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Ser humano e corporeidade: Uma abordagem teológico-
cultural
Uma visão integrada das dimensões humanas - corpo-alma - constitui lugar
fundamental para se pensar o ser humano. Isto porque as consequências de uma
compreensão que privilegia uma das dimensões em detrimento da outra
configuraram na história empobrecimentos, e uma determinada violência contra o
humano, afetiva, existencial, social, física e até espiritualmente.
No cristianismo, configurou-se desde os primeiros séculos uma suspeita em
relação ao corpo, oriunda do dualismo platônico e neoplatônico. Segundo
Famereé, o cristianismo desde o início e durante bom tempo se “expressou no
discurso da metafísica platônica”. O mundo visível e invisível em uma dualidade
vertical e, portanto, hierárquica. O problema é que tal dualismo é somente uma
máscara para “um monismo intransigente”: o corpo sendo negado, tornando-se
não valor, e uma imposição da alma como única realidade ontológica.1
No percurso histórico, a igreja ainda se deparará com a força do dualismo
cartesiano, onde o corpo figurará como uma espécie de máquina, a extensão
mecânica do homem. Sendo a mente a verdadeira sede do ser. Tanto o
pensamento, que diz respeito à alma, ao espírito, quanto o corpo, que diz respeito
à vida biológica serão instâncias separadas do homem, que se relacionam no
homem de maneira extrínseca somente.2
A crise que se instala na modernidade e que questiona seu modelo
antropológico, juntamente com toda revolução que se deu na passagem da
sociedade industrial moderna, para a sociedade de consumo, ocidental e pós-
moderna criou uma nova realidade que produz efeitos devastadores sobre o
humano na relação com sua corporeidade. A reversão dialética operada pela
modernidade e agora pós-modernidade onde o corpo, antes velado, mortificado,
refreado, é agora superexposto, mercadologizado, irrefreado, não operou uma
1 FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ, Adolphe;
SCOLAS, Paul (Org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21. 2 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da
reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.101.
17
revalorização das dimensões do humano, rupturas foram agravadas, e o estado de
violência se perpetua.
A primeira e segunda partes deste capítulo se propõem a uma breve análise
conjuntural da modernidade à chamada pós-modernidade, nas configurações
assumidas pelo corpo na sociedade. A terceira parte fará um percurso histórico
sobre o pensamento antropológico cristão, na patrística, e na teologia reformada,
como base de observação para os desvios e dificuldades que se deram no
entendimento do protestantismo brasileiro.
Utilizará para isto instrumental das ciências humanas, no campo da
sociologia, história, filosofia, teologia, que fazem parte da construção teórica de
autores como David Le Breton, Zygmunt Bauman, Michel Mafesolli, Gilles
Lipovetsky, e Maria Clara Bingemer, Alfonso Garcia Rubio, Paul Tillich,
Marilena Chauí, entre outros.
A organização didática pôs em lugares distintos a reflexão sobre a sociedade
e a reflexão sobre a igreja. Mas compreende-se que tal separação, no contexto da
vivência social é impossível.
2.1
Corporeidade na modernidade
A pretensão não é construir uma historiografia do corpo, pois seria tarefa
por demais extensa, fora do escopo deste trabalho. A intenção é compreender o
sentido da corporeidade para a sociedade atual. A necessidade de uma
retrospectiva histórica, que nos remeta até o período compreendido como
Modernidade, se deve ao entendimento de que épocas históricas não são estanques
umas às outras. Há percursos de continuidade e descontinuidade que tem seus
porquês e enraizamentos nas diversas tramas e enfrentamentos que determinadas
questões sofreram ao longo do tempo. Portanto, o que a sociedade é hoje e a
maneira como se percebe, decorre das ações e reações que se deram em fluxos e
contrafluxos históricos anteriores. 3
3 Cf. BERGER, Mirela. Corpo e identidade feminina. Tese. Disponível em:
http://www.mirelaberger.com.br/mirela/download/corpo_e_identidade_feminina-
Mirela_Berger.pdf, acesso em 28 de outubro de 2015. p.45.
18
Neste ponto, pretende-se analisar como a questão antropológica é percebida
no período moderno e o lugar do corpo na compreensão do ser humano. A
antropologia moderna propõe um tipo de ser humano, mas não fica livre dos
dualismos oriundos de períodos históricos anteriores.
2.1.1
A Crise da Modernidade e o modelo antropológico proposto
O período da modernidade está ligado a uma crise histórica ampla, oriunda
de um processo mais longo de profundas mudanças estruturais na sociedade, e que
nos alcança hoje, tomando a forma de crise de modelos de paradigmas, de valores.
Sendo a modernidade o sintoma desta crise, pois a exprime, e de maneira
ambígua, representando sempre uma dificuldade para os estudiosos que tentam
compreender o período em si, e seus sentidos. 4
O mundo antes da modernidade é o mundo da tradição que conserva uma
determinada estabilidade conduzida pela tradição cristã ocidental. Na
compreensão de Henri-Jérome:
É essa estabilidade do mundo da tradição que será atacada até a raiz pela lenta
emergência do princípio moderno, que pode ser descrito como o acionamento de
uma razão critica pretendendo livrar-se dos aspectos alienantes da tradição, para
fazer chegar um mundo mais racional. E um processo que se acelera do século XIV
ao século XIX e que se radicaliza no século XX, para dar à luz o que é chamado de
pós-modernidade ou ultramodernidade e que consiste, a meu ver, em que a
modernidade conseguiu uma vitória definitiva sobre a tradição, despojando-a de
sua autoridade indiscutível.5
Garcia Rubio afirma que a emergência do paradigma moderno não pode ser
considerada oriunda de uma só causa. Muitas foram elencadas na tentativa de
explicação adequada ao surgimento deste. Uns atribuem às vigorosas
transformações no modo de produção e na vida econômica. Outros defendem uma
4 Cf. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Alteridade e vulnerabilidade: experiência de Deus e
pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. p.13. 5 Cf. HENRI-JÉROME, Gagey. A igreja diante da crise antropológica contemporânea: o que
fazer? Disponível em http://faje.edu.br/periodicos2/index.php/perspectiva/article/view/2803,
acesso em 20 de Maio de 2015.
19
nova visão de mundo e de ser humano que surge no período. O mais acertado é
falar de intercausalidade, uma causa reforçando a outra.6
Dentre tais, Garcia Rubio destaca a mudança que ocorre no seio da ciência
experimental que por conta do método experimental, muda radicalmente seu
objeto: substitui a busca da “essência” mediante a abstração formal e adentra no
mundo científico-técnico onde, a partir da experimentação repetível, o objeto
passa a ser analisado e decodificado matematicamente. 7
O método e o conhecimento medeiam o aparecimento de uma nova visão de
mundo e de homem. O mundo não é mais para ser contemplado e imitado (mundo
antigo e medieval), mas para ser enfrentado e dominado pelo homem com o
instrumental proporcionado pela ciência experimental. O homem com sua
racionalidade matemática constrói o mundo e o transforma com sua racionalidade
técnica. O homem desprende-se do mundo, destaca-se nitidamente dele. E com sua
racionalidade o enfrenta, domina e transforma, em proveito próprio.8
A racionalidade técnica, à serviço do bem humano, levou à invenção da
máquina que contribui fortemente para o nascimento e desenvolvimento da
indústria, que se impõe como via de produção, e gera toda uma organização social
que nasce em seu entorno, a civilização industrial. A compreensão do ser humano
moderno é impossível sem o entendimento dos efeitos que esta mudança gerou.9
Segundo Garcia Rubio, as forças produtivas do vigoroso desenvolvimento
da industrialização fizeram migrar uma sociedade de um modo de vida agrícola e
rural, para um industrial e urbano.10 Em geral, nas sociedades agrícolas, toda a
produção visava o próprio consumo do produtor, sendo uma pequena parte para o
comércio. A questão produção-consumo para a grande maioria era uma unidade
vital de sua relação com a vida e sua subsistência. A civilização industrial inverte
este processo, já que a maioria das pessoas, agora compreendida como força de
trabalho, produz para o mercado, e não para consumo próprio, criando na outra
ponta a necessidade de um consumo massivo para as demandas da indústria.
Instala-se uma determinada tensão: consumidores de um lado, buscando os bens
produzidos pela indústria, pleiteando preços mais baixos; e de outro, os
6 Cf. RUBIO GARCIA, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão
cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.24. 7 Cf. Ibid. 8 Ibid. 9 Cf. Ibid., p. 25. 10 Cf. Ibid., p.26.
20
produtores, exigindo maiores salários pela sua produção. Ruptura cada vez maior
entre os que produzem e consomem. O mercado se coloca como elemento de
ligação e apaziguamento destes polos. 11.
Está posto aí o germe da sociedade de consumo, pois, como afirma
Bingemer, na modernidade tardia (Séc. XIX e XX), assistimos a passagem de uma
“civilização do trabalho e progresso, para uma civilização do consumo, da
obsolescência imediata e rápida e do lazer entendido como impune fruição.”12 O
que Rubio chamará de império do mercado e que refletir-se-á na crescente
influência dos processos de comercialização nas relações humanas.
Comercialização que traz consigo um forte conflito antropológico:
Exatamente a mesma pessoa que (como produtor) era ensinada pela família, pela
escola e pelo chefe a adiar a recompensa, a ser disciplinada, controlada, comedida,
obediente, a ser um jogador de equipe, era simultaneamente ensinada (como
consumidor) a procurar recompensa imediata, a ser hedonista mais do que
calculista, a abandonar a disciplina, a procurar o prazer individualista – em suma, a
ser uma espécie de pessoa totalmente diferente. No ocidente, especialmente, toda a
potência de fogo da publicidade estava dirigida para o consumidor, incitando-o, a
ele ou ela, a tomar emprestado, a comprar impulsivamente, a ‘voe agora e pague
depois’ e, assim fazendo, a efetuar um serviço patriótico, mantendo girar as rodas
da economia.13
Tal dicotomia produtor-consumidor é somente um dos aspectos da ruptura
mais radical que divide o ser humano moderno. A unidade entre o ser humano e a
natureza, vivenciada na civilização agrícola, é rompida com a chegada da
civilização industrial. A natureza passa a ser considerada unicamente como objeto
da exploração do ser humano, capitaneado pelas possibilidades que a ciência e a
técnica criam no domínio da natureza. Estabelece-se um modelo permanente que
experimenta grande desenvolvimento, mas também acarreta a profunda
desestabilidade e desequilibro do meio ambiente em prol deste tipo de
progresso.14
Está aí presente, portanto, aspectos da visão antropológica moderna: uma
perspectiva extremamente otimista em relação ao lugar do ser humano no todo do
universo, baseada na eleição da dimensão da racionalidade como única suficiente
a construir todas as repostas aos dilemas humanos. O ser humano moderno
11 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p.26. 12 BINGEMER, Alteridade e vulnerabilidade, p.17. 13 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p.29. 14 Cf. Ibid.
21
compreende a si mesmo como “centro do universo”, referencial último para
estabelecer os critérios do certo e errado, bom e mau, positivo e negativo,
realidade e irrealidade. Baseado no extremo otimismo e confiança que tem em sua
racionalidade, crê na capacidade ilimitada de criar técnicas e meios que
possibilitem o progresso irreversível, como caminho a produzir uma sociedade
sempre melhor.
2.1.2
Corpo na Modernidade: fundamentos do corpo máquina
Joseph Famereé, refletindo sobre a questão antropológica na modernidade
afirma que a modernidade marca o fim da metafísica na existência humana. As
realidades que ordenam o mundo não são mais oriundas da revelação e da
transcendência. Uma nova perspectiva de verdade surge e brota do próprio ser
humano, de sua racionalidade e capacidade. A percepção de eternidade se desfaz.
“O homem moderno nasce sem um Criador, cresce sem uma ordenação instituída
por Deus e morre sem perspectiva da eternidade.” O desaparecimento de Deus é
consequência da superação da metafísica, compreendida como fase pré-científica,
mitológica e fantasiosa. 15
A secularização é o nome que se dá a este processo. O período moderno
opera o banimento da religião como lócus prioritário da verdade e do
ordenamento da sociedade, como se dava no período medieval. A modernidade é
compreendida como um tempo de superação do mítico, em um desenvolvimento
histórico linear ascendente, na direção do racional.16 E a religião está circunscrita
à fase mitológica da sociedade. Enquanto a religião explica o mundo com
afirmações metafísicas sustentadas pela fé, a secularização se vale do método
científico que demonstra os fatos: “contra fatos não há argumentos”. O que a
ciência não pode provar não pode ser imposto como verdade, e consequentemente
paradigma para a vida em sociedade. É objeto de fé individual e privativa.
15 Cf. FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ, A.
SCOLAS, P (org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 13-34. 16 Cf. Ibid, p.17.
22
Breton então nos indica que a busca das relações entre o corpo e a
modernidade nos obriga a compreender o caminho do individualismo na trama
social e suas consequências para as representações corporais.17 Isto porque a
noção moderna de corpo é fruto das estruturas individualistas do campo social,
que rompem com uma concepção que concebia o ser humano mesclado à
coletividade e ao cosmo. Surge um ser humano cindido da natureza, e tal cisão é
vista em sua própria compreensão de si. Concepção diferente do que ocorria em
sociedades pré-modernas e orientais, em geral. A antropologia bíblica, por
exemplo, também ignora a noção de ser humano separado do seu corpo. No
universo bíblico, o ser humano é seu corpo. Em sua relação com o mundo, tudo
que conhece, o faz pelo contato do corpo com a realidade e nunca como algo
separado do corpo, somente na mente, pela via da razão. Nesta antropologia,
segundo Breton, o ser humano é criado por Deus, do mesmo modo que todas as
demais coisas criadas e participa do mundo nesta condição, em solidariedade
ontológica com o todo criado e todas as formas de vida. Não um corpo que
contenha uma alma, nem em litígio em si ou alguma desvalorização, como propõe
a tradição platônica.18 “A encarnação é um fato do homem, e não seu artefato.”19
Esta dicotomização do ser humano é também afirmada por Gumbrecht
quando analisa o percurso operado pela modernidade
Seja como for, o mundo que o observador observava e interpretava era puramente
material. Claro que essa dicotomização entre “espiritual” e “material” está na
origem de uma estrutura epistemológica em que a filosofia ocidental se apoiaria de
agora em diante, o “paradigma sujeito/objeto”. Sua lógica binária muito básica
atribui ao corpo humano um lugar ao lado dos objetos do mundo, enquanto no
pensamento medieval se acreditava que espírito e matéria eram inseparáveis, tanto
nos seres humanos como nos demais elementos da criação divina. A expectativa e
iconografia de uma ressurreição corpórea dos mortos no dia do Juízo Final, por
exemplo, tornava visível essa sugestão da epistemologia medieval, assim como
fazia a premissa cultural que os historiadores da arte viriam a chamar de “realismo
simbólico. 20
O ser humano cindido em si mesmo enxerga o corpo como algo puramente
do domínio da natureza, puramente corpo, assim como a alma (a dimensão
17 Cf. LE BRETON, David. Antropologia del cuerpo y modernindad. Buenos Aires: Nueva Vision,
2002, p. 15. 18 Cf. Ibid. p.14. 19 Ibid. p. 24. 20 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir.
Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. p.47.
23
imaterial que habita neste corpo), princípio que autoriza a razão e a ciência, e
desempenha o domínio do corpo. Ao separar corpo e alma, o dualismo cartesiano
reforça a ideia de funcionamento corporal como uma máquina, com princípios
mecânicos próprios.21
Descartes desenvolverá uma visão de ser humano rigorosamente dualista. O corpo
é simplesmente matéria espacial, substância extensa (“res extensa”), mera extensão
mensurável matematicamente, enquanto que a alma ou espírito ou consciência é
uma substância pensante (“res congitans”). Na realidade, o corpo não passa de uma
máquina que pode funcionar independente da alma. Esta não interfere na vida
biológica do ser humano, pois sua finalidade única é precisamente pensar. Tanto o
pensamento (característica do espírito) quanto a vida biológica (a máquina do
corpo) são substancias radicalmente separadas que podem subsistir uma sem a
outra, mas que se encontram relacionadas no ser humano de maneira puramente
extrínsecas.22
As consequências desta antropologia são bem conhecidas: Na cisão do
sujeito (a consciência humana) afastada da própria corporeidade e vice-versa tem
como consequência direta o isolamento do indivíduo, porta para o individualismo.
Pois, se o sujeito entra em contato com outros sujeitos pelo corpo, uma vez
separado deste, fica isolado de todos. É a forma que toma o individualismo
moderno.23
Portanto, no desmantelamento dos valores medievais, e o encontro com a
filosofia mecanicista de Descartes, surge uma nova sensibilidade individualista
que enxerga o corpo como algo separado do mundo e também separado do
homem. Não é mais o macrocosmo que explica o corpo, mas a anatomia, a
fisiologia (que experimentam grande desenvolvimento no período moderno) que
veem no corpo humano aspectos e características estanques em si. Também a
consequência de separação do corpo próprio para o corpo dos outros, visto na
passagem de um tipo de sociedade comunitária para uma sociedade de tipo
individualista, onde o corpo demarca os limites para a relação, é uma fronteira. E,
separado de si mesmo, o corpo se torna como diferente do homem.24
21 Cf. SILVA, Ana Márcia. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa
sociedade racional. Campinas: Cadernos CEDES (Impresso), v. 19, p. 07-29, 1999. p.11.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n48/v1948a02.pdf, acesso em 18 de dezembro
de 2015. 22 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p.101. 23 Cf. Ibid. 24 LE BRETON, Antropologia del cuerpo y modernindad. p. 27.
24
Tais rupturas se configuraram na história como caminhos a uma grave
violência contra o humano e o mundo ao seu redor. Dilemas que desembocam em
um processo de tensão e crise. Conforme afirma Bingemer,
...em sua caminhada rumo à perfectibilidade nunca perfeita do progresso,
divorciou-se da natureza e da sua relação com o meio ambiente, provocando
o que hoje se sente como ameaça de catástrofe sobre todo o planeta. E o
risco iminente e tristemente real da destruição dos ecossistemas tem como
seu fundo mais profundo o fracasso de um modelo e paradigma que ignora a
natureza e pensa o ser humano como ser isolado, não enquanto parte de um
conjunto maior.25
2.2
Corporeidade na Pós-Modernidade
Uma importante mudança no estatuto do corpo ocorre. Como chamou
atenção Breton, o novo dualismo que agora se apresenta não é entre o corpo e a
alma, ou o corpo e a mente como propôs a modernidade, mas o ser humano e o
seu próprio corpo, que agora é moldado, remodelado, exigido, pelos ditames da
imagem e do status social.26 O corpo, plástico, modelável, artificializado, carrega
o peso de novo lugar do ser, pois é o corpo quem diz o que o ser humano é, dentro
desta configuração. Tais questões se dão juntamente com a efusão de
movimentações e transformações sociais porque passa a contemporaneidade.
2.2.1
Sensibilidade Pós-Moderna
Não entraremos na discussão se o que aqui é chamado de pós-modernidade
trata-se de um novo período histórico ou da crise interna da própria modernidade.
Gilles Lipovetsky nomeia como "hipermodernidade"27, Zygmunt Bauman como
"modernidade líquida"28, Michel Maffesoli, utiliza a expressão "pós-
modernidade"29. Ainda que diversas denominações sejam possíveis, só o fato de
25 BINGEMER, Alteridade e vulnerabilidade, p.19. 26 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007, p. 87 27 LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri:
Manole, 2005. 28 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:Zahar, 2001. 29 Cf. MAFFESOLI, Michel. O Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2008.
25
haver esforço de buscar uma nova nomenclatura, indica que vivemos em um
contexto histórico com uma sensibilidade distinta da moderna. 30 Há determinado
consenso de que vivemos um tempo de crises profundas em todos os aspectos da
existência humana sobre o planeta.
O que marca o início de tal momento são crises na estrutura macrossocial
que afeta a humanidade em sua grande parte, sobretudo urbana. Após duas
grandes guerras, o mundo ainda respirava seus horrores, visto no insano genocídio
de judeus pelo regime nazista, nas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de
Hiroshima e Nagasaki, na tensão sempre crescente do conflito nuclear que poderia
ser deflagrado pelas superpotências Norte-Americana e Russa, envolvidas em um
jogo de espionagem e contraespionagem conhecido como Guerra Fria. É também
tempo marcado pelo exponencial desenvolvimento e crescimento tecnológico e
das telecomunicações. O fenômeno da urbanização acelerada comprometendo a
qualidade de vida nas cidades que viram seus problemas crescerem na mesma
proporção. Abismos sociais tornam-se mais graves e intransponíveis, pobreza e
miséria, junto com o acúmulo de riqueza nas mãos de poucos, o mercado
inclemente do consumo, produzindo seus dejetos, os excluídos. Violência e
conflitos locais ganham forte repercussão. Revoluções sociais ganham corpo,
talvez a mais expressiva seja a questão da igualdade e dignidade da mulher, a
temática é trazida à lume nos principais espaços de discussão. Há também uma
crescente mudança de papéis e a configuração da família vai sofrendo tais
abalos.31
Garcia Rubio chama a atenção para a visão pessimista e diminuída do ser
humano, neste período, em contraste com triunfalismo antropocêntrico da
modernidade. A hipertrofia da razão gerou uma violência contra a pessoa, pois
atrofiou outras dimensões do ser; e ainda demonstrou a insuficiência da
racionalidade em fornecer respostas à angústia existenciais que tanto prometera.32
O “parto da pós-modernidade”, expressão usada pelo Bispo Anglicano,
Robinson Cavalcanti, surge como reação ao cientificismo e tecnicismo modernos
como meios suficientes para produzir o bem-estar geral e a realização individual.
Cai por terra o edifício moderno firmado sobre a crença na bondade natural do ser
30 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 45. 31 Cf. LOPES, G. Gaudium et Spes: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 9. 32 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 45.
26
humano, a crença na ciência como recurso ilimitado de saber, a crença em utopias
globais, com uma idade de ouro construída pelo próprio homem33. Dá lugar a uma
profunda descrença no progresso, a incerteza do futuro, a atitude de que o
conhecimento não é mais algo seguro e objetivo, mas provisório e subjetivo,
originando um movimento amplo e sem contornos definidos. “À subjetividade
racionalista, sucede uma subjetividade enredada unilateralmente no domínio
afetivo.”34É onde ancora-se a sensibilidade pós-moderna.
A descrença em relação à razão humana unida ao pessimismo face às
possibilidades do ser humano na sociedade e no cosmos levou a uma acentuada
desconfiança diante dos compromissos sociais e políticos. E, assim, muitos acham
ser pura perda de tempo e de energia esse tipo de compromisso. A motivação
existente nos anos 60, especialmente no ambiente estudantil, parece coisa de um
passado remoto. E acresce que se encontra também muito generalizada a
desconfiança em relação às instituições.35
Nas palavras de Robinson Cavalcanti, “no vazio das utopias tem crescido o
individualismo exacerbado, o cinismo, o pragmatismo, a violência, o hedonismo,
o nacionalismo, o racismo, o misticismo e o fundamentalismo religioso.”36 O
homem pós-moderno não tendo onde se agarrar, apela ao passado pré-moderno,
como meio de sustentar-se.
No Brasil, a música popular apresentou um interessante retrato de tal
desesperança na esfera político-institucional. Belchior, na década de 7037, tem os
versos de sua canção “eternizados” por Elis Regina: “Hoje sei que quem me deu a
ideia de uma nova consciência e juventude, está em casa, guardado por Deus,
contando vil metal. Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que
fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” O mundo respira
suspeita e falta de perspectivas.
Diante de tal quadro, a procura de satisfação imediata, o utilitarismo e
pragmatismo, tem na ordenação do Mercado e nos mecanismos de consumo seu
lugar prioritário de ação. A febre consumista opera outra grande ruptura, a dos que
podem ter e dos que não podem ter. Excluídos do consumo e da possibilidade de
33 Cf. CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e politica: teoria biblica e pratica histórica.
Viçosa: Ultimato, 2002. p. 176. 34 GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 46. 35 Ibid. 36 CAVALCANTI, Cristianismo e politica, p. 177 37 FERNANDES. Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle. Como nossos pais. Album
Alucinação. Polygran, 1976.
27
viver a vida que se apresenta, descartados, lixo, dejeto. O homem pós-moderno
marcado por um subjetivismo radicalmente individualista, experimenta a
indiferença, mas também grande dose de angústia, depressão, desamparo,
sentimentos a guiar o modo de vida humano neste contexto.
Apesar da forte crítica e uma visão um tanto pessimista, há claramente
toda uma perspectiva positiva que surge no interior da pós-modernidade. Hoje a
perspectiva científica começa a enxergar a realidade de maneira mais integrada e
holística. A partir da nova física o universo passa a ser visto como um todo
unificado, em partes inter-relacionadas e dotado de dinamismo. Por certo, isto
afeta diretamente a maneira como também o humano e a vida como um todo é
concebida.38
Opondo-se ao individualismo e à arrogância do antropocentrismo
moderno, surge nova perspectiva que vê o humano como sistema complexo de
relações também complexas e dinâmicas, em íntima conexão do toda a
humanidade e também com o cosmo, de maneira vital e natural. Surge também
uma grande revalorização de outros aspectos e dimensões humanas, a cooperação,
o afeto, a intuição, uma razão não divorciada das demais dimensões humanas e
nem senhora de tais, mas em cooperação. A revalorização de uma consciência
ecológica, com a mentalidade de manter a vida, e não o progresso a todo custo.39
Maffesoli verá a pós-modernidade como “essa mistura orgânica de
elementos arcaicos e de outros um pouco mais contemporâneos.” Segundo o
autor, a noção de pós-modernidade, mantém juntos elementos contraditórios e até
opostos, para esta contínua complexidade ele usa o termo organicidade.40
Convivem neste tempo,
...de um lado, a pesquisa de pequenas comunidades, o tribalismo, a preocupação
com o território, a atenção à natureza, a religiosidade, o prazer dos sentidos; e, do
outro, o desenvolvimento tecnológico e sua utilização, o policulturalismo das
grandes megalópoles, a atividade comunicacional, ou os diversos sincretismos
religiosos e ideológicos. Segundo neologismo proposto pelo físico S. Lupasco,
obedecem uma lógica “contraditorial”. Que não busca a síntese e
acomodação de tais opostos numa lógica de repouso, mas que os mantém
assim, em tensão, gerando certa “energia social”. 41
38 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 47. 39 Cf. Ibid. 40Cf. MAFFESOLI, No fundo das aparências, p.14. 41 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 15.
28
Amorese dirá: “Pois estamos diante do melhor e pior dos tempos.” Para tal
constatação basta olharmos ao redor. Tempo marcado por ambiguidades, avanços
promissores e retrocessos assustadores. Por exemplo, vive-se um tempo de
liberdade sem precedentes: de pensamento, de costumes, de modos de vestir, de
religião, lazer, etc. As amarras sociais nunca permitiram tanto espaço para a
realização pessoal, familiar, grupal, e mesmo nacional. Contudo, vivemos em um
mundo de escravos e escravizados sem precedentes. Novas formas de escravidão,
das drogas, do consumo, da aparência, etc. submetendo o homem a cativeiros
perversos e desumanizantes. Do mesmo modo, poderia ser nomeado todo o bem
estar que o desenvolvimento tecnológico produziu, por outro lado, toda violência
da exclusão dos que ficam de fora do acesso a tais bens.42
2.2.2
Corpo sob a luz dos holofotes: o ser humano na contemporaneidade
e sua relação com o corpo
O ser humano, neste século XXI, inicia uma luta da pessoa para salvar-se do corpo
mortal e frágil. O fenômeno do culto ao corpo parte de um estágio em que o corpo
é demonizado, escondido, fonte de vergonha e pecado e culmina com o corpo das
academias e sua explosão de músculos, atingindo seu grau máximo de ilustração
com a emergência e a multiplicidade das estratégias de body-building, as cirurgias
estéticas, os implantes e a profusão de técnicas médicas, químicas, cosméticas e de
vestuário.43
Breton propõe que o final dos anos 60 marca a entrada de uma crise de
legitimidade das modalidades físicas da relação do homem com os outros e com o
mundo, que amplia-se pela força do movimento feminista, a consequente
“revolução sexual”, toda preocupação estética a partir deste período, o body-art, a
crítica do esporte, a emergência de novas terapias, proclamando bem alto a
ambição de se associar somente ao corpo, etc. Um novo imaginário do corpo
invade a sociedade reivindicando um lugar de extrema importância na conjuntura
social. 44
42 AMORESE, Rubem M. Icabode: da mente de Cristo à consciência moderna. Viçosa: Ultimato,
1998. p. 21-23. 43 FONTES, Malu. Os percursos do corpo na cultura contemporânea. In: COUTO SOUZA, E.;
GOELLNER VILODRE, S. (Org.). Corpos mutantes: ensaio sobre novas (d)eficiências corporais.
2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009, p. 77. 44 LE BRETON, A sociologia do corpo, p.9.
29
Diante da crise de valores e de legitimidade, na tortuosa procura de
indefinições que homem pós-moderno encontra, o corpo está, segundo Breton,
sob a luz dos holofotes.45 Debaixo do interesse midiático, das diversas
propagandas e produções mercadológicas, o corpo é lugar de visibilidade
permanente. A subjetividade pós-moderna e o entendimento que se tem do corpo
e sua relação com o mundo se dá debaixo destas tensões. O ser humano está em
litígio e em tensão com seu próprio corpo, que precisa ser “artesanalmente”
modificado, na tentativa de agarrar-se a uma imagem idealizada, midiática e
pretensamente perfeita. Segundo Breton, uma nova forma de encarnação. “A
corporeidade é socialmente construída na medida em que o homem não é produto
do corpo, produz ele mesmo as qualidades do corpo na interação com os outros e
na imersão no campo simbólico.”46
a personificação do corpo exige o imperativo de juventude, a luta contra a
adversidade temporal, o combate para que nossa identidade conserve sem hiato
nem pane..., simultaneamente... o narcisismo, cumpre uma missão de normalização
do corpo. O interesse febril que dedicamos ao corpo não é de modo algum
espontâneo e "livre", é a resposta a imperativos sociais tais como a "linha", a
"forma", o "orgasmo", etc.47
Isto porque, para o homem deste tempo o corpo se destaca de si mesmo:
o corpo não é mais uma máquina inerte, mas um alter ego de onde emanam
sensação e sedução. Ele se transforma no lugar geométrico da reconquista de si, um
território a ser explorado na procura de sensações inéditas a serem capturadas
(terapias corporais, massagens, danças, etc.). É encontrado o parceiro
compreensivo e o cúmplice que faltava ao nosso lado. O dualismo da modernidade
não mais opõe a alma ao corpo, mais sutilmente opõe o homem ao corpo como se
fosse um desdobramento. Destacado do homem, transformado em objeto a ser
moldado, modificado, modulado conforme o gosto do dia, o corpo se equivale ao
homem, no sentido em que, se modificando as aparências, o próprio homem é
modificado.48
Neste jogo o corpo se torna um valor incontestável. Um símbolo de
aquisição e força. Por isso, valem a pena todo desgaste, correrias e todos os
“preços” possíveis de se pagar na obtenção deste valor. Contudo, a negação do
45 LE BRETON, A sociologia do corpo, p.10. 46 Cf. Ibid. p. 19. 47 Ibid., p. 85. 48 Ibid. p. 87.
30
corpo, a ocultação do corpo está presente. Presente no medo do envelhecimento e
da morte, no destino dado aos velhos, aos despossuídos, aos deficientes.49
Os modelos de beleza e o culto à perfeição representam também uma
determinada violência contra o ser. Isto porque a que custo alguém se submete a
um processo de completa transformação corporal e estética, somente, para atender
aos padrões midiáticos, aos ditames sociais e não sucumbir diante da
discriminação acintosa contra os que não se incluem nesta perspectiva? “A cultura
da perfeição dissolve as marcas do tempo e proclama a vitória da técnica e da
padronização sobre o eu.”50 Excluídos são os que encontram-se fora destes
padrões.
Se ao longo deste percurso histórico desde a modernidade, o corpo tornou-
se o lugar da diferenciação, da individualização, da exclusão, do afastamento, da
distinção propagandeada, entre um ser humano e outro. Existe um anelo, que faz
parte do imaginário social de que o corpo se torne espaço, agora, da inclusão, não
mais da separação, será a interface que possibilitará a conexão, a aproximação, o
caminho pelo qual a humanidade se unirá. 51Proposta esta que será retomada no
segundo e terceiro capítulos deste trabalho.
2.2.3
Corpo-mercadoria: as relações na sociedade de consumo
A sociedade de consumo, deixa claro os limites e as ambiguidades da libertação do
corpo. Sua redescoberta, escreve, após uma era milenar de puritanismo, sob o signo
da libertação física e sexual, sua inteira presença... na publicidade, na moda, na
cultura de massa, ou no culto da higiene, da dietética, da terapêutica no qual ele é
envolvido, a obsessão de juventude, de elegância, de virilidade/feminilidade, os
cuidados, os regimes, as práticas de sacrifício a ele ligadas, o mito do prazer que o
envolve - tudo testemunha hoje que o corpo tornou-se objeto de reverência.52
Segundo Bauman, na dinâmica do mercado de consumo está a relação
consumidor-mercadoria, que nem sempre é tão fácil de se identificar, pois faz
parte do jogo estas relações mudarem e se misturarem entre si. Em geral, na
relação do mercado existem determinadas regras: mercadorias são para serem
consumidas pelos consumidores; a busca de tais mercadorias está ligada a 49Cf. LE BRETON, A sociologia do corpo, p. 87. 50 Cf BERGER, Corpo e identidade feminina, p. 154. 51 Cf. LE BRETON, A sociologia do corpo, p. 11. 52 Ibid. p. 84.
31
promessa de satisfação do desejo do consumidor; e o preço que se está disposto a
pagar, está inteiramente relacionado à credibilidade e intensidade destes desejos.53
A dinâmica que se estabelece na relação do consumidor com o objeto
potencial do seu consumo, o trato de interesses, a busca, a posse, o descarte, a
nova procura, tais encontros e dinâmicas vão se colocando como uma espécie de
paradigma das relações humanas. À semelhança das relações entre consumidores
e objetos de consumo, tal lógica se insere no trato que a própria humanidade,
sobretudo ocidental e urbana, desenvolve em si mesma. 54 Segundo Bauman, esse
efeito foi alcançado mediante a apropriação, pelos mercados de consumo, do
espaço que se estende entre os indivíduos, em que se estabelecem as ligações que
conectam os seres humanos e se erguem as cercas que os separam.55
Em sua análise, Bauman compreende que uma das principais marcas da
sociedade pós-moderna, que tem como características a sociedade de
consumidores, é a redução do sujeito em mercadoria. Pois tornar-se mercadoria é
o que conecta o consumidor ao paradigma do mercado, onde ele não é mais
sujeito de si, mas torna-se também objeto.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar
mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar,
ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de
uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo
que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem
fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A
característica mais proeminente da sociedade de consumidores - ainda que
cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em
mercadorias.56
Bauman faz tal afirmação mostrando como se comporta o mundo da mídia,
por exemplo, em que alguém deseja ser famoso. Ser famoso por que? No
imaginário social, para sair da invisibilidade e ser notado, ser admirado, seguido,
copiado, desejado, de certa forma, consumido. E este que o enxerga como objeto
do seu consumo, espera alcançar o mesmo nível de satisfação que aquele parece
experimentar. Por isso, “na era da informação, a invisibilidade é equivalente à
53 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 18. 54 Cf. Ibid., p. 19 55 Cf. Ibid. 56 Ibid. p. 20.
32
morte.”57 E o que se posiciona como produto a ser consumido, utilizará de todos
os meios possíveis para continuar sendo “vendável”, esteticamente perfeito, ícone
de desejo e satisfação.
Bauman situa tal dinâmica social em uma fase líquido-moderna. Segundo
ele, a modernidade viveu uma fase sólido-moderna, caracterizada por uma
sociedade de produtores, mais voltada para a segurança, um ambiente confiável,
ordenada, duradoura, disciplinada. Onde se buscava a segurança e estabilidade
proporcionada pela posse dos bens. Visava-se o futuro, uma promessa de
segurança a longo prazo, não no desfrute de prazeres imediatos.
Apenas bens de fato duráveis, resistentes e imunes ao tempo poderiam oferecer a
segurança desejada. Só esses bens tinham a propensão, ou ao menos a chance, de
crescer em volume, e não diminuir e só eles prometiam basear as expectativas de
um futuro seguro em alicerces mais duráveis e confiáveis, apresentando seus donos
como dignos de confiança e crédito.58
Contudo a segunda fase da modernidade, a fase liquido-moderna, é
caracterizada por uma sociedade de instabilidade dos desejos - o instantâneo, o
efêmero ditam as regras. É o que Maffesoli chamará de presenteísmo59, esta noção
de que tudo precisa ser vivido no instante presente, que se torna o único instante,
o instante eterno, o único, de fato, que importa. Aqui o tempo é pontilhista, já que
não há um percurso, uma trilha, planejamento, processo, mas uma sucessão de
momento, pontos, que precisam ser sorvidos com a máxima urgência pois tudo é
efêmero demais. Nada a longo prazo, o momento é já. Um tempo marcado por
rupturas.
Lipovetsky cunha o termo hipermodernidade para referir-se a este momento
histórico. Em sua compreensão, a hipermodernidade não é a superação do que se
viu no período moderno, mas a sua superlativação, a exacerbação dos valores
criados na modernidade.60 Passa do “pós” ao “hiper” porque o “pós” já não
consegue expressar a configuração do mundo, parecendo mais tendente a olhar
para o passado e falar da modernidade como se já estivesse superada. Não uma
destruição do passado, e por isso, marcada por certa negatividade, mas a
57 BAUMAN, Vida para o consumo, p. 21. 58 Ibid., p. 43. 59 Cf. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 179. 60 Cf. LIPOVETSKY, Gilles; SEBASTIEN, Charles. Os tempos hipermodernos. São Paulo:
Editora Barcolla, 2004, p. 22-26.
33
integração com as lógicas do mercado, do consumo e do individualismo tão
nitidamente marcantes. 61
Portanto o mundo hipermoderno organiza-se, na compreensão de
Lipovetsky, em quatro polos estruturantes que desenham a fisionomia do tempo
atual. Em suas palavras:
...o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a hipertecnização,
grau superlativo da universalidade técnica moderna, o hiperindividualismo,
concretizando a espiral do átomo individual daí em diante desprendido das
coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma hipertrofiada e exponencial
do hedonismo mercantil.”62
Na interação destas forças, nas lógicas internas que as compõem, surge uma
cultura globalizada, sem fronteiras territoriais demarcadas e de extenso alcance,
que chamará de “sociedade universal de consumidores”.
É consenso entre Mafesolli, Bauman e Lipovetky que a sociedade de
consumo é a mola propulsora de um novo modelo de relação e significação do
humano, como temos salientado no texto. As características marcantes no modo
de vida da sociedade, sobretudo ocidental, capitalizada, são geradas por sua força.
Na compreensão de Lipovetsky, não estamos diante somente de um mundo
racional-material, mas de uma cultura, com seus símbolos, significações,
imaginário social, que advoga ser planetário.63
A sociedade de consumidores se torna uma sociedade que é levada, pelos
mecanismos do mercado a constante insaciabilidade, a satisfação dos desejos é o
anelo mais presente. Consumo, descarte, substituição é o tripé que faz girar o
mercado de consumo.
Em “Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo”,
Lipovetsky analisa a busca desenfreada pela felicidade, através do consumo
hedonista e a promessa de satisfação imediata dos desejos. Uma passagem da
obtenção de recompensas futuras para a vida no presente e suas satisfações
imediatas.64 Um convite “a apreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade
61 Cf. LIPOVETSKY, Os tempos hipermodernos, p. 52. 62 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade
desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 32. 63 Cf. Ibid. 64 Cf. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.36.
34
aqui e agora, a viver para si mesmo”65 É paradoxal porque não se perpetua, é
efêmera, termina no próprio ato de consumir. Se transforma, logo, em
infelicidade, frustração e decepção, sensações que coabitam com o sujeito
contemporâneo.
Numa sociedade consumo, precisamos consumir para sentir. Precisamos de
coisas novas para sentir. Precisamos ter coisas para ter alegria, para experimentar
felicidade, que se desvanece logo que o novo, uma vez adquirido, torna-se quase
que instantaneamente. Parte-se na direção de um “novo” novo. A promessa de
felicidade acaba por mobilizar o frenético estado de busca que caracteriza esta
sociedade.
O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor
supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é
uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história
humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui agora e a cada agora sucessivo.
Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua. Também é a única sociedade que
evita justificar e/ou legitimar qualquer espécie de infelicidade (...), também na
sociedade de consumidores a infelicidade é crime passível de punição, ou no
mínimo um desvio pecaminoso que desqualifica seu portador como membro
autêntico da sociedade.66
Daí, a rápida compreensão que para tornar-se atraente nesta sociedade, os
indivíduos precisam se mostrar vendáveis, apetitosos, vistosos, desejados. Ora, o
corpo como lugar de mediação social precisa se qualificar como bem de consumo,
mercadoria a ser consumida.
2.2.4
O Império das aparências
A forma, a estética, exerce uma força poderosa sobre aquilo que o homem é.
Segundo, Maffesoli, “o homem é produto da estética, ele é participante de um
‘genius’ coletivo que o ultrapassa de longe. É tomado pelas formas, com um
banho matricial que o modela e faz dele o que ele é.”67 A grande questão é que,
neste momento, o apelo estético, sua força modeladora e definidora dos contornos
da vida, se mostra mais presente.
65 LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 102. 66 BAUMAN, Vida para o consumo, p. 61. 67 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 150
35
Utilizando a compreensão teológica do sacramento, Maffesoli, faz uma
analogia: o sacramento (forma) torna visível a força invisível do estar-junto
fundamental. Do mesmo modo, em sua compreensão, a forma (objeto, imagem,
corpo) exprime em si os valores sociais e as forças agregadoras da relação que se
faz. 68A forma é uma força que comunica relação e valores, tem necessidade de
exprimir-se no espaço.
Compreende então que o estético, o externo, não é desprezível em relação
ao valor interno. As roupas são veículos de comunicação, o corpo é veículo de
comunicação. A aparência, como uma estrutura antropológica, “é causa e efeito de
uma intensificação da atividade comunicacional.”
Essa preocupação com a aparência – e talvez seja preciso entender o termo
“preocupação” na sua acepção mais forte – manifesta na publicidade, no enfeite, na
embalagem (que atinge seu paradoxismo na sociedade japonesa, por exemplo),
mais que, uma simples superficialidade sem consequências, inscreve-se num vasto
jogo simbólico, exprime um modo de tocar-se, de estar em relação com o outro, em
suma de fazer sociedade.69
O externo, o cosmético, o embelezamento, aquilo que é visto, não é
acessório no corpo, mas constrói identidade e pertencimento. E nesta concepção, o
corpo individual está intimamente ligado ao corpo social do qual faz parte. Dele
adquire pertença, legitimidade e proteção, em uma relação dialógica constante.
Para Maffesoli, “o corpo que se pavoneia lembra esse enraizamento, e é nesse
sentido que é fator de sociabilidade.”70 A aparência, não pode ser desconsiderada
como de grande valor e importância na trama social pois é um elemento intrínseco
de contribuição ao corpo social.
Tem-se aí uma ética da estética, pois todo o cuidado com o corpo, que está
também na origem do comércio, do artesanato, da indústria, não opera somente
um apelo estético e visual, mas comunica relação, acentua ligação, pertencimento,
envolvimento, agregação.71
A questão do vestuário, da moda, é significativa porque faz desaparecer o
individuo e aparecer o indivíduo coletivo. A moda dita as regras e pasteuriza os
corpos no conjunto social.
68 Cf. MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 151. 69 Ibid. p. 161. 70 Cf. Ibid. p. 168. 71 Cf. Ibid., p. 169.
36
É neste conjunto de aspectos que compreende os movimentos agregadores
das tribos urbanas, dos grupos que se aproximam por conta de uma linguagem,
uma roupagem, uma estética que os aproxima e fornece identidade. São “...esses
círculos mais estreitos, como quer que sejam chamados, grupos, tribos, bandos,
máfia, não são eles justamente essas reuniões proxêmicas, afetuais, que através de
um vesturário comum lembram que formam conjuntos onde tudo (todos) junto
cria (criam) corpo?”72
Há no interior destes grupos e destas articulações sociais, e da sociedade como um
todo, um corporeísmo (indumentárias tribais, moda, imagens do corpo, piercing,
tatuagens, etc.) que produz uma comunicação existencial que fundamenta a ligação
do individuo com a natureza, com a vida, onde a maneira de se vestir, a linguagem,
os costumes sexuais, se coloque debaixo de força coercitiva e modeladora.
Não resta dúvida que o aspecto “pasteurizado” das configurações em
questão tem um forte coeficiente de aderência, ao mesmo tempo extrínseca
(atraem) e intrínseca (predem, criam risco). É, com certeza, uma das
especificidades de nosso tempo.73
Contudo, na compreensão de Lipovetsky, ainda que as roupagens forneçam
algum tipo de pertença, de relação proximal, nosso tempo foi invadido por outra
preocupação que deposita no corpo do indivíduo sua maior expectativa. Estando
tudo mais - a roupa, a moda - a serviço desta nova busca estética.
A moda, falo da vestimenta, para ser preciso, é muito menos importante hoje do
que antigamente. Por meio das roupas não é possível saber se uma pessoa é pobre
ou rica. O corpo sim é mais importante, leve em conta a cirurgia plástica e
academias. Antes, a moda possibilitava para as pessoas expressarem sua classe
social. Hoje, por outro lado, é mais importante parecer mais jovem do que mais
rico. Para muitas mulheres é mais importante fazer regime do que comprar um
vestido. A moda não tem mais a centralidade social de outrora.74
72 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 171. 73 Cf. Ibid., p. 180. 74 Entrevista concedida por Gilles Lipovetsky a Revista Filosofia. Ed. 49, julho 2010, p. 8-13,
Disponível em: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/49/artigo179777-3.asp,
acesso em 01/04/2016
37
2.3
Corporeidade na teologia cristã
Para melhor compreender a noção moderna e pós-moderna de corporeidade,
vemos a necessidade de identificar como a questão se deu no ambiente cristão pré-
moderno. Percurso necessário, pelo lugar que o cristianismo ocupou na construção
da mentalidade moderna ocidental. Para tal, faz necessário uma breve exposição
do pensamento antropológico cristão do período da patrística. Após, olharemos a
relação corpo-alma no pensamento reformado, em figuras de destaque como,
Lutero e Calvino, e o alcance destas questões no protestantismo no Brasil.
2.3.1
A importância da Patrística na formação do pensamento cristão e a
questão antropológica corpo-alma
A Patrística75 foi um período de importância fundamental a fé e ao
dinamismo missionário da jovem igreja cristã. No choque com a racionalidade
filosófica grega, a igreja opta pela abertura-diálogo, por julgar necessária tal
confrontação. Abertura que se tornou indispensável a um trabalho evangelizador
frutífero. Tal discernimento evitou o ostracismo da jovem igreja, mas também a
expôs à cultura e à utilização do instrumental conceitual grego como mediação
para a comunicação efetiva da mensagem cristã no contexto.76
A questão da evangelização não será abordada neste texto, mas cabe
ressaltar que a igreja cristã vivia um momento de grande tensão diante da
mudança de cenário do ambiente palestinense para o encontro com a racionalidade
filosófica grega. Uma importante mudança de paradigma missiológico77, como
bem descreveu Bosch.78
75 Entende-se por Patrística o período da história do pensamento cristão que vai do fim da era
neotestamentária até o aparecimento da escolástica, ou seja, do século II ao VII de nossa era.
ROSA, Merval. Antropologia filosófica: Uma perspectiva cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 2001,
247. 76 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. O ser humano à luz da fé cristã e a racionalidade moderna.
Belo Horizonte -MG, Perspectiva Teológica, v. XXII, n.56, 1990, p. 34. 77 David Bosch analisa em sua obra, “Missão Transformadora”, como a missão da igreja cristã se
deu desde o cristianismo primitivo até a igreja contemporânea no século XXI. Se utiliza das
38
Pois bem, como afirma Garcia Rubio, este trabalho necessitou de “muita
coragem e muito discernimento”. Coragem para não retroceder e permanecer
fechada no contexto cultural e religioso do judaísmo palestinense, muito mais
cômodo à mensagem cristã, já que está foi gerada em seu interior. E
discernimento para, no encontro com a racionalidade filosófica, a mensagem
cristã não fosse mutilada, sacrificada, perdida. Contudo, em não omitir-se de tal
encontro, acabou por dar a mensagem cristã voz e força necessária para uma
articulação duradoura na sociedade, além de fortalecê-la internamente aos
embates que surgiriam ao longo da caminhada histórica.79
Ratzinger propõe que igreja ao optar pela abertura e diálogo ao “logos”
filosófico grego, acabou por desenvolver um caminhar de maior protagonismo.
Ao contrário das religiões pagãs que virando às costas à realidade filosófica,
acabaram sendo deixadas de lado no caminhar histórico. Ruptura que mostrou-se
fatal para o paganismo, o diálogo critico mostrou-se fecundo para o
cristianismo.80
Por isso a patrística é vista com um período de grande positividade à fé
cristã e à igreja. No esforço de falar a este novo contexto e de alçar a fé cristã no
elevado nível que advogavam ter, os santos padres não se escusaram deste
profícuo embate, inda que tal atitude não foi uniforme na igreja, tendo por um
subdivisões histórico-teológicas sugeridas por Hans Küng, que propõe a história do cristianismo
subdivida em seis grandes “paradigmas”: o paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo; o
paradigma helenístico do período da patrística, o paradigma católico romano medieval; o
paradigma protestante (da Reforma); o paradigma moderno do iluminismo; o paradigma
ecumênico emergente. Cada um destes períodos revelando uma compreensão peculiar da fé cristã,
de sua missão em seu envolvimento com as características socioculturais e religiosas das distintas
épocas. Procura mostrar como em cada uma destas eras, os cristãos tentaram, dentro dos seus
próprios contextos, debaterem a questão da fé e o significado da missão. A relação dialógica entre
a fé e a cultura não pode nunca ser desconsiderada já que o ser humano é ser histórico. E as
mudanças que surgem criam significações contundentes para o desafio da fé ao longo da
caminhada histórica. “As diferenças entre as seis subdivisões da história do cristianismo
enumeradas por Küng têm a ver, em grande parte, com as diferenças no quadro geral de referência
entre uma era e outra e somente em um grau menor com as diferenças pessoais, confessionais e
sociais per se. O ‘mundo’ do cristianismo helenístico do século II, e seguintes era qualitativamente
diverso do ‘mundo’ do cristianismo primitivo, que ainda se encontrava bastante impregnado do
etos do Antigo Testamento hebraico. E há disparidade comparáveis entre as outras épocas
mencionadas acima.” Talhou estas subdivisões de acordo com a teoria de Thomas Kuhn a respeito
das ‘mudanças de paradigma’. Cada uma destas épocas reflete um ‘paradigma’ teológico
profundamente distinto de qualquer um dos seus predecessores. Cf. BOSCH, David J. Missão
transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002,
p.227-229. 78 Cf. Ibid., p. 238-264. 79 . GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 34 80 Cf. RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo: preleções sobre o símbolo apostólico,
com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2005, pp. 103-112.
39
lado uma rejeição total ou uma aceitação acrítica, como chama atenção Garcia
Rubio:
Houve Padres que acentuavam prevalentemente a necessidade de criticar os erros
da racionalidade grega, recomendando muita cautela na utilização do instrumental
filosófico. Houve os que ressaltaram sobretudo os pontos de coincidência entre a
mensagem cristã e filosofia grega. Como não faltaram aqueles que
intrumentalizaram a fé em nome de exigências da racionalidade filosófica.
Certamente foi muito intensa a tentação de procurar ´explicar´ a partir da filosofia
os enunciados pré-filosóficos da Sagrada Escritura, de tal maneira que estes fossem
interpretados à luz e em função da racionalidade filosófica. A defesa do
monarquismo e do subordinacionismo nos campos trinitário e cristológico
constituiu exemplo elucidativo desta tendência.81
A questão antropológica na patrística teve um lugar de grande importância.
Na compreensão da relação corpo-alma no entendimento do ser humano, a maior
dificuldade que a igreja terá de lidar é que, em geral, os pensadores do período
usam como princípio hermenêutico a filosofia grega do helenismo e não o modelo
hebraico em sua interpretação. A simples comparação entre as duas concepções
apresenta dificuldades na interpretação antropoógica que percorrem toda a história
do pensamento cristão.
A metafísica grega é basicamente dialística, contrastando espírito e matéria; a
hebraica é teísta, contrastando Deus, o Criador, com o homem, ser criado, e
derivando a alma e o corpo de uma única fonte. O dualismo está presente no
pensamento grego desde Anaxágoras até Platão e Aristóteles, e culmina no
neoplatonismo que transforma matéria e forma em Deus e o mundo, o infinito e o
finito, o bem e o mal. No Antigo Testamento não há sinal desse dualismo ético,
psicológico e metafísico. O homem é criação de Deus e não se faz distinção entre
corpo e alma como se fossem realidades diferentes. No Novo Testamento, o
contraste feito entre a vida interior e a vida exterior não tem significação
metafísica, nem a antítese entre alma e corpo oferece a chave para os problemas
morais, como se quisesse ensinar que a matéria é intrinsecamente má. O corpo é
parte integrante do conceito bíblico do homem. A vida futura, portanto, requer a
ressurreição do corpo para a reconstituição da unidade da existência. Ao contrário
disso, a concepção grega da vida futura não é a ressurreição do corpo, mas a
imortalidade da alma,.. 82
Ainda que tenha havido, por parte da igreja, o cuidado de não sucumbir a
sempre perigosa e insidiosa afirmação de que a matéria e o corpo são maus, não
ficou livre da forte influência do dualismo filosófico grego. “A alma, que toda a
81 GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p.35. 82 ROSA, Antropologia filosófica, p. 248.
40
sua vida esteve encarcerada no corpo, anseia por libertar-se desta prisão, não por
transformar esta prisão numa pátria onde lhe seja mais agradável morar” 83
Moltmann mostra que à medida que o cristianismo foi se desprendendo de
suas raízes hebraicas e assumindo a forma helenista romana, também sofreu a
influência da religião gnóstica da Antiguidade Tardia, corrente em profundo
litígio com este mundo. Na veneração por parte da maioria dos Padres da Igreja, a
começar por Justino, em relação à figura de Platão, compreendido como, “O
cristão antes de Cristo” e a exaltar seus valores para a transcendência e os valores
espirituais, acontece uma lenta substituição de percepções caras ao pensamento
cristão. 84
Este lento, mas vigoroso processo de penetração da visão dualista, e também
gnóstica, sobre a fé cristã vai operando determinadas mudanças na compreensão
das Escrituras com sério impacto na reflexão teológica, na compreensão da vida
cristã e demais aspectos da realidade. Segundo Moltmann, a visão sobre o futuro
de Deus vai sendo substituída pela Eternidade de Deus; a compreensão sobre o
Reino vindouro vai sendo substituída pelo Céu; o Espírito como fonte de vida,
pelo Espírito que liberta a alma do corpo; a ressurreição da carne, pela
imortalidade; a transformação deste mundo, pelo anseio de abandono e a busca de
outro mundo.85
Está presente a forte valorização das realidades do espírito, da alma, do Céu,
em detrimento de realidades terrenas, materiais, carnais, que precisam ser
superadas. Do mesmo modo, a compreensão tão cara à fé cristã da redenção do
corpo e ressurreição da carne, vai sendo transformada em anelo de libertação da
carne, vista agora como prisão e obstáculo a que a alma humana seja plenamente
satisfeita.
Na medida em que a redenção foi sendo espiritualizada, “a esfera da carne” foi
sendo por sua vez reduzida ao corpo e aos instintos e necessidades do corpo. Já não
era mais esperada a “redenção do corpo” (Rm 8, 23) na “ressurreição da carne”,
mas sim que a alma se libertasse enfim da prisão do corpo, de sua “trabalhosa”
alimentação, de seu “incômodo” sistema de reprodução e de sua “miserável” morte
(Marcião).86
83 Cf. MOLTMANN, Jurgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes,
2010, p. 93. 84 Cf. Ibid. 85 Cf. Ibid. 86 MOLTMANN, O espírito da vida, p .93.
41
Segundo Moltmann, ao longo da caminhada cristã, estas dificuldades vão
desencadear uma determinada espiritualidade, hostil ao corpo, não sensível,
distanciada do mundo, da política87, não integradora e integrada com a vida em
suas mais diversas nuances. Tal mentalidade religiosa vai pavimentar toda
compreensão antropológica ocidental, ao longo da Idade Média, da Modernidade
e mesmo no contexto contemporâneo, aflige a relação da igreja com o mundo.
Por isso, Garcia Rubio encara a infiltração gnóstica na religiosidade cristã
como uma dura luta enfrentada pelos Pais da igreja e também, toda a igreja em
sua caminhada histórica ocidental, católica ou protestante. Este embate gerou um
dualismo moderado, pois ainda que tenha havido o esforço em não sucumbir ao
verdadeiro aniquilamento do corpóreo promovido pelo pensamento dualista
neoplatônico, passa por uma fase aguda de desvalorização do corpo e das
realidades relacionadas a estes, provocando cisão e rupturas nefastas à vivência da
missão e da espiritualidade cristã.88O que chamamos aqui de negatividade
antropológica.
2.3.2
Ser humano em Agostinho: negatividade antropológica
É dentro deste cenário que se pode olhar, mesmo que brevemente, uma das
figuras mais importantes da história da teologia e central no período da patrística.
Aurélio Agostinho (345-430 d.C), Bispo de Hipona, figura de primeira grandeza
na igreja, é compreendido como o maior teólogo do período da Patrística. Nas
palavras do Papa Bento XVI,
...maior padre da igreja latina, (...) homem de paixão e fé, e de elevadíssima
inteligência e de incansável entrega pastoral. Este grande santo e doutor da Igreja é
conhecido, ao menos de nome, inclusive por quem ignora o cristianismo ou não
tem familiaridade com ele, por ter deixado uma marca profunda na vida cultural do
ocidente e de todo mundo. Por sua singular relevância, Santo Agostinho teve uma
influência enorme e poderia afirmar-se , por uma parte, que todos os caminhos da
literatura cristã latina levam a Hipona.89
87 Cf. MOLTMANN, O espírito da vida, p .93. 88 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade , p.102. 89 RATZINGER, Joseph. Apresentação dos santos padres apostólicos. Disponível em
https://mercaba.wordpress.com/apresentacao-dos-padres-apostolicos/#40, acesso em 30/03/2016.
42
Para os historiadores da época, a presença de Agostinho divide o período em
uma era pré e pós-agostiniana. É o padre da Igreja que deixou maior número de
obras. Na patrística pré-agostiniana, destacam-se Justino, o Mártir, Irineu,
Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Gregório de Nissa e
João Damasceno, dentre outros. Na patrística pós-agostiniana, que adentra em sua
fase de decadência, existem poucos nomes de relevância, dentre os quais Severino
Boécio, famoso por sua obra sobre a consolação da filosofia, e Bento Núrcio,
Fundador do monasticismo ocidental.90
Na patrística ocidental, diferente da oriental, a aceitação do dualismo
antropológico foi mais acentuada. Em Agostinho o problema da relação corpo-
alma acaba bem marcado. Agostinho posiciona-se firmemente na luta contra o
maniqueísmo91, que é uma variante da gnose que advoga um dualismo radical
diante de todas as realidades. Contudo, sua doutrina sobre o pecado original e sua
fundamentação sobre a imortalidade da alma levarão o doutor de Hipona a
aceitação de postulados do dualismo neoplatônico, embora matizados sempre com
aspectos fundamentais da visão cristã do ser humano. 92
A questão do pecado original está diretamente ligada à da origem da alma,
em Agostinho. Deus criou todas as almas? Não. Somente a primeira, a de Adão.
Todos os outros seres humanos que nascerão serão uma derivação deste primeiro
ser. Se Deus cria todas as almas dos seres humanos, como explicar a transmissão
do pecado original? Para Agostinho seria o mesmo que admitir que é Deus quem
o transmite a cada alma. Segundo Garcia Rubio, Agostinho não encontra resposta
satisfatória para este problema.93
Garcia Rubio ainda afirma que a antropologia neoplatônica servirá também
para fundamentar a questão da imortalidade da alma. Na compreensão platônica, o
ser humano é sua alma. O corpo, este invólucro, é instrumento usado pela alma na
vida terrena, e que será abandonado ao seu tempo, pois possui caráter provisório e
90 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p. 247. 91 Dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império
Romano (séculos III d.C. e IV d.C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência
de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a
matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar
à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas, especialmente evitando a procriação e os
alimentos de origem animal. (MIMOUNI, Simon Claude, Les chrétiens d'origine juive dans
l'antiquité. Paris: Albin michel, p. 228.) Disponível em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Manique%C3%ADsmo, acesso em 02/04/2016. 92 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade , p.334. 93 Cf. Ibid.
43
caduco. Em consequência disto, há forte conexão entre pecado e corpo. O corpo,
por ter sido criado por Deus não pode ser mau. Mas o pecado operou a profunda
desarmonia entre corpo e a alma. O corpo tende para o mal e para as paixões,
servindo de tentação para a alma. Outra questão é a primazia dada à alma que faz
com que o tempo e a história objetiva sejam profundamente desvalorizados. O que
situa Agostinho em uma perspectiva bastante subjetiva, daí é compreensível que,
para ele, as realidades humanas concretas e objetivas sejam vistas de maneira
bastante secundária.94
“Os sentidos são mensageiros que informam a alma o que sucede no corpo,
mas é a alma que modela e ela mesma e nela mesma, as sensações e as
imagens.”(...), admitir que a sensação seja um ato da alma, é aderir implicitamente
à definição de Platão dada no Alcebíades, emprestada de Platão por Plotino e
deste por Agostinho. “O homem é uma alma que se serve de um corpo. 95
Afirmando a tendência já citada da patrística ocidental, Moltmann dirá que
as bases teológicas e antropológicas da espiritualidade ocidental são derivadas de
Agostinho. Sua teologia, concentrando-se em “Deus e a alma”, levou a uma
desvalorização do corpo e da natureza, a um privilegiamento da autoexperiência
interior e direta da experiência de Deus, negligenciando as experiências sensíveis
da sociedade e da natureza. “Conhecer-se a si próprio é mais seguro do que
conhecer o mundo.”96
Este dualismo moderado, com sua negatividade antropológica será
fortemente sentido em toda construção do pensamento teológico no ocidente,
tendo influência direta e fundamental na teologia das igrejas oriundas do
protestantismo, mesmo no ambiente contemporâneo brasileiro. Isto por conta da
importância que o movimento da Reforma Protestante teve para a germinação de
tais comunidades.
94 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 335. 95 Cf., GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 228. 96 MOLTMANN, O espírito da vida, p. 94.
44
2.3.3
Antropologia Tomista e a superação do dualismo
Ressaltada a importância de Santo Agostinho, é necessário ressaltar que a
Igreja não abraçou acriticamente todo instrumental grego filosófico platônico e
neoplatônico. No percurso da fé, Garcia Rubio destaca que foi São Tomás de
Aquino quem melhor soube articular as dimensões humanas, dentro de uma visão
unitária do ser humano e com isto, deu satisfatória resposta ao problema do
dualismo.97
É a compreensão de Enrique Dussel, filósofo argentino, que afirma que
desde Tertuliano somente um autor, Tomás de Aquino, procurou articular a
realidade da unidade básica do ser humano, enxergando a completa necessidade
de complementariedade entre as dimensões humanas, corpo e alma, e a absoluta
impossibilidade de existência do ser humano, real e concreto, no de divórcio entre
tais dimensões.98
Para Dussel, Tomás de Aquino, utilizando-se do instrumental filosófico
aristotélico, no séc. XII, desenvolveu uma visão original do ser humano ao
introduzir importantes correções no pensamento de Aristóteles, que era lido de
maneira dualista nos comentários de Avicena e pelos árabes e judeus.99 O
hilemorfismo aristotélico100, que prevalecia no Ocidente afirmava: “se tanto a
alma quanto o corpo têm forma e matéria, haverá no homem duas formas
substanciais (uma da alma e outra do corpo)”101. Este pluralismo de formas
reforça o dualismo. Segundo Aquino, não pode haver no ser humano duas formas,
antes é a alma a única forma do corpo. Propõe com isto que a união do corpo e
alma, no ser humano não é união acidental de duas substâncias, como se dá no
dualismo. Garcia Rubio conclui: “não existe, pois, união acidental entre alma e
corpo, tal como aparece em todas as correntes dualistas. Propriamente falando,
97 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. .335-337. 98 Cf. DUSSEL, Enrique D. El dualismo en la antropologia de la cristianidad. Buenos Aires:
Editoral Guadalupe, 1974, p. 234. 99 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 335. 100 O renascimento dos estudos aristotélicos no fim do século XII, produziu no século XIII a
aparição do Hilemorfismo. A doutrina da forma e matéria aplicada ao homem dual tende a reforçar
o dualismo. Tal é o caso de Boaventura: a alma tem forma e matéria; o corpo tem forma e matéria.
Há o dualismo e há, ao mesmo tempo, mais de uma forma. Se dá aí um pluralismo de formas. Cf.
DUSSEL, El dualismo en la antropologia, p. 255. 101 Ibid.
45
não existem duas partes no homem, pois alma e corpo não podem ser
consideradas duas substâncias completas. ” 102
São Tomás de Aquino a partir da noção de ser humano como única pessoa,
compreenderá a alma como única forma da “matéria-prima”. Nem a matéria, nem
a forma, separadas, são “entes”, mas a união entre forma e matéria, isto é, a
substância, é “ente”. Por isto, o corpo não deve ser confundido com “matéria-
prima”, vai além. O corpo é a “totalidade da substancia humana enquanto extensa,
sensivelmente percebida”, união da alma e matéria como estrutura constitutiva.
Por isto também, o cadáver é diferente do corpo, essencial e qualitativamente. Se
para Aristóteles a alma morria com a morte do ser humano, para Aquino a alma
subiste além da morte, pois está é uma “forma substancial subsistente”, mas
sempre necessitada de sua complementação com o corpo, aguardando a união
final com ele na ressureição. A alma sem o corpo não se encontra em estado de
perfeição maior do que quando unida ao corpo. 103
Na análise de Garcia Rubio, ao conseguir elaborar uma visão unitária do ser
humano, Tomas de Aquino dá importante passo na superação do dualismo, pois
não recua a posições pré-filosóficas, mas utiliza todo rigor instrumental filosófico
do pensamento grego sem sacrificar, como o fora antes por outros autores, a
unidade do homem, em nome de postulados filosóficos.104
Na compreensão do professor Garcia não houve uma superação definitiva
do dualismo por Aquino. No que se refere à intencionalidade dos seus estudos,
pode-se dizer que houve grande avanço e uma possível superação. Contudo
subsistem dificuldades de interpretação da sua antropologia. E hoje, também se
questiona o instrumental que Tomas de Aquino utilizou para fundamentar a visão
unitária do ser humano. Por outro lado, o influxo do dualismo agostiniano
continua muito forte, mesmo nos tempos posteriores a Santo Tomás, fazendo com
que fossem desvirtuadas, em parte, as teses unitárias deste. A antropologia
dualista ainda persistirá em Ockham e, de maneira mais radical, em Descartes,
Kant e no idealismo Alemão.105
A fundamentação da fé bíblico cristã no Deus criador que ao mesmo tempo
é Deus salvador, a fé na encarnação real deste Deus em Jesus Cristo, bem como a
102 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 336. 103 Cf. Ibid. 104 Cf. Ibid. p. 337. 105 Cf. Ibid.
46
fé na ressurreição da “carne” se colocaram como sérios obstáculos ao dualismo
filosófico, e evitará que se chegue às últimas consequências de uma antropologia
dualista.106
2.3.4
Relação corpo-alma na teologia reformada
O movimento da Reforma Protestante do século XVI tem historicamente
como personagens principais o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-
1546)107, o principal teólogo do século XVI, e João Calvino (1509-1564), teólogo
francês de notável capacidade intelectual que criou uma igreja que ele mesmo
dirigiu em Genebra, como se fosse uma espécie de teocracia. Suas doutrinas
constituem a base das igrejas reformadas e do presbiterianismo em várias partes
do mundo, inclusive no Brasil.108
É correto afirmar que o movimento reformador teve Agostinho como seu
patrono. É sobre as bases do pensamento do Bispo de Hipona que Lutero e
Calvino erigem sua compreensão teológica. Como consequência, também não
ficam livres de uma determinada negatividade antropológica na compreensão do
ser humano, corpo-alma.
Percebe-se que Lutero advoga uma compreensão antropológica mais
integral. Na concepção do ser humano como imagem de Deus, Lutero retorna às
raízes da antropologia da fé bíblica e rejeita o dualismo medieval, que separa a
alma do corpo. Para ele, é no homem como um todo – físico e espiritual – que
reside a imagem de Deus.109
Vê essa maior compreensão de integralidade antropológica quando aborda a
questão do pecado também. O pecado não é inerentemente carnal, sendo a alma
vitimada por esta dimensão caída, todo o ser humano é afetado pelo pecado. No
comentário de Lutero sobre o Salmo 51:
106 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 337. 107 Martinho Lutero, semelhante a Santo Agostinho (seu pai na fé, ainda que separados
historicamente por doze séculos), terá sua teologia muito ligada à vida que viveu antes de sua
conversão. Uma melhor compreensão de sua jornada contribuirá para um devido entendimento das
matrizes e nuances teológicas que lhe ocuparam a reflexão. GONZALEZ, Justo L. Uma história
do pensamento cristão: Volume 3, da Reforma Protestante até o século XXI. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004, p. 30-40. 108 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p.281. 109 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p. 277.
47
Daí é grande sabedoria reconhecer que nós não somos nada além de pecado, de
forma que não consideremos o pecado tão levianamente como o fazem os teólogos
do papa, que definem pecado como ‘qualquer coisa dita, feita, ou pensada contra a
lei de Deus’. Definamos pecado, ao contrário, com base nesse salmo, como tudo o
que é nascido de pai e mãe, antes mesmo que um homem seja suficientemente
velho para dizer, fazer, ou pensar alguma coisa. De tal raiz, nada bom pode se
apresentar diante de Deus110
Gonzalez afirma que Lutero, diferente de exegetas anteriores, salienta o fato
de que o termo bíblico “carne” e “espírito”, como aparecem no Novo Testamento,
nos escritos Paulinos, são usados para referir-se à condição humana, e não são
sinônimos daquilo que é material e imaterial em nós. Mesmo compreendendo o
ser humano como corpo, alma e espírito, “carne” não corresponde às
concupiscências mais vis do corpo. “Carne” é a totalidade da pessoa que precisa
de redenção. “Nossa desagradável situação não é que nós sejamos tentados pela
carne, mas que nós somos carne.”111
Com relação a Calvino, sua antropologia é basicamente dicotômica. Ainda
que o dualismo calvinista não possa ser completamente identificado com o
dualismo platônico e menos ainda com o maniqueísta, Calvino vê a natureza
espiritual como algo mais elevado, identificada com Deus, e a natureza física
como algo inferior. O corpo não é intrinsicamente mal, mas o pecado lesou o
corpo, fazendo deste seu instrumento. Por isso a responsabilidade cristã, quanto ao
uso do corpo, que ainda pode ser usado para honrar a Deus. Há certa positividade
na visão de Calvino, mas ainda assim leva o agostianismo ao extremo e não foge
das categorias dualistas quando aborda a questão da depravação total do
homem.112
No livro I, Capítulo 15.2 das Institutas, onde Calvino trata da criação do
homem e da espiritualidade e imortalidade da alma, distinta do corpo, afirma:
Afinal, que o ser humano consta de alma e corpo, deve estar além de toda
controvérsia. E pela palavra alma entendo uma essência imortal, contudo criada,
que lhe é das duas a parte mais nobre. Por vezes também é chamada espírito. Ora,
ainda que estes dois termos difiram entre si em sentido quando ocorrem juntos,
contudo, onde o termo espírito é empregado separadamente, equivale a alma, como
quando Salomão, falando da morte, diz que “o espírito retorna então a Deus, que o
110 Comentário do Salmo 51 (LW, 12:307) 111 Cf. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão, p.56. 112 ROSA, Antropologia filosófica, p. 282
48
deu” [Ec 12.7]. E Cristo, encomendando o espírito ao Pai [Lc 23.46], como
também Estêvão o seu a Cristo [At 7.59], não entendem outra coisa senão isto:
quando a alma é liberada do cárcere da carne, Deus lhe é o perpétuo guardião.
A similaridade com o platonismo se vê na concepção da carne como cárcere
da alma, e a imortalidade desta, sendo criada mais nobre e dada às coisas do
espírito. Em sua compreensão, o Novo testamento ao referir-se tão propriamente à
separação da alma em relação ao corpo, não a afirma como algo distinto, somente,
mas oposto. Referindo-se ao texto da carta de Paulo aos Coríntios 5,1, a alma é
algo essencial, distinto do corpo. Habitamos em casas de barro e na morte
migramos do tabernáculo da carne, despojando-nos do que é corruptível, para que,
por fim, no último dia recebamos a recompensa, em conformidade com aquilo que
no corpo, cada um praticou.113
Esta e outras referências tanto distinguem a alma do corpo, quando lhe
fazem compreender que o designativo “homem” está relacionado a alma que este
possui, sua parte principal. Percepção firmada na análise de I Pe 2,25; I Pe 1,9;
2,11; Hebreus 13,17, onde tais ocorrências parecem designar o termo “alma”
como designativo prioritário do ser humano.114
O teólogo Paul Tillich, ao elucidar a compreensão da vida cristã que, tanto
Calvino quanto Lutero têm, contrasta as duas percepções: “...para Lutero, a vida
nova é alegre reunião com Deus; para Calvino, o cumprimento da Lei.”115 Há uma
maior positividade na maneira como Lutero concebe a vida cristã. Tillich
demostra que para Calvino, “O mundo é nosso lugar de exílio. O corpo não passa
de prisão da alma sem qualquer valor. (...) Contudo, Calvino negava que tivesse
qualquer ódio à vida. ” 116
Tillich mostrará como a negatividade antropológica influência a
compreensão da vida no protestantismo. Apesar do que compreendeu Weber, no
importante trabalho: “A ética protestante e o espírito do capitalismo”117, o
protestantismo seja marcado por um ascetismo intramundano, isto é, uma ascese
113 Cf. CALVINO, João. As Institutas ou tratado da religião cristã. Livro I. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1985, Livro I, 15.2 114 Cf. Ibid, Livro I, 15.2 115 TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: Aste, 2000, p.266. 116 Cf. Ibid, p. 267 117 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Ed. Pioneira, 1998.
49
118 não de fuga do mundo, mas de glorificação a Deus no mundo, por meio da
vocação, que é uma vida dirigida ao trabalho, no mundo. Há uma significativa
negatividade na compreensão de como a vida se dá na relação entre o que é
“espiritual”, e o mundano, ou carnal. Tillich pronunciará duas características de
tal ascetismo: limpeza e lucro por meio do trabalho. Limpeza entendida como
sobriedade, castidade e temperança.
Expressava-se em extrema limpeza externa e identificava o elemento erótico como
sujeira. Essa deturpação do erótico contrariava os princípios da Reforma, mas era
consequência natural da ética de Calvino. A segunda característica deste ascetismo
intramundano era a atividade no mundo para produzir instrumentos e ferramentas,
com os quais se alcançava lucro. O que Max Weber chamou de “o espírito do
capitalismo.119
Tais compreensões estão na base da repressão sexual, segundo Marilena
Chaui. Para a autora, “ascese quer dizer: limpar-se, purificar-se por meio de
exercícios físicos, morais e espirituais, que liberam a alma das impurezas e
imundícies do corpo, particularmente daquela que está na origem de todas as
outras: o sexo.”120
Tillich confirma tal questão quando discorre sobre o ascetismo sexual do
puritanismo:
O ascetismo sexual do puritanismo difere apenas no grau daquele monástico, mas
não no princípio; e de acordo com a concepção puritana do casamento, sua
influência prática é de muito maior alcance do que este. Por isso as relações
sexuais, mesmo no casamento, só são permitidas apenas como meio desejado por
118 Pelo termo ascese, que deriva do grego áskesis (=exercício), comumente se entende o conjunto
dos esforços mediante os quais se quer progredir na vida moral e religiosa. Originalmente o termo
a. indicava qualquer exercício – físico, intelectual e moral – praticado com certo método em vista
do progresso. No âmbito cristão a ascese tomou muitos significados mortificação, penitência,
exercício de virtudes para a consecução da perfeição. A este termo ligam-se as palavras 1)
ascética, doutrina relativa a ascese, ou seja, o empenho constante para alcançar uma perfeição
espiritual e progressiva; e ascetismo, que indica tanto a doutrina quanto a prática dos ascetas, ou o
estado dos que se dedicam a exercícios rigorosos de piedade. A ascese é, pois, a procura da
perfeição. Na experiência cristã, ela tende á adaptação sistemática de toda a vida do crente à
imagem e semelhança de Deus, inscrita na alma no momento da criação; é o esforço para
harmonizar a vida com fé por meio de uma morte contínua de cruz, segundo a linguagem de Paulo.
Portanto, ela não é o fim último da vida cristã, mas uma mediação instrumental para alcançar a
união com Deus Pai. Se houve desvios, exageros e confusões na prática da ascese foi porque se
instaurou, erroneamente, uma espécie de identificação entre a oposição, de origem grega, da alma
ao corpo e a oposição, da qual fala São Paulo, da “carne” ao “espírito”. BORRIELLO, L. et al.
Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003, Verbete: Ascese-Ascética, p. 117 119 TILLICH, História do pensamento cristão, p.267 120 CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa des(conhecida). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1984, p. 149.
50
Deus para aumentar Sua glória, de acordo com o mandamento “Crescei e
multiplicai-vos”. Ao lado de uma dieta vegetariana e de banhos frios, contra todas
as tentações sexuais é usada a mesma prescrição adotada contra as dúvidas
religiosas e o sentido de indignidade moral: “Trabalhe com vigor na tua vocação”.
Mas, a coisa mais importante é que, acima de tudo, o trabalho veio a ser
considerado em si, como a própria finalidade da vida, ordenada por. Deus. Nas
palavras de S. Paulo, “quem não trabalha não deve comer valem
incondicionalmente para todos”. A falta de vontade de trabalhar é sintoma da falta
de graça.121
Além de desvalorização da questão da sexualidade, o que será ainda,
analisado neste capítulo, a questão do corpo, como instrumento de produção,
sendo mecanicizado, quase assexuado, tratado como coisa, surge como uma das
dimensões desta desvalorização da corporeidade. Segundo Chauí, o trabalho surge
como salvador do corpo. O corpo do trabalhador é o corpo consagrado,
vocacionado, que glorifica a Deus. Há uma redução do significado do corpo
integrado a vida como um todo em todos os seus horizontes. Somente o corpo do
trabalhador, o corpo para o trabalho, no trabalho, como lugar de purificação. O
trabalho é o grande purificador daquilo que o puritanismo chama de vida suja. E
vida suja, tem a ver com uma sexualidade fora da disciplina, similar a monástica,
casta, refreada. “A ética puritana é como se o mundo todo virasse um imenso
mosteiro.”122
Weber dirá que em sua compreensão
na história, houve quatro formas principais de protestantismo ascético (no sentido
aqui adotado para a palavra), ou seja: o Calvinismo, na forma que assumiu na
principal área de influência na Europa ocidental, especialmente no século XVII, o
Pietismo, o Metodismo e as seitas que se desenvolveram a partir do movimento
Batista.123
2.3.5
Consequências da negatividade antropológica no protestantismo
brasileiro
É difícil a análise sobre o protestantismo brasileiro, por sua natureza
fragmentada. Mendonça resumindo introdutoriamente a questão, em sua obra
“Introdução ao Protestantismo no Brasil”, afirma:
121 WEBER, A Ética Protestante, p. 75. 122 CHAUI, Repressão sexual, p. 150. 123 Cf. WEBER, A Ética Protestante, p.41.
51
Ao contrário da tradição católica, o protestantismo que surgiu na Reforma do
século XVI foi muito mais longe na variedade de tendências e instituições que
gerou, e desde cedo revelou-se incapaz de conservar-se unido. Por essa razão, é
muito mais adequado falar em “protestantismos” (luterano, calvinista, metodista,
etc.) que em “protestantismo brasileiro”.124
Contudo o que aqui se pretende é mostrar como existe no ethos protestante
de modo geral, uma determinada dificuldade com o corpo, oriundo de seu
percurso histórico. Ainda que inúmeras transformações tenham sido gestadas no
interior destes “protestantismos”, há um fundo comum de percepção do ser
humano e o dualismo moderado está lá, firmemente presente.
Gedeon Alencar ao apresentar sua pesquisa sobre o protestantismo
brasileiro, sobretudo o visto na igreja Assembleia de Deus, de matriz pentecostal
afirma:
...todo ethos protestante foi construído em termos de negação da
sexualidade, da atuação política, da participação artística, do incentivo ao
lazer, da vida na sociedade brasileira. Como diz Fernandes (1977), o
protestante tem preconceito de ser social; ser social é ser “mundano”. O
chavão repetido é: “Não somos deste mundo”. A conversão é, objetiva e
subjetivamente, incentivada e requerida em demonstração de aversão “às coisas
do mundo” e total separação do tudo o que possa parecer mundano. 125
Por certo, a compreensão acima descrita é derivada da influência pesada que
a visão dualista antropológica teve sobre a espiritualidade cristã. Mesmo
referindo-se à Assembleia de Deus e aos pentecostais, igrejas de missão como
batistas, congregacionais, luteranas, etc., também assumiram comportamentos
próximos, por vezes menos radicais, mas igualmente assentadas na mesma
dificuldade dualista. 126
Um dos traços de tal espiritualidade é a questão da conversão como rejeição
da cultura. Segundo Mendonça, o protestantismo que se instalou no Brasil trouxe
toda problemática da cultura americana. As missões protestantes, mais do que
124 MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no
Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p.11. 125 ALENCAR, G. F. Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição à cultura
brasileira. 1. ed. São Paulo: Arte Editorial, 2005. p.71. 126 MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no
Brasil, p.216
52
uma vivência religiosa, queriam também transmitir uma visão de mundo que
abarcava a cultura e moralidade.
“A conversão de brasileiros deveria ser uma adesão à religião – puritana,
petista e reavivalista – dos novos missionários, e para isso era necessário mudar
profundamente valores culturais, e morais. A conversão ao protestantismo e seus
valores implicava, portanto, completa rejeição da religião dos colonizadores”
(portugueses católicos).127 Atrelaram-se a uma compreensão cultural muito mais
americana e europeia, do que gestada em solo brasileiro. Isto é bem visto na
dificuldade que se deu na música, onde o ritmo brasileiro é visto como
“mundano” e pecaminoso. Os elementos da cultura são sempre colocados sempre
sob suspeita.
O protestante, em geral, se tornou conhecido pelo que é proibido fazer e não
pelo que positivamente faz. Fruto desta tendência escapista e em oposição às
realidades sociais. Daí toda teologia fica submetida a tal orientação. Encarnação,
missão, ressurreição, parousia são realidades que perdem força na vivência da
vida aqui e agora, sendo realidades que se aneladas somente no além e porvir.
Alencar atesta como, no pentecostalismo, uma acentuada tendência
escatológica, “nascida do fundamentalismo religioso, agravada pela contingência
dos conflitos mundiais – pelo período entre as duas grandes guerras” moldou uma
pesada tendência de negatividade com o mundo. A teologia pentecostal
assembleiana não quer resgatar o mundo, mas as pessoas do mundo. “O
pentecostalismo não tem esperança ou alguma boa vontade para com o mundo, e
tudo que lhe diga respeito. Ele, o mundo, está irremediavelmente perdido e a
única relação possível é de desprezo. Portanto pretende literalmente sair dele. Por
que, então, haveria a preocupação de modifica-lo? Influencia-lo?”128
2.4
Síntese conclusiva
O corpo pode ser um dos poucos lugares onde existe espaço para falar ao
homem contemporâneo. A modernidade opera uma virada humanista que estende
127MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no
Brasil, p.216 128 ALENCAR, Protestantismo Tupiniquim, p.47.
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seus contornos até o tempo presente e nos chega através de uma crise profunda de
modelos e estruturas. A Igreja, em um primeiro momento, experimenta profundo
desconforto diante do esvaziamento que o transcendente sofre neste ambiente. No
que diz respeito à visão do ser humano, diante do avanço e descoberta das
ciências, a Igreja foi muito criticada. Esta, ressentida, se apegou a concepções
antigas, do homem e do mundo ampliando tal enfrentamento e ruptura com a
modernidade.129 Soma-se a isto a própria dificuldade que teve em lidar com a
dimensão do corpóreo, pela infiltração do dualismo platônico e neoplatônico e
posteriormente dualismo cartesiano moderno.
129 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso (org.), O humano integrado. Abordagens de antropologia
teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p.268.
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