204

Antoine Berman - Traducao e a Letra 2a Ed 2013

Embed Size (px)

DESCRIPTION

LIVRO COMPLETO

Citation preview

  • A Traduo e a Letra ou

    o Albergue do Longnquo

  • A Traduo e a Letra ou

    o Albergue do Longnquo

    ANTOINE BERMAN

    Marie-Hlne C. TorresMauri FurlanAndreia Guerini

    Traduo

    PGET/UFSC

    2 Edio

  • 2012 by Copiart/ PGET-UFSC

    Ttulo original da obra: La traduction et la lettre ou lauberge du lointainPrimeira edio 1985 by ditions Trans-Europ-Repress ISBN 2-905670-17-7Segunda edio 1999 by ditions du Seuil ISBN 2-02-038056-0

    Os direitos da traduo pertencem aos tradutores.

    TradutoresMarie-Hlne Catherine TorresMauri FurlanAndria Guerini

    RevisoresLuana Ferreira de Freitas Marie-Hlne Catherine TorresMauri FurlanOrlando Luiz de Arajo (texto em grego)

    Projeto grfico, diagramao e capaRita Motta - www.editoratribo.blogspot.comImagem da capa: A morte de Jauffr Rudel nos braos da Condessa de Trpoli (Itlia, Sculo XIII, bnf, fonds franais 854, fol. 121v)

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    B44 Berman, Antoine, 1942-1991 A traduo e a letra ou o albergue do longnquo / Antoine Berman ; traduo Marie-Hlne C. Torres, Mauri Furlan, Andreia Guerini; revisores Luana Ferreira de Freitas, Marie-Hlne Catherine Torres, Mauri Furlan, Orlando Luiz de Arajo. - - 2. ed. - - Tubaro : Copiart ; Florianpolis : PGET/UFSC, 201. 200 p. ; 21 cm ISBN 978-85-99554-76-0

    1. Traduo e interpretao. 2. Literatura francesa. I. Torres, Marie-Hlne Catherine. II. Furlan, Mauri. III. Guerini, Andreia. IV. Ttulo: Albergue do longnquo.

    CDD (21. ed.) 418.02

    Elaborada por: Sibele Meneghel Bittencourt CRB 14/244

  • SUMRIO

    NOTA DOS TRADUTORES .................................................................. 11 NOTA DOS EDITORES FRANCESES ................................................ 13 A reedio................................................................................................... 13 O ttulo ....................................................................................................... 15 O ALBERGUE DO LONGNQUO Introduo .................................................................................................. 19 ANNCIO DO PERCURSO ................................................................. 33

    TRADUO ETNOCNTRICA E TRADUO HIPERTEXTUAL

    O etnocntrico e o hipertextual ............................................................ 39 Roma e So Jernimo ............................................................................... 41 A boa nova da traduzibilidade universal .............................................. 44 Captao do sentido e etnocentrismo .................................................. 45 Os dois princpios da traduo etnocntrica ...................................... 46 A traduo hipertextual ........................................................................... 47 Pastiche, adaptao, variao .................................................................. 47 A traduo hipertextual e etnocntrica em questo .......................... 52 A traduo como impossibilidade e traio ........................................ 54 O intraduzvel como valor ...................................................................... 55 A traduo e suas metforas .................................................................... 57 A traduo como transmisso infiel do sentido e hipertextualidade segunda ....................................................................................................... 59

  • A ANALTICA DA TRADUO E A SISTEMTICA DA DEFORMAO

    As tendncias deformadoras .................................................................. 67 A racionalizao ........................................................................................ 68 A clarificao ............................................................................................. 70 O alongamento ........................................................................................ 71 O enobrecimento ...................................................................................... 73 O empobrecimento qualitativo ............................................................. 75 O empobrecimento quantitativo ........................................................... 76 A homogeneizao ................................................................................... 77 A destruio dos ritmos .......................................................................... 78 A destruio das redes significantes subjacentes ............................... 78 A destruio dos sistematismos .............................................................. 80 A destruio ou a exotizao das redes de linguagens vernaculares .......81 A destruio das locues ...................................................................... 83 O apagamento das superposies de lnguas ....................................... 85

    A TICA DA TRADUO

    Traduo e comunicao ......................................................................... 90 A comunicao contraprodutiva ........................................................... 91 A dimenso tica ...................................................................................... 94 A tica e a letra ........................................................................................... 98

    HLDERLIN, OU A TRADUO COMO MANIFESTAO

    Safo e a graa ............................................................................................104 Hlderlin: Antgona e dipo Rei, de Sfocles ...................................110 Traduo literal e etimologizante ........................................................116 As intensificaes ....................................................................................119 Os recursos ao antigo alemo e ao subio ..........................................122 As modificaes ......................................................................................123

  • CHATEAUBRIAND, TRADUTOR DE MILTON

    O objetivo da literalidade ......................................................................129 A literalidade do original e a latinizao ............................................130 O horizonte religioso .............................................................................133 A retraduo ............................................................................................137 O trabalho-sobre-a-letra........................................................................139 A neologia e as dimenses da literalidade ..........................................142 Uma revoluo ........................................................................................149 A terceira lngua ......................................................................................150 Mallarm e a nova lngua-rainha .........................................................151 A politraduo .........................................................................................152

    A ENEIDA DE KLOSSOWSKI

    O tradutor ................................................................................................156 Por que a Eneida? ....................................................................................156 A dominao filolgica ..........................................................................162 O horizonte da retraduo ....................................................................164 Qual literalidade? ...................................................................................166 A ressurreio .......................................................................................181 O repatriamento .....................................................................................181 A terceira lngua (bis) ............................................................................185 A legibilidade e o excesso ......................................................................186 A lgica da literalidade ..........................................................................188 O corao materno da lngua ...............................................................189

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................ 193

  • 11

    NOTA DOS TRADUTORES

    Para Berman, em seu texto Pour une critique des traductions: John Donne, o fundamento da avaliao de uma traduo consiste em dois critrios: poeticidade e eticidade. A eticidade reside no respeito, ou melhor, num certo respeito pelo original (1995: 92). Esse respeito implica explicitao dos procedimentos da traduo. Assim, esclare-cemos ao leitor algumas decises tomadas para esta traduo.

    Com relao aos ttulos de obras citados por Berman, optamos por usar ttulos em portugus, quando j existentes em tradues ao portugus, por no envolverem questes de traduo abordadas por Berman; os ttulos ainda no traduzidos ao portugus foram manti-dos conforme apresentados por Berman no original francs, a fim de no criar ttulos sem textos traduzidos correspondentes.

    No que se refere s citaes em lngua estrangeira, Berman procede de duas maneiras: ora as apresenta apenas em tradues francesas existentes, sempre citando o tradutor, ora as reproduz na lngua original (ingls, grego, latim, italiano, espanhol, alemo) junto a uma ou mais tradues existentes em francs.

    Considerando que A traduo e a letra ou o albergue do lon-gnquo se trata de uma obra sobre traduo, com textos originais e

  • 12

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    textos traduzidos para o leitor francs, que envolvem comparaes e comentrios sobre tradues ao francs de tradutores especficos, optamos pela traduo das citaes a partir do francs, a fim de que o nosso leitor do portugus pudesse perceber que o texto foi escrito originalmente para o leitor francs, cujos exemplos estavam escritos em francs, e que o uso de tradues existentes em portugus no corresponderia ao propsito de Berman. Nosso procedimento, po-rm, no nega as tradues j existentes em portugus de vrios dos textos citados, como por exemplo os de Walter Benjamin, Fray Luis de Len1 e outros. Mantivemos a citao em lngua original, usada por Berman, seguida de uma traduo em portugus [entre chaves], quando ela implicava algum comentrio de Berman no texto.

    O leitor brasileiro encontrar nesta edio uma bibliografia final (em francs) das obras citadas, mas que no original est diluda nas notas de rodap apresentadas por Berman. A traduo brasilei-ra tambm acrescentou algumas notas de rodap, identificadas por [N. de T.], nota de traduo.

    Por fim, criamos alguns neologismos buscando traduzir os neologismos apresentados por Berman, bem como mantivemos em grande parte a pontuao do texto original.

    Marie-Hlne C. TorresMauri Furlan

    Andria Guerini

    1 Vide, por exemplo, a srie de antologias bilngues Clssicos da Teoria da Traduo, publicadas pelo NUPLITT Ncleo de Pesquisas em Literatura e Traduo da Universidade Federal de Santa Catarina. (http://www.nuplitt.ufsc.br/).

  • 13

    NOTA DOS EDITORES FRANCESES2

    A reedio

    Pela primeira vez a coleo Lordre philosophique retoma um texto j publicado. O seminrio de Antoine Berman sobre a tra-duo, proferido no Collge International de Philosophie, em Paris, 1984, foi publicado no ano seguinte na Editora Trans-Europ-Repress (pelo que agradecemos a Grard Granel) numa obra coletiva que se esgotou, Les Tours de Babel. Essais sur la traduction.

    em primeiro lugar um texto de trabalho em que Berman, com os participantes do seminrio, elabora a experincia da tradu-o, apoiando-se em autores, tradutores, leitores, tericos, desde So Jernimo a Klossowski. As reflexes de Antoine Berman sobre a retraduo ( essencial distinguir dois espaos (e dois tempos) de traduo: o das tradues primeiras e o das retradues) poderiam esclarecer a razo de uma reedio. A primeira edio fundamenta a segunda, a segunda diferentemente fiel; isto , ela oferece um tex-to melhor estabelecido, revisto, em parte, pelo autor, mais preciso

    2 Trata-se aqui da 2a edio francesa de 1999, editora Seuil.

  • 14

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    quanto s citaes e referncias, e, principalmente, amadurecido em relao ao conjunto da obra.

    Este seminrio , pela franqueza de suas ancoragens textuais e sua absoluta liberdade de tom, ao mesmo tempo o avano mais feliz e mais livre para abordar a problemtica bastante contempo-rnea e inflacionria da traduco. Antoine Berman propunha na mesma obra coletiva, a primeira traduo francesa da confern-cia de Schleiermacher, Des diffrentes mthodes du traduire [Dos diferentes mtodos de traduzir], que publicamos simultanea-mente (Des diffrentes mthodes du traduire et autre texte [Dos diferentes mtodos de traduzir e outro texto], apresentao, dos-si e glossrio de Christian Berner, Point-bilingue, novembro de 1999). Schleiermacher teoriza o antagonismo entre as duas nicas maneiras de traduzir: Ou o tradutor deixa o escritor o mais tran-quilo possvel e faz com que o leitor v ao seu encontro, ou deixa o leitor o mais tranquilo possvel e faz com o que o escritor v ao seu encontro. O segundo mtodo, conforme a conceitualizao proposta no seminrio, etnocntrico, hipertextual, platnico, maneira de So Jernimo, que capta o sentido desvinculado da letra e rejeita a traduo como tal. O primeiro, ao contrrio, claramente privilegiado pelo romantismo alemo, cultiva a lngua materna pela incidncia de uma outra lngua e de um outro mundo (Foucault dizia da traduo da Eneida de Klossowski: Uma traduo onde a ordem palavra por palavra seria como a incidncia do latim caindo como uma luva sobre o francs), ele faz, com a traduo pensada para si mesma, a prova do estrangeiro, ou seja, abre o Estrangeiro enquanto Estrangeiro ao seu prprio espao de lngua.

    Esta conjuno entre experincia pessoal de tradutor, estu-do histrico das grandes figuras de tradues, conceitualizao to

  • Nota dos Editores Franceses

    15

    sensvel ao escrever quanto ao filosofar cria a necessidade do trabalho de Antoine Berman.

    O ttulo

    A traduo e a letra ou o albergue do longnquo: o ttulo es-clarece a obra. Ttulo duplo, sem pontuao. Nenhuma das duas partes, quer a do terico, quer a do trovador, o subttulo da outra. Apesar do livro tratar de traduo literal (Partimos do seguinte axioma: a traduo traduo-da-letra, do texto enquanto letra), o ttulo deriva: a traduo e a letra. Por meio da traduo do corpo mortal da letra, com sua firmeza, consistncia, anttipo: a traduo faz sua prpria experincia, singular, da letra (diferente daquela da anlise, por exemplo). A letra insiste, inspira o tradutor.

    Ela no a palavra, mas o lugar habitado onde a palavra per-de sua definio e onde ressoa o ser-em-lnguas.

    um plural que importa: ele indica que no depende tanto do homem aristotlico nem heideggeriano, animal dotado de lgos a caminho da lngua, como das singularidades, das heterogeneida-des. O corao materno da lngua materna como espao de acolhi-mento, e, seguindo Joyce, de polifonia dialetal.

    Alain BadiouIsabelle BermanBarbara Cassin

  • A traduo no se v como a obra literria, mergulhada, por assim dizer, dentro da floresta da lngua, mas fora desta,

    frente a esta, e sem penetr-la, ela chama o original neste nico lugar onde, a cada vez, o eco de sua prpria lngua pode reproduzir

    a ressonncia de uma obra da lngua estrangeira.

    wa lt er b en ja m i n

    A traduo abre a janela a fim de deixar entrar o dia, quebra a concha para que se possa experimentar o fruto, afasta a

    cortina a fim de que se possa mergulhar o olhar no lugar mais santo, tira a tampa do poo a fim de que se possa alcanar a gua, assim

    como Jac tirou a pedra que obstrua o poo a fim de que as ovelhas deLabo pudessem beber.

    os t r a d u to r es da b b li a d o r ei ja m es

    Mas o Pai gostaria, oMestre do Mundo, sobretudo,

    Que a letra na sua firmeza fosse mantida Com zelo.

    h ld er li n

  • 19

    O ALBERGUE DO LONGNQUO3

    Introduo

    Este texto a verso ligeiramente refeita de um seminrio que aconteceu no Collge International de Philosophie, em Paris, no primeiro trimestre de 1984. A primeira parte essencialmente uma crtica das teorias tradicionais que concebem o ato de tradu-zir como uma restituio embelezadora (estetizante) do sentido. A segunda parte analisa algumas grandes tradues consideradas li-terais, a fim de delimitar melhor o trabalho sobre a letra inerente ao ato de traduzir uma vez que ele recusa a sua figura cannica de servidor do sentido.

    Durante o seminrio, a expresso traduo literal provocou contnuos mal-entendidos, principalmente entre os ouvintes que eram tradutores profissionais. Estes mal-entendidos no puderam ser desfeitos. Para estes tradutores, traduzir literalmente traduzir

    3 A expresso O Albergue do Longnquo [lauberge du lointain] de Jaufr Rudel (ca. 1130-1170), trovador occitano, que escreveu sete canes de amor, nas quais canta o amor longnquo (amor de lonh), isto , o amor impossvel e sem esperana [N. de T.].

  • 20

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    palavra por palavra. E este modo de traduo justamente chama-do pelos espanhis de traduccin servil. Em outras palavras, h uma confuso aqui entre a palavra e a letra. Evidentemente, pode-se demonstrar e o texto que vamos ler da Eneida de Klossowski o mostra claramente que traduzir a letra de um texto no significa absolutamente traduzir palavra por palavra.

    Contudo, h certos casos em que as duas coisas parecem se confundir. o caso, j examinado por Valery Larbaud e Henri Mes-chonnic, da traduo dos provrbios. Assentados em uma experincia, a princpio idntica, os provrbios de uma lngua tm quase sempre equivalentes em uma outra lngua. Assim, ao alemo a hora da ma-nh tem ouro na boca parece corresponder, na Frana, a o mun-do pertence aos que se levantam cedo. Traduzir o provrbio seria, portanto, encontrar o seu equivalente (a formulao diferente da mesma sabedoria). Desta forma, frente a um provrbio estrangeiro, o tradutor encontra-se numa encruzilhada: ou busca seu suposto equi-valente, ou o traduz literalmente, palavra por palavra. No entanto, traduzir literalmente um provrbio no simplesmente traduzir pa-lavra por palavra. preciso tambm traduzir o seu ritmo, o seu com-primento (ou sua conciso), suas eventuais aliteraes etc. Pois um provrbio uma forma. O trabalho tradutrio se situa precisamente entre estes dois polos: a traduo palavra por palavra do provrbio alemo, que conservar ouro, manh, boca (que no se encon-tram no equivalente francs) e a traduo da forma-provrbio, a qual pode eventualmente ser levada, para atingir os seus fins, a forar o francs e a modificar alguns elementos do original. No seu romance Eu, o Supremo, Roa Bastos cita este provrbio:

  • O Albergue do Longnquo

    21

    A cada da le basta su pena, a cada ao su dao.

    Poder-se-ia, certamente, procurar um equivalente francs. Mas escolhi uma traduo ao mesmo tempo literal e livre:

    chaque jour suffit sa peine, chaque anne sa dveine.

    [A cada dia basta seu sofrimento, a cada ano seu lamento]

    O duplo jogo aliterativo do original, da/pena, ao/dao, desaparece, mas para ser substitudo por uma outra aliterao pei-ne/dveine. No se trata, pois, de uma traduo palavra por palavra servil, mas da estrutura aliterativa do provrbio original que re-aparece sob uma outra forma. Tal me parece ser o trabalho sobre a letra: nem calco, nem (problemtica) reproduo, mas ateno voltada para o jogo dos significantes.

    Os tradutores que assistiram ao seminrio, na maioria, rejei-tavam tal tica. Para eles, compulsivamente, traduzir significava encontrar equivalentes. Veremos adiante qual o fundamento des-ta convico obstinada, que os conduz a rejeitar qualquer trabalho, qualquer reflexo sobre a letra. O caso dos provrbios pode parecer insignificante, mas altamente simblico. Ele revela toda a proble-mtica da equivalncia. Pois procurar equivalentes, no significa apenas estabelecer um sentido invariante, uma idealidade que se ex-pressaria nos diferentes provrbios de lngua a lngua. Significa re-cusar introduzir na lngua para a qual se traduz a estranheza do pro-vrbio original, a boca cheia do ouro do ar matinal alemo, significa

  • 22

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    recusar fazer da lngua para a qual se traduz o albergue do longn-quo, significa, para ns, afrancesar: velha tradio. Para o tradutor formado nesta escola, a traduo uma transmisso de sentido que, ao mesmo tempo, deve tornar este sentido mais claro, limp-lo das obscuridades inerentes estranheza da lngua estrangeira. Esta , caricaturalmente, a famosa equivalncia dinmica de Nida. Ora, esta equivalncia dinmica continua sendo o evangelho da maio-ria dos tradutores. Qualquer tentativa de trabalho sobre a letra quer se trate de Meschonnic, de Klossowski, de certas tradues de Freud na Frana aparece ainda como experimental. Todavia, de So Jernimo a Fray Luis de Len, de Hlderlin a Chateaubriand etc., a traduo literalizante constitui a face escondida, o conti-nente negro da histria da traduo ocidental.4 Mas absolutamen-te nada de experimental. Ao contrrio, a teoria inversa que por essncia experimental (no sentido das cincias exatas), pois ela sempre metodologizante.

    Vou falar agora um pouco sobre o horizonte do discurso que pretendo desenvolver sobre a traduo, quer se trate de crtica das teorias tradicionais ou de anlises de certas tradues concretas. No se trata aqui de teoria de nenhuma espcie. Mas sim de reflexo,

    4 So Jernimo retoma certamente a crtica do literalismo de Ccero, mas tambm escreve que isto no vale para as Sagradas Escrituras, nas quais at a ordem das palavras um mistrio [Garca Yebra, 1983: 67].

    Quanto a Fray Luis de Len (p. 67): El que traslada ha de ser fiel y cabal y, si fuere posible, contar las palabras para dar otras tantas, y no ms ni menos, de la misma cualidad y condicin y variedad de significaciones que las originales tienen, sin limitarlas a su propio sentido y parecer...

  • O Albergue do Longnquo

    23

    num sentido que definirei mais adiante. Quero situar-me inteira-mente fora do quadro conceitual fornecido pela dupla teoria/prti-ca, e substituir esta dupla pela da experincia e da reflexo. A relao entre a experincia e a reflexo no aquela da prtica e da teoria. A traduo uma experincia que pode se abrir e se (re)encontrar na reflexo. Mais precisamente: ela originalmente (e enquanto expe-rincia) reflexo. Esta reflexo no nem a descrio impressionista dos processos subjetivos do ato de traduzir, nem uma metodologia. Ora, uma boa parte da proliferante e repetitiva literatura dedicada traduo pertence a uma ou outra destas categorias.

    O discurso esboado aqui se enraza na experincia da tradu-o na traduo como experincia. Da experincia, Heidegger diz:

    Fazer uma experincia com o que quer que seja (...) quer dizer: deix-lo vir sobre ns, que nos atinja, que caia sobre ns, nos derrube e nos torne outro. Nesta expresso, fazer no sig-nifica em absoluto que somos os operadores da experincia; fazer quer dizer, aqui, passar, sofrer do incio ao fim, aguentar, acolher o que nos atinge ao nos submetermos a ele...

    Assim a traduo: experincia. Experincia das obras e do ser-obra, das lnguas e do ser-lngua. Experincia, ao mesmo tempo, dela mesma, da sua essncia. Em outras palavras, no ato de traduzir est presente um certo saber, um saber sui generis. A traduo no nem uma subliteratura (como acreditava-se no sculo XVI), nem uma subcrtica (como acreditava-se no sculo XIX). Tambm no uma lingustica ou uma potica aplicadas (como acredita-se no sculo XX). A traduo sujeito e objeto de um saber prprio.

  • 24

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    Mas a traduo (quase) nunca considerou sua experincia como uma palavra inteira e autnoma, como o fez (ao menos desde o Ro-mantismo) a literatura.

    Chamo a articulao consciente da experincia da traduo, dis-tinta de qualquer saber objetivante e exterior a ela (assim como elabo-ram a lingustica, a literatura comparada, a potica), de tradutologia.

    Este (relativo) neologismo j monoplio dos nossos meto-dologistas e comparativistas (Seleskovitch & Lederer, 1984), como se se tratasse de uma nova disciplina cobrindo um campo de obje-tivao injustamente negligenciado at ento. Mas sucede tradu-tologia o mesmo que gramatologia ou arqueologia: nos dois casos uma determinao mais ou menos aceita foi desviada para significar outra coisa: menos o campo de um conhecimento do que o lugar aberto e revolvente de uma reflexo. Deste ponto de vista, a tradutologia deveria opor-se ao que se comea a chamar de tradti-ca, a mais recente das disciplinas que, na esteira da informtica, da prodtica etc., querem agora anexar os processos de traduo aos seus sistemas de computao.

    A tradutologia: a reflexo da traduo sobre si mesma a par-tir da sua natureza de experincia.

    Insistimos sobre os dois termos da nossa dupla: experincia e reflexo. Pois eles pertencem notoriamente aos vocbulos cen-trais do pensamento moderno. De Kant a Hegel e Heidegger, a experincia um conceito fundamental da filosofia. O mesmo vale para a reflexo. Ora, a mesma poca que viu estes conceitos se formarem, a do idealismo alemo, tambm uma das maiores

  • O Albergue do Longnquo

    25

    pocas da traduo ocidental, com A. W. Schlegel, Tieck, Hlderlin, Schleiermacher, Goethe e Humboldt. E as maiores tradues fei-tas nessa poca so inseparveis de um pensamento propriamente filosfico do ato de traduzir. Nenhuma grande traduo que no seja tambm pensamento, produzida pelo pensamento. A traduo pode perfeitamente passar sem teoria, no sem pensamento. E esse pensamento sempre se efetua num horizonte filosfico. ainda o caso, no sculo XX, com a experincia de Benjamin, Rosenzweig, Schadewaltd etc., eles pensam a traduo na linguagem filosfica da reflexo e da experincia.

    O que isto significa? Principalmente, que a tradutolo-gia, sem ser de modo algum uma filosofia da traduo, deve necessariamente enraizar-se no pensamento filosfico. Ela no absolutamente uma autoexplicao, uma fenomenologia ingnua do ato de traduzir. Ela se fundamenta sobre o fato ainda pouco claro, porm indicado pelo menos de forma alusiva por Benjamin e Heidegger, que existe entre as filosofias e a traduo uma proxi-midade de essncia.

    Que o pensamento moderno est intimamente relacionado ao problema da traduo, ou mais precisamente ao espao desta, bastante evidente, justamente, com Benjamin, Heidegger, Gadamer e Derrida (sem falar dos filsofos analticos como Wittgenstein e Quine). Mas alm desta configurao tipicamente moderna (a filo-sofia tornando-se, com Heidegger em primeiro lugar, comentrio e traduo), existe uma ligao muito antiga entre o filosofar e o traduzir. Aqui no o lugar de examinar isto. Assim o testemu-nham estas linhas de Benjamin (1971: 270):

  • 26

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    Mas se existe, de outra forma, uma linguagem da verdade, onde os ltimos segredos para os quais todo pensamento se esfora esto conservados sem esforo e silenciosamente, esta lngua da verdade a verdadeira linguagem. E esta lin-guagem, cujos pressentimento e descrio constituem a nica perfeio que o filsofo pode esperar, est justamente escon-dida de maneira intensiva nas tradues [...] A traduo, com os germes que carrega em si desta linguagem, se situa entre a criao literria e a teoria [Lerhe].

    e de Heidegger (1983: 456):

    Toda traduo em si mesma uma interpretao. Ela car-rega no seu ser, sem dar-lhes voz, todos os fundamentos, as aberturas e os nveis da interpretao que estavam na sua origem. E a interpretao, por sua vez, somente o cumpri-mento da traduo que permanece calada [...]. Conforme s suas essncias, a interpretao e a traduo so somente uma e nica coisa.

    A tradutologia, precisamente porque ela deve ser reflexo e experincia, no uma disciplina objetiva, mas sim um pensa-mento da traduo. Ela no interroga a traduo a partir da filosofia (como o faz, por exemplo, Derrida), mas se esfora por mostrar, explicitando o saber inerente ao ato de traduzir, o que este tem em comum com o ato de filosofar.

    verdade que uma reflexo mltipla sobre a traduo se ela-bora hoje em dia, a partir de pelo menos dois campos de experincia que no tm, primeira vista, uma relao direta com a filosofia. H, em primeiro lugar, a perpetuao da reflexo sobre a traduo

  • O Albergue do Longnquo

    27

    bblica, como ela se encarna em Meschonnic. , em segundo lugar, a experincia sempre mais decisiva que a psicanlise (na Frana e em outros pases) faz da traduo (do destino da traduo) dos seus textos fundadores. A cada vez (e aparentemente na mesma direo), a relao fundamental entre a traduo e a letra que se reafirma.

    Eu me questiono sobre o espao da traduo a partir da expe-rincia da traduo chamada muito impropriamente literria (se trataria antes da traduo das obras, alm de qualquer distino de gnero, das obras profanas, diria Benjamin em oposio aos textos sagrados) e a partir daquela da filosofia na medida em que mi-nha experincia da filosofia aquela, moderna, de um pensamento sempre-j preso nas redes da traduo (e tambm na medida em que, logo falarei a respeito, as prprias obras, na Idade Moderna, concebem-se como traduo).

    Mas enquanto a interrogao da psicanlise sobre a traduo permanece necessariamente atrelada sua experincia da traduo (quilo que ela suporta com esta, diria Heidegger); enquanto a interrogao sobre a traduo ligada Bblia, de uma certa maneira, pode somente levar a uma reflexo sobre a traduo potica (o que muito, na verdade), a tradutologia v abrir-se, a partir do seu terreno primeiro, a totalidade do campo da traduo e ainda alm o que o termo traduo comporta, em si mesmo, de transcendente.

    Isto quer dizer primeiramente que a ambio da tradutolo-gia, se no a de estruturar uma teoria geral da traduo (ao contr-rio, ela demonstraria antes que tal teoria no pode existir, pois que o espao da traduo bablico, isto , recusa qualquer totalizao),

  • 28

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    , no entanto, a de meditar sobre a totalidade das formas existen-tes da traduo. Ela pode, por exemplo (e luz das consideraes de Derrida, isto seria essencial), refletir sobre a traduo do Direito (a traduo chamada jurdica), que uma traduo totalmente ori-ginal, pois que, aqui tambm, num sentido diferente do das obras, encontra-se a letra, e ademais uma letra definindo, entre outras coi-sas, o que a traduo e o seu estatuto. Ela pode (e deve) refletir sobre a traduo tcnica e cientfica, sobre a tradtica que, pouco a pouco, forma (informtica) esta traduo, na medida em que algo de essencial se une aqui entre a tecnologia e o ato de traduzir. Ela pode (e deve) refletir sobre a traduo do que se chama literatura infantil, na medida em que esta literatura a metade da literatura e em que se desenvolve uma relao profunda com a lngua chama-da materna (com o maternal-da-lngua). Ela pode interrogar as tradies no ocidentais da traduo (mundo muulmano, China, Japo), voltar-se para a histria da traduo ocidental etc. Tudo isto apresentado brevemente o espao natural da tradutologia.

    Mas tem mais: ir alm do sentido, inerente ao termo tradu-o, a respeito do qual se fala muitas vezes de traduo restrita e de traduo generalizada. Meschonnic criticou vigorosamente este ir alm do sentido, tal como se encontra em Steiner e Serres. E verdade que necessrio manter a traduo restrita (interlnguas) pois ali, rigorosamente falando, que h traduo. No entanto, isto no deve nos impedir de escutar e de falar correntemente (quando se emprega metaforicamente o termo traduo, o que ocorre to-dos os dias), e toda uma gerao de escritores e de pensadores, de

  • O Albergue do Longnquo

    29

    Hamann a Proust, Valry, Roa Bastos, Pasternak, Marina Tsvetaie-va etc., para quem a traduo significa no somente a passagem interlingual de um texto, mas com esta primeira passagem toda uma srie de outras passagens que concerne ao ato de escre-ver e, mais secretamente ainda, ao ato de viver e de morrer.

    Quando Marina Tsvetaieva (Rilke, Pasternak, Tsvetaieva, 1983: 15-6) escreve:

    Hoje desejo que Rilke fale atravs de mim. Na linguagem corrente, isto se chama traduzir. (Como melhor em alemo: Nachdichten! Seguindo os passos de um poeta, abrir mais uma vez o mesmo caminho que ele j abriu. Ou seja, para Nach (depois), mas h tambm dichten, o sempre novo. Nachdichten significa reabrir o caminho sobre as marcas que a mata invade no momento). Mas a traduo significa tambm outra coisa. No se passa somente de uma lngua a outra lngua (o russo, por exemplo), passase tambm de um lado ao outro do rio. Fao passar Rilke em lngua russa, assim como ele me far passar um dia a outro universo.

    Quando Roa Bastos (1985: 571) escreve:

    H um s volume. Quando um homem morre, isto no sig-nifica que o captulo seja arrancado s pginas do Livro. Isto quer dizer que ele foi traduzido numa lngua melhor. Cada captulo assim traduzido.

    Aqui h um ir alm do sentido que no se pode mais atri-buir, como para Steiner ou Serres, a uma leviandade conceitual, confuso terminolgica ou a uma metaforizao indevida. Aqui

  • 30

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    h, antes, anncio da experincia do que se poderia outra traduo, a outra traduo que, por assim dizer, se dissimula em toda traduo. isto tambm que a tradutologia, no pice especulativo de sua re-flexo, deve meditar. Pois, caso contrrio, ela no seria realmente tradutologia no sentido desviado ao qual fiz aluso. Aqui, a traduto-logia se une ao espao moderno da literatura, no qual a ligao com a crtica e a traduo tornou-se consubstancial ao ato de escrever.5

    Uma ltima observao, antes de deixar a palavra ao que foi a palavra primeira do seminrio. Cada observao concerne ao esta-tuto do discurso sobre a traduo. Por estatuto, entendo o estatuto institucional, a maneira pela qual este discurso pode, por si mesmo, constituir-se um lugar no espao global da transmisso do saber da nossa sociedade. A tradutologia parte do princpio que o domnio da traduo tem uma ensinabilidade prpria. O mbito da tradu-o, e no, talvez, a traduo em si.

    Evidentemente, ensina-se aqui e ali a teoria da traduo, e a sua prtica (pelo menos tcnica). Mas vimos que no se trata aqui nem de teoria, nem de prtica. Estas tm tambm um modo de ensinabiblidade, que o dos discursos positivos. Fugindo deste modo, pode a tradutologia ser objeto de ensino? Evidentemente, e conforme o modo de ensinabilidade que, grosso modo, o da fi-losofia e da psicanlise. O pressuposto deste ensino duplo: que o

    5 No por acaso se, desde o Romantismo, quase todos os grandes poetas ocidentais foram, tambm, tradutores, ou se Proust (1993: 293) pde dizer: o dever e a tarefa de um escritor so tambm os de um tradutor. A escrita para Proust a traduo da experincia considerada como memria das essncias.

  • O Albergue do Longnquo

    31

    espao da traduo um espao sui generis (o que justifica que h uma tradutologia), que este espao, por mais que seja original, de natureza intersticial. No existe a traduo (como postula a teoria da traduo), mas uma multiplicidade rica e desconcertante, fora de qualquer tipologia, as tradues, o espao das tradues, que cobre o espao do que existe em todo e qualquer lugar para-traduzir.

    Assim, a tradutologia no ensina a traduo, mas, sim, de-senvolve de maneira transmissvel (conceitual) a experincia que a traduo na sua essncia plural. O paralelo, aqui, com a psicanli-se, o teatro ou a filosofia nunca suficientemente destacado. Neste sentido, ela no concerne somente aos tradutores, mas a todos os que esto no espao da traduo.

    Isto , todos ns, considerando que, da traduo, ningum est livre.

    Paris, 15 de maio de 1985

  • 33

    ANNCIO DO PERCURSO

    Partimos do seguinte axioma: a traduo traduo-da-letra, do texto enquanto letra. Que isto a essncia ltima e definitiva da traduo ficar claro pouco a pouco. Existe um belssimo texto de Alain (1934: 56-7) que faz aluso a isso:

    Tenho a ideia de que sempre se pode traduzir um poeta, ingls, latino ou grego, exatamente palavra por palavra, sem acrescentar nada, e conservando inclusive a ordem, at en-contrar o metro e mesmo a rima. Eu, raramente, conduzi o experimento at este ponto; necessrio tempo, digo, meses, e uma rara pacincia. Chega-se inicialmente a uma espcie de mosaico brbaro; os fragmentos esto mal junta-dos; o cimento os liga, mas no os harmoniza. Resta a fora, o brilho, at mesmo uma violncia, e provavelmente mais do que o necessrio. mais ingls que o ingls, mais grego que o grego, mais latim que o latim...

    No entanto, tal afirmao vai imediatamente de encontro ao fato de que a imensa maioria das tradues, hoje como ontem, desvia-se de tal relao com a letra. E no somente a maioria das tradues, na sua operao, se desvia de tal relao, mas a maioria

  • 34

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    das teorias da traduo que se constri a partir desta operao, a rege, a justifica ou a sanciona, condena o que elas denominam com desdm palavra por palavra, literalismo. O que parecia para o sutil Alain como o ncleo apaixonante e difcil do traduzir lhes parece pura aberrao. No nos deteremos, aqui, nestas teorias. Pois so apenas o epifenmeno de uma figura essencial e dominante da traduo ocidental, da qual no escapa nenhum tradutor e ne-nhum terico. esta figura que se trata de questionar e, talvez, de destruir, a partir de uma experincia mais original, no da traduo, mas de sua essncia.

    Nesta figura, a traduo se carateriza por trs traos. Cultu-ralmente falando, ela etnocntrica. Literariamente falando, ela hipertextual. E filosoficamente falando, ela platnica. A essncia etnocntrica, hipertextual e platnica da traduo recobre e oculta uma essncia mais profunda, que simultaneamente tica, potica e pensante. Em suas regies mais profundas, o traduzir est ligado tica, poesia e ao pensamento. E mesmo veremos com Hlderlin e Chateaubriand ao religioso (para no dizer religio). Mas o tico, o potico, o pensante e o religioso, por sua vez, definem-se em relao ao que chamamos a letra. A letra seu espao de jogo. Isto pode se verificar claramente com Hlderlin. Para alcanar esta dimenso, necessrio operar uma destruio (retomo o conceito de Heidegger) da tradio etnocntrica, hipertextual e platnica da traduo. Em suas linhas gerais, este trabalho de destruio , alm disso, idntico destruio heideggeriana, ela mesma seguida, na trajetria deste pensador, por um imenso trabalho de traduo.

  • Anncio do Percurso

    35

    Entretanto, esta destruio se ela no quiser ser uma simples operao ideolgica ou terica deve ser precedida de uma an-lise do que h por destruir. A este trabalho, que simultaneamente anlise e destruio (crtica no sentido schlegeliano), chamaremos: a analtica da traduo.

    A analtica da traduo a crtica do etnocentrismo, do hi-pertextualismo e do platonismo da figura tradicional da traduo no Ocidente. Ela estuda estes trs traos fundamentais nas suas caractersticas gerais, e as formas concretas pelas quais eles se mani-festam numa traduo.

    No que segue, deixamos praticamente de lado o que chama-mos platonismo da traduo,6 cujo estudo nos levaria longe demais.

    A analtica, que por essncia negativa, abre por sua vez uma reflexo (positiva) sobre a dimenso tica, potica e pensante do traduzir. Esta tripla dimenso o inverso exato da tripla dimenso da figura tradicional da traduo.

    traduo etnocntrica se ope a traduo tica. traduo hipertextual, a traduo potica.

    traduo platnica, ou platonizante, a traduo pensan-te. Mas de onde partimos para opor figura cannica do traduzir uma outra figura? Seguramente, no de princpios ou de concei-tos abstratos, mas de uma experincia histrica do traduzir, ampla-mente ocultada, que no pode reduzir-se figura tradicional da traduo. Sculos aps sculos, encontramos tradues poucas,

    6 Num seminrio ulterior, Vrit de la traduction, vrit de la philosophie, analisei a traduo platnica [Berman, 1986: 63-73].

  • 36

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    na verdade que manifestam a essncia tica, potica e pensan-te da qual falamos; de So Jernimo (em parte) a Fray Luis de Len, de Hlderlin a Chateaubriand, de Klossowski a Meschonnic. Estas tradues, para ns, no so modelos, mas fontes. As fontes da nossa reflexo e, tambm, do nosso trabalho pessoal de tradutor. Questionamos, pois, a tradio da traduo a partir de algumas tra-dues, que, por sua vez, antes de ns, questionaram esta tradio. Tal nosso horizonte. Tal foi o de Walter Benjamin que pensava a traduo a partir de Hlderlin e de Stefan George, quero dizer, a partir das tradues feitas por estes dois poetas (Pndaro, Sfocles, Baudelaire etc.). por isso que, aps ter percorrido brevemente o espao da analtica e da tica do traduzir (deixamos de lado, por enquanto, a potica e a metafsica do traduzir), examinaremos trs destas tradues: Antgona, de Hlderlin, Paraso Perdido, de Chateaubriand, a Eneida de Klossowski. Estas trs tradues nos aproximaro da verdade da traduo literal.

  • 39

    TRADUO ETNOCNTRICA

    E TRADUO HIPERTEXTUAL

    Estudarei aqui duas formas tradicionais e dominantes da tra-duo literria: a traduo etnocntrica e a traduo hipertextual.

    Estas duas formas de traduo representam o modo segundo o qual uma porcentagem impressionante de tradues se efetua h sculos. So as formas que a maioria dos tradutores, dos autores, dos editores, dos crticos etc., considera como as formas normais e normativas da traduo. Muitos as consideram insuperveis.

    Por que iniciar uma reflexo sobre a traduo por estas for-mas? Porque so as mais comuns, porque, desde sempre, conduzi-ram condenao da traduo. Traduttore traditore: este adgio s vale para a traduo etnocntrica e para a traduo hipertextual.

    O etnocntrico e o hipertextual

    Etnocntrico significar aqui: que traz tudo sua prpria cultura, s suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela o Estrangeiro como negativo ou, no mximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura.

  • 40

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    Hipertextual remete a qualquer texto gerado por imitao, pa-rdia, pastiche, adaptao, plgio, ou qualquer outra espcie de trans-formao formal, a partir de um outro texto j existente. Grard Genette (1982) explorou o espao da hipertextualidade, incluindo a traduo.

    A traduo etnocntrica necessariamente hipertextual, e a tra-duo hipertextual, necessariamente etnocntrica. Foi um poeta fran-cs do sculo XVIII, Colardeau (Apud Van Der Meerschen, 1986: 68), quem deu a mais ingnua e a mais marcante definio da tra-duo etnocntrica:

    Se h algum mrito em traduzir, s pode ser de aperfeioar, se possvel, seu original, de embelez-lo, de apropriar-se dele, de lhe dar um ar nacional e de naturalizar, de certa forma, esta planta estrangeira.

    Esta concepo da traduo, que gerou na Frana, nos scu-los XVII e XVIII, as Belas Infiis, pode parecer ultrapassada. No estamos mais na poca em que se transformava, pela prpria vonta-de, uma obra estrangeira. Coste, o tradutor para o francs de Ensaio acerca do entendimento humano de Locke, permitia-se substituir certas palavras por outras Caius por Titus, noz por da-masco , suprimir uma passagem por ser obviamente ridcula demais ( Joseph de Maistre, citado por Valry Larbaud). Gosto, convenincia e moral (esta considerada como uma esttica da con-duta) regiam ento a traduo. Os tempos mudaram. Ou seja, os critrios morais desapareceram. A abundncia de correes, acrs-cimos, supresses, modificaes de qualquer ndole diminuiu. Mas

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    41

    nem por isso desapareceu. Eis um exemplo ao mesmo tempo in-trigante e divertido. No seu texto A tarefa do tradutor, Walter Benjamin escreve:

    No h nenhum poema feito para o leitor, nenhum quadro para o contemplador, nenhuma sinfonia para os ouvintes.

    Provavelmente chocado pelo exagero desta frase, o tradutor francs a censurou ou a esqueceu. E isso em um texto onde se trata de traduo literal! [Ladmiral, 1981: 67-77]

    De toda maneira, alm dos modos de transformao gros-seiros prprios poca clssica, mil modificaes mais sutis e ina-parentes permitem conservar a concepo de Colardeau. Indepen-dentemente do fato de que ela manifesta tendncias reducionistas inerentes a toda cultura (censurar e filtrar o Estrangeiro para assimi-l-lo), a traduo etnocntrica uma realidade histrica. sob este ngulo que eu a abordarei, porque ele determinante para nossa conscincia da traduo. Esta conscincia no um dado intempo-ral: ela tem um fundamento arqueolgico.

    Roma e So Jernimo

    A traduo etnocntrica nasce em Roma. Desde o princpio, a cultura romana uma cultura-da-traduo. Aps o perodo em que os autores latinos escrevem em grego, vem aquele no qual todo corpus de textos gregos traduzido: e este empreendimento de tra-duo massiva o verdadeiro fundamento da literatura latina. Ela se

  • 42

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    efetua pela anexao sistemtica dos textos, das formas, dos termos gregos, o todo sendo latinizado e, de certa maneira, tornando-se irreconhecvel por esta mescla. uma das formas do sincretismo da Antiguidade tardia. Sincretismo, segundo o dicionrio Robert, significa: combinao pouco coerente, mescla de doutrinas, de sis-temas. Veremos posteriormente que o sincretismo uma caracte-rstica da traduo etnocntrica e hipertextual.

    O mesmo sincretismo se encontra na arte romana: teatro, arquitetura, e principalmente estaturia, a qual uma espcie de traduo da estaturia grega. De fato, a romanidade se define em grande parte por um traducionismo conquistador e sem escrpulo, como bem observou Nietzsche [1967: 99].

    Este empreendimento de traduo anexionista encontrou em Roma seus tericos nas pessoas de Ccero e de Horcio. Mas foi So Jernimo, isto , a romanidade crist, ou o cristianismo romanizado, quem deu uma ressonncia histrica aos princpios estabelecidos por seus predecessores pagos, graas sua traduo da Bblia (a Vulgata), traduo que ele acompanhou com diversas reflexes tericas e tcnicas.

    So Jernimo define assim a essncia da traduo: sed qua-si captivos sensus in suam linguam uictoris iure transposuit e non uerbum e uerbo, sed sensum exprimere de sensu7

    [mas os

    sentidos, como que capturados, trasladou-os sua lngua, como um direito de vencedor] e [no traduzir uma palavra a partir de outra palavra, mas o sentido a partir do sentido].

    7 Epistula LVII. Ad Pammachium. Liber de optimo genere interpretandi. VI, 3; V, 2 [N. de T.].

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    43

    Tal a concepo da traduo que se tornou cannica no Ocidente [Strig, 1963].8 Os dois enunciados se completam: se a traduo anexao, ela s pode ser anexao do sentido. Se ela captao do sentido, ela s pode ser anexao.

    Mas estes princpios de So Jernimo, alm dos de Ccero e Horcio, tm sua origem em So Paulo e no pensamento grego, isto , em Plato. No que este ltimo tenha falado (do que sei) de tra-duo: mas instituiu o famoso corte entre o sensvel e o intelig-vel, o corpo e a alma. Corte que se encontra em So Paulo com a oposio entre o esprito que vivifica e a letra que mata.9

    A traduo no se importa com a letra morta: ela vai, para capt-lo, at ao esprito, ao sentido. Enquanto que a tradio judai-ca desconfiava da traduo, realmente um imperativo categrico do cristianismo a traduo do Livro em todas as lnguas, a fim de que o sopro vivificante do Esprito atinja todas as naes (Atos dos Apstolos, 2, 4).

    H, portanto, aqui impulso traduo: ao impulso tradutrio da romanidade pag visando constituir sua prpria cultura por pi-lhagem, emprstimos e anexao, superpe-se o impulso evangeli-zador do cristianismo: necessrio que cada povo possa entender a Palavra de Deus, necessrio traduzir. a traduo para..., mais do que a traduo por..., e este empreendimento continua, o mesmo de um Nida nos Estados Unidos; e como na Antiguidade o impulso

    8 So Jernimo, todavia, defende o princpio de uma traduo literal dos textos sagrados.

    9 Nietzsche dizia que o cristianismo um platonismo para o povo.

  • 44

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    evangelizador unia-se ao impulso anexionista romano, o evange-lismo tradutrio de Nida une-se hoje ao imperialismo cultural norte-americano.

    Mas filosoficamente falando, tudo isso se baseia no grande corte platnico.

    A boa nova da traduzibilidade universal

    Aplicada s obras, a cesura platnica sanciona um certo tipo de traslao, a do sentido considerado como um ser em si, como uma pura idealidade, como um certo invariante que a tra-duo faz passar de uma lngua a outra deixando de lado sua casca sensvel, seu corpo: de sorte que o insignificante, aqui, antes o significante. Do mesmo modo, todas as lnguas so uma(s) pois nelas reina o logos, e isso que, alm das suas diferenas, funda a traduo. Esta ltima deve estabelecer-se na esfera da idealidade e fornecer a prova da existncia deste puro logos constitutivo de toda lngua como tal [Broch, 1966: 291]. Desta forma negada no somente a confuso de Babel, o fantasma assustador da mul-tiplicidade das lnguas [Gbelin apud Certeau, 1975: 91], mas tambm o fato de que esta multiplicidade tenha um sentido qual-quer. A traduo , por assim dizer, a demonstrao da unidade das lnguas. Assim como So Paulo dizia: Morte, onde est tua vitria?, ela diz: Babel, onde est tua vitria? Logo, ela a boa nova da traduzibilidade universal [Paz, 1984: 206].

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    45

    Captao do sentido e etnocentrismo

    Mas em que esta captao platnica do sentido etno-cntrica? Em que esta negao de Babel ao mesmo tempo uma reduo? Partir do pressuposto que a traduo a captao do sentido, separ-lo de sua letra, de seu corpo mortal, de sua casca terrestre. optar pelo universal e deixar o particular. A fidelidade ao sentido ope-se como para o crente e o filsofo fideli-dade letra. Sim, a fidelidade ao sentido obrigatoriamente uma infidelidade letra.

    Mas esta infidelidade letra estrangeira necessariamente uma fidelidade letra prpria. O sentido captado na lngua para a qual se traduz. Para tanto, deve ser despojado de tudo que no se deixe transferir. A captao do sentido afirma sempre a primazia de uma lngua. Para que haja anexao, o sentido da obra estrangeira deve submeter-se lngua dita de chegada. Pois a captao no libe-ra o sentido numa linguagem mais absoluta, mais ideal ou mais ra-cional: ela o encerra simplesmente numa outra lngua, considera-da, verdade, como mais absoluta, mais ideal e mais racional. E esta a essncia da traduo etnocntrica; fundada sobre a primazia do sentido, ela considera implicitamente ou no sua lngua como um ser intocvel e superior, que o ato de traduzir no poderia pertur-bar. Trata-se de introduzir o sentido estrangeiro de tal maneira que seja aclimatado, que a obra estrangeira aparea como um fruto da lngua prpria. De onde os dois axiomas tradicionais (ainda dominantes) desta interpretao da traduo.

  • 46

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    Os dois princpios da traduo etnocntrica

    Estes dois axiomas so correlativos: deve-se traduzir a obra estrangeira de maneira que no se sinta a traduo, deve-se tra-duzi-la de maneira a dar a impresso de que isso que o autor teria escrito se ele tivesse escrito na lngua para a qual se traduz.

    Aqui, a traduo deve fazer com que a esqueam. Ela no se inscreve como operao na escrita do texto traduzido. Isto significa que toda marca da lngua de origem deve ter desaparecido, ou estar cuidadosamente delimitada; que a traduo deve ser escrita numa lngua normativa mais normativa que a da obra escrita direta-mente na lngua para a qual se traduz; que ela no deve chocar com estranhamentos lexicais ou sintticos. O segundo princpio a consequncia do primeiro, ou sua formulao inversa: a traduo deve oferecer um texto que o autor estrangeiro teria escrito se ti-vesse escrito na lngua da traduo. Ou ainda: a obra deve causar a mesma impresso no leitor de chegada que no leitor de origem. Se o autor utilizou palavras muito simples, o tradutor deve tambm re-correr a palavras muito comuns, para produzir o mesmo efeito no leitor. Se Freud, por exemplo, utiliza a palavra Trieb totalmen-te comum em alemo , haveria que se encontrar um equivalente to usual quanto, e no pulso, pouco comum na nossa lngua.

    Estes dois princpios tm uma consequncia importante: fazem da traduo uma operao onde intervm massivamente a literatura, e mesmo a literarizao, a sobreliteratura. Por qu? Para que no se sinta uma traduo como traduo, tem-se que

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    47

    recorrer a procedimentos literrios. Uma obra que, em francs, no sentida como traduo uma obra escrita em bom francs, isto , em francs clssico. Eis o ponto exato onde a traduo et-nocntrica torna-se hipertextual.

    A traduo hipertextual

    A relao hipertextual a que une um texto x com um texto y que lhe anterior. Um texto pode imitar um outro texto, fazer um pastiche, uma pardia, uma recriao livre, uma parfrase, uma citao, um comentrio, ou ser uma mescla de tudo isso. Como mostraram Bakhtin, Genette ou Compagnon, h uma dimenso essencial da literatura. Todas essas relaes hipertextuais se carac-terizam por uma relao de engendramento livre, quase ldico, a partir de um original. Ora, do ponto de vista da estrutura formal, essas relaes esto muito prximas da traduo.

    Pastiche, adaptao, variao

    A imitao e sua forma menor, o pastiche, so os modos mais prximos do ato de traduzir. Consistem em selecionar um certo nmero de traos estilsticos de uma obra o epteto homrico, o imperfeito de Flaubert10 e em produzir um texto que pode-

    10 Consultar as excelentes anlises do pastiche feitas por G. Genette em Palimpsestes.

  • 48

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    ria ser destes autores. As imitaes que Nerval fez de Goethe, os pastiches de Proust so modelos do gnero. O tradutor visa tambm a reproduzir o sistema estilstico de uma obra; como no pastiche, ele deve localiz-lo, mas sua ambio se limita a reproduzir um texto existente, enquanto o primeiro produz um texto novo. a diferena entre o copista e o falsrio em pintura. Na realidade, aquele que faz um pastiche, que visa a um efeito de semelhana concentrada (Proust imita o estilo de Flaubert, mas sem compor obras do volume das obras deste autor), produz um texto no limite da pardia: eptetos homricos demais, imperfeitos flaubertianos demais etc. Este fen-meno, a acentuao, tambm conhecido do tradutor quando, para compensar a perda de tal ou tal elemento, ele acentua outros [Pessoa, 1978: 170].11 De qualquer forma, para uma anlise estilstica, imita-o, pastiche e traduo so formalmente quase indiscernveis, e por isso que o (demasiado) famoso texto de Borges sobre Pierre Menard vale por muitas crticas como a parbola da traduo.

    Transformao e adaptao so outros modos de hipertex-tualidade: a Fedra antiga e a de Racine, a Antgona de Sfocles e a de Anouilh... Novamente, a fronteira entre uma traduo livre que recua frente a certas particularidades do texto (e que portan-to o modifica) e a transformao declarada no ntida. Hannah Arendt mostra como, para os gregos, o pensamento vinha depois da palavra. E ela acrescenta:

    11 Du Bellay: O que o tradutor no conseguiu restituir plenamente em certo lugar, que ele trate de o compensar em outro, citado em Fernando Pessoa.

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    49

    A traduo literal dos ltimos versos de Antgona (1350-1354) a seguinte: Mas as grandes palavras, contradi-zendo [ou restituindo] as grandes aes dos orgulhosos, ensinam a compreenso na velhice. O sentido desses ver-sos to embaraoso para o esprito moderno que muito poucos tradutores tm a audcia de restitu-lo sem disfar-ce [1983: 34-35].

    E de fato, quem consultar as tradues de Mazon ou de Grosjean encontrar um acomodamento dos seus versos. Arendt repara justamente que Hlderlin um dos raros a ter ousado tradu-zir literalmente a palavra de Sfocles. Esse movimento de recuo do tradutor muito frequente, e se traduz por uma censura, um corte ou um disfarce do original. um movimento de deformao muito profundo que deveria ser analisado como tal [Todorov, 1982].12

    Mas de acomodamento em acomodamento, o estatuto final do texto de Sfocles aproxima-se das adaptaes livres. So obvia-mente as exigncias da traduo etnocntrica que levam o tradutor a efetuar operaes hipertextuais.

    Isto visvel nas Belas Infiis do classicismo francs, mas o mesmo fenmeno se reproduz, mais discretamente, em nossos dias. A Frana clssica havia colocado sua lngua como o modelo da

    12 Todorov cita um bom exemplo de recuo censurador. Colombo escreve em 1492: Se Deus quiser, no momento da partida, levarei comigo seis ndios para Vossa Alteza para que aprendam a falar. Todorov precisa que esses termos pareceram to chocantes aos diferentes tradutores franceses de Colombo que todos corrigiram: para que aprendam nossa lngua [1982: 36]. V-se que a censura da traduo diz respeito a pon-tos precisos, seja para Sfocles, seja para Colombo.

  • 50

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    comunicao, da representao e da criao literria; este mode-lo constituiu-se pela excluso de todos os elementos lingusticos vernculos ou estrangeiros. Desde ento, a traduo s poderia ser uma transposio livre, uma aclimatao filtrante dos textos estrangeiros. Veja-se, por exemplo, a traduo que Voltaire pro-ps dos famosos versos de Hamlet, to be or not to be, that is the question:

    Demeure, il faut choisir, et passer linstantDe la vie la mort et de ltre au nant [Apud Bonnefoy, 1962].

    [Fica, fora escolher, e passar num instanteDa vida morte e do ser ao nada].

    Para ns, no uma traduo. Para Voltaire, a traduo devia ser isso. Ela havia se tornado, ento, inteiramente hipertextual. E era a consequncia lgica dos axiomas analisados acima. Natural-mente, como disse, a adaptao toma, em geral, formas mais discre-tas, formas sincrticas, na medida em que o tradutor ora traduz li-teralmente, ora traduz livremente, ora faz um pastiche, ora uma adaptao etc.13 O sincretismo tpico da traduo adaptadora, e se vale, em geral, de exigncias ao mesmo tempo literrias (elegn-cia etc.) e puramente lingusticas, em que a no-correspondncia das estruturas formais das duas lnguas obriga, segundo ele, a todo um trabalho de reformulao. na base dessas exigncias que a

    13 De onde a falta de coerncia prpria do texto traduzido: no um verdadeiro texto.

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    51

    hipertextualidade discreta se revela. Isso muito comum na tra-duo romanesca, onde tal trabalho de transformao permanece desapercebido. Demorou-se muito tempo para descobri-lo no caso de Kafka, por exemplo. Quando no incio do Processo, Vialatte traduz

    ...un homme assis prs de la fentre ouverte et arm dun livre dont il dtacha son regard en voyant entrer Joseph K. [1976: 260].

    [...um homem sentado perto da janela aberta e armado de um livro do qual desprendeu os olhos ao ver Joseph K. entrar.]

    onde Lortholary e Goldschmidt traduzem mais literalmente

    ...un homme assis prs de la fentre, un livre la main. Le-vant les yeux... (Lortholary) [1983: 30]

    [um homem sentado perto da janela, um livro na mo. Le-vantando os olhos...]

    ...un homme assis prs de la fentre ouverte, un livre la main et qui leva les yeux cet instant..., (Goldschmidt) [1983: 32]14

    [um homem sentado perto da janela aberta, um livro na mo e que levantou os olhos neste momento...]

    a diferena pode parecer mnima, mas entre armado de um livro e um livro na mo, entre desprendeu os olhos e levantou os

    14 Ver tambm o dossi Kafka, em Quinzaine Littraire, n. 402 [1983: 15-18].

  • 52

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    olhos, h toda uma distncia entre literarizao e literalidade. Apli-cada a cada frase da obra, o leve toque de literatura de Vialatte acaba produzindo um outro Kafka, e, evidentemente, apagando sua lngua.

    A traduo hipertextual e etnocntrica em questo

    Trata-se de questionar essa prtica e essa teoria da traduo. Ou mais modestamente: de retomar um questionamento que no cessou de se desenvolver nos sculos XIX e XX, sem todavia abalar sua dominao.

    Colocar em discusso esses dois modos de traduo no significa afirmar que a traduo no comporta nenhum elemento etnocntrico ou hipertextual.

    Por um lado, porque vastos setores da escrita s exigem uma transferncia de sentido. Cada cultura deve saber se apropriar das produes de sentido estrangeiras. Mas isso no concerne s obras. Evidentemente, as obras fazem sentido e querem a transmisso de seu sentido. Elas so mesmo uma formidvel concentrao de sen-tido. Mas nelas, o sentido est condensado de maneira to infinita que excede toda possibilidade de captao.

    Por outro lado, toda traduo comporta uma parte de transfor-mao hipertextual, sob a pena de ser o que a lngua espanhola chama de traduccin servil, na medida em que se efetua a partir de um hori-zonte literrio. Aquele de sua prpria cultura em tal ou tal momento

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    53

    histrico. O horizonte literrio de Goldschmidt no o de Vialatte. Mas isso no quer dizer que a traduo seja inteiramente enfeudada nesse horizonte, nem que ela deva confundir-se com as prticas in-tertextuais correntes. O problema no negar que a traduo per-tence ao espao literrio (traduzir um poema, disse Meschonnic, , em primeiro lugar, escrever um poema), mas determinar qual lugar ela ocupa. Ilustrarei isso com o caso das tradues poticas.

    Numerosos poetas modernos Baudelaire, Mallarm, George, Valry, Rilke, Pasternak, Jouve, Celan, Supervielle, Robin, Paz, Deguy, Bonnefoy etc. traduziram outros poetas, e, para quase todos, essa atividade marcou sua experincia potica. Muitos no todos, no os mais ntegros se outorgaram liberdades que justificaram pelas leis do dilogo entre os poetas, leis que os dispensavam dos deveres ordinrios dos tradutores. Resultaram (pense-se, por exemplo, em Rilke desfigurando Louise Labb) tra-dues que, no fundo, so recriaes livres. Trata-se de formas hipertextuais poticas, que no se tem o direito de confundir com tradues. Pois, como Voltaire ou Vialatte, negligenciam o contrato fundamental que une uma traduo a seu original. Esse contrato seguramente draconiano probe ir alm da textura do original. Estipula que a criatividade exigida pela traduo deve colocar-se inteiramente ao servio da reescrita do original na outra lngua, e nunca produzir uma sobre-traduo determinada pela potica pes-soal do tradutor. o que faz a diferena entre o Shakespeare tradu-zido por Jouve e o Shakespeare traduzido por Leyris ou Bonnefoy. No primeiro caso, tem-se o arbtrio caprichoso de um poeta que

  • 54

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    anexa tudo que toca; no segundo caso, o projeto potico est ligado ao projeto tico da traduo: levar s margens da lngua para a qual se traduz a obra estrangeira na sua pura estranheza, sacrificando de-liberadamente sua potica prpria.

    Questionar a traduo hipertextual e etnocntrica significa procurar situar a parte necessariamente etnocntrica e hipertextual de toda traduo. Significa situar a parte que ocupam a captao do sentido e a transformao literria. Significa mostrar que essa parte secundria, que o essencial do traduzir est alhures, e que a defi-nio da traduo como transferncia dos significados e variao esttica reencontrou algo de mais fundamental, com a consequncia que a traduo ficou sem espao e sem valor prprios.

    A traduo como impossibilidade e traio

    Pois desde que se concebe o ato de traduzir como captao de sentido, algo vem negar a evidncia e a legitimidade desta ope-rao: a adeso obstinada do sentido sua letra. Tradutores, auto-res e leitores sempre sentiram isso. Essa operao conquistadora e exaltante, essa demonstrao da unidade das lnguas e do esprito, est maculada por um sentimento de violncia, de insuficincia, de traio. Steiner fala, com razo, da tristeza que acompanha des-de sempre o ato de traduzir. H, evidentemente, nessa experincia, um sofrimento. No somente aquele do tradutor. Tambm aque-le do texto traduzido. Aquele do sentido privado de sua letra. A

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    55

    traduo invade a intimidade deles. Jacques Derrida o enunciou maravilhosamente:

    Um corpo verbal no se deixa traduzir ou transportar a uma ou-tra lngua. Ele o que a traduo deixa de lado. Deixar de lado o corpo realmente a energia essencial da traduo... [1967: 312].

    Mas o que negado o corpo se vinga. A traduo des-cobre s suas custas que letra e sentido so, ao mesmo tempo, dis-sociveis e indissociveis. No importa que a dissociao seja filoso-ficamente ou teologicamente legitimada, pois na traduo aparece algo irredutvel ciso platnica. Ainda mais: a traduo um dos lugares onde o platonismo simultaneamente demonstrado e refuta-do. Mas essa refutao, longe de abalar o platonismo, recai forte-mente sobre a traduo. Se letra e sentido esto ligados, a traduo uma traio e uma impossibilidade.

    O intraduzvel como valor

    Historicamente, a objeo prejudicial feita traduo concerne principalmente poesia. Uma longa tradio de Dante a Du Bellay e Montaigne, de Voltaire e Diderot a Rilke, Jakobson ou Bense afirma que a poesia intraduzvel, porque ela s uma hesitao prolongada entre o som e o sentido (Valry). Que a poesia intraduzvel significa duas coisas: que ela no pode ser traduzida, por causa dessa relao infinita que institui entre o som e o sentido, e que ela no o deve ser, porque sua

  • 56

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    intraduzibilidade (assim como sua intangibilidade15) constitui sua verdade e seu valor. Dizer que um poema intraduzvel , no fundo, dizer que um verdadeiro poema.

    De fato, em todos os mbitos da escrita, a intraduzibilida-de tendencialmente vivida como um valor. Exalta-se tambm a traduzibilidade como um indcio de alta racionalidade. Todo es-crito quer, no entanto, preservar em si uma parte de intraduzvel: muito elevada na poesia, reduzida, mas real, num texto tcnico ou jurdico. A intraduzibilidade um dos modos de autoafirmao de um texto. Frente a tal tendncia, o racionalismo da comunica-o quase impotente. Traduzir suspeito, porque desdenha um valor essencial do texto. Se este quer unir em si a letra e o senti-do indissociavelmente, a traduo s pode ser traio, mesmo se essa traio necessria prpria existncia dos intercmbios e da comunicao. Para falar como os gregos e os medievais, ela to necessria quanto o comrcio e as atividades de dinheiro, mas em todos os casos trata-se de atividades vis e sem valor. O trfico [Daniel apud Steiner, 1978: 120] do sentido ao qual se entrega a traduo uma operao duvidosa, mentirosa e pouco natural. o que expressam as metforas sobre a traduo em toda a histria ocidental, e tambm o fato de que a traduo s consegue ser de-finida por metforas.

    15 O dogma da intangibilidade do poema est ligado ao da sua intraduzi-bilidade.

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    57

    A traduo e suas metforas

    Tanto as definies conceituais da traduo so raras e re-petitivas, quanto proliferam suas definies metafricas, como bem observou Mounin nas suas Belas Infiis, mas sem refletir mais apro-fundadamente sobre esse fenmeno, sobre o parentesco, talvez, que liga essa transferncia que a metfora a essa transferncia que a traduo. Citarei aqui algumas dessas metforas, mais ou menos famosas, que tm em comum sua negatividade [Strig, p. VII, VIII].

    Cervantes:

    Me parece que traduzindo de uma lngua a outra [...] se faz justamente como aquele que olha uma tapearia flamenga ao avesso: mesmo vendo as figuras, elas esto repletas de fios que as obscurecem, de maneira que no podem ser vistas com o brilho do lado direito.

    Boileau:

    Mademoiselle de Lafayette, a francesa que tinha o mais belo esprito e a que melhor escrevia, comparava um tolo tradu-tor a um criado que sua ama envia para fazer um elogio a algum; o que sua ama ter dito em termos elegantes, ele o restitui grosseiramente, o estropia...

    Montesquieu:

    Tenho uma boa nova: acabei de dar Horcio ao pblico. Como! Diz o gemetra, h dois mil anos que pbli-co. No est me entendendo, replicou o outro: uma

  • 58

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    traduo desse antigo autor que acabei de trazer luz; h vin-te anos que fao tradues. O que! Diz o gemetra, h vinte anos que no pensa? Voc fala pelos outros, e eles pen-sam por voc? Acha, diz o sbio, que no fiz um grande favor ao pblico ao propiciar a leitura familiar dos bons autores? No digo exatamente isso: admiro, como mui-tos, os sublimes gnios que voc traveste. Mas voc nunca se parecer com eles: pois se voc sempre traduz, nunca ser traduzido. As tradues so como essas moedas de cobre que tm o mesmo valor que uma de ouro, e so at de maior uso para o povo; mas so sempre fracas, de mau augrio. Voc diz que quer fazer renascer entre ns esses ilustres mortos, e confesso que lhes d um corpo; mas no lhes dar a vida: falta sempre um esprito para anim-los. Por que no se dedica antes pesquisa de tantas belas verdades que um clculo fcil nos faz descobrir todos os dias?Aps este pequeno conselho, separaram-se, acredito, muito descontentes um com o outro.

    Goethe:

    Os tradutores so como os casamenteiros cheios de zelo que vangloriam uma jovem beldade seminua como digna de amor: despertam uma tendncia irreprimvel pelo original.

    Madame de Stal:

    Uma msica composta para um instrumento no executa-da com sucesso num instrumento de outro genro.

    Andr Gide:

    Eu o comparo ao estribeiro que pretende fazer executar ao seu cavalo movimentos que no lhe so naturais.

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    59

    Nabokov:

    A traduo? Num prato a cabea plida e careteante de um poeta grito de papagaio, tagarelice de macaco, profanao dos mortos.16

    Todas essas metforas assinalam o carter antinatural da tradu-o. O poema de Nabokov de algum que tambm foi um gran-de tradutor acumula as imagens negativas: aluso Herodades, assimilao da traduo imitao absurda da linguagem humana pelos papagaios, ao palavreado infra-humano dos macacos, e acu-sao de sacrilgio supremo. Na verdade, falta-nos ainda um flori-lgio das metforas da traduo; este florilgio nos ensinaria mais sobre o ato de traduzir do que muitos tratados especializados.

    A traduo como transmisso inel do sentido e hipertextualidade segunda

    Neste contexto, traduzir aparece como uma m transmisso do sentido e como uma hipertextualidade segunda, ora demasiado livre, ora demasiado servil.

    16 As nicas metforas positivas que encontrei a respeito da traduo so as da Authorized Version da Bblia e as de Walter Benjamin, cujo texto sobre a tarefa do tradutor liga intimamente o trabalho metafrico e o trabalho especulativo. Aqui, a traduo pensamento, e a metfora vem com a re-flexo conceitual. As metforas negativas se situam, ao contrrio, num es-pao onde elas substituem o pensamento marcam sua recusa de pensar a traduo. E essa recusa ipso facto uma desvalorizao. Quando Goethe pensa a traduo, no recorre, em geral, a metforas.

  • 60

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    A transmisso do sentido m porque o sentido est ligado letra, e a captao do sentido s nos proporciona uma mensagem con-fusa, deformada: tal um dos sentidos das metforas de Cervantes e de Boileau. A traduo est pois condenada ao nvel do objetivo que lhe foi imposto. A afirmao de que o sentido pode e a de que ele no pode viajar coexistem, porque emanam de esferas heterogneas: uma teolgico-especulativa, a outra, a das imagens empricas atra-vs das quais a traduo vivida. Eis porque, para um leitor ociden-tal, a leitura de uma traduo no uma experincia completa, mas o que h.

    A hipertextualidade da traduo segunda: jamais um texto traduzido ter a positividade de um original. Em outras palavras, j que toda obra , em certo grau, hipertextual, a sua hipertextualida-de sempre de segunda mo, imitao medocre e laboriosa, cpia vil etc. Traduzir no criar, isso que expressa o esprito malvado do gemetra de Montesquieu. uma hipertextualidade servil, pois toda a glria da verdadeira hipertextualidade a de Joyce em Ulisses reside na sua liberdade. Mas, ao contrrio, desde que uma tradu-o livre, taxada de traio.

    Tal a consequncia da definio etnocntrica e hipertextual da traduo. E o que explica o estatuto oculto, rechaado, vergo-nhoso dessa atividade. Quantos tradutores interiorizaram esse es-tatuto e se desculpam por antecipao com o leitor da imperfei-o, da presuno de seu empreendimento! Chapiro, tradutor para o francs dos Irmos Karamazov, no hesita em dizer que ele no conseguiu escapar da danao original que pesa sobre todo empre-endimento de traduo [Apud Meschonnic, 1973: 318].

  • Traduo Etnocntrica e Traduo Hipertextual

    61

    Estamos, portanto, confrontados com uma atividade huma-na considerada ao mesmo tempo como indispensvel e culpada. A relao com a sexualidade e o dinheiro salta aos olhos.

    Ante esse julgamento milenar, nenhuma justificativa se faz necessria. preciso simplesmente afirmar isto: ele no concerne verdade da traduo sua verdade tica e histrica.

    O acesso a essa verdade no , todavia, direto. atravs de uma destruio sistemtica das teorias dominantes e de uma anlise (no sentido cartesiano e freudiano ao mesmo tempo) das tendncias deformadoras que operam em toda traduo que poderemos abrir um caminho em direo ao espao positivo do traduzir e simples-mente do seu prprio.

  • 6363

    A ANALTICA DA TRADUO

    E A SISTEMTICA DA DEFORMAO

    Proponho-me aqui examinar brevemente o sistema de de-formao dos textos da letra que opera em toda traduo, e impede-lhe de atingir seu verdadeiro objetivo. Chamaremos esta anlise de analtica da traduo.

    Trata-se de uma analtica em duplo sentido: da anlise, parte por parte, desse sistema de deformao, portanto, de uma anlise no sentido cartesiano da palavra. Mas tambm no sentido psicana-ltico, na medida em que esse sistema grandemente inconsciente e se apresenta como um leque de tendncias, de foras que desviam a traduo de seu verdadeiro objetivo. A analtica prope colocar em evidncia essas foras e mostrar os pontos sobre os quais elas agem. Ela concerne em primeiro lugar traduo etnocntrica e hipertextual, onde o jogo das foras deformadoras se exerce livre-mente, sendo, por assim dizer, sancionado cultural e literariamente. Mas na realidade, todo tradutor est exposto a esse jogo de foras. Mais que isso: elas fazem parte do seu ser-tradutor e determinam, a priori, seu desejo de traduzir. ilusrio pensar que poderia se desfazer dessas foras tomando simplesmente conscincia delas.

  • 64

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    Apenas uma anlise de sua atividade permite neutraliz-las.17 apenas ao submeter-se a controles (no sentido psicanaltico) que os tradutores podem esperar libertar-se parcialmente desse sistema de deformao, que tanto a expresso interiorizada de uma longa tradio quanto da estrutura etnocntrica de cada cultura e cada lngua enquanto lngua culta.

    As lnguas cultas so as nicas que traduzem, mas tam-bm so as que mais resistem comoo da traduo. So aque-las que censuram. Imagina-se tudo o que uma psicanlise voltada para a lngua pode trazer para a tradutologia. Mas a abordagem psicanaltica da traduo deve ser tarefa dos prprios analistas, desde que faam da experincia da traduo uma dimenso essen-cial da prpria psicanlise.18

    A analtica esboada aqui s concerne s foras deformado-ras que se exercem no domnio da prosa literria (romance, en-saio, cartas etc.). H nisso uma razo subjetiva: tenho experincia,

    17 Esta neutralizao somente relativa, uma vez que Freud, numa carta a Fliess, a chamava (a respeito das psiconeuroses) de defeito de traduo constitutivo do traduzir. O espao da traduo aquele da inevitvel fra-gilidade. O defeito da traduo inerente traduo. Por que este defeito? Qual o seu fundamento? Para responder a essas perguntas, preciso pro-vavelmente uma analtica do sujeito que traduz, o tradutor.

    18 Ver Psychanalyse et traduction, Mta (1982), v. 27, n. 1, Montral; L occulte, objet de la pense freudienne (1983) de J. M. Rey et W. Granoff. Paris: PUF; La dcision de traduire: lexemple de Freud, in LEcrit du temps (1984), n. 7. Paris: Minuit; Traduction de Freud, transcription de La-can, in Littoral (1984), n. 13. Toulouse: Ers. A lista dos textos analticos sobre a traduo no para de aumentar e constitui um corpus funda-mental.

  • A Analtica da Traduo e a Sistemtica da Deformao

    65

    principalmente, da traduo da prosa literria. E uma razo mais objetiva: esta rea da traduo foi, at agora, injustamente negli-genciada.

    A prosa literria se caracteriza, em primeiro lugar, pelo fato de captar, condensar e mesclar todo o espao polilingustico de uma comunidade. Ela mobiliza e ativa a totalidade das lnguas coexistindo numa lngua. Pode-se ver isso em Balzac, Proust, Joyce, Faulkner, Roa Bastos, Guimares Rosa, Gadda etc. Assim, do pon-to de vista da forma, esse cosmos lingustico que a prosa, e em primeiro lugar o romance, se caracteriza por uma certa informidade, que resulta da enorme mistura das lnguas na obra. Ela caracters-tica da grande prosa.

    Tradicionalmente, essa informidade definida negativamen-te, isto , no horizonte da poesia e do belo estilo retrico. Assim, Lanson escreveu sobre Montaigne:

    Nesse estilo to vivo, to brilhante, a frase voluntariamen-te inorgnica: to longa, to carregada de incidentes e de parnteses [...] que, na realidade, no falta cadncia, mas [...] uma forma [1964: 322].

    No h nada a acrescentar. As grandes obras em prosa se ca-racterizam por um certo escrever mal, um certo no controle de sua escrita. Boris de Schloezer, tradutor para o francs de Guerra e Paz, observa:

    Guerra e Paz est muito mal escrita [...] Preocupado em dizer tudo ao mesmo tempo, [Tolsti] se deixa levar por

  • 66

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    frases pesadas, complicadas, sintaticamente incorretas... A prpria matria de que trata Tolsti conserva [...] algo de rude que explica e justifica em parte o relaxamento da escri-ta [Apud Tolsti, 1972: 38-40].

    Esse no-controle est relacionado enormidade da massa lingustica que o prosador deve concentrar na sua obra arriscando romp-la formalmente. Quanto mais o objetivo da prosa total, tanto mais esse no-controle manifesto, seja na proliferao e no acrescimento do texto, e at mesmo em obras em que a preocupa-o com a forma grande, como em Joyce, Broch, Thomas Mann, Musil ou Proust. A prosa, na sua multiplicidade, nunca pode ser dominada. Mas o seu escrever mal tambm a sua riqueza: a consequncia do seu polilinguismo. Don Quijote, por exemplo, rene a pluralidade das lnguas espanholas de sua poca, do falar proverbial popular (Sancho) na lngua dos romances de cavalaria ou dos romances pastorais. Nesse romance, as lnguas se entrela-am e se ironizam mutuamente.19

    A proliferao bablica das lnguas na prosa coloca questes de traduo especficas. Se um dos principais problemas da tra-duo potica respeitar a polissemia do poema (por exemplo, nos

    19 Tal seria o primeiro nvel analisado por Bakhtin da prosa. Para uma caracterizao mais radical da prosa e de sua relao com a poesia, seria preciso interrogar Benjamin (in O conceito de crtica de arte no romantismo alemo onde ele fala do ncleo prosaico de toda obra) e Pasternak, que fala da tenso tradutria da prosa. Seria tambm pre-ciso e essencial para a traduo interrogar-se sobre o estatuto da sintaxe na grande prosa em relao a esse estatuto na grande poesia (por exemplo a sintaxe em Bloch, de um lado, e em Hopkins, do outro).

  • A Analtica da Traduo e a Sistemtica da Deformao

    67

    Sonetos de Shakespeare), o principal problema da traduo da prosa respeitar a polilogia informe do romance e do ensaio.

    Na medida em que a prosa considerada inferior poesia, as deformaes da traduo so aqui melhor aceitas quando no passam desapercebidas. Pois elas concernem a pontos dificilmente discernveis. fcil ver em que um poema de Hlderlin foi mas-sacrado; menos fcil ver em que um romance de Faulkner o foi, principalmente se a traduo parece boa (isto , esttica). Eis por-que urgente elaborar uma analtica da traduo da prosa literria.

    As tendncias deformadoras

    Esta analtica parte da localizao de algumas tendncias deformadoras, que formam um todo sistemtico, cujo fim a des-truio, no menos sistemtica, da letra dos originais, somente em benefcio do sentido e da bela forma. Partindo do pressuposto de que a essncia da prosa simultaneamente a rejeio dessa bela forma e, em especial por meio da autonomizao da sintaxe (o que Lanson critica em Montaigne), a rejeio do sentido (pois a arbo-rescncia indefinida da sintaxe na grande prosa cobre, mascara, li-teralmente, o sentido), mediremos melhor o que essas tendncias tm de funesto.

    Evocarei aqui treze dessas tendncias. Talvez existam outras; algumas convergem, ou derivam das outras; algumas so bem conhe-cidas, ou podem parecer concernir somente nossa lngua francesa classicizante. Mas, de fato, concerne a toda traduo, qualquer que

  • 68

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    seja a lngua, pelo menos no espao ocidental. Quando muito pode-se dizer que certas tendncias agem mais em tal ou tal rea-de-lngua.

    As tendncias que vo ser analisadas so: a racionalizao, a clarificao, o alongamento, o enobrecimento e a vulgarizao, o empobrecimento qualitativo, o empobrecimento quantitativo, a homogeneizao, a destruio dos ritmos, a destruio das redes significantes subjacentes, a destruio dos sistematismos textuais, a destruio (ou a exotizao) das redes de linguagens vernaculares, a destruio das locues e idiotismos, o apagamento das superpo-sies de lnguas.

    A racionalizao

    A racionalizao diz respeito em primeiro lugar s estruturas sintticas do original, bem como a este elemento delicado do texto em prosa que a pontuao. A racionalizao re-compe as fra-ses e sequncias de frases de maneira a arrum-las conforme uma certa ideia da ordem de um discurso. A grande prosa romance, carta, ensaio tem, j a mencionamos brevemente, uma estrutura em arborescncia (repeties, proliferao em cascata das relativas e dos particpios, incisos, longas frases, frases sem verbo etc.) que diametralmente oposta lgica linear do discurso enquanto discur-so. A racionalizao conduz violentamente o original de sua arbo-rescncia linearidade.

    Assim, o tradutor (francs) dos Irmos Karamazov escreve:

  • A Analtica da Traduo e a Sistemtica da Deformao

    69

    O peso original do estilo de Dostoivski cria para o tra-dutor um problema quase insolvel. Teria sido impossvel reproduzir suas frases densas, apesar da riqueza do seu con-tedo... (Apud Meschonnic, 1973: 317).

    Ora, a prosa comporta, por essncia, uma parte densa, alm mesmo do fenmeno da arborescncia sinttica. Todo ex-cesso de forma cristaliza a prosa do ensaio ou do romance, cuja imperfeio uma condio de possibilidade. A informidade significante indica que a prosa afunda nas profundezas polilgi-cas da lngua. A racionalizao destri tudo isso em nome de uma pretensa impossibilidade.

    Ela aniquila tambm um outro elemento prosaico: o objeti-vo de concretude. Quem diz racionalizao, diz abstrao, genera-lizao. Ora, a prosa tem seu eixo no concreto; ela consegue at tornar concretos os numerosos elementos abstratos ou reflexivos que carrega no seu fluxo (Proust, Montaigne). A racionalizao faz passar o original do concreto ao abstrato, no somente ao re-ordenar linearmente a estrutura sinttica, mas, por exemplo, ao traduzir os verbos por substantivos, escolhendo entre dois subs-tantivos o mais geral etc. Yves Bonnefoy mostrou esse processo nas tradues de Shakespeare.

    Essa racionalizao generalizante ainda mais perniciosa por no ser total. E por seu sentido ser o de no ser. Pois ela se contenta em inverter a relao do formal e do informal, do ordenado e do desordenado, do abstrato e do concreto que prevalece no original. Esta inverso tpica da traduo etnocntrica faz com que a

  • 70

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    obra, sem parecer mostrar mudana de forma e de sentido, muda, de fato, radicalmente de signo e de estatuto. Assim, a primeira tradu-o do romance Filho de Homem, do paraguaio Roa Bastos, muda o estatuto da obra ao acentuar levemente os elementos racionais, oferecendo assim ao leitor uma bela obra clssica.

    Resumindo: a racionalizao deforma o original ao inverter sua tendncia de base (a concretude) e ao linearizar suas arbores-cncias sintticas.

    A claricao

    Trata-se de um corolrio da racionalizao mas que concerne particularmente ao nvel de clareza sensvel das palavras ou de seus sentidos. Onde o original se move sem problema (e com uma necessi-dade prpria) no indefinido, a clarificao tende a impor algo definido.

    Chapiro escreve ainda a respeito de Dostoivski:

    Para restituir as sugestes da frase russa, necessrio muitas vezes complet-la (Apud Meschonnic, 1973: 317-8).

    A clarificao parece ser um princpio evidente para muitos tra-dutores e autores. Neste sentido, escreve o poeta ingls Galway Kinnell:

    The translation should be a little clearer than the original (Apud Gresset, 1983: 517).

    [A traduo deveria ser um pouco mais clara que o original].

  • A Analtica da Traduo e a Sistemtica da Deformao

    71

    A clarificao inerente traduo, na medida em que todo ato de traduzir explicitante. Mas isto pode significar duas coisas bem diferentes.

    A explicitao pode ser a manifestao de algo que no apa-rente, mas ocultado ou reprimido no original. A traduo pelo seu prprio movimento revela esse elemento. a isto que Heidegger faz aluso na filosofia:

    Por meio da traduo, o trabalho do pensamento se en-contra transposto no esprito de uma outra lngua, e sofre assim uma transformao inevitvel. Mas esta transforma-o pode se tornar fecunda, pois ela faz aparecer em uma luz nova a posio fundamental da questo (Heidegger, 1968: 10).

    Veremos com Hlderlin que este poder de iluminao, de manifestao, o supremo poder da traduo.

    Mas num sentido negativo, a explicao visa a tornar claro o que no e no quer ser no original. A passagem da polissemia monossemia um modo de clarificao. A traduo parafrsica ou explicativa, um outro. E isso nos leva terceira tendncia.

    O alongamento

    Toda traduo tendencialmente mais longa do que o origi-nal. uma consequncia, em parte, das duas primeiras tendncias evocadas. Racionalizao e clarificao exigem um alongamento,

  • 72

    a Traduo e a Letra ou o Albergue do Longnquo

    um desdobramento do que est, no original, dobrado. Mas este alongamento, do ponto de vista do texto, pode ser designado como vazio, e coexistir com diversas formas quantitativas de empobreci-mento. Quero dizer com isso que o acrscimo no acrescenta nada, que s aumenta a massa bruta do texto, sem aumentar sua faln-cia ou sua significncia. As explicaes tornam, talvez, a obra mais clara, mas na realidade obscurecem seu modo prprio de clareza. Ademais, o alongamento um afrouxamento que afeta a rtmica da obra. o que frequentemente chamamos de sobretraduo, cujo caso tpico a traduo ao francs de Moby Dick, de Armel Guerne. Moby Dick alongado, de ocenico torna-se inchado e inutilmente titnico. O alongamento, aqui, agrava a informidade originria da obra, fazendo-a passar de uma informidade plena uma informidade vazia. Num outro lado do universo da prosa, os Fragmentos, de No-valis, traduzidos ao francs tambm por Guerne, e que em alemo tm uma brevidade particular, uma brevidade que capta uma infini-dade de sentidos e os torna de certa forma longos, mas verticalmen-te como poos, se estendem de maneira exagerada e so reduzidos. O alongamento, aqui, horizontaliza o que vertical em Novalis.20 Notamos que o alongamento se produz em diversos graus em

    20 A. Guerne, tradutor digno de respeito, explicou-se sobre sua maneira de traduzir Novalis: acentuar um elemento francs j presente no au-tor. Expl