trabalhosa, com

chuva e cerração, por caminhos

suspensos á laia de escadas de

corda sobre despenhadeiros apoca-

lypticos.

Apoz cinco léguas de marcha,

quando luzia a redempçilo na fór*

143

ma já perceptível do campanario

de «Sant'Anna» obscureceu-se es-

pantosamente o ceo e despejou

agua a cantaros. Para me animar o meu guia observou, no tom so-

cegado que lhe é peculiar:

— «D'aqui á hospedaria pouco

mais ha de meia légua... mas não

tarda que seja noite e bem pôde

succedcr que não encontremos lá

ninguém. , . Na verdade com o

tempo assim quem espera hospe-

des?. . . A mais. d'isso deve haver

transtorno nos arames e talvez o

despacho desta manha não che-

gasse. , . s

* Sant'Anna» é uma larga dis-

persão de cabanas de colmo, arre-

dada das quaes, na pendente da

riba-mar, sobre um grande terraço

144

ajardinado, está a construcçSo in-

gle za que recebe os forasteiros por

favor especial e ajuste c aviso an-

tecipados.

A tal meia légua durou duas

horas sempre com agua por cima

do artelho e a perspectiva de en-

contrar a hospedaria fechada . . Mas esperavam-me. . .

Despi-me; confiei o fato enchar-

cado a uma das duas bruxas sa-

turninas a cujo cuidado fôra com*

mettido o trato da minha pessoa.

Jantei na cama e adormeci ao som

da tempestade que durou pela noite

fóra e era deliciosa de ouvir nos

interludios do somno, . .

Amanheceu o dia seguinte ines-

peradamente formoso e a chuva náo

incommodou mais durante a minha

145

permanência ali; tempos vários, fres- cos, de ventos e nevoeiros e muita

nuvem a empannar o ceo de for-

nias em perpetua evolução, como

estudos para ornamentações cada

vez mais faustuosas. . . O tempo,

emfim, que melhor convém a di-

gressões alpestres.

Fui ao «Santo da Serra» e ao

«Pico ruivo», custosas jornadas que

alternavam em dias de mais ener- gia com as visitas aos povoados

visinhos e ás fragas da costa.

Em volta de «Sant'Anna» o

campo bem cultivado e fértil, repar-

te*se infinitamente em pequenos re-

talhos por sebes tecidas de roseiras,

hortênsias e lírios. A industria tem

chegado ali ao extremo de prender ao flanco das rochas aprumadas no

to

146

mar, pequenos canteiros de verdura,

sobrepostos em cadeia d'alcatruzes,

por sitios cujo accesso se deve re-

putar empreza para loucos. Certo

dia, buscando passagem de um para

outro d'esses graciosos alegretes

aereos, vi-me nos braços da morte

aventurado por uma çimalha que

não tinha dois palmos de largo; á

direita alisava-se a rocha como pa-

rede betumada de cisterna, e ao la-

do esquerdo a aresta d'outra parede

egualmente lisa que profundava du-

zentos metros até ao mar.

Parei e disse para o meu crea-

do: — 1 Não imaginava que o cora-

ção pezasse tanto,.,; se não volta-

mos para traz perco o equilíbrio. . .»

Muito serenamente, — a julgar

147

pela firmeza da voz — o Gregorio

replicou:

— * Voltar aqui não se pode.,. Isso que o senhor sente é falta de

costume, mas eu o amparo se fôr

preciso. . . »

Não foi preciso porque bastou

para me suster a confiança 110 seu

auxilio. Livre de perigo reparei que o rapaz estava livido.

— >0 que tens tu?...»

— i O senhor dizia aquillo para

me metter medo não c verdade?. . .

Como é que eu o havia de am-

parar?. .. j

E o caso fez-Ihe decerto abalo

porque á noite tinha febre. Mas as

bruxas saturninas á força de escaida- pés e lambedores deram-no por bom

ao dia seguinte,

14-S

Algo socarrão o Gregorio com*

mentava:

— * São muito caridosas aquellas

senhoras... qual d'ellas a melhor!..,

A desdentada disse logo que me não deixava passar a noite sósinho

e mandou deitar a outra. . . que não quiz ir... e ficaram ambas á minha

cabeceira... Davam cada suspiro

que mettia dó...»

O Gregorio ainda não tem vinte

an nos: é alto, forte, bem feito. A

cabeça de construcção latina, a testa

lisa e breve, o cabello frisado, quasi

ruivo, os olhos côr de avelã verde e

um pouco apartados do nariz. Nem

um pêllo de barba a pungir-ihe a tez peceguenta; as commissuras dos lá-

bios abertas em cheio na carne e reviradas como pequeninas pétalas

149

de rosa. Uma cara que sorri, intrin-

secamente luminosa, mas de expres- são ambígua, inquietadora ate. Ves-

tido com a tunica de setim, curta,

quinhentista, estaria bem no séquito

d'algum rei mago dos frescos do Lui-

ni. Eu recordo-me de lhe ter manda-

do photographias de «Saronno»; re-

pare o meu amigo no pagem que

leva a espada e a coroa d'el rei Bal-

thazar: é o meu Gregorio.

Mas bem mais curiosa ainda do

que a expressão da sua physionomia c a extravagância dos seus conceitos.

Duma vez que cu lhe observava a respeito d um grupo d'estrangeiros:

— * Teem ar de se aborrecer va-

lentemente. . ,»

— tTeem.—respondeu — É de-

certo gente muito capaz...»

ISO

— i EntSo ?!»

— i Pois en penso que esta gen-

te enfastiada que se põe a correr

mundo corn tanta fadiga e tanta des-

peza é só por amor á verdade, para

ter o direito de dizer «já vi», quan-

do se fosse mentirosa podia do mes-

mo modo dizer «já vi» e ficar-se

muito bem repimpada em casa.»

Em cSant'Anna» encontrando-nos

á porta do telegrapho com uma chus-

ma de creancinhas, disse eu: — «Talvez sejam todas do tele-

graphista. . .»

— k Com certeza...»

— «Pois tu conhecel-of. ,»

— «Nilo senhor, mas os telegra-

phistas sâo todos assim . é do

officio. . .»

E, esclarecendo, a ceres cent ou que

i5i

o tele graph is ta é prolifico, o phar-

maceutic© irrascivel, o confeiteiro

desdenhoso, o sapateiro brigão, o

latoeiro politico...

O Gregorio traz o casamento

justo com uma rapariga do «Mon- te» que é deveras mimosa e linda,

mas em «Sant'Anna» descobriu lá

para as húmidas profundezas do

«Calhau de S. Jorge» uma especie de prima, assim como elle de olhos

verdes e cabellos côr de cannella, e mal soavam Ave-Marias sumia-se.

Porque me andasse sempre a fallar na «sua grande amizade» á noiva

pareceu-me bem reprehendelo:

— «Pois tu níio tens vergonha ff.. Olha que isso é uma traição que

estás armando á tua moça...»

—«Deixe o senhor lá que nao

152

ha. bicho mais velhaco do que é a

mulher. ..»

— « Não percebo. . . »

— «Ora adeus! Isto não é nada

para o que ella ainda me ha de fa-

zer a mim...» e cem as mãos ar-

rebitou um caracol de cabello de

cada lado da testa. Os disparates e as momices do

Gregorio toleram-sc, graças á singe-

leza desaffectada que revelam, e as-

sim coavam, sem arrepios, no embe-

vecimento da minha vida.

Para rematar o prazer d'esses

dias de «Sant'Anna» a situação do

hotel reservava me, nas horas seden-

tárias, o seu admirável panorama,

cuja tribuna era um grande jardim

abandonado.

Ao centro a casa, sob a exube-

153

rancia festiva das flores de um bu-

ganvil que lhe bucolisava a fachada,

fazia de caramanchão, sustido, rasti-

camente, em torcidos troncos de par-

reiras; nos festões de purpura des-

bota do buganvil, emmaranhavam-se

as vides com a viçosa alacridade das hastes novas que abrem ao sol as

folhas de cristal doirado.

O jardim, todo, em volta, cele-

brava a gloria de vegetar livremen-

te, por desvairadas composições chro-

maticas e promiscuidades subversi-

vas dos bons preceitos de cultura.

O cálice dos lirios rôxos enfeita-

vam a hirsuta grenha dos buxos ou-

tr'ora tosquiados; dois cyprestes agu-

dos viam-se liados até meio na rede

das trepadeiras multicores, como ban- da ri lhas de honra; presos á mesma

154

moita, os botões de rosa, cheios, pe-

sados, amarellos com geito de li-

mões, as estrellas de velludo gasto

das rosas negras, as crespas borlas

fartas das arregaçadas rosas côr de

carne. Outras rosas desfolhadas ma-

culava m de sangue os cortes de bro-

cado resccndente, tecidos por jacin-

thos e narcisos em canteiros ainda

geométricos. Arvores immensas de

camélias, tão inçadas de flores que

pareciam fingidas, a mettcr-se ainda em cima nos enredos de florínhas

brancas dos jasmineiros de Italia e,

suspensas nas pernadas d'urn carva-

lho único, exorbitante, os chalés

de glycinias sumptuosamente franja-

dos. . .

Parte do jardim tornara-se impe-

netrável pela densíssima vegetação

155

que o enchia, mas via-se, de longe,

d'esse miolo dc verdura, alar a fluên-

cia magnifica das bananeiras esté-

reis, os leques malabares das pal-

mas an5s, as vergastas dos bambus

e, ardendo como fachos accesos, os

thyrsos alaranjados dos cactos flo-

ridos. .. Do lado opposto e ao abri-

go do biombo de loureiros entrete-

cidos de heliotropos cujas flores, na

sombra lúcida, lhes recamavam a fo-

lhagem envernisada de gottas azu-

ladas, o tanque d aguas verdosas, tor-

queza oval, reflectia por entre rolos

dc limos trechos de ceo profundo.

Era ali que durante os crepúsculos

se distillavam os perfumes mais acti-

vos.

O jardim vivia o momento su-

premo do seu explendor, hora im-

156

perial, fulgurante, perdulária, que se

encurtava para se níío repetir mais,

exhausta em voluptuosidades arreba-

tadas e caprichosas; e essa hora di-

vina foi para mim só. . .

Levanta-se o terraço — especie de

planalto — que o jardim occupa quasi sobre o mar a sueste, e, livre por

todos os lados, graças á amplitude

de successivos valles, descobre em

redor a immensa região de serranias

revoltas, que enchem o horisonte de

cimos recortados como um abeceda-

rio turco e garram, para o sul, na

ponta de S. Lourenço...

A ilha saturada de agua resuda

agora em fontes, cascatas e ribei-

ros, cujo murmúrio ouvido no jar-

dim, como um solo de flauta mo-

dulado a distancia, os melros acom-

157

panham briosamente chilreando em

côro. Mas o que ia no ceo nSo eram

meras combinações ornamentaes; as

nuvens davam ali espectáculos or- denados, de accessivel comprehensão

como depressa verifiquei. Comedias

e tragedias e autos e farças. Os protagonistas eram uns mons-

tros de algodão nevado, e appa- rencia vagamente ursina que, dois

dias depois da minha chegada, asso-

maram ao horisonte lá dos lados

de leste e nunca mais desampara-

ram a scena. Se por acaso o ven-

to norte os obrigava a acolher-sc

a bastidores, eil-os que, resurgindo

de oeste, iam tranquillamente acas-

tellar-se nas cristas da serra, le-

vando o ceo ás costas, como coisa

158

mitito sua e do seu uso intimo.

Armavam todas as tardes umas ap-

paratosas tendas de setim bordado

a froco, cujas franjas desciam até

ao mar, e n'eilas se recolhiam ao

cahir da tarde, em magestosa pro-

cissão, com os Reis á frente, a

quem o Gregorio chamava Dom Fa-

brício e Dona Giralda.

Passaram alguns dias em bata-

lhas que pelo methodo a que tudo

obedecia mais pareciam torneios, e

era de ver, durante os terríveis re-

contros, como se abolavam as res-

pondentes couraças e que jorros de

sangue lhes corria das feridas e

vinham pelo ceo abaixo juntar se,

a poente, nimi lago de purpura.

DVsse Iago levantou se uma tarde

um dragílo horrendo que arremettcu

159

dc fauces escancaradas direito ao

sol. Correu-lhe ao encontro Dom Fa-

brício, despedindo chammas do ar-

nez de diamante. Mas o dragSo le-

vou-o de vencida, arpoou-o com as

garras, enguliu o sol e rolou para

o mar escabujando e dando urros. . .

Depois fez se entre os monstros

a grande paz cm que os deixei. Sa-

hiam com a aurora a apascentar os

rebanhos d ovelhas de prata e des-

ciam invariavelmente, sem mais des-

vio, a pendente do mar onde passa-

vam as noites. Só uma vez os vi

fora d'agua depois do sol posto: es-

tavam todos á roda da lua a estu-

dar, talvez, algum maravilhoso phe-

nomeno que nós não percebíamos cá

da terra

IÓO

Difficilimo será imaginar região

mais bruscamente accidentada do que

aquella por onde se passa na jorna-

da entre «Sant'Anna», «Fayaí» e

«Machico». Por toda a parte a ve-

getação pullula e as mesmas rochas

desapparecem sob espessíssimos man-

tos de musgo, de modo que um

estofo solto parece cobrir o esque-

leto da ilha, sustendo-se nas de-

pressões em regaços de velludo e

sellando-lhe os espinhaços de feltro

brando. Certos caminhos desenros-

cam-se nas gargantas dos algares,

pelos debruns dos despenhadeiros, á

laia de serpentes; outros s3o como

frágeis laços de nastro atirados a

esmo aos lombos cheios; outros ris-

cam as penhas escuras e perpendi-

culares de zig-zags — as linhas que-

161

' . bradas das faíscas eléctricas nos ho-

risontes plúmbeos. . .

Embarquei em «Machico» para o «Funchal» e hoje cá estou outra

vez na «Quinta Vigia» a dar-lhe

conta das minhas finezas emquanto

não apparecem uns inglezes chega-

dos á ilha na minha ausência, os

quaes me emprasaram — em bilhete

de visita que o Gregorio me levou

esta manha ao quarto — para um

encontro aqui, esta tarde.

É gente com quem me avistei

ha dois annos na «Sicilia»; falíamos

então na possibilidade de visitar jun-

tos a Madeira, esta primavera, pala-

vras imprudentes a que eu não li-

guei sentido algum, mas não assim os

inglezes cujo primeiro cuidado foi bus-

car-me pelas hospedarias do Funchal.

.

l62

Pensei cm esquivar-me á entre-

vista, mas o Gregorio disse-me que

iam também duas senhoras e uma

d'ellas era «tal quais a imagem da

Rainha Santa que sahe na procissão

de Terceiros da freguezia do Monte

c que é a coisa mais linda que exis-

te na ilha. . .

Sempre quero vèr. . .

XI

Funchal—Maio.

A Sé do Funchal tem tres na-

ves. . .

Mas tres noites seguidas, leva-

das, íntei rinhas, a acariciar—a ado-

rar— o corpo saboroso de urfla dese-

jada creatura até então vista só de

relance, embora a miúdo, quando

essa creatura vence a prova da nu-

de;: e, depois, evoluciona na memo-

ria, como pelas transparências glau-

cas de um aquario, em attitudes vo-

164

luptuosas; tres noites assim exigem

honras de precedência sobre todas

as cathedraes do mundo... Por isso

e comquanto eu saia agora mesmo

da Sé do Funchal, vou fallar-lhe da

minha Cecilia. . .

Era um perfil idealisado á ma-

neira dos cunhos gregos que eu

divisei, argênteo quasi, no interior

penumbrento de uma casa térrea,

de passagem para o «Monte». Ex-

pressão muito fina e o quer que

fosse de longinquamente, subtilisada- mente, caprino; olhos claros sob a

leve curvatura das sobrancelhas ne-

gras e dois rolos de cabello loiro,

levemente arcados também, e parai-

lelos ás sobrancelhas, alisando-se so-

bre a testa para unirem as pontas

detraz da cabeça.

i6s

— e Quem é aquella rapariga,

Gregorio?»— inquiri sobresaltado.

— « Não sei dizer quem se-

ja. .. »— respondeu muito natural-

mente.

Mas a graciosa figura tornara-se

infallivel, á nossa passagem, na ja-

nella terrea, e o seu olhar acceso

perseguia o Gregorio e parecia im- »

portunal-o como reflexo do sol cm espelho■ movei. , .

— «Não resta duvida..,, aquella

mulher conhece-te, Gregorio. . . »

— «Talvez!...; eu é que nunca

a ví mais gorda, . . »

No emtanto, a certeza de que

existia ou existira entre os dois

qualquer ligação mysteriosa, torna-

va-se cada dia mais evidente, gra-

ças ao affinco da rapariga em es-

166

perar a nossa appariçãò e o enleio

do Gregorio a quem o seu olhar

torturava.

— «Gregorio, tu mentes... lu

conhece*la como aos teus dedos. . . »

— «juro que nâo. . mas o se-

nhor verá,.. Hoje mesmo vou tra-

tar de saber quem ella é. . . »

No dia seguinte: — «Então, Gregorio, quem é a

mocinha?»

— «Valha-me Deus que me esque-

ceu de todo... Já agora indagarei quando voltarmos de Sant'Anna. . .»

Deitei inculcas por outras vias

de modo a poder apurar o negocio

na volta de Sant'Anna e logo lhe

soube o nome e a historia. Chama-

va-se Cecilia e nascera no «Monte»

onde tivera namoro com um primo

167

que a seduzira e depois a deixara

por outra. Vivia por conta de um

inglez rico e zeloso que a amava

com delírio mas, agora, a distancia,

pois andava ausente, O primo sedu*

ctor e o Gregorio eram uma e a

mesma pessoa. Existiam suspeitas

de que ella llie perdoara; durante

a ultima romaria em S, Roque hou-

ve quem os visse conversar e, como

nunca faltam alcoviteiras, a noiva

do Gregorio teve logo noticia do

caso e ali mesmo, no adro da igre-

ja, lhe deu um faniquito. As infor-

mações accrescentavam a titulo gra-

tuito : sabe-se que o Gregorio tem

muito bom dinheiro grangeado na

lida do * Monte», com os carrinhos

dc verga e ao serviço dos estran-

geiros; alem d'isso por morte dos

i68

paes ficatn-lhe para cima de tres

contos e a noiva é o melhor par-

tido da freguezia. Tudo gente de

peso, em sumtna..,

— «Então, Gregorio, já desco-

briste alguma coisa?...»

—«Ah!. . . Parece que a rapa-

riga c lá do norte da ilha; vive na companhia da mãe e está por con-

ta de um inglez muito rico e muito

cioso que lhe prometteu casamen-

to. . . e não a larga nem um ins-

tante. .. »

— «Pois, Gregorio, meu rapaz,

já agora acaba o favor e averigua

como c que eu poderei fallar á ra-

pariga, ou á mãe, ou mesmo ao in-

glez rico c ciumento, se isso fòr in-

dispensável, porque, de todos os

modos, tenho resolvido não deixar

169

a ilha sem primeiro dormir com a

mocinha. . . »

— «Isso sim!...»—exclamou elle

visivelmente escandalisado. Eu não

prosegui, esperando ensejo mais

opportuno de voltar ao assumpto.

Depois vieram os encontros com

os meus amigos inglezes em pas-

seios, almoços e merendas no cam-

po a que o Gregorio assistia sem-

pre e sempre com os olhos a fugi-

rem-lhe para a «imagem da rainha

santa». A «linda imagem» arran-

java-se pelos moldes pre-raphaelicos:

posturas serpentinas, gestos fluidos,

e bandós crespos de cabcllos ver.

melhos a comerem-lhe as faces. . .

E ia-me parecendo a mim que o

motivo predilecto das suas medita-

ções era a plastica do Gregorio,

I JO

com tal frequência o seu olhar o

buscava e 11'clle descançava. . ,

Um dia, á queima-roupa:

— «Gregorio, e a respeito da

Cecilia?...»

— «Qual Cecilia?... Pois já lhe

sabe o nome?...»

—«Sei tudo e sei o que tu lhe

fizeste. . . O que mal comprehendo

é esse teu egoísmo ferrenho, essa

tua teima cm não quereres repartir

dc um quinhão que te não perten-

ce. Olha, para teu castigo, serás tu

quem ni'a ha de arranjar. . , »

— «O senhor anda muito enga-

nado comigo.,.; para tudo servirei

eu menos para isso. ..'»

— « Veremos.. . »

Volvidos dois dias fomos á quin-

ta do s Palheiro Ferreira » que é a

171

propriedade mais bem cuidada e

mais celebre da ilha, verdadeiro

apanagiò de casa reinante. Em si-

tuação explendida et á similhança

dos parques inglezes, armando, ao

acaso, sobre um prado uniforme,

egual, de relva viçosa, os canteiros

de flores, os grupos de arvores ra-

ras, as alamedas pomposas de car-

valhos, de castanhos, de plátanos,

os pequenos labyrinthos de pinhei-

ros, os lagos reflexivos e as fontes

sussurrantes, limpa de toda a rus-

ticidade inconveniente, nao será fá-

cil inventar scenario mais apro-

priado para idyllios perversos do

que o recinto d'aquella cmbclleita-

dora quinta. . .

Por favor muito especial dos

seus donos ali pudemos passar quasi

172

um dia todo. jantamos alegre-

mente n'uma clareira vazia e sole*

mne como qualquer sala de thro-

no... A companhia, numerosa, com-

binara-se na proporção observada

pela raça humana: com excesso de

mulheres.

Mas a mais cdosa das senhoras

presentes não tinha ainda trinta

annos, e todas conheciam «Nápo-

les», a «Urnbria» e o «Baude-

laire»... Houve um momento de

quasi absoluta expansão, durante o

qual a alma desafogou sem escrú-

pulo, a caminho das maximas in-

dulgências. . . Os vinhos, de excel-

lente escolha, accendiam o enthu-

siasmo. ..

Depois da refeição dispersamo-

nos pela quinta.

173

A providencia, provavelmente,

deparou-me dentro de um caraman

chão o invejável grupo que a «san-

ta imagem» e o meu Gregorio lá

foram representar. . . Ambos cala-

dos, como é proprio de esculptu-

ras. . . Ella tinha as faces desmaia-

das e a mão direita niettida pela

abertura da camisa branca do rapaz

em cujo peito os anneis dos seus

inquietos dedos reluziam... Preten-

dia a desfallecente menina, suftbca-

da pelo exorbitante calor que fazia,

amparar-se ao hombro do seu com-

panheiro? Assim devia ser e decerto

assim o comprehendera elle, quando

desveladamente lhe passou o braço

musculoso á roda da cintura. . .

— «Gregorio,—disse-lhe eu n'essa

mesma noite—os meus amigos in-

174

glezes queriam levar-te d'aqui a dias

a Sant'Anna; vae também a «Rai-

nha santa»,.. Mas eu não te deixo

ir; direi que preciso de ti, se me

não proporcionas meio de estar com

a Cecilia, , . Entendes?. .. »

— «O senhor pode fazer o que

quizer e eu estou por tudo, mas no

que diz respeito á Cecilia escusa de

profiar... Eu não sirvo para taes

recados... »

Sem embargo ao outro dia de

manhã cedo entrava-me no quarto

e, sc bem que em voz sumida e

tom despeitado, rcsolveu-se satisfa-

toriamente:

— «Se quizer, a rapariga espera-o

esta noite ás oito horas...» — De-

pois, humilde: — «Mas um grande fa-

vor lhe tenho eu a pedir. . . »

i?5

— «Dize lá... »

— «É que a não beije nos

olhos. ,. »

E assim o prometti,..

A Cecilia tem a consciência exa-

cta de quanto vale despida. Vi-

veu até aos dez annos descalça, na

serra, e os pés, perfeitos, conser-

va-os intactos mau grado as elegan-

tes botinas de tacão alto, a cujo

molde os sujeitou, vae para dois

annos, por culpa do amante. Este

senhor é homem dissoluto, conforme

deprehendi do que ella a seu res-

peito referiu, e photographoua re-

petidas vezes, em diversas posições

estudadas, nua, mas conservando-

se de meias e botinas. . . Para

arranjar fundos aos quadros colga-

va nas paredes colchas preciosas

176

de que ella me mostrou a collecçíío

admirável.

Eu observeilhe:

— «O teu amante além de li-

bertino parece-me homem de pou-

quíssimo gosto.. . Tu és incompa-

ravelmente mais formosa descalça e

para t'o provar vamos repetir as li-

ções que elie te deu mas sem bo-

tinas nem meias...»

Ás attitudes académicas ajuntava

cila outras de sua invenção; a mais

attrahente era de joelhos sobre a

cama,* sentada nos calcanhares, com

um sorriso malicioso e quieto, a

apontar para mim os bicos dos

seios hirtos, cada um em sua

mão. .. Era imagem que o poeta

acceitaria para pôr á entrada do

palacio da Ventura.

177

Em um dos momentos de mais

enlevado extasis, quando eu, esque-

cido da promessa feita, lhe ia bei-

jar os olhos — sorvel-os como duas

gottas de vinho generoso — ella cer-

rou os docemente e pareceu-me que

os seus lábios murmuravam: « Gre-

gorio. » Aos meus labíos acudiu

o mesmo nome como se o fosse

de alguma divindade tutelar. . ,

Julguei de outra vez surprehcn-

der-lhe nos olhos claros uma levíssi-

ma tinta de melancolia.

— «Que tens tu?»—perguntei.

—«Nem eu sei bem. .. Dese- java ser cabra e comer de bruços

a herva verde. . . »—e o seu rosto

tomou a mais lídima expressão ve-

getativa

l7s

Voltemos á Sé que ainda hoje

nao desmerece da referencia feita

por Damião de Goes: «sumptuoso

templo». É de tres naves, o tecto

de cedro artezoado, em rosas octo-

gonas, com pinhas vazadas e pinhas

pingentes, alternando, e tudo embu-

tido a marfim e madrepérola, no

melhor estylo hispano-arabe,

A capella-niór, manuelina,—infe-

licissimamente com a pintura das

cadeiras do coro retocada a azul

celeste e caca de anjinho; a capella

do Santíssimo lavrada e cosida em

oiro, resplandecente, riquíssima, e o

thesouro da irmandade recheado dc

ostentosas alfaias do bom tempo de

D. Toão v; muito azulejo curioso,

de fabrica portúgueza, em largos

pannps historiados a figuras azues.

179

Alguns painéis de forte colorido,

pelos retábulos e a joia por excel-

lencia, a celebre cruz que D. Ma-

noel offereceu a qual tão apreciada

foi em Lisboa, na Exposição de ar-

te ornamental, que por pouco não

fica lá esquecida. É com effeito

objecto para ensandecer a quem

lhe antegostar a posse: as delica-

díssimas figurinhas dos quadros da

paixão, que lhe enxameiam os bra-

ços, parecem obra italiana, ..

* * *

Depois da minha ultima carta

dei fim ás digressões pela ilha indo

a «S, Vicente» e ao «Rabaçal».

Fui embarcado d'aqui á «Calheta»

i So

que c um cordão de casas, suspen-

so do espinhaço da serra, á simi-

Ihança dos rosários de pimentos que

se vêem ás portas das vendas hes- panholas. . ,

O trecho fragoso da costa que

o vapor percorre despeja, agora,

dos alcantis sobre o mar infinitas cascatas, como se a ilha fosse uma

immensa concha de granito a tras-

bordar agua clara.

Vae-se da «Calheta» ao «Raba-

çal » em continuada ascensão por lombos ouriçados de pinheiros no-

vos e fundos barrancos vestidos de

giestas amarellas d'oiro que o ven-

to açafroa aos sulcos — os sulcos

deixados pelo roçar, leve, dos de-

dos sobre um estofo de pellucia. . .

Atravessa-se á luz de archotes um

i8i

kilòmetro dc tunnel — o «Furo» —e

desemboca-se na região das «aguas

loucas», o «Rabaçal», onde tudo se

desfaz em cristaes líquidos a correr

para os abysmos de velludo verde.

Ali, ainda subsiste a primitiva

vegetação cm urzes que attingem

dimensões de carvalhos grandes e

nas dragoeiras da índia, arvores

quasi fabulosas, com troncos aber-

tos e cavados a modo de grutas

amplas no seio da rocha. . .

' Desfazcm-se os rochedos em agua

que lhes rebenta do coração e re-

puxa c brilha e cae, silenciosa, nos

tapetes de musgo.

Uma estreita cornija que serpen- teia sob o lençol, pejado de cam-

biantes, de extensa cachoeira dá

accesso ao assombroso meio cyiin-

1 82

dro, cavado no granito, onde esíii-

siam com desordenada violência, es- padanando em leques ou vergastan-

do em cordas grossas, dezenas de

fontes, e sobre ellas, de altura es-

pantosa e tomando-as todas dentro

de uma luminosíssima cupula de vi-

dro prismático, outra cascata a des- fechar n'outro .mais vasto cylindro,

fôjo temeroso e sem fundo por

cujos recessos a vegetação espon-

josa lhe absorve e abafa o ruido. . .

li o «Risco» e o «Sitio das

vinte e cinco fontes».

As serras de < S, Vicente» e

«S. Boaventura» pedem para ser vistas por miúdos e «vividas» du-

rante mezes. O genero pastoril, a

não ter nascido na imaginação dos

poetas que buscavam scenarios ade-

183

quados a idyllios rústicos entre al-

mas Candidas, inspirou-se, decerto,

em regiões parecidas a esta, se as

ha: murmuram os ribeiros, chilreiam

as aves. choram as fontes e as

grandes arvores agitam brandamente

sobre os prados matizados a som-

bra caridosa das suas ramas, ..

* Aônia» e «Pérsio» por lá andam

perdidos. . ,

Mas afim de satisfazer a todos

os gostos também não escasseiam

ali vestígios de convulsões tremen-

das, com perspectivas tragicas, To-

pa*se a caminho do «Curral gran-

de» com uma escadaria colossal de

basalto que, sendo infinita não leva

nem ao ceo nem ao inferno. , , ; é

uma expressão de anciedade petri-

ficada.

I S4

Os meus amigos inglezes parti-

ram houtem para « Sant'Anna» e

d'ahi seguirão até «Ponta Delgada»

com ideia de regressar ao «Fun-

chal » pelo «Curral grande», É ex-

cursão para quinze dias; acompa-

nha-os o Gregorio.

Fui com elles até ao «Monte».

À despedida o Gregorio disse-me:

— «Já sei que lhe beijou os

olhos. , . ; é como quem beija ca-

beças de passarinhos...»

— «Tu estás doido rapaz!...

Adeus. . . »

O Gregorio chorou e deu-me a

entender que era com pena de me

deixar. Elie sabe que depois de

iSs

amanha embarco no < Cabo Verde»

para Lisboa e suppõe, ajuizadamen-

te, que nos não tornaremos a ver.

Embora vivêssemos quasi dois Ine-

zes juntos—ou por isso mesmo que

vivemos quasi dois mezes juntos

— a sua commoçao — desinteressada

— surprehendeu-me, . .

A «imagem da rainha santa»

que não percebera a conversa mas,

com os olhos gulosos embuscados

num immenso molho de goivos,

cravos e rosas, espreitava o Grego-

rio, exclamou, arrebatada, ao vêr-lhe

as lagrimas:

— «Que bellissiino coração o

d'este rapaz!., , »

Eu desejaria encontrar-me com

elle só para lhe ouvir a relação ve-

rídica das suas actuaes aventuras.

186

Mas empenho baldado, talvez; o

Gregorio é poeta que não intenta

fazer versos: discreto, cauteloso e

dissimulado, portanto. ..

XII

Funchal —Maio.

Com a desapparição d'aquella

gente alliviei da pesada nuvem que se me ia condensando na alma; eu

sentia-me já preso aos mexericos

insinuantes e deleitáveis que são o

chorume da ociosidade civilisada e

morto por desafivelar a imprescindí-

vel mascara da hypocrisia sociável...

Não sem uma pontinha de sauda-

de; a saudade que fica das escra-

vidões voluntárias.

Cahi de novo em mim, na mi-

.

I8S

nha liberdade de monologar, no

men theatrinho intimo onde o actor

e o publico — imaginação e consciên-

cia— se entendem a primor.

A minha consciência 6 um es-

pelho impudico e muito límpido,

cobiçoso de todas as imagens que

brilham. ..

Passeei na cidade com a alegria

do encarcerado que se começa a

gosar do indulto, já podia olhar le-

vianamente, demoradamente, libidi-

nosamente para quem passava a

meu lado, na rua, sem incorrer na

pena de explicar ou disfarçar a sen-

sação que os olhos denunciavam. . .

Para tirar a prova á realidade

da minha alforria fui verificar se

era, com etTeito, absolutamente isen-

ta de influencias damninhãs a astral

I 89

impressão que registrara da cruz de

D, Manoel e monologuei: t O trabalho é assombroso mas

miudinho, . . As scenas da Paixão

valem tanto como .quaesquer outros

adornos de joalheria.. . O Christo

não soffreu o que dizem, nem mui-

tíssimo menos, tal qual o apresen-

tam 11'esta cruz de prata... É uma

obra hybrida, de composição alle- mã onde se prenderam as preten-

ciosas figurinhas italianas que a en-

xameiam, sem originalidade 110 con-

juncto ou nos detalhes; parece coisa

que um habilissimo ourives vene-

ziano lavrasse, destinada á exporta-

ção. Na Italia o explendor da de-

cadência deslumbrava os povos bár-

baros. . . Nós davamos oiro e etn

troca exigíamos jóias que oiro va-

190

lessem. O barro vil, o bronze pa-

taqueiro, o mármore abundante, pa-

reciam indignos dos nossos lares.,.

Os bandidos queriam oiro que ou-

tros bandidos depois levaram,,, Por

isso viemos facilmente a esta po-

breza de Job. , , Uma esculptura do

«Donatello» seria corrida á pedrada

na corte de D. Manoel, ou, peor,

enxovalhada pelas chufas do «Gil

Vicente» — que os ourives da famí-

lia assopravam... Mas que ideia

faço eu do que ia pela corte de

D. Manoel f... A esculptura em

Portugal 1... Quando descobrirão os

nossos críticos argutos que o «Mi-

guel-Angelo» era filho da «Seve-

ra»?,..»

Tornei ao meu passeio e como

o dia fosse bem fadado deparou-se-

191

me na igreja de S. Pedro outra

maravilha, pelo menos ao nivel

d'aqnella.

E um triptyco pintado em ma-

deira, que está na sacristia sobre a

com mo da dos paramentos, a qual

lhe serve de peanha. Para preen-

cher o vao da parede, aonde o

trasladaram de outra antiquíssima e

extjncta capclla de S. Pedro, ajun-

taram lhe de cada lado um santo

de invenção local e moderna. Estes

desalmados additamentos são de

molde a realçar a belleza peregri-

na da obra antiga e tornal-a per-

ceptive! a profanos intelligentes ou

broncos; sem embargo, e embora ali

permanentemente exposta vae para

um século, ainda não conseguiu

arrancar aos frequentadores ou vísi-

tantes da igreja palavra alguma de

louvor ou admiração.

Tão grande é a nossa penúria

em obras d'esta natureza que me

pareceu justo detiunciar-lhe a im-

portância ao parocho, pessoa dis-

creta, cujo entendimento se alumiou ao fogo das minlias explicações. . .

No seu alvoroço correu a commúni-

ca r o milagre ao Bispo. Para maior

tranquillidade minha, commetti a

mu dos excedentes photographos

que aqui ha a incumbência de re-

produzir o trjptyco, O meu amigo

receberá a seu tempo um exemplar

da photograpbia; no emtanto e afim

de completar a informação eu ajun-

to pormenores.

É um verdadeiro triptyco, com

os painéis lateraes susceptíveis de

193

serem dobrados sobre o painel do

meio, como se fecham as portas de

um armario. Uma figura de corpo

inteiro — tres quartos do natural —

em cada quadro.

O do centro representa S. Pedro

visto de frente, a cabeça um pouco

inclinada para a direita e rematan-

do a leve inflexão do corpo. Com

a mão esquerda segura as pregas

do manto e com a direita, erguida

á altura do peito, empunha a chave

doirada do ceo, sustendo no ante-

braço um livro aberto. O manto,

escarlate, arrasta pelo chão desco- brindo acima da cintura a tunica

de burel por cuja cava, onde se

dobra a gola da camisa branca,

avulta o pescoço nú. Velho, calvo,

corado, de barba branca, typo rus- ts

194

tico, de expressão jovial, bondoso

e são, como convém á figura que

reproduz. O fundo do quadro ima-

gina a larga paysagem em volta

de um lago, ou ria, ou braço de

mar sereno, onde as margens se

alcantilam de roclias agudas. Ao

lado direito, cm proporções de mi-

niatura, o episodio da vida do pes-

cador que deixou a barca no mar

e vem, descalço, por dentro d'agua,

direito ao Christo que o espera na

praia; depois, a perspectiva circular

dos rochedos e vegetações que se

entremeiam, á esquerda, de edifícios

consideráveis ate dar no casario de

uma cidade fortificada. Pela inter-

cepção das margens, que a perspe-

ctiva encaminha para o alto do

quadro, a alvorada põe em volta

195

da cabeça do santo o resplendor

da sua luz branca. . .

Ribas pittorescas com trechos de praia arenosa; florestas fruindo

luz; aguas fluidas, sob a ampla

concha do ceo, a desfallecer em

tons attenuados de uma doçura li-

leacea, toda a admirável paysagem

esbatida a meias tintas onde a figu- ra principal ganha relevo, este fun-

do pacificador e luminoso é quasi

a alma do santo commentada.

O quadro da direita representa

S. André. Vestido de escuro, a ca-

beça a tres quartos, o corpo incli-

nado para a frente, uma das mãos

arrimada á cruz cm fórma de x

na qual padeceu o martyrio, a atti-

tude, a expressão do rosto de quem

rebate com ironias os assomos da

i g 6

brutalidade aggressiva e insoftri-

da. .. É uma figura de homem

vigoroso, na pujança da vida, su-

periormente bello. As dimensões do

quadro só consentem que o fundo

appareça e tome importância sobre

a cabeça do santo, reproduzindo

um canto de região montanhosa.

O quadro da esquerda c obra

prima de symbolism o manifesto. Tu-

do quanto o dogma christão deve

á tenacidade agitadora, ao imperia- lismo intellectual de S. Paulo en- contra-se ali escripto, naquella figu-

ra imperturbavelmente severa e enér-

gica, a um tempo meditativa, intel-

ligcnte, poderosa e obstinada. . . A

cabeça apparece quasi de perfil in-

clinada para o peito; sobre a tuni-

ca rôxa cinge-se o manto de um

197

branco reflectido de azul; na mão

direita um livro fechado, na esquer-

da a espada nua. O que se vc da

paysagem, ao fundo, é em linhas

convulsas por onde assoma uma

nesga de floresta tenebrosa ou tor-

reja um casteilo minaz.

A classificação d'esse triptyco

deve apresentar diffi cu Idades ainda

aos mais expertos. O valor subje-

ctivo— sem quebra de perfeição na-

turalista—das paysagens que lhe to-

mam o fundo fal-o, talvez, derivar

da escola de * Bruges» e contem-

porâneo do < Gerard David»; mas

a obra está absolutamente limpa

dos trechos ornamentaes, bordados

e alfaias, que constituíam as deli-

cias dos pintores flamenges de en-

tão. E é sem duvida trabalho de

198

grande mestre, assim de um cPa-

tinier» ampliado, que estudasse a

fundo os venezianos, grande in tell i-

gcncia para quem a technica não

tinha segredos e que pôz todo o

seu saber e toda a sua arte na

creaçiío typica de tres figuras capi-

tães da Igreja,

Como typos nada conheço supe-

rior em pintura alguma e a compo-

sição, o colorido, o desenho são, de-

certo, de um poderosíssimo artista.

Mas que seja flamengo, ou, ain-

da, allemão — o Holbein não repudia-

ria o S. André — pouco importa a

quem lhe não gosa o sentido archeo-

logico ou histórico e sim a actuali-

dade da belleza que persiste na har-

monia do colorido, no engenho da

composição e pelo vigor do desenho.

199

A satisfação de ter disfructado

alegria tão pura corno essa que o

exame do triptyco me proporcionara

—junto á gloriola de o haver des-

coberto — tornaram-me communicati-

vo. Ao jantar dei a noticia ao meu

visinho, o africanista Trivier, que

sem demora a passou ao compa-

nheiro e assim, de commensal em

commensal, rastilhou em torno^da

grande «meza redonda», provocan-

do pasmo.

Os oito carecas do topo da

meza — hospedes fixos, funccionarios da magistratura e do fisco — cujas

cabeças lisas, esphericas e resequi-

das clamavam por tiros de laranja,

200

como um jogo vivo de < pau bo-

lado » e me sup punham < naturalis-

ta á cata de bichos», miraram-me

com intensivo desdem, attribuindo a

ruina da nação á voracidade cúpida

dos ferros-velkos, que vendiam a es-

trangeiros as nossas preciosidades

por dez réis de mel coado. (D esta

arte se exprimiram, textualmente...)

Uma senhora que frequenta a

meza com intermittcncias — embora constante, eternisada, na gravidez

progressiva c horrenda que a traz

sujeita a uma especie de balão ca-

ptivo — e ali, affectando fastio mor-

tal, devora moelas de gallinha ás

dúzias como se isso fosse a «Fata-

lidade », perguntou, indolente, a um

dos mais esbrugados do * pau bo-

lado» :

201

—«Ó Francisquinho, então va-

lerá muito, valerá mais de cem

mil réis?. .. »

O personagem brazileiro que to-

ma vinho Madeira velho tão caute-

losamente como se lhe tivesse de

contar as gottas e discreteia ácerca

da politica europca com a auctori-

dade de quem varresse o lixo das

chancelarias; um, que diz senten-

ciosamente, 110 seu fallar amaricado;

«Quando chove faz húmido...» .e

pergunta ao Trivier, em tom de

quem propõe problemas á Wronski,

— sempre na sua linguagem pipia-

da — «O senhor me fará favor de

dizer, o senhor que já por lá an-

dou, quando é que começa o inver- no ali pelo meio da Africa, ali por

baixo do Equador...»—a que o

202

Trivier responde com decencia! —;

pois o personagem brazileiro relan-

ceon-me um olhar indulgente e dis-

sertou sobre a «sua, d'elle, Italia

artística» tao satisfeito de si que,

ao perorar, tragou de contente, de

uma vez só, coisa de trinta e cinco

réis de vinho Madeira velho, — a

avaliar por cento e dez o custo

de cada deciiitro.

Este brazileiro é casado com

uma dama teutonica que resume

as feições de feto numa expressão

mais fechada do que o «nó cego»

e traz pela mão um menino liybri-

do o qual se apresenta com certo

ar de «Delfim preso no Templo»

e para se entreter, emquanto a

sopa n3o arrefece, põe a nado den-

tro do prato numerosas esquadras

203

de papel, sahidas do inexhaurivel

arsenal de um jornal velho. ..

Generalisou-se a conversa como

se a noticia . galvanisasse o espirito,

aliás fnnebre, d'aquella assembléa.

«Um do Porto natural» falia-me

de S. Pantaleào, seu padroeiro, que

está enterrado na capella da San-

tíssima Trindade da Igreja da Sé —

V. averiguará da verdade de t3o

arrojada asserção! — e o batoteiro

empedernido philosopha a trouxe-

mouxe, de sua conta e risco:

— «A mocidade é o «prazer de

viver»; perto dos quarenta annos

principia a «curiosidade de ver»; a

velhice é a «saudade da vida»...»

A certo cavalheiro pratico aco-

dem reflexões amargas de fel:

— «Desgraçado paiz! Aqui, no

204

Funchal, da linda casa onde habi-

tou Colombo, relíquia venerada, ro-

magem de estrangeiros illustres,

ainda perfeita não ha dez annos,

só resta uni cliché photographíco:

arrazaram-na por causa das elei-

çOes. . . N'esta ilha abençoada não

ha aporto», não ha « estradas».

e chamaremos infames aos ingiezes

se nos derem o que nos falta só

a troco de uma substituição de

bandeira? Chamaremos infames aos

americanos quando elles, em nome

da humanidade e a troco de sa-

crifício egual — leve! — levantarem e

accenderem nos Açores os pharoes

de que os Açores carecem para

não serem mais, em mãos de por-

tnguezes, o terror da navegação uni-

versal ...»

205

— «As ilhas adjacentes (assim as

chamam, não é verdade?) — atalhou

mansamente um sábio russo — são,

em verdade, incomparáveis. , . Se

os pellados, desolados rochedos do

archipelago grego se não enfeitas-

sem com as loucuras de tanto cs-

criptor imaginoso, quem lhes resus-

citaria a vida poética tão gracio-

sa das suas lendas, assim pclladas,

aridas e desoladas como ellas se

apresentam... Na Madeira a man-

teiga é excellente, . . »

— «A Madeira! quem falia aqui

da Madeira?,..—barafustou o re-

dactor principal do «Independente»,

— Paysagens limpas de alvenarias,

flor que chupa a seiva nas mesmas

suppurações da terra!... Procuran-

do concretisar, para tranquillidade

20 6

da alma inquieta por tão desacos-

tumadas apparencias, mau grado

o desejo de sopear a imaginação,

evitando os destempcros hugolinos,

quem c que a lembrança d'este pa-

rai 7.0 não sente ferver-lhe no peito

o cachão das phrases syntheticas. . , A ilha da Madeira é, minhas se-

nhoras e meus senhores, uma teta

uberrima da Africa negra, . . »

Alguém que não parecia tolo

disse-me então:

— «O senhor viaja e deve ser

feliz. Com impressões e reminiscên-

cias de viagem não ha solidão nem

degredo completos mas uma perpe-

tua illuminação da alma e da intel-

ligencia por evocações continuas...

Assim se prolonga a mocidade...»

—«Boa receita para prolongar

207

a mocidade — desafinou um estou-

vado — não cançar de tecer planos

e projectos embora lhe adiemos a

realisação para um futuro cada vez

mais distante, como se a vida não

tivesse fim, . . »

Não o deixaram terminar; al-

guém berrou, dominando o vozerio:

— «O que está o cavalheiro a

asnear para alii ? Não me falle na

Hespanha I Em Hespanha não ha,

nunca houve arte! A Hespanha é

isto: «Faça favor de me dar um

palito»— diz o freguez ao creado

do café. — « Bois não...» — respon-

de este e muito grave e correcto

tira da algibeira do colete um feixe

de palitos sujos e servidissimos e

offcrece-lh'os. — A Hespanha! Bem

se deixa vér que o cavalheiro nunca

2CS

visitou o nosso museu das Janellas

Verdes...»

Este é o derradeiro eco da con-

versação animada que, á meza de

um hotel bem frequentado, se ori-

ginou da noticia da minha desco-

berta... Tenho lido a miúdo ex- tractos de sessões magnas de no-

táveis academias litterarias e artís-

ticas muito mais insensatos e muito

menos curiosos.

Para terminar a minha carta

que será certamente a ultima — o

«Cabo Verde» espera-se aqui ama-

nhã cedo — e para fazer as despe-

didas á Madeira, respigando nas

209

minhas sensações apoz a deliciosa

ceifa, foi ainda ao socego umbroso

da ^Quinta Vigia» que recorri — a

«Quinta Vigia» das horas de gran- de calma. Esta cesta de flores,

posta em peanha de basalto cujo

plintho o mar lambe, foi o ninho

preferido, ninho de silencio, onde

a miúdo vim macerar as minhas •í.

saudades em ondas de perfumes,

movidos e avivados pelo hálito do mar. ...

Mas a ilha já bem pouco me

importa!

N'uma capclla de folhagem ver- de, atapetada de folhas seccas, es-

conderijo esquecido dos jardineiros,

nicho aberto para o mar largo,

nSo são essas sensações, agora, que

o coração me festeja, mas as sau- u

210

dadcs do mar que embala, o niai"

que de tão perto me provoca, sau-

dades que eu vou matar,

A lembrança de uma pequena

ilha morre depressa na memoria;

fica-nos delia uma vaga imagem,

fingida, a boiar á tona do mar distante; é um navio desmantella-

do que já não levanta ferro, in- » valido, incapaz de seguir viagem. . .

D'estes perfumes, d'estas flores,

da vida livre e encandeada no res- plendor que assoma ás arestas das

montanhas — e as sestas breves jun-

to ás fontes claras — e a ancia fú-

til de subir, para que a redoma

do ceo abranja um circulo de mar

mais vasto — e a caça dolosa aos

desejos fugitivos nas pupillas dos

olhos que se esquivam —e a espe-

21 I

rança da virgindade a violar — e a

impressão dos teus seios, ó minha

extravagante amiga, que amadure-

ceram ao calor das palmas destas

mãos —; é de tudo isto que eu

teci a mortalha com a qual te

enterrei já, ilha encantadora e sel-

vagem, n'este jardim onde o per-

fume da rosa vence todos os mais

perfumes. , As minhas phantasias, os meus

desejos, as minhas esperanças, sol-

tei-as agora mesmo pelo mar fóra

com ordem para não voltarem mais

aqui. .,

Sem embargo não c somente o

mar que me perturba; aqui ainda

me fica um rasto de saudade. . .

Em redor de mim os cravos

poisam nas craveiras, espertos, corno

212

batidos de passarinhos: ha cravos

vermelhos, da còr do fogo, que ar-

dem ao sol, pequeninas chammas

que vão desapparecer. . .

Não são os cravos. , ,

Os cravos tecni o perfume das

vodas do campo; aqui, 11'este jar-

dim, o cheiro da rosa vence todos

os mais perfumes, H que ainda

aqui paira o aroma da « rosa in-

tangível » que os poetas adoraram,

essa fluida imperatriz cuja incontes-

tável realeza o profuso, excessivo

manto, que lhe punha nos hom-

bros o cabcllo solto, apregoava.

Foi aqui que elia soffreu os tor-

mentos da sua pubescencia dolo-

rida. . .

Para que servem as palavras,

onde estão as palavras preciosas,

213

os vocábulos redondos, lisos e iria-

dos como pérolas, e as phrases

gemmadas de amethystas, e as ex-

pressões infantis que acariciam como

o roçar de um frouxel de seda,

e os frontaes rígidos dos dísticos

brônzeas que eternisam a memo-

ria, onde está o thesouro do poeta

digno de enfeitar os cabellos sol-

tos dessa imperatriz de dezeseis

annos?. . . É na febre de celebrar

a gloria de cabellos taes que fer-

mentam os rhythmos novos!.. .

Eu penso também, agora, 11'essa

imperatriz desgraçada que viveu

neste jardim uni anno inteiro da

sua mocidade.

Com o halo da piedade e uma

coroa de desdens e, nas nifios bran-

cas, os gumes de ironias, trouxe-

214

ram-na a publico como quem mos-

tra uma relíquia monstruosa; mas

a sua belleza feiticeira, os episódios

cruciantes da sua existência, a sua

tragedia final — que tão acertada-

mente rematou o seu poema — e

os perfumes do seu coração, espar- sos, que alguém condensou em li-

vro— o livro da idolatria, o livro

prostrado, do adorador desilludido,

humilde e generoso — fixando a cur-

va da vida ociosa pelos traços me-

lodiosos do vòo da abelha, consa-

graram-lhe o prestigio. Envolta no

manto verdadeiramente régio dos

seus finos cabellos soltos a sua

imagem illumina a lenda!

É 11'este jardim que convém

pensar, respira ndo á farta o ar

vivo, nas fundíssimas minas de car-

215

vão, nas vidas gastas, inteirinhas,

pelas pequeninas células tenebrosas,

que um movimento leve — frequente

— de terreno converte em sepul-

turas.

Quem não pensará também na

delicia com que o assassino agu-

çava a ponta da lima aspera que

havia de penetrar a carne mimosa

da imperatriz.,. A tragedia, no emtanto, não foi perfeita e se o

scenario de «Lueerna», apurado nas

decantações visuaes de um Turner,

convinha, appetecia se que a victi-

ma fosse mais nova... Mas tão criminoso ou mais do

que a lamentável creatura vou eu

impunemente fruindo a graça esthe-

tica das coisas; abençoada época se

assim nos permitte viver, anony-

216

mos, ao abrigo de grandes e de

pequenos.

E clamo sem compaixão: a

poesia do marinheiro que recorda

saudosamente a família e o lar, é

inferior á poesia do marinheiro que

tudo esquece para só pensar no

mar...

ÍNDICE

CARTAS PAG. I I

I I 9 II I " 19 I V 29 V 5? V I 75

VI I 8; VII I 109

I X 121 X 139 X I i6i

XI I 187

'

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