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Regina Zilbermam
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ARMADILHAS, CILADAS E SEDUO
Regina Zilberman UFRGS; FAPA; CNPQ
Parafraseando Riobaldo, protagonista de Grande serto: veredas, romance de Joo
Guimares Rosa, ler pode ser negcio muito perigoso.1 Que o digam tantas personagens
de outras obras literrias, desde as mais prestigiadas, como o Quixote e Ema Bovary, at as
senhoritas da corte carioca do sculo XIX brasileiro. Em Confisses de uma viva moa,
que Machado de Assis publicou primeiramente no Jornal das Famlias, em 1865 e, depois,
em Contos fluminenses, de 1870, a narradora acusa os livros de lhe terem transmitido uma
viso equivocada do amor, que a levaram a apaixonar-se pela pessoa errada:
At ento eu no tinha visto o amor seno nos livros. Aquele homem parecia-
me realizar o amor que eu sonhara e vira descrito.2
Em A mulher de preto, uma das personagens, Estvo, coloca a leitura de livros
entre os hbitos que formam uma mulher ftil e leviana:
Uma menina que deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente alguns livros
mal escolhidos; que interrompe uma lio para ouvir contar uma cena de namo-
ro; que em matria de arte s conhece os figurinos parisienses; (...) esta menina
pode vir a ser um esplndido ornamento de salo e at uma fecunda me de fa-
mlia, mas nunca ser uma mulher.3
Mais de vinte anos depois, no romance Lar, Pardal Mallet reitera o posicionamento
expresso pela personagem de Machado de Assis. A protagonista, Sinh, moa carioca de
classe mdia, vive, na adolescncia, fase de leitura intensiva, absorvida por livros que lhe
provocam novas sensaes4 e fazem-na sonhar uma existncia de fantasia:
1 ROSA, Joo Guimares. Grande serto: veredas. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1968. p. 11. 2 ASSIS, Machado de. Confisses de uma viva moa. In: ___. Contos fluminenses. So Paulo: Mrito, 1959. p. 210. 3 ASSIS, Machado de. A mulher de preto. In: ___. Contos fluminenses. So Paulo: Mrito, 1959. p. 94. 4 MALLET, Pardal. Lar. Rio de Janeiro: Tipografia Central, 1888. p. 213.
2
Oh! como sentia vontades de viver a vida daquela gente ali do livro! E lia, lia
com pela espinha uns tremores sensuais, umas volpias que lhe faziam frio na
medula e uns calores febris no crebro congestionado.
(...) Sonhando umas coisas estramblicas, umas outras leituras assim compridas
a botar-lhe no corpo as lubricidades romnticas.5
Detalhando a recepo de Sinh, Mallet ressalta o ngulo negativamente ertico
com que se d a relao da leitora com a fico literria:
noite, esperava que todos se deitassem, que a ngela tivesse amortecido em
lamparina o gs da sala de jantar, para reacender a vela e recomear a leitura.
Fazia-a febricitante, tendo por vezes paradas bruscas durante as quais ficava a
olhar vagamente um indefinido estranho, a cismar uns mundos de fantasia.6
A propenso escapista da leitura tambm atinge moas pertencentes baixa classe
mdia fluminense, de que exemplo Violante, irm de Paulo, protagonista de Turbilho,
obra de 1906 escrita por Coelho Neto. A jovem passava os dias na cadeira de balano, a
ler romances, que alimentavam sua fantasia e alienavam-na dos problemas familiares:
Quando lhe morreu o pai, j mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se,
com ele, houvesse perdido uma fortuna que j possua e um noivo que j a visi-
tava em sonhos, formoso como os prncipes dos romances que ela devorava, re-
vendo-se, com enlevo, em todas as heronas.7
No s a leitura prejudica a formao das mulheres na corte e, depois, capital da
Repblica, mas tambm na provncia, conforme sugere a trajetria de Maria do Carmo, de
A normalista, de Adolfo Caminha, de 1892, cuja ao transcorre em Fortaleza. E nem s
nas cidades, mas igualmente no meio rural, segundo testemunha cena retratada por Lus
Guimares Junior, em A alma do outro mundo, de Contos sem pretenso, coletnea de
1872. A protagonista, Rosinha, moa do interior de Pernambuco, leitora assdua, contrari-
ando a vontade do pai, que atribui aos livros a deformao intelectual da filha: 5 Id. p. 214. 6 Id. p. 218-219. 7 COELHO NETO. Turbilho. In: ___. Obra seleta. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. V. 1, p. 836.
3
Ao penetrar no quarto da filha as pernas oscilavam-lhe, como um mato de bam-
bus, fustigados pelo vento norte. (...) Jos Paz criou coragem, e abriu com a
mo febril o ba da filha.
O quarto estava s escuras; por precauo o matuto apagara o candieiro e o ve-
lho lampio, nicas luminrias dos seus domnios. Foi pelo tato que ele se aven-
turou entre as cassas, crivos e chitas do pobre guarda roupa da menina. Apalpou
os cantos do ba, e seus dedos curtos arranharam a capa de cinco ou seis livros.
Era a biblioteca de Rosinha: o Simo de Nantua, o Tesouro de meninas, Paulo e
Virgnia e outras produes da musa inocente e simples. O larpio, que desco-
bre um saco de moedas, no exala suspiro de maior satisfao do que o que ru-
giu nas cavernas do peito de Jos Paz. Apertou nas mos frenticas os livros e
uniu-os ao seio mido e agitado.8
Na seqncia, Jos Paz queima os livros, esperando com esse gesto salvar a filha do
mal:
Lanou nesse novo auto de f, os livros em primeiro lugar, um por um, rasgan-
do-lhes as folhas purificadas pelos olhos da ingnua leitora.
Quando se faziam em cinzas os volumes do Tesouro de meninas, ele exclama-
va, batendo palmas e soltando uns uivos de alegria lupina:
- Queima-te, diabo! queima-te, co! Arde pra, tinhoso de uma figa!
Sucedeu ao Tesouro de meninas o proverbial Simo de Nantua, a este o mimo
de Bernardino de Saint-Pierre, e assim por diante. Jos Paz saboreava o estrago
com o entusiasmo dos inquisidores espanhis nas suas piedosas vinganas.9
Rosinha interpela o pai, perguntando-lhe o que acontece, ao que Jos Paz responde,
justificando seu ato:
8 GUIMARES JUNIOR, Lus. A alma do outro mundo. In: ___. Contos sem pretenso. Rio de Janeiro: Gar-nier, 1872. p. 48. 9 Id. p. 50.
4
- Queimei tudo! tudo! tudo! bradou Jos Paz, com um grito de entusiasmo... O
teu vestido, a ventarola, os livros, os sapatos, tudo o que te estava tirando o so-
no e fazendo-te ficar triste toa!
- Mas est doido, Deus do cu!
Jos Paz ria-se freneticamente e agarrando nas mos geladas da filha:
- J o demnio no te h de tentar mais, nunca mais, nunca mais! Foi o vigrio
quem me ensinou o remdio!10
Hugo de Carvalho Ramos igualmente traduz o modo como se d a relao das pes-
soas do campo com os livros e a leitura, destacando o papel que a fantasia exerce enquanto
transfigurao para uma realidade diferente e melhor.
Na novela Gente da gleba, de 1922, destaca primeiramente o lugar ocupado pelo
livro no mbito da vida domstica das personagens:
.Na sala, presa das escpulas, roagante, pendia a larga rede cuiabana, atraves-
sando de lado a lado o pavimento de massap. O resto da moblia espalhava-se
em torno, meia dzia de tamboretes de couro tauxiado ao p da mesinha de cos-
tura, de cujo balaio transbordavam entremeios de croch, um cabeo de crivo,
alinhavos inacabados de corpete, junto ao castial de lato sobre um volume
encadernado da histria de Carlos Magno e dos pares de Frana.11
Mais adiante, reproduz a cena de leitura, em que predomina a transmisso oral, para,
na seqncia, chamar a ateno para a mutao porque passa a leitora, por efeito da recep-
o das obras:
s vezes lia. Histrias tocantes de Genoveva de Brabante ou as aventuras dos
doze pares de Frana, livro tido em grande estima no serto, cuja leitura, nos se-
res solarengos das fazendos do interior, era feita em torno do lampio de que-
rosene famlia atenta, que tinha herdado da idade feudal, atravs do drama das
10 Id. p. 51-52. 11 RAMOS, Hugo de Carvalho. Gente da gleba. In: ___. Tropas e boiadas. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1965. p. 70.
5
conquistas, aquele gosto barbaresco de faanhas guerreiras, postas em prtica
anualmente na sede dos municpios com o espetculo faustoso das cavalhadas.
Nh Lica fazia em casa essas leituras. Comeava quase sempre pelo episdio da
Princesa Floripes, de que tinha um secreto prazer em acentuar a animosidade e
o ardor belicoso com que, abrasada toda por converter-se f crist de seu a-
mado Gui de Borgonha, acirrava contra as hostes de seu pai os cavaleiros cati-
vos na torre de Ferrabrs...
E uma noite, recolhendo-se um tanto excitada daquelas narrativas, sonhou que
estava encerrada numa alta torreola, como a que armaram a vez passada em
Curralinho, e Dito era o moo paladino que viera libert-la dos furores paternos
do Almirante Balo, encarnado na figura venervel de seu velho pai... De ento,
ao reler aquelas pginas, sentia-se enleada por um sentimento obscuro e era
com desafogo que passava aos amores da Rainha Anglica com o sobrinho do
Imperador, o destemido Roldo, corajosamente encerrado no interior do leo
mgico...12
censura explcita da sociedade, parece somar-se a censura da prpria literatura,
expressa dentro e fora das obras. Jlia Lopes de Almeida, contempornea de vrios dos es-
critores at aqui citados, sugere que as mulheres empreguem a cautela aos escolherem os
livros, recomendando, no Livro das noivas, leitura (...) s, bem feita, no o romance de
enredo, com as cenas imprevistas, as astcias de lacaios e de agentes falsos, os vus ne-
gros de adlteras em entrevistas amorosas, e os lampejos de espadas no campo da honra!13
Mesmo Clarice Lispector, quando assinou, com o pseudnimo de Helen Palmer, a coluna
Correio feminino, no Correio da Manh, do Rio de Janeiro, recomendou que as mulheres
fizessem leituras mais adequadas e mais qualificadas, para aproveitarem melhor o tempo
destinado aos livros:
As mulheres deveriam ler mais? E acrescentaramos ler mais e melhor. No
adiantaria nada que as mulheres passassem a ler mais, se no procurassem ler
melhor. A seleo na leitura algo imperioso. Do contrrio, o tempo perdido na 12 Id. p. p. 108-109. 13 ALMEIDA, Jlia Lopes de. Livro das noivas. 3. ed. Rio de Janeiro, s.e., 1896. p. 37.
6
leitura de pginas medocres no compensaria sacrificar horas de trabalho ou de
repouso, para no final das contas nada aprender.14
As reaes podem tornar clandestina a leitura, obrigando o leitor a refugiar-se em
locais aparentemente pouco apropriados, como lembra Augusto Meyer, em suas memrias,
que recorda, em No tempo da flor, cenas como essa, em que, refugiado no telhado, experi-
menta curioso processo de identificao com o romance lido, no caso O sertanejo, de Jos
de Alencar:
Imagine-se, porm, a impresso duradoura que havia de saltear aquele rapazote
que se refugiava no telhado para ler em paz Alencar, e ali ficava horas e horas
em declive num velho colcho meio estripado, ao descobrir o seguinte, no sexto
captulo de O sertanejo: Nos ltimos ramos, l no tope do jaracand, havia o
sertanejo armado a rede, em que se embalava. Devia de achar-se mais de cem
ps acima da terra; e nessa grande altura, suspensos por duas finas cordas de al-
godo tranado, estava mais tranqilo do que se pousasse no cho, onde o pode-
riam incomodar a m companhia dos rpteis e a visita de alguma fera. Ali, em
seu pavilho de verdura, grimpado nos ares, no tinha outros vizinhos alm de
uma juriti, que fabricara o ninho no prximo galho, e acabava de ruflar as asas
sua chegada para dar-lhe boa-noite. Atravs de rendilhado da folhagem, como
por entre os bambolins de fina esccia de uma recmara, o sertanejo recostado
no punho da rede, que oscilava ao frouxo balano, descortinava toda a devesa
que se estendia das encostas da serra pelos tabuleiros, at onde a vista alcana-
va.
Se bem me lembro, deu-se uma verdadeira transfuso de almas; leitura e vida
pulsavam no mesmo ritmo da experincia. Eu, no alto do meu telhado, como
Arnaldo no alto do jacarand, ramos uma s e a mesma pessoa. Por cima do
telhado vizinho, enfolhava a ramaria da paineira, e alguns ramos vinham reco-
brir as telhas. Ao nvel em que me achava, parecia perfeita a confirmao da
imagem subjetiva da leitura; tambm eu era uma espcie arborcola, como Ar-
14 LISPECTOR, Clarice. Correio Feminino. Org. de Aparecida Maria Nunes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. p. 38. A crnica foi publicada originalmente em 25 de janeiro de 1961.
7
naldo, e pendia de um galho de rvore, embalando-me em pensamento na mes-
ma rede. Como heri da histria, ao devassar num relance de olhos a devesa,
bastava erguer-se um pouco, e logo estendia-se a vista pelo pitoresco amontoa-
do de chcaras, quintais, casas e ruas, com seu contraste de beirais e aotias.
A corrura, que morava num vo de telha e j estranhava o seu preguioso vizi-
nho, substitua com a mesma graa a juriti companheira do sertanejo. No fal-
tava nem mesmo a presena da outra companheira, a ona, que ali se achava
dignamente representada pelo gato da casa, amigo daquelas alturas contempla-
tivas e scio das minhas orgias literrias; estreitando a frincha das pupilas cla-
ridade crua, parecia aprov-las com filosfica e profunda complacncia.15
Maria Helena Cardoso, por sua vez, escolhe espao igualmente peculiar para ter a
tranqilidade de ler, longe da censura domstica:
hora do jantar saia de debaixo da cama, pulava de novo a janela e entrava pe-
la porta da frente como se estivesse chegando naquele momento da casa de vo-
v. Deitada debaixo da cama, com luz insuficiente, os braos cansados de man-
ter o livro a altura dos olhos, lia toda uma enviada de livros a mais disparatada
possvel:Capitain, Pardaillan, Fausta Vencida de Miguel Zevacco, O Piano de
Clara, O Violino do Diabo, Anjos da Terra, de Perez Escrich, Memrias de um
Mdico, Visconde de Bragelone, Vinte Anos Depois, Conde de Monte-Cristo,
de Alexandre Dumas, quase tudo de Jlio Verne, todos os fascculos de Sher-
lock Holmes, Nick Carter e Arsne Lupin e os primeiros romances de Paul
Bourget, em grande moda, da Bibliothque de Ma Fille, a Filha do Diretor do
Circo, que me ps triste por muitos dias, tudo misturado com Recordaes da
Casa dos Mortos, Le Crime de Sylvestre Bonnard, Le Lys Rouge, Crime e Cas-
tigo e muita coisa de que no me lembro. Mas no havia livro que chegasse pa-
ra a minha enorme sede. Como no tinha dinheiro para comprar, recorria as co-
legas do colgio, lia escondido os do meu tio e o vendeiro vizinho nos empres-
tava alguns: O Judeu Errante, de Eugnio Sue e vrios fascculos dos Dramas
15 MEYER, Augusto. Alencar no telhado. In: ___. No tempo da flor. Porto Alegre: Instituto Estadual do Li-vro; ED. da UFRGS, 1996. p. 141-142.
8
do Novo Mundo, de Gustavo Aymard, alm de alguns de Escrich. Si Man e
Si Chico, alm de nossos fornecedores de gneros, contribuam tambm para o
nosso desenvolvimento intelectual. Quando no havia outra fonte onde buscar,
l ia atrs deles, que sempre desencavavam algum velho romance de Escrich ou
faanhas de ndios americanos. Outro meio de arranjar eram os amigos de Dau-
to, sendo necessrio, porm, que lhe pagasse quatrocentos ris para comprar co-
cada baiana na venda de Z Miliano, botequineiro da esquina da rua. Como o
pagamento era sempre adiantado, passava antes pela venda, comprava as coca-
das e depois ento ia em busca de Caio Libano ou outro que tivesse livros. Em
casa, esperava impaciente, chegando a calada de minuto em minuto para ver se
ele aparecia na esquina. Mas, qual, as horas passavam e nada. J sabia: era s
procur-lo no quintal e encontrava-o trepado no mais alto galho do abacateiro.
Tinha conseguido entrar num dos momentos em que estava no interior e subira
na rvore para se livrar de mim. No podia atingi-lo, pois no tinha coragem de
subir to alto. Embaixo, pedia, chorava, ameaava e ele, nada.
S descia depois que tinha acabado de ler o livro todo que eu tinha pago para
que buscasse pra mim.16
A censura abre-se, pois, em vrias alternativas: dos livros que desautorizam a recep-
o que seus similares suscitam, aos escritores que repreendem leitores, dos familiares que
reprovam o gosto de ler, s instituies que policiam a circulao das obras eis um hori-
zonte contraditrio, que coloca o livro, a leitura e o leitor no limite da legalidade. Ler, se-
gundo muitos, pode ser mesmo negcio muito perigoso.
No surpreende que a histria das bibliotecas esteja permeada por destruies e di-
lapidaes, conforme narram Matthew Battles, em A conturbada histria das bibliotecas,17
e Fernando Bez, em Histria universal da destruio dos livros.18
16 CARDOSO, Maria Helena. Por onde andou meu corao. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Braslia: Instituto Nacional do Livro, 1984. p. 97. 17 Cf. BATTLES, Matthew. A conturbada histria das bibliotecas. Trad. Joo Vergilio Gallerani Cuter. So Paulo: Planeta, 2003. 18 Cf. BEZ, Fernando. Histria universal da destruio dos livros. Das tbuas da Sumria guerra do Ira-que. Trad. de Lo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
9
Da sua parte, as bibliotecas, enquanto objeto de desejo e seduo, tm, igualmente,
muitas histrias a contar. Em A mulher de preto, j mencionado conto de Machado de
Assis, uma das personagens, Meneses, mostra ao protagonista, Estvo, seu gabinete de
trabalho, onde haviam duas longas estantes de livros e comenta:
- a minha famlia, disse o deputado mostrando os livros. Histria, filosofia,
poesia... e alguns livros de poltica. Aqui estudo e trabalho. Quando c vier
aqui que o hei de receber.19
Mesmo na fico, porm, elas esto ameaadas de destruio, sendo o incndio da
livraria de D. Quixote a expresso mais acabada da ameaa representada pela leitura. Luci-
ano Canfora, em Livro e liberdade, examina a constituio das bibliotecas fictcias encon-
trveis no romance moderno, como as que aparecem em duas obras paradigmticas, o j
lembrado D. Quixote, de Miguel de Cervantes, e O vermelho e o negro, de Stendhal.20
Canfora aborda o acervo do Sr. de la Mole, em O vermelho e o negro, comparando-
o com o do Cavaleiro da Triste Figura, formado esse por livros de cavalaria e de aventura.
Verifica que a biblioteca de D. Quixote no to populosa, quanto a do Sr. de la Mole, on-
de Julien Sorel, o heri do romance, trabalha por um tempo, ao lado das obras que fazem
sua cabea revolucionria e ambiciosa. O que interessa, em ambas as cenas, no , contudo,
confrontar os acervos, mas destacar uma circunstncia comum s duas personagens: a leitu-
ra de obras literrias e filosficas os induziu ao, estabelecendo-se a relao entre o livro
e a liberdade, tema antecipado pelo ttulo da coletnea de ensaios.
Exposta a tese principal, Canfora desenvolve-a nos demais estudos, privilegiando
no as colees pblicas, mas as particulares, tais como as das figuras citadas. Discorre so-
bre os proprietrios de bibliotecas pessoais, indo e vindo no tempo para demonstrar o poder
dos livros sobre os leitores, fazendo-os homens livres e desafiadores. Por isso, no texto
mais extenso, que fecha a coletnea, trata das ameaas que cercam os indivduos que ousam
afrontar o sistema dominante, calcados no conhecimento adquirido. Seus exemplos provm
da ao de cientistas e intelectuais, como Giordano Bruno e Denis Diderot, que, embora v-
19 ASSIS, Machado. Op. cit. p. 91. 20 Cf. CANFORA, Luciano. Livro e liberdade. Trad. de Antnio de Pdua Danesi. Rio deJaneiro: Casa da Pa-lavra; So Paulo: Atelier, 2003.
10
timas da perseguio e da m-f, no abriram mo de suas idias, nem se intimidaram,
mesmo diante da fora policial, da priso e da morte.
Que a leitura carrega algum pendor revolucionrio e transgressor, sugerem-no as di-
ferentes facetas com que a censura e a represso se manifestam, desde as mais violentas,
como os autos-de-f reais e imaginrios, citados ou no, entre os quais a punio de que foi
alvo o dramaturgo Antnio Jos da Silva, o Judeu, nascido no Brasil e popular no Portugal
de D. Joo V, onde e quando foi condenado morte na fogueira pela Inquisio.
desafiador pensar sobre o contedo daquele pendor, muitas vezes identificado ao
impulso eminentemente emancipador que a leitura traz consigo.21 Essa qualidade pode ser
reconhecida sobretudo nas obras de filosofia e histria, que questionam o senso comum, re-
jeitam as convenes e estimulam a reflexo. A literatura pode igualmente produzir esses
efeitos, que so, por sua vez, colaterais, j que no pertence sua natureza gerar questio-
namentos, motivar reflexo ou solucionar problemas. Esses objetivos podem ser alcanados
por um gnero como a auto-ajuda, mas esse no pode absorver e abranger tudo o que pode
a literatura.
Talvez se deva interrogar as obras literrias, e as narrativas em particular, para se
chegar resposta pergunta sobre a propenso transgressiva da literatura que, como se ob-
serva, se transfere leitura.
Tomemos dois dos poemas mais antigos produzidos pela humanidade, a Ilada e a
Odissia. O primeiro escolhe como tema a clera de Aquiles, clera funesta que causou
infinitos males aos aqueus e precipitou ao Hades muitas almas valorosas de heris, a quem
fez presa de ces e pasto de aves cumpria-se a vontade de Zeus desde que se separaram,
disputando, o trida, rei de homens, e o divino Aquiles,22 conforme resume o primeiro
canto. Logo a seguir, esclarece-se que a ruptura entre os dois generais helenos deveu-se a
uma mulher, Briseida, escrava de Aquiles, mas confiscada por Agamemnon, que, assim,
compensava a perda de outra escrava, Criseida, que ele teve de devolver a seu pai, o sacer-
dote Crises.
21 Cf. por exemplo a perspectiva da Esttica da Recepo e, em particular, os ensaios de Hans Robert Jauss, por exemplo em JAUSS, Hans Robert. La literatura como provocacin. Barcelona: Pennsula, 1976. 22 HOMERO. La Ilada. Trad. de Lus Segal y Estalella. 2. ed. Buenos Ayres: Losada, 1941. p. 35.
11
Por sua vez, a vingana de Aquiles tambm decorre da interferncia de uma mulher:
desgostoso com o tratamento recebido de Agamemnon, o chefe dos mirmides apela sua
me, Ttis, e pede-lhe que ela interfira em seu favor junto a Zeus, solicitando ao rei dos
deuses que provoque a derrota contnua dos aqueus, empurrando-os de volta at suas naves.
Ttis prontifica-se a ir pessoalmente ao Olimpo; mas procura Zeus, quando esse se encontra
sozinho e dirige sua splica, aps acomoda[r]-se junto a ele, abra[ar] seus joelhos com a
mo esquerda, [e] tocar-lhe a barba com a direita.23 O soberano compromete-se a fazer o
que Ttis pede, mas, ao mesmo tempo, diz-lhe que essas intenes tero de ser ocultadas de
de Hera, sua esposa, favorvel ao exrcito grego, em detrimento dos troianos. Com efeito, a
deusa, suspeitando do encontro do marido com Ttis, cobra-lhe explicaes, a que Zeus re-
truca, dizendo a ela que no deve intervir nos seus assuntos particulares.
As duas cenas no parecem, primeira vista, apropriadas a uma epopia: na primei-
ra, um filho, choroso e carente, suplica me que use seu encanto em benefcio dele; na se-
gunda, uma bela mulher recorre a seu charme pessoal para, sigilosamente, obter a ajuda do
poderoso deus. Por sua vez, os dois solicitantes so atendidos, circunstncia de que decorre
a maior parte dos eventos narrativos.
Se o ponto de partida da Ilada a clera de Aquiles, a continuidade do poema de-
pende dos ardilosos jogos de seduo expostos no primeiro canto. A Odissia desdobra es-
sa tcnica, plantando os fatos relatados sobre os logros e os artifcios arquitetados pelas
personagens. Ulisses, o protagonista, celebrizou-se por conceber a estratgia do cavalo de
madeira, que faculta aos aqueus a conquista da at ento inexpugnvel cidade de Tria. A-
lm desse feito renomado, ele engana o ciclope Polifemo, dizendo chamar-se Ningum e,
com isso, salva-se e a seus companheiros da brutalidade do gigante. Quando retorna taca,
terra de que era o legtimo rei, vale-se de mais um estratagema: disfara-se de mendigo, pa-
ra, irreconhecvel, vencer os adversrios, retomar o poder e liberar Penlope, ameaada pe-
los que pretendiam despos-la, na crena de que a rainha enviuvara.
Penlope, da sua parte, no menos ardilosa: logra os pretendentes, dizendo-lhes
que no podia voltar a casar enquanto no terminasse de tecer a mortalha destinada a Laer-
tes, seu sogro, atividade infindvel, porque o manufaturado durante o dia desmanchado
23 Id. p. 49.
12
noite. Quando recebe Ulisses de volta, aps vinte anos de ausncia, leva-o para uma cmara
onde o heri no reencontra o leito nupcial, o que o obriga a recordar a cama que ele mes-
mo talhara, quando de seu matrimnio. S depois de o marido relatar as aventuras vividas
enquanto estivera fora e como esculpira o mvel original, ela reconhece e aceita de novo o
esposo.
A Ilada e a Odissia so, pois, terrenos minados, povoados de armadilhas em que
as personagens podem ou no cair. So os protagonistas e seus aliados as figuras que segui-
damente plantam os embustes, por meio de metamorfoses, disfarces fsicos ou verbais, en-
cantamentos, sedues. Quando no so os responsveis pelo logro, sabem como reconhe-
c-lo e evit-lo, o que confirma sua aptido para o papel de heri e figura destinada a pro-
vocar a identificao do destinatrio, seja o ouvinte, no caso das epopias originais, ou o
leitor, na nossa condio contempornea.
Os ardis com que o heri e seus aliados vencem os antagonistas ou os perigos colo-
cados sua frente so igualmente o modo como a obra assegura seu pblico, cativado por
uma ao inusitada, criativa e desafiadora. nesse sentido que se pode pensar que as cila-
das dos texto so semforos das armadilhas colocadas para seduzir o leitor e assegurar seu
interesse pelo relato potico.
Ciladas, ardis, armadilhas so, pois, metforas da leitura, desarticulando as expecta-
tivas do destinatrio. Transgressoras por natureza, elas configuram o poder de provocar e
desestabilizar que a literatura carrega consigo. Nem sempre agradam a quem detm a auto-
ridade e determina os valores; mas so inevitveis, e o leitor acaba por se render a seu fas-
cnio.
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