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2 Ser humano e corporeidade: Uma abordagem teológico- cultural Uma visão integrada das dimensões humanas - corpo-alma - constitui lugar fundamental para se pensar o ser humano. Isto porque as consequências de uma compreensão que privilegia uma das dimensões em detrimento da outra configuraram na história empobrecimentos, e uma determinada violência contra o humano, afetiva, existencial, social, física e até espiritualmente. No cristianismo, configurou-se desde os primeiros séculos uma suspeita em relação ao corpo, oriunda do dualismo platônico e neoplatônico. Segundo Famereé, o cristianismo desde o início e durante bom tempo se “expressou no discurso da metafísica platônica”. O mundo visível e invisível em uma dualidade vertical e, portanto, hierárquica. O problema é que tal dualismo é somente uma máscara para “um monismo intransigente”: o corpo sendo negado, tornando-se não valor, e uma imposição da alma como única realidade ontológica. 1 No percurso histórico, a igreja ainda se deparará com a força do dualismo cartesiano, onde o corpo figurará como uma espécie de máquina, a extensão mecânica do homem. Sendo a mente a verdadeira sede do ser. Tanto o pensamento, que diz respeito à alma, ao espírito, quanto o corpo, que diz respeito à vida biológica serão instâncias separadas do homem, que se relacionam no homem de maneira extrínseca somente. 2 A crise que se instala na modernidade e que questiona seu modelo antropológico, juntamente com toda revolução que se deu na passagem da sociedade industrial moderna, para a sociedade de consumo, ocidental e pós- moderna criou uma nova realidade que produz efeitos devastadores sobre o humano na relação com sua corporeidade. A reversão dialética operada pela modernidade e agora pós-modernidade onde o corpo, antes velado, mortificado, refreado, é agora superexposto, mercadologizado, irrefreado, não operou uma 1 FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ, Adolphe; SCOLAS, Paul (Org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21. 2 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.101.

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Ser humano e corporeidade: Uma abordagem teológico-

cultural

Uma visão integrada das dimensões humanas - corpo-alma - constitui lugar

fundamental para se pensar o ser humano. Isto porque as consequências de uma

compreensão que privilegia uma das dimensões em detrimento da outra

configuraram na história empobrecimentos, e uma determinada violência contra o

humano, afetiva, existencial, social, física e até espiritualmente.

No cristianismo, configurou-se desde os primeiros séculos uma suspeita em

relação ao corpo, oriunda do dualismo platônico e neoplatônico. Segundo

Famereé, o cristianismo desde o início e durante bom tempo se “expressou no

discurso da metafísica platônica”. O mundo visível e invisível em uma dualidade

vertical e, portanto, hierárquica. O problema é que tal dualismo é somente uma

máscara para “um monismo intransigente”: o corpo sendo negado, tornando-se

não valor, e uma imposição da alma como única realidade ontológica.1

No percurso histórico, a igreja ainda se deparará com a força do dualismo

cartesiano, onde o corpo figurará como uma espécie de máquina, a extensão

mecânica do homem. Sendo a mente a verdadeira sede do ser. Tanto o

pensamento, que diz respeito à alma, ao espírito, quanto o corpo, que diz respeito

à vida biológica serão instâncias separadas do homem, que se relacionam no

homem de maneira extrínseca somente.2

A crise que se instala na modernidade e que questiona seu modelo

antropológico, juntamente com toda revolução que se deu na passagem da

sociedade industrial moderna, para a sociedade de consumo, ocidental e pós-

moderna criou uma nova realidade que produz efeitos devastadores sobre o

humano na relação com sua corporeidade. A reversão dialética operada pela

modernidade e agora pós-modernidade onde o corpo, antes velado, mortificado,

refreado, é agora superexposto, mercadologizado, irrefreado, não operou uma

1 FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ, Adolphe;

SCOLAS, Paul (Org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009, p. 21. 2 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da

reflexão cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.101.

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revalorização das dimensões do humano, rupturas foram agravadas, e o estado de

violência se perpetua.

A primeira e segunda partes deste capítulo se propõem a uma breve análise

conjuntural da modernidade à chamada pós-modernidade, nas configurações

assumidas pelo corpo na sociedade. A terceira parte fará um percurso histórico

sobre o pensamento antropológico cristão, na patrística, e na teologia reformada,

como base de observação para os desvios e dificuldades que se deram no

entendimento do protestantismo brasileiro.

Utilizará para isto instrumental das ciências humanas, no campo da

sociologia, história, filosofia, teologia, que fazem parte da construção teórica de

autores como David Le Breton, Zygmunt Bauman, Michel Mafesolli, Gilles

Lipovetsky, e Maria Clara Bingemer, Alfonso Garcia Rubio, Paul Tillich,

Marilena Chauí, entre outros.

A organização didática pôs em lugares distintos a reflexão sobre a sociedade

e a reflexão sobre a igreja. Mas compreende-se que tal separação, no contexto da

vivência social é impossível.

2.1

Corporeidade na modernidade

A pretensão não é construir uma historiografia do corpo, pois seria tarefa

por demais extensa, fora do escopo deste trabalho. A intenção é compreender o

sentido da corporeidade para a sociedade atual. A necessidade de uma

retrospectiva histórica, que nos remeta até o período compreendido como

Modernidade, se deve ao entendimento de que épocas históricas não são estanques

umas às outras. Há percursos de continuidade e descontinuidade que tem seus

porquês e enraizamentos nas diversas tramas e enfrentamentos que determinadas

questões sofreram ao longo do tempo. Portanto, o que a sociedade é hoje e a

maneira como se percebe, decorre das ações e reações que se deram em fluxos e

contrafluxos históricos anteriores. 3

3 Cf. BERGER, Mirela. Corpo e identidade feminina. Tese. Disponível em:

http://www.mirelaberger.com.br/mirela/download/corpo_e_identidade_feminina-

Mirela_Berger.pdf, acesso em 28 de outubro de 2015. p.45.

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Neste ponto, pretende-se analisar como a questão antropológica é percebida

no período moderno e o lugar do corpo na compreensão do ser humano. A

antropologia moderna propõe um tipo de ser humano, mas não fica livre dos

dualismos oriundos de períodos históricos anteriores.

2.1.1

A Crise da Modernidade e o modelo antropológico proposto

O período da modernidade está ligado a uma crise histórica ampla, oriunda

de um processo mais longo de profundas mudanças estruturais na sociedade, e que

nos alcança hoje, tomando a forma de crise de modelos de paradigmas, de valores.

Sendo a modernidade o sintoma desta crise, pois a exprime, e de maneira

ambígua, representando sempre uma dificuldade para os estudiosos que tentam

compreender o período em si, e seus sentidos. 4

O mundo antes da modernidade é o mundo da tradição que conserva uma

determinada estabilidade conduzida pela tradição cristã ocidental. Na

compreensão de Henri-Jérome:

É essa estabilidade do mundo da tradição que será atacada até a raiz pela lenta

emergência do princípio moderno, que pode ser descrito como o acionamento de

uma razão critica pretendendo livrar-se dos aspectos alienantes da tradição, para

fazer chegar um mundo mais racional. E um processo que se acelera do século XIV

ao século XIX e que se radicaliza no século XX, para dar à luz o que é chamado de

pós-modernidade ou ultramodernidade e que consiste, a meu ver, em que a

modernidade conseguiu uma vitória definitiva sobre a tradição, despojando-a de

sua autoridade indiscutível.5

Garcia Rubio afirma que a emergência do paradigma moderno não pode ser

considerada oriunda de uma só causa. Muitas foram elencadas na tentativa de

explicação adequada ao surgimento deste. Uns atribuem às vigorosas

transformações no modo de produção e na vida econômica. Outros defendem uma

4 Cf. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Alteridade e vulnerabilidade: experiência de Deus e

pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. p.13. 5 Cf. HENRI-JÉROME, Gagey. A igreja diante da crise antropológica contemporânea: o que

fazer? Disponível em http://faje.edu.br/periodicos2/index.php/perspectiva/article/view/2803,

acesso em 20 de Maio de 2015.

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nova visão de mundo e de ser humano que surge no período. O mais acertado é

falar de intercausalidade, uma causa reforçando a outra.6

Dentre tais, Garcia Rubio destaca a mudança que ocorre no seio da ciência

experimental que por conta do método experimental, muda radicalmente seu

objeto: substitui a busca da “essência” mediante a abstração formal e adentra no

mundo científico-técnico onde, a partir da experimentação repetível, o objeto

passa a ser analisado e decodificado matematicamente. 7

O método e o conhecimento medeiam o aparecimento de uma nova visão de

mundo e de homem. O mundo não é mais para ser contemplado e imitado (mundo

antigo e medieval), mas para ser enfrentado e dominado pelo homem com o

instrumental proporcionado pela ciência experimental. O homem com sua

racionalidade matemática constrói o mundo e o transforma com sua racionalidade

técnica. O homem desprende-se do mundo, destaca-se nitidamente dele. E com sua

racionalidade o enfrenta, domina e transforma, em proveito próprio.8

A racionalidade técnica, à serviço do bem humano, levou à invenção da

máquina que contribui fortemente para o nascimento e desenvolvimento da

indústria, que se impõe como via de produção, e gera toda uma organização social

que nasce em seu entorno, a civilização industrial. A compreensão do ser humano

moderno é impossível sem o entendimento dos efeitos que esta mudança gerou.9

Segundo Garcia Rubio, as forças produtivas do vigoroso desenvolvimento

da industrialização fizeram migrar uma sociedade de um modo de vida agrícola e

rural, para um industrial e urbano.10 Em geral, nas sociedades agrícolas, toda a

produção visava o próprio consumo do produtor, sendo uma pequena parte para o

comércio. A questão produção-consumo para a grande maioria era uma unidade

vital de sua relação com a vida e sua subsistência. A civilização industrial inverte

este processo, já que a maioria das pessoas, agora compreendida como força de

trabalho, produz para o mercado, e não para consumo próprio, criando na outra

ponta a necessidade de um consumo massivo para as demandas da indústria.

Instala-se uma determinada tensão: consumidores de um lado, buscando os bens

produzidos pela indústria, pleiteando preços mais baixos; e de outro, os

6 Cf. RUBIO GARCIA, Alfonso. Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão

cristãs. São Paulo: Paulus, 2001, p.24. 7 Cf. Ibid. 8 Ibid. 9 Cf. Ibid., p. 25. 10 Cf. Ibid., p.26.

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produtores, exigindo maiores salários pela sua produção. Ruptura cada vez maior

entre os que produzem e consomem. O mercado se coloca como elemento de

ligação e apaziguamento destes polos. 11.

Está posto aí o germe da sociedade de consumo, pois, como afirma

Bingemer, na modernidade tardia (Séc. XIX e XX), assistimos a passagem de uma

“civilização do trabalho e progresso, para uma civilização do consumo, da

obsolescência imediata e rápida e do lazer entendido como impune fruição.”12 O

que Rubio chamará de império do mercado e que refletir-se-á na crescente

influência dos processos de comercialização nas relações humanas.

Comercialização que traz consigo um forte conflito antropológico:

Exatamente a mesma pessoa que (como produtor) era ensinada pela família, pela

escola e pelo chefe a adiar a recompensa, a ser disciplinada, controlada, comedida,

obediente, a ser um jogador de equipe, era simultaneamente ensinada (como

consumidor) a procurar recompensa imediata, a ser hedonista mais do que

calculista, a abandonar a disciplina, a procurar o prazer individualista – em suma, a

ser uma espécie de pessoa totalmente diferente. No ocidente, especialmente, toda a

potência de fogo da publicidade estava dirigida para o consumidor, incitando-o, a

ele ou ela, a tomar emprestado, a comprar impulsivamente, a ‘voe agora e pague

depois’ e, assim fazendo, a efetuar um serviço patriótico, mantendo girar as rodas

da economia.13

Tal dicotomia produtor-consumidor é somente um dos aspectos da ruptura

mais radical que divide o ser humano moderno. A unidade entre o ser humano e a

natureza, vivenciada na civilização agrícola, é rompida com a chegada da

civilização industrial. A natureza passa a ser considerada unicamente como objeto

da exploração do ser humano, capitaneado pelas possibilidades que a ciência e a

técnica criam no domínio da natureza. Estabelece-se um modelo permanente que

experimenta grande desenvolvimento, mas também acarreta a profunda

desestabilidade e desequilibro do meio ambiente em prol deste tipo de

progresso.14

Está aí presente, portanto, aspectos da visão antropológica moderna: uma

perspectiva extremamente otimista em relação ao lugar do ser humano no todo do

universo, baseada na eleição da dimensão da racionalidade como única suficiente

a construir todas as repostas aos dilemas humanos. O ser humano moderno

11 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p.26. 12 BINGEMER, Alteridade e vulnerabilidade, p.17. 13 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p.29. 14 Cf. Ibid.

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compreende a si mesmo como “centro do universo”, referencial último para

estabelecer os critérios do certo e errado, bom e mau, positivo e negativo,

realidade e irrealidade. Baseado no extremo otimismo e confiança que tem em sua

racionalidade, crê na capacidade ilimitada de criar técnicas e meios que

possibilitem o progresso irreversível, como caminho a produzir uma sociedade

sempre melhor.

2.1.2

Corpo na Modernidade: fundamentos do corpo máquina

Joseph Famereé, refletindo sobre a questão antropológica na modernidade

afirma que a modernidade marca o fim da metafísica na existência humana. As

realidades que ordenam o mundo não são mais oriundas da revelação e da

transcendência. Uma nova perspectiva de verdade surge e brota do próprio ser

humano, de sua racionalidade e capacidade. A percepção de eternidade se desfaz.

“O homem moderno nasce sem um Criador, cresce sem uma ordenação instituída

por Deus e morre sem perspectiva da eternidade.” O desaparecimento de Deus é

consequência da superação da metafísica, compreendida como fase pré-científica,

mitológica e fantasiosa. 15

A secularização é o nome que se dá a este processo. O período moderno

opera o banimento da religião como lócus prioritário da verdade e do

ordenamento da sociedade, como se dava no período medieval. A modernidade é

compreendida como um tempo de superação do mítico, em um desenvolvimento

histórico linear ascendente, na direção do racional.16 E a religião está circunscrita

à fase mitológica da sociedade. Enquanto a religião explica o mundo com

afirmações metafísicas sustentadas pela fé, a secularização se vale do método

científico que demonstra os fatos: “contra fatos não há argumentos”. O que a

ciência não pode provar não pode ser imposto como verdade, e consequentemente

paradigma para a vida em sociedade. É objeto de fé individual e privativa.

15 Cf. FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ, A.

SCOLAS, P (org.). O corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 13-34. 16 Cf. Ibid, p.17.

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Breton então nos indica que a busca das relações entre o corpo e a

modernidade nos obriga a compreender o caminho do individualismo na trama

social e suas consequências para as representações corporais.17 Isto porque a

noção moderna de corpo é fruto das estruturas individualistas do campo social,

que rompem com uma concepção que concebia o ser humano mesclado à

coletividade e ao cosmo. Surge um ser humano cindido da natureza, e tal cisão é

vista em sua própria compreensão de si. Concepção diferente do que ocorria em

sociedades pré-modernas e orientais, em geral. A antropologia bíblica, por

exemplo, também ignora a noção de ser humano separado do seu corpo. No

universo bíblico, o ser humano é seu corpo. Em sua relação com o mundo, tudo

que conhece, o faz pelo contato do corpo com a realidade e nunca como algo

separado do corpo, somente na mente, pela via da razão. Nesta antropologia,

segundo Breton, o ser humano é criado por Deus, do mesmo modo que todas as

demais coisas criadas e participa do mundo nesta condição, em solidariedade

ontológica com o todo criado e todas as formas de vida. Não um corpo que

contenha uma alma, nem em litígio em si ou alguma desvalorização, como propõe

a tradição platônica.18 “A encarnação é um fato do homem, e não seu artefato.”19

Esta dicotomização do ser humano é também afirmada por Gumbrecht

quando analisa o percurso operado pela modernidade

Seja como for, o mundo que o observador observava e interpretava era puramente

material. Claro que essa dicotomização entre “espiritual” e “material” está na

origem de uma estrutura epistemológica em que a filosofia ocidental se apoiaria de

agora em diante, o “paradigma sujeito/objeto”. Sua lógica binária muito básica

atribui ao corpo humano um lugar ao lado dos objetos do mundo, enquanto no

pensamento medieval se acreditava que espírito e matéria eram inseparáveis, tanto

nos seres humanos como nos demais elementos da criação divina. A expectativa e

iconografia de uma ressurreição corpórea dos mortos no dia do Juízo Final, por

exemplo, tornava visível essa sugestão da epistemologia medieval, assim como

fazia a premissa cultural que os historiadores da arte viriam a chamar de “realismo

simbólico. 20

O ser humano cindido em si mesmo enxerga o corpo como algo puramente

do domínio da natureza, puramente corpo, assim como a alma (a dimensão

17 Cf. LE BRETON, David. Antropologia del cuerpo y modernindad. Buenos Aires: Nueva Vision,

2002, p. 15. 18 Cf. Ibid. p.14. 19 Ibid. p. 24. 20 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir.

Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. p.47.

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imaterial que habita neste corpo), princípio que autoriza a razão e a ciência, e

desempenha o domínio do corpo. Ao separar corpo e alma, o dualismo cartesiano

reforça a ideia de funcionamento corporal como uma máquina, com princípios

mecânicos próprios.21

Descartes desenvolverá uma visão de ser humano rigorosamente dualista. O corpo

é simplesmente matéria espacial, substância extensa (“res extensa”), mera extensão

mensurável matematicamente, enquanto que a alma ou espírito ou consciência é

uma substância pensante (“res congitans”). Na realidade, o corpo não passa de uma

máquina que pode funcionar independente da alma. Esta não interfere na vida

biológica do ser humano, pois sua finalidade única é precisamente pensar. Tanto o

pensamento (característica do espírito) quanto a vida biológica (a máquina do

corpo) são substancias radicalmente separadas que podem subsistir uma sem a

outra, mas que se encontram relacionadas no ser humano de maneira puramente

extrínsecas.22

As consequências desta antropologia são bem conhecidas: Na cisão do

sujeito (a consciência humana) afastada da própria corporeidade e vice-versa tem

como consequência direta o isolamento do indivíduo, porta para o individualismo.

Pois, se o sujeito entra em contato com outros sujeitos pelo corpo, uma vez

separado deste, fica isolado de todos. É a forma que toma o individualismo

moderno.23

Portanto, no desmantelamento dos valores medievais, e o encontro com a

filosofia mecanicista de Descartes, surge uma nova sensibilidade individualista

que enxerga o corpo como algo separado do mundo e também separado do

homem. Não é mais o macrocosmo que explica o corpo, mas a anatomia, a

fisiologia (que experimentam grande desenvolvimento no período moderno) que

veem no corpo humano aspectos e características estanques em si. Também a

consequência de separação do corpo próprio para o corpo dos outros, visto na

passagem de um tipo de sociedade comunitária para uma sociedade de tipo

individualista, onde o corpo demarca os limites para a relação, é uma fronteira. E,

separado de si mesmo, o corpo se torna como diferente do homem.24

21 Cf. SILVA, Ana Márcia. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa

sociedade racional. Campinas: Cadernos CEDES (Impresso), v. 19, p. 07-29, 1999. p.11.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n48/v1948a02.pdf, acesso em 18 de dezembro

de 2015. 22 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p.101. 23 Cf. Ibid. 24 LE BRETON, Antropologia del cuerpo y modernindad. p. 27.

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Tais rupturas se configuraram na história como caminhos a uma grave

violência contra o humano e o mundo ao seu redor. Dilemas que desembocam em

um processo de tensão e crise. Conforme afirma Bingemer,

...em sua caminhada rumo à perfectibilidade nunca perfeita do progresso,

divorciou-se da natureza e da sua relação com o meio ambiente, provocando

o que hoje se sente como ameaça de catástrofe sobre todo o planeta. E o

risco iminente e tristemente real da destruição dos ecossistemas tem como

seu fundo mais profundo o fracasso de um modelo e paradigma que ignora a

natureza e pensa o ser humano como ser isolado, não enquanto parte de um

conjunto maior.25

2.2

Corporeidade na Pós-Modernidade

Uma importante mudança no estatuto do corpo ocorre. Como chamou

atenção Breton, o novo dualismo que agora se apresenta não é entre o corpo e a

alma, ou o corpo e a mente como propôs a modernidade, mas o ser humano e o

seu próprio corpo, que agora é moldado, remodelado, exigido, pelos ditames da

imagem e do status social.26 O corpo, plástico, modelável, artificializado, carrega

o peso de novo lugar do ser, pois é o corpo quem diz o que o ser humano é, dentro

desta configuração. Tais questões se dão juntamente com a efusão de

movimentações e transformações sociais porque passa a contemporaneidade.

2.2.1

Sensibilidade Pós-Moderna

Não entraremos na discussão se o que aqui é chamado de pós-modernidade

trata-se de um novo período histórico ou da crise interna da própria modernidade.

Gilles Lipovetsky nomeia como "hipermodernidade"27, Zygmunt Bauman como

"modernidade líquida"28, Michel Maffesoli, utiliza a expressão "pós-

modernidade"29. Ainda que diversas denominações sejam possíveis, só o fato de

25 BINGEMER, Alteridade e vulnerabilidade, p.19. 26 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2007, p. 87 27 LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri:

Manole, 2005. 28 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro:Zahar, 2001. 29 Cf. MAFFESOLI, Michel. O Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 2008.

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haver esforço de buscar uma nova nomenclatura, indica que vivemos em um

contexto histórico com uma sensibilidade distinta da moderna. 30 Há determinado

consenso de que vivemos um tempo de crises profundas em todos os aspectos da

existência humana sobre o planeta.

O que marca o início de tal momento são crises na estrutura macrossocial

que afeta a humanidade em sua grande parte, sobretudo urbana. Após duas

grandes guerras, o mundo ainda respirava seus horrores, visto no insano genocídio

de judeus pelo regime nazista, nas bombas atômicas sobre as cidades japonesas de

Hiroshima e Nagasaki, na tensão sempre crescente do conflito nuclear que poderia

ser deflagrado pelas superpotências Norte-Americana e Russa, envolvidas em um

jogo de espionagem e contraespionagem conhecido como Guerra Fria. É também

tempo marcado pelo exponencial desenvolvimento e crescimento tecnológico e

das telecomunicações. O fenômeno da urbanização acelerada comprometendo a

qualidade de vida nas cidades que viram seus problemas crescerem na mesma

proporção. Abismos sociais tornam-se mais graves e intransponíveis, pobreza e

miséria, junto com o acúmulo de riqueza nas mãos de poucos, o mercado

inclemente do consumo, produzindo seus dejetos, os excluídos. Violência e

conflitos locais ganham forte repercussão. Revoluções sociais ganham corpo,

talvez a mais expressiva seja a questão da igualdade e dignidade da mulher, a

temática é trazida à lume nos principais espaços de discussão. Há também uma

crescente mudança de papéis e a configuração da família vai sofrendo tais

abalos.31

Garcia Rubio chama a atenção para a visão pessimista e diminuída do ser

humano, neste período, em contraste com triunfalismo antropocêntrico da

modernidade. A hipertrofia da razão gerou uma violência contra a pessoa, pois

atrofiou outras dimensões do ser; e ainda demonstrou a insuficiência da

racionalidade em fornecer respostas à angústia existenciais que tanto prometera.32

O “parto da pós-modernidade”, expressão usada pelo Bispo Anglicano,

Robinson Cavalcanti, surge como reação ao cientificismo e tecnicismo modernos

como meios suficientes para produzir o bem-estar geral e a realização individual.

Cai por terra o edifício moderno firmado sobre a crença na bondade natural do ser

30 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 45. 31 Cf. LOPES, G. Gaudium et Spes: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 9. 32 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 45.

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humano, a crença na ciência como recurso ilimitado de saber, a crença em utopias

globais, com uma idade de ouro construída pelo próprio homem33. Dá lugar a uma

profunda descrença no progresso, a incerteza do futuro, a atitude de que o

conhecimento não é mais algo seguro e objetivo, mas provisório e subjetivo,

originando um movimento amplo e sem contornos definidos. “À subjetividade

racionalista, sucede uma subjetividade enredada unilateralmente no domínio

afetivo.”34É onde ancora-se a sensibilidade pós-moderna.

A descrença em relação à razão humana unida ao pessimismo face às

possibilidades do ser humano na sociedade e no cosmos levou a uma acentuada

desconfiança diante dos compromissos sociais e políticos. E, assim, muitos acham

ser pura perda de tempo e de energia esse tipo de compromisso. A motivação

existente nos anos 60, especialmente no ambiente estudantil, parece coisa de um

passado remoto. E acresce que se encontra também muito generalizada a

desconfiança em relação às instituições.35

Nas palavras de Robinson Cavalcanti, “no vazio das utopias tem crescido o

individualismo exacerbado, o cinismo, o pragmatismo, a violência, o hedonismo,

o nacionalismo, o racismo, o misticismo e o fundamentalismo religioso.”36 O

homem pós-moderno não tendo onde se agarrar, apela ao passado pré-moderno,

como meio de sustentar-se.

No Brasil, a música popular apresentou um interessante retrato de tal

desesperança na esfera político-institucional. Belchior, na década de 7037, tem os

versos de sua canção “eternizados” por Elis Regina: “Hoje sei que quem me deu a

ideia de uma nova consciência e juventude, está em casa, guardado por Deus,

contando vil metal. Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que

fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” O mundo respira

suspeita e falta de perspectivas.

Diante de tal quadro, a procura de satisfação imediata, o utilitarismo e

pragmatismo, tem na ordenação do Mercado e nos mecanismos de consumo seu

lugar prioritário de ação. A febre consumista opera outra grande ruptura, a dos que

podem ter e dos que não podem ter. Excluídos do consumo e da possibilidade de

33 Cf. CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e politica: teoria biblica e pratica histórica.

Viçosa: Ultimato, 2002. p. 176. 34 GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 46. 35 Ibid. 36 CAVALCANTI, Cristianismo e politica, p. 177 37 FERNANDES. Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle. Como nossos pais. Album

Alucinação. Polygran, 1976.

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viver a vida que se apresenta, descartados, lixo, dejeto. O homem pós-moderno

marcado por um subjetivismo radicalmente individualista, experimenta a

indiferença, mas também grande dose de angústia, depressão, desamparo,

sentimentos a guiar o modo de vida humano neste contexto.

Apesar da forte crítica e uma visão um tanto pessimista, há claramente

toda uma perspectiva positiva que surge no interior da pós-modernidade. Hoje a

perspectiva científica começa a enxergar a realidade de maneira mais integrada e

holística. A partir da nova física o universo passa a ser visto como um todo

unificado, em partes inter-relacionadas e dotado de dinamismo. Por certo, isto

afeta diretamente a maneira como também o humano e a vida como um todo é

concebida.38

Opondo-se ao individualismo e à arrogância do antropocentrismo

moderno, surge nova perspectiva que vê o humano como sistema complexo de

relações também complexas e dinâmicas, em íntima conexão do toda a

humanidade e também com o cosmo, de maneira vital e natural. Surge também

uma grande revalorização de outros aspectos e dimensões humanas, a cooperação,

o afeto, a intuição, uma razão não divorciada das demais dimensões humanas e

nem senhora de tais, mas em cooperação. A revalorização de uma consciência

ecológica, com a mentalidade de manter a vida, e não o progresso a todo custo.39

Maffesoli verá a pós-modernidade como “essa mistura orgânica de

elementos arcaicos e de outros um pouco mais contemporâneos.” Segundo o

autor, a noção de pós-modernidade, mantém juntos elementos contraditórios e até

opostos, para esta contínua complexidade ele usa o termo organicidade.40

Convivem neste tempo,

...de um lado, a pesquisa de pequenas comunidades, o tribalismo, a preocupação

com o território, a atenção à natureza, a religiosidade, o prazer dos sentidos; e, do

outro, o desenvolvimento tecnológico e sua utilização, o policulturalismo das

grandes megalópoles, a atividade comunicacional, ou os diversos sincretismos

religiosos e ideológicos. Segundo neologismo proposto pelo físico S. Lupasco,

obedecem uma lógica “contraditorial”. Que não busca a síntese e

acomodação de tais opostos numa lógica de repouso, mas que os mantém

assim, em tensão, gerando certa “energia social”. 41

38 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 47. 39 Cf. Ibid. 40Cf. MAFFESOLI, No fundo das aparências, p.14. 41 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 15.

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Amorese dirá: “Pois estamos diante do melhor e pior dos tempos.” Para tal

constatação basta olharmos ao redor. Tempo marcado por ambiguidades, avanços

promissores e retrocessos assustadores. Por exemplo, vive-se um tempo de

liberdade sem precedentes: de pensamento, de costumes, de modos de vestir, de

religião, lazer, etc. As amarras sociais nunca permitiram tanto espaço para a

realização pessoal, familiar, grupal, e mesmo nacional. Contudo, vivemos em um

mundo de escravos e escravizados sem precedentes. Novas formas de escravidão,

das drogas, do consumo, da aparência, etc. submetendo o homem a cativeiros

perversos e desumanizantes. Do mesmo modo, poderia ser nomeado todo o bem

estar que o desenvolvimento tecnológico produziu, por outro lado, toda violência

da exclusão dos que ficam de fora do acesso a tais bens.42

2.2.2

Corpo sob a luz dos holofotes: o ser humano na contemporaneidade

e sua relação com o corpo

O ser humano, neste século XXI, inicia uma luta da pessoa para salvar-se do corpo

mortal e frágil. O fenômeno do culto ao corpo parte de um estágio em que o corpo

é demonizado, escondido, fonte de vergonha e pecado e culmina com o corpo das

academias e sua explosão de músculos, atingindo seu grau máximo de ilustração

com a emergência e a multiplicidade das estratégias de body-building, as cirurgias

estéticas, os implantes e a profusão de técnicas médicas, químicas, cosméticas e de

vestuário.43

Breton propõe que o final dos anos 60 marca a entrada de uma crise de

legitimidade das modalidades físicas da relação do homem com os outros e com o

mundo, que amplia-se pela força do movimento feminista, a consequente

“revolução sexual”, toda preocupação estética a partir deste período, o body-art, a

crítica do esporte, a emergência de novas terapias, proclamando bem alto a

ambição de se associar somente ao corpo, etc. Um novo imaginário do corpo

invade a sociedade reivindicando um lugar de extrema importância na conjuntura

social. 44

42 AMORESE, Rubem M. Icabode: da mente de Cristo à consciência moderna. Viçosa: Ultimato,

1998. p. 21-23. 43 FONTES, Malu. Os percursos do corpo na cultura contemporânea. In: COUTO SOUZA, E.;

GOELLNER VILODRE, S. (Org.). Corpos mutantes: ensaio sobre novas (d)eficiências corporais.

2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2009, p. 77. 44 LE BRETON, A sociologia do corpo, p.9.

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Diante da crise de valores e de legitimidade, na tortuosa procura de

indefinições que homem pós-moderno encontra, o corpo está, segundo Breton,

sob a luz dos holofotes.45 Debaixo do interesse midiático, das diversas

propagandas e produções mercadológicas, o corpo é lugar de visibilidade

permanente. A subjetividade pós-moderna e o entendimento que se tem do corpo

e sua relação com o mundo se dá debaixo destas tensões. O ser humano está em

litígio e em tensão com seu próprio corpo, que precisa ser “artesanalmente”

modificado, na tentativa de agarrar-se a uma imagem idealizada, midiática e

pretensamente perfeita. Segundo Breton, uma nova forma de encarnação. “A

corporeidade é socialmente construída na medida em que o homem não é produto

do corpo, produz ele mesmo as qualidades do corpo na interação com os outros e

na imersão no campo simbólico.”46

a personificação do corpo exige o imperativo de juventude, a luta contra a

adversidade temporal, o combate para que nossa identidade conserve sem hiato

nem pane..., simultaneamente... o narcisismo, cumpre uma missão de normalização

do corpo. O interesse febril que dedicamos ao corpo não é de modo algum

espontâneo e "livre", é a resposta a imperativos sociais tais como a "linha", a

"forma", o "orgasmo", etc.47

Isto porque, para o homem deste tempo o corpo se destaca de si mesmo:

o corpo não é mais uma máquina inerte, mas um alter ego de onde emanam

sensação e sedução. Ele se transforma no lugar geométrico da reconquista de si, um

território a ser explorado na procura de sensações inéditas a serem capturadas

(terapias corporais, massagens, danças, etc.). É encontrado o parceiro

compreensivo e o cúmplice que faltava ao nosso lado. O dualismo da modernidade

não mais opõe a alma ao corpo, mais sutilmente opõe o homem ao corpo como se

fosse um desdobramento. Destacado do homem, transformado em objeto a ser

moldado, modificado, modulado conforme o gosto do dia, o corpo se equivale ao

homem, no sentido em que, se modificando as aparências, o próprio homem é

modificado.48

Neste jogo o corpo se torna um valor incontestável. Um símbolo de

aquisição e força. Por isso, valem a pena todo desgaste, correrias e todos os

“preços” possíveis de se pagar na obtenção deste valor. Contudo, a negação do

45 LE BRETON, A sociologia do corpo, p.10. 46 Cf. Ibid. p. 19. 47 Ibid., p. 85. 48 Ibid. p. 87.

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corpo, a ocultação do corpo está presente. Presente no medo do envelhecimento e

da morte, no destino dado aos velhos, aos despossuídos, aos deficientes.49

Os modelos de beleza e o culto à perfeição representam também uma

determinada violência contra o ser. Isto porque a que custo alguém se submete a

um processo de completa transformação corporal e estética, somente, para atender

aos padrões midiáticos, aos ditames sociais e não sucumbir diante da

discriminação acintosa contra os que não se incluem nesta perspectiva? “A cultura

da perfeição dissolve as marcas do tempo e proclama a vitória da técnica e da

padronização sobre o eu.”50 Excluídos são os que encontram-se fora destes

padrões.

Se ao longo deste percurso histórico desde a modernidade, o corpo tornou-

se o lugar da diferenciação, da individualização, da exclusão, do afastamento, da

distinção propagandeada, entre um ser humano e outro. Existe um anelo, que faz

parte do imaginário social de que o corpo se torne espaço, agora, da inclusão, não

mais da separação, será a interface que possibilitará a conexão, a aproximação, o

caminho pelo qual a humanidade se unirá. 51Proposta esta que será retomada no

segundo e terceiro capítulos deste trabalho.

2.2.3

Corpo-mercadoria: as relações na sociedade de consumo

A sociedade de consumo, deixa claro os limites e as ambiguidades da libertação do

corpo. Sua redescoberta, escreve, após uma era milenar de puritanismo, sob o signo

da libertação física e sexual, sua inteira presença... na publicidade, na moda, na

cultura de massa, ou no culto da higiene, da dietética, da terapêutica no qual ele é

envolvido, a obsessão de juventude, de elegância, de virilidade/feminilidade, os

cuidados, os regimes, as práticas de sacrifício a ele ligadas, o mito do prazer que o

envolve - tudo testemunha hoje que o corpo tornou-se objeto de reverência.52

Segundo Bauman, na dinâmica do mercado de consumo está a relação

consumidor-mercadoria, que nem sempre é tão fácil de se identificar, pois faz

parte do jogo estas relações mudarem e se misturarem entre si. Em geral, na

relação do mercado existem determinadas regras: mercadorias são para serem

consumidas pelos consumidores; a busca de tais mercadorias está ligada a 49Cf. LE BRETON, A sociologia do corpo, p. 87. 50 Cf BERGER, Corpo e identidade feminina, p. 154. 51 Cf. LE BRETON, A sociologia do corpo, p. 11. 52 Ibid. p. 84.

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promessa de satisfação do desejo do consumidor; e o preço que se está disposto a

pagar, está inteiramente relacionado à credibilidade e intensidade destes desejos.53

A dinâmica que se estabelece na relação do consumidor com o objeto

potencial do seu consumo, o trato de interesses, a busca, a posse, o descarte, a

nova procura, tais encontros e dinâmicas vão se colocando como uma espécie de

paradigma das relações humanas. À semelhança das relações entre consumidores

e objetos de consumo, tal lógica se insere no trato que a própria humanidade,

sobretudo ocidental e urbana, desenvolve em si mesma. 54 Segundo Bauman, esse

efeito foi alcançado mediante a apropriação, pelos mercados de consumo, do

espaço que se estende entre os indivíduos, em que se estabelecem as ligações que

conectam os seres humanos e se erguem as cercas que os separam.55

Em sua análise, Bauman compreende que uma das principais marcas da

sociedade pós-moderna, que tem como características a sociedade de

consumidores, é a redução do sujeito em mercadoria. Pois tornar-se mercadoria é

o que conecta o consumidor ao paradigma do mercado, onde ele não é mais

sujeito de si, mas torna-se também objeto.

Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar

mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar,

ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de

uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo

que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem

fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A

característica mais proeminente da sociedade de consumidores - ainda que

cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em

mercadorias.56

Bauman faz tal afirmação mostrando como se comporta o mundo da mídia,

por exemplo, em que alguém deseja ser famoso. Ser famoso por que? No

imaginário social, para sair da invisibilidade e ser notado, ser admirado, seguido,

copiado, desejado, de certa forma, consumido. E este que o enxerga como objeto

do seu consumo, espera alcançar o mesmo nível de satisfação que aquele parece

experimentar. Por isso, “na era da informação, a invisibilidade é equivalente à

53 Cf. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.

Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 18. 54 Cf. Ibid., p. 19 55 Cf. Ibid. 56 Ibid. p. 20.

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morte.”57 E o que se posiciona como produto a ser consumido, utilizará de todos

os meios possíveis para continuar sendo “vendável”, esteticamente perfeito, ícone

de desejo e satisfação.

Bauman situa tal dinâmica social em uma fase líquido-moderna. Segundo

ele, a modernidade viveu uma fase sólido-moderna, caracterizada por uma

sociedade de produtores, mais voltada para a segurança, um ambiente confiável,

ordenada, duradoura, disciplinada. Onde se buscava a segurança e estabilidade

proporcionada pela posse dos bens. Visava-se o futuro, uma promessa de

segurança a longo prazo, não no desfrute de prazeres imediatos.

Apenas bens de fato duráveis, resistentes e imunes ao tempo poderiam oferecer a

segurança desejada. Só esses bens tinham a propensão, ou ao menos a chance, de

crescer em volume, e não diminuir e só eles prometiam basear as expectativas de

um futuro seguro em alicerces mais duráveis e confiáveis, apresentando seus donos

como dignos de confiança e crédito.58

Contudo a segunda fase da modernidade, a fase liquido-moderna, é

caracterizada por uma sociedade de instabilidade dos desejos - o instantâneo, o

efêmero ditam as regras. É o que Maffesoli chamará de presenteísmo59, esta noção

de que tudo precisa ser vivido no instante presente, que se torna o único instante,

o instante eterno, o único, de fato, que importa. Aqui o tempo é pontilhista, já que

não há um percurso, uma trilha, planejamento, processo, mas uma sucessão de

momento, pontos, que precisam ser sorvidos com a máxima urgência pois tudo é

efêmero demais. Nada a longo prazo, o momento é já. Um tempo marcado por

rupturas.

Lipovetsky cunha o termo hipermodernidade para referir-se a este momento

histórico. Em sua compreensão, a hipermodernidade não é a superação do que se

viu no período moderno, mas a sua superlativação, a exacerbação dos valores

criados na modernidade.60 Passa do “pós” ao “hiper” porque o “pós” já não

consegue expressar a configuração do mundo, parecendo mais tendente a olhar

para o passado e falar da modernidade como se já estivesse superada. Não uma

destruição do passado, e por isso, marcada por certa negatividade, mas a

57 BAUMAN, Vida para o consumo, p. 21. 58 Ibid., p. 43. 59 Cf. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 179. 60 Cf. LIPOVETSKY, Gilles; SEBASTIEN, Charles. Os tempos hipermodernos. São Paulo:

Editora Barcolla, 2004, p. 22-26.

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integração com as lógicas do mercado, do consumo e do individualismo tão

nitidamente marcantes. 61

Portanto o mundo hipermoderno organiza-se, na compreensão de

Lipovetsky, em quatro polos estruturantes que desenham a fisionomia do tempo

atual. Em suas palavras:

...o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a hipertecnização,

grau superlativo da universalidade técnica moderna, o hiperindividualismo,

concretizando a espiral do átomo individual daí em diante desprendido das

coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma hipertrofiada e exponencial

do hedonismo mercantil.”62

Na interação destas forças, nas lógicas internas que as compõem, surge uma

cultura globalizada, sem fronteiras territoriais demarcadas e de extenso alcance,

que chamará de “sociedade universal de consumidores”.

É consenso entre Mafesolli, Bauman e Lipovetky que a sociedade de

consumo é a mola propulsora de um novo modelo de relação e significação do

humano, como temos salientado no texto. As características marcantes no modo

de vida da sociedade, sobretudo ocidental, capitalizada, são geradas por sua força.

Na compreensão de Lipovetsky, não estamos diante somente de um mundo

racional-material, mas de uma cultura, com seus símbolos, significações,

imaginário social, que advoga ser planetário.63

A sociedade de consumidores se torna uma sociedade que é levada, pelos

mecanismos do mercado a constante insaciabilidade, a satisfação dos desejos é o

anelo mais presente. Consumo, descarte, substituição é o tripé que faz girar o

mercado de consumo.

Em “Felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo”,

Lipovetsky analisa a busca desenfreada pela felicidade, através do consumo

hedonista e a promessa de satisfação imediata dos desejos. Uma passagem da

obtenção de recompensas futuras para a vida no presente e suas satisfações

imediatas.64 Um convite “a apreciar os prazeres do instante, a gozar a felicidade

61 Cf. LIPOVETSKY, Os tempos hipermodernos, p. 52. 62 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade

desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 32. 63 Cf. Ibid. 64 Cf. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.

São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.36.

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aqui e agora, a viver para si mesmo”65 É paradoxal porque não se perpetua, é

efêmera, termina no próprio ato de consumir. Se transforma, logo, em

infelicidade, frustração e decepção, sensações que coabitam com o sujeito

contemporâneo.

Numa sociedade consumo, precisamos consumir para sentir. Precisamos de

coisas novas para sentir. Precisamos ter coisas para ter alegria, para experimentar

felicidade, que se desvanece logo que o novo, uma vez adquirido, torna-se quase

que instantaneamente. Parte-se na direção de um “novo” novo. A promessa de

felicidade acaba por mobilizar o frenético estado de busca que caracteriza esta

sociedade.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor

supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é

uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história

humana a prometer felicidade na vida terrena, aqui agora e a cada agora sucessivo.

Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua. Também é a única sociedade que

evita justificar e/ou legitimar qualquer espécie de infelicidade (...), também na

sociedade de consumidores a infelicidade é crime passível de punição, ou no

mínimo um desvio pecaminoso que desqualifica seu portador como membro

autêntico da sociedade.66

Daí, a rápida compreensão que para tornar-se atraente nesta sociedade, os

indivíduos precisam se mostrar vendáveis, apetitosos, vistosos, desejados. Ora, o

corpo como lugar de mediação social precisa se qualificar como bem de consumo,

mercadoria a ser consumida.

2.2.4

O Império das aparências

A forma, a estética, exerce uma força poderosa sobre aquilo que o homem é.

Segundo, Maffesoli, “o homem é produto da estética, ele é participante de um

‘genius’ coletivo que o ultrapassa de longe. É tomado pelas formas, com um

banho matricial que o modela e faz dele o que ele é.”67 A grande questão é que,

neste momento, o apelo estético, sua força modeladora e definidora dos contornos

da vida, se mostra mais presente.

65 LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal, p. 102. 66 BAUMAN, Vida para o consumo, p. 61. 67 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 150

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Utilizando a compreensão teológica do sacramento, Maffesoli, faz uma

analogia: o sacramento (forma) torna visível a força invisível do estar-junto

fundamental. Do mesmo modo, em sua compreensão, a forma (objeto, imagem,

corpo) exprime em si os valores sociais e as forças agregadoras da relação que se

faz. 68A forma é uma força que comunica relação e valores, tem necessidade de

exprimir-se no espaço.

Compreende então que o estético, o externo, não é desprezível em relação

ao valor interno. As roupas são veículos de comunicação, o corpo é veículo de

comunicação. A aparência, como uma estrutura antropológica, “é causa e efeito de

uma intensificação da atividade comunicacional.”

Essa preocupação com a aparência – e talvez seja preciso entender o termo

“preocupação” na sua acepção mais forte – manifesta na publicidade, no enfeite, na

embalagem (que atinge seu paradoxismo na sociedade japonesa, por exemplo),

mais que, uma simples superficialidade sem consequências, inscreve-se num vasto

jogo simbólico, exprime um modo de tocar-se, de estar em relação com o outro, em

suma de fazer sociedade.69

O externo, o cosmético, o embelezamento, aquilo que é visto, não é

acessório no corpo, mas constrói identidade e pertencimento. E nesta concepção, o

corpo individual está intimamente ligado ao corpo social do qual faz parte. Dele

adquire pertença, legitimidade e proteção, em uma relação dialógica constante.

Para Maffesoli, “o corpo que se pavoneia lembra esse enraizamento, e é nesse

sentido que é fator de sociabilidade.”70 A aparência, não pode ser desconsiderada

como de grande valor e importância na trama social pois é um elemento intrínseco

de contribuição ao corpo social.

Tem-se aí uma ética da estética, pois todo o cuidado com o corpo, que está

também na origem do comércio, do artesanato, da indústria, não opera somente

um apelo estético e visual, mas comunica relação, acentua ligação, pertencimento,

envolvimento, agregação.71

A questão do vestuário, da moda, é significativa porque faz desaparecer o

individuo e aparecer o indivíduo coletivo. A moda dita as regras e pasteuriza os

corpos no conjunto social.

68 Cf. MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 151. 69 Ibid. p. 161. 70 Cf. Ibid. p. 168. 71 Cf. Ibid., p. 169.

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É neste conjunto de aspectos que compreende os movimentos agregadores

das tribos urbanas, dos grupos que se aproximam por conta de uma linguagem,

uma roupagem, uma estética que os aproxima e fornece identidade. São “...esses

círculos mais estreitos, como quer que sejam chamados, grupos, tribos, bandos,

máfia, não são eles justamente essas reuniões proxêmicas, afetuais, que através de

um vesturário comum lembram que formam conjuntos onde tudo (todos) junto

cria (criam) corpo?”72

Há no interior destes grupos e destas articulações sociais, e da sociedade como um

todo, um corporeísmo (indumentárias tribais, moda, imagens do corpo, piercing,

tatuagens, etc.) que produz uma comunicação existencial que fundamenta a ligação

do individuo com a natureza, com a vida, onde a maneira de se vestir, a linguagem,

os costumes sexuais, se coloque debaixo de força coercitiva e modeladora.

Não resta dúvida que o aspecto “pasteurizado” das configurações em

questão tem um forte coeficiente de aderência, ao mesmo tempo extrínseca

(atraem) e intrínseca (predem, criam risco). É, com certeza, uma das

especificidades de nosso tempo.73

Contudo, na compreensão de Lipovetsky, ainda que as roupagens forneçam

algum tipo de pertença, de relação proximal, nosso tempo foi invadido por outra

preocupação que deposita no corpo do indivíduo sua maior expectativa. Estando

tudo mais - a roupa, a moda - a serviço desta nova busca estética.

A moda, falo da vestimenta, para ser preciso, é muito menos importante hoje do

que antigamente. Por meio das roupas não é possível saber se uma pessoa é pobre

ou rica. O corpo sim é mais importante, leve em conta a cirurgia plástica e

academias. Antes, a moda possibilitava para as pessoas expressarem sua classe

social. Hoje, por outro lado, é mais importante parecer mais jovem do que mais

rico. Para muitas mulheres é mais importante fazer regime do que comprar um

vestido. A moda não tem mais a centralidade social de outrora.74

72 MAFFESOLI, No fundo das aparências, p. 171. 73 Cf. Ibid., p. 180. 74 Entrevista concedida por Gilles Lipovetsky a Revista Filosofia. Ed. 49, julho 2010, p. 8-13,

Disponível em: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/49/artigo179777-3.asp,

acesso em 01/04/2016

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2.3

Corporeidade na teologia cristã

Para melhor compreender a noção moderna e pós-moderna de corporeidade,

vemos a necessidade de identificar como a questão se deu no ambiente cristão pré-

moderno. Percurso necessário, pelo lugar que o cristianismo ocupou na construção

da mentalidade moderna ocidental. Para tal, faz necessário uma breve exposição

do pensamento antropológico cristão do período da patrística. Após, olharemos a

relação corpo-alma no pensamento reformado, em figuras de destaque como,

Lutero e Calvino, e o alcance destas questões no protestantismo no Brasil.

2.3.1

A importância da Patrística na formação do pensamento cristão e a

questão antropológica corpo-alma

A Patrística75 foi um período de importância fundamental a fé e ao

dinamismo missionário da jovem igreja cristã. No choque com a racionalidade

filosófica grega, a igreja opta pela abertura-diálogo, por julgar necessária tal

confrontação. Abertura que se tornou indispensável a um trabalho evangelizador

frutífero. Tal discernimento evitou o ostracismo da jovem igreja, mas também a

expôs à cultura e à utilização do instrumental conceitual grego como mediação

para a comunicação efetiva da mensagem cristã no contexto.76

A questão da evangelização não será abordada neste texto, mas cabe

ressaltar que a igreja cristã vivia um momento de grande tensão diante da

mudança de cenário do ambiente palestinense para o encontro com a racionalidade

filosófica grega. Uma importante mudança de paradigma missiológico77, como

bem descreveu Bosch.78

75 Entende-se por Patrística o período da história do pensamento cristão que vai do fim da era

neotestamentária até o aparecimento da escolástica, ou seja, do século II ao VII de nossa era.

ROSA, Merval. Antropologia filosófica: Uma perspectiva cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 2001,

247. 76 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso. O ser humano à luz da fé cristã e a racionalidade moderna.

Belo Horizonte -MG, Perspectiva Teológica, v. XXII, n.56, 1990, p. 34. 77 David Bosch analisa em sua obra, “Missão Transformadora”, como a missão da igreja cristã se

deu desde o cristianismo primitivo até a igreja contemporânea no século XXI. Se utiliza das

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Pois bem, como afirma Garcia Rubio, este trabalho necessitou de “muita

coragem e muito discernimento”. Coragem para não retroceder e permanecer

fechada no contexto cultural e religioso do judaísmo palestinense, muito mais

cômodo à mensagem cristã, já que está foi gerada em seu interior. E

discernimento para, no encontro com a racionalidade filosófica, a mensagem

cristã não fosse mutilada, sacrificada, perdida. Contudo, em não omitir-se de tal

encontro, acabou por dar a mensagem cristã voz e força necessária para uma

articulação duradoura na sociedade, além de fortalecê-la internamente aos

embates que surgiriam ao longo da caminhada histórica.79

Ratzinger propõe que igreja ao optar pela abertura e diálogo ao “logos”

filosófico grego, acabou por desenvolver um caminhar de maior protagonismo.

Ao contrário das religiões pagãs que virando às costas à realidade filosófica,

acabaram sendo deixadas de lado no caminhar histórico. Ruptura que mostrou-se

fatal para o paganismo, o diálogo critico mostrou-se fecundo para o

cristianismo.80

Por isso a patrística é vista com um período de grande positividade à fé

cristã e à igreja. No esforço de falar a este novo contexto e de alçar a fé cristã no

elevado nível que advogavam ter, os santos padres não se escusaram deste

profícuo embate, inda que tal atitude não foi uniforme na igreja, tendo por um

subdivisões histórico-teológicas sugeridas por Hans Küng, que propõe a história do cristianismo

subdivida em seis grandes “paradigmas”: o paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo; o

paradigma helenístico do período da patrística, o paradigma católico romano medieval; o

paradigma protestante (da Reforma); o paradigma moderno do iluminismo; o paradigma

ecumênico emergente. Cada um destes períodos revelando uma compreensão peculiar da fé cristã,

de sua missão em seu envolvimento com as características socioculturais e religiosas das distintas

épocas. Procura mostrar como em cada uma destas eras, os cristãos tentaram, dentro dos seus

próprios contextos, debaterem a questão da fé e o significado da missão. A relação dialógica entre

a fé e a cultura não pode nunca ser desconsiderada já que o ser humano é ser histórico. E as

mudanças que surgem criam significações contundentes para o desafio da fé ao longo da

caminhada histórica. “As diferenças entre as seis subdivisões da história do cristianismo

enumeradas por Küng têm a ver, em grande parte, com as diferenças no quadro geral de referência

entre uma era e outra e somente em um grau menor com as diferenças pessoais, confessionais e

sociais per se. O ‘mundo’ do cristianismo helenístico do século II, e seguintes era qualitativamente

diverso do ‘mundo’ do cristianismo primitivo, que ainda se encontrava bastante impregnado do

etos do Antigo Testamento hebraico. E há disparidade comparáveis entre as outras épocas

mencionadas acima.” Talhou estas subdivisões de acordo com a teoria de Thomas Kuhn a respeito

das ‘mudanças de paradigma’. Cada uma destas épocas reflete um ‘paradigma’ teológico

profundamente distinto de qualquer um dos seus predecessores. Cf. BOSCH, David J. Missão

transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002,

p.227-229. 78 Cf. Ibid., p. 238-264. 79 . GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p. 34 80 Cf. RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo: preleções sobre o símbolo apostólico,

com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2005, pp. 103-112.

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lado uma rejeição total ou uma aceitação acrítica, como chama atenção Garcia

Rubio:

Houve Padres que acentuavam prevalentemente a necessidade de criticar os erros

da racionalidade grega, recomendando muita cautela na utilização do instrumental

filosófico. Houve os que ressaltaram sobretudo os pontos de coincidência entre a

mensagem cristã e filosofia grega. Como não faltaram aqueles que

intrumentalizaram a fé em nome de exigências da racionalidade filosófica.

Certamente foi muito intensa a tentação de procurar ´explicar´ a partir da filosofia

os enunciados pré-filosóficos da Sagrada Escritura, de tal maneira que estes fossem

interpretados à luz e em função da racionalidade filosófica. A defesa do

monarquismo e do subordinacionismo nos campos trinitário e cristológico

constituiu exemplo elucidativo desta tendência.81

A questão antropológica na patrística teve um lugar de grande importância.

Na compreensão da relação corpo-alma no entendimento do ser humano, a maior

dificuldade que a igreja terá de lidar é que, em geral, os pensadores do período

usam como princípio hermenêutico a filosofia grega do helenismo e não o modelo

hebraico em sua interpretação. A simples comparação entre as duas concepções

apresenta dificuldades na interpretação antropoógica que percorrem toda a história

do pensamento cristão.

A metafísica grega é basicamente dialística, contrastando espírito e matéria; a

hebraica é teísta, contrastando Deus, o Criador, com o homem, ser criado, e

derivando a alma e o corpo de uma única fonte. O dualismo está presente no

pensamento grego desde Anaxágoras até Platão e Aristóteles, e culmina no

neoplatonismo que transforma matéria e forma em Deus e o mundo, o infinito e o

finito, o bem e o mal. No Antigo Testamento não há sinal desse dualismo ético,

psicológico e metafísico. O homem é criação de Deus e não se faz distinção entre

corpo e alma como se fossem realidades diferentes. No Novo Testamento, o

contraste feito entre a vida interior e a vida exterior não tem significação

metafísica, nem a antítese entre alma e corpo oferece a chave para os problemas

morais, como se quisesse ensinar que a matéria é intrinsecamente má. O corpo é

parte integrante do conceito bíblico do homem. A vida futura, portanto, requer a

ressurreição do corpo para a reconstituição da unidade da existência. Ao contrário

disso, a concepção grega da vida futura não é a ressurreição do corpo, mas a

imortalidade da alma,.. 82

Ainda que tenha havido, por parte da igreja, o cuidado de não sucumbir a

sempre perigosa e insidiosa afirmação de que a matéria e o corpo são maus, não

ficou livre da forte influência do dualismo filosófico grego. “A alma, que toda a

81 GARCIA RUBIO, O ser humano à luz da fé cristã, p.35. 82 ROSA, Antropologia filosófica, p. 248.

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sua vida esteve encarcerada no corpo, anseia por libertar-se desta prisão, não por

transformar esta prisão numa pátria onde lhe seja mais agradável morar” 83

Moltmann mostra que à medida que o cristianismo foi se desprendendo de

suas raízes hebraicas e assumindo a forma helenista romana, também sofreu a

influência da religião gnóstica da Antiguidade Tardia, corrente em profundo

litígio com este mundo. Na veneração por parte da maioria dos Padres da Igreja, a

começar por Justino, em relação à figura de Platão, compreendido como, “O

cristão antes de Cristo” e a exaltar seus valores para a transcendência e os valores

espirituais, acontece uma lenta substituição de percepções caras ao pensamento

cristão. 84

Este lento, mas vigoroso processo de penetração da visão dualista, e também

gnóstica, sobre a fé cristã vai operando determinadas mudanças na compreensão

das Escrituras com sério impacto na reflexão teológica, na compreensão da vida

cristã e demais aspectos da realidade. Segundo Moltmann, a visão sobre o futuro

de Deus vai sendo substituída pela Eternidade de Deus; a compreensão sobre o

Reino vindouro vai sendo substituída pelo Céu; o Espírito como fonte de vida,

pelo Espírito que liberta a alma do corpo; a ressurreição da carne, pela

imortalidade; a transformação deste mundo, pelo anseio de abandono e a busca de

outro mundo.85

Está presente a forte valorização das realidades do espírito, da alma, do Céu,

em detrimento de realidades terrenas, materiais, carnais, que precisam ser

superadas. Do mesmo modo, a compreensão tão cara à fé cristã da redenção do

corpo e ressurreição da carne, vai sendo transformada em anelo de libertação da

carne, vista agora como prisão e obstáculo a que a alma humana seja plenamente

satisfeita.

Na medida em que a redenção foi sendo espiritualizada, “a esfera da carne” foi

sendo por sua vez reduzida ao corpo e aos instintos e necessidades do corpo. Já não

era mais esperada a “redenção do corpo” (Rm 8, 23) na “ressurreição da carne”,

mas sim que a alma se libertasse enfim da prisão do corpo, de sua “trabalhosa”

alimentação, de seu “incômodo” sistema de reprodução e de sua “miserável” morte

(Marcião).86

83 Cf. MOLTMANN, Jurgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes,

2010, p. 93. 84 Cf. Ibid. 85 Cf. Ibid. 86 MOLTMANN, O espírito da vida, p .93.

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Segundo Moltmann, ao longo da caminhada cristã, estas dificuldades vão

desencadear uma determinada espiritualidade, hostil ao corpo, não sensível,

distanciada do mundo, da política87, não integradora e integrada com a vida em

suas mais diversas nuances. Tal mentalidade religiosa vai pavimentar toda

compreensão antropológica ocidental, ao longo da Idade Média, da Modernidade

e mesmo no contexto contemporâneo, aflige a relação da igreja com o mundo.

Por isso, Garcia Rubio encara a infiltração gnóstica na religiosidade cristã

como uma dura luta enfrentada pelos Pais da igreja e também, toda a igreja em

sua caminhada histórica ocidental, católica ou protestante. Este embate gerou um

dualismo moderado, pois ainda que tenha havido o esforço em não sucumbir ao

verdadeiro aniquilamento do corpóreo promovido pelo pensamento dualista

neoplatônico, passa por uma fase aguda de desvalorização do corpo e das

realidades relacionadas a estes, provocando cisão e rupturas nefastas à vivência da

missão e da espiritualidade cristã.88O que chamamos aqui de negatividade

antropológica.

2.3.2

Ser humano em Agostinho: negatividade antropológica

É dentro deste cenário que se pode olhar, mesmo que brevemente, uma das

figuras mais importantes da história da teologia e central no período da patrística.

Aurélio Agostinho (345-430 d.C), Bispo de Hipona, figura de primeira grandeza

na igreja, é compreendido como o maior teólogo do período da Patrística. Nas

palavras do Papa Bento XVI,

...maior padre da igreja latina, (...) homem de paixão e fé, e de elevadíssima

inteligência e de incansável entrega pastoral. Este grande santo e doutor da Igreja é

conhecido, ao menos de nome, inclusive por quem ignora o cristianismo ou não

tem familiaridade com ele, por ter deixado uma marca profunda na vida cultural do

ocidente e de todo mundo. Por sua singular relevância, Santo Agostinho teve uma

influência enorme e poderia afirmar-se , por uma parte, que todos os caminhos da

literatura cristã latina levam a Hipona.89

87 Cf. MOLTMANN, O espírito da vida, p .93. 88 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade , p.102. 89 RATZINGER, Joseph. Apresentação dos santos padres apostólicos. Disponível em

https://mercaba.wordpress.com/apresentacao-dos-padres-apostolicos/#40, acesso em 30/03/2016.

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Para os historiadores da época, a presença de Agostinho divide o período em

uma era pré e pós-agostiniana. É o padre da Igreja que deixou maior número de

obras. Na patrística pré-agostiniana, destacam-se Justino, o Mártir, Irineu,

Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Gregório de Nissa e

João Damasceno, dentre outros. Na patrística pós-agostiniana, que adentra em sua

fase de decadência, existem poucos nomes de relevância, dentre os quais Severino

Boécio, famoso por sua obra sobre a consolação da filosofia, e Bento Núrcio,

Fundador do monasticismo ocidental.90

Na patrística ocidental, diferente da oriental, a aceitação do dualismo

antropológico foi mais acentuada. Em Agostinho o problema da relação corpo-

alma acaba bem marcado. Agostinho posiciona-se firmemente na luta contra o

maniqueísmo91, que é uma variante da gnose que advoga um dualismo radical

diante de todas as realidades. Contudo, sua doutrina sobre o pecado original e sua

fundamentação sobre a imortalidade da alma levarão o doutor de Hipona a

aceitação de postulados do dualismo neoplatônico, embora matizados sempre com

aspectos fundamentais da visão cristã do ser humano. 92

A questão do pecado original está diretamente ligada à da origem da alma,

em Agostinho. Deus criou todas as almas? Não. Somente a primeira, a de Adão.

Todos os outros seres humanos que nascerão serão uma derivação deste primeiro

ser. Se Deus cria todas as almas dos seres humanos, como explicar a transmissão

do pecado original? Para Agostinho seria o mesmo que admitir que é Deus quem

o transmite a cada alma. Segundo Garcia Rubio, Agostinho não encontra resposta

satisfatória para este problema.93

Garcia Rubio ainda afirma que a antropologia neoplatônica servirá também

para fundamentar a questão da imortalidade da alma. Na compreensão platônica, o

ser humano é sua alma. O corpo, este invólucro, é instrumento usado pela alma na

vida terrena, e que será abandonado ao seu tempo, pois possui caráter provisório e

90 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p. 247. 91 Dualismo religioso sincretista que se originou na Pérsia e foi amplamente difundido no Império

Romano (séculos III d.C. e IV d.C.), cuja doutrina consistia basicamente em afirmar a existência

de um conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), em localizar a

matéria e a carne no reino das sombras, e em afirmar que ao homem se impunha o dever de ajudar

à vitória do Bem por meio de práticas ascéticas, especialmente evitando a procriação e os

alimentos de origem animal. (MIMOUNI, Simon Claude, Les chrétiens d'origine juive dans

l'antiquité. Paris: Albin michel, p. 228.) Disponível em

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manique%C3%ADsmo, acesso em 02/04/2016. 92 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade , p.334. 93 Cf. Ibid.

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caduco. Em consequência disto, há forte conexão entre pecado e corpo. O corpo,

por ter sido criado por Deus não pode ser mau. Mas o pecado operou a profunda

desarmonia entre corpo e a alma. O corpo tende para o mal e para as paixões,

servindo de tentação para a alma. Outra questão é a primazia dada à alma que faz

com que o tempo e a história objetiva sejam profundamente desvalorizados. O que

situa Agostinho em uma perspectiva bastante subjetiva, daí é compreensível que,

para ele, as realidades humanas concretas e objetivas sejam vistas de maneira

bastante secundária.94

“Os sentidos são mensageiros que informam a alma o que sucede no corpo,

mas é a alma que modela e ela mesma e nela mesma, as sensações e as

imagens.”(...), admitir que a sensação seja um ato da alma, é aderir implicitamente

à definição de Platão dada no Alcebíades, emprestada de Platão por Plotino e

deste por Agostinho. “O homem é uma alma que se serve de um corpo. 95

Afirmando a tendência já citada da patrística ocidental, Moltmann dirá que

as bases teológicas e antropológicas da espiritualidade ocidental são derivadas de

Agostinho. Sua teologia, concentrando-se em “Deus e a alma”, levou a uma

desvalorização do corpo e da natureza, a um privilegiamento da autoexperiência

interior e direta da experiência de Deus, negligenciando as experiências sensíveis

da sociedade e da natureza. “Conhecer-se a si próprio é mais seguro do que

conhecer o mundo.”96

Este dualismo moderado, com sua negatividade antropológica será

fortemente sentido em toda construção do pensamento teológico no ocidente,

tendo influência direta e fundamental na teologia das igrejas oriundas do

protestantismo, mesmo no ambiente contemporâneo brasileiro. Isto por conta da

importância que o movimento da Reforma Protestante teve para a germinação de

tais comunidades.

94 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 335. 95 Cf., GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 228. 96 MOLTMANN, O espírito da vida, p. 94.

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2.3.3

Antropologia Tomista e a superação do dualismo

Ressaltada a importância de Santo Agostinho, é necessário ressaltar que a

Igreja não abraçou acriticamente todo instrumental grego filosófico platônico e

neoplatônico. No percurso da fé, Garcia Rubio destaca que foi São Tomás de

Aquino quem melhor soube articular as dimensões humanas, dentro de uma visão

unitária do ser humano e com isto, deu satisfatória resposta ao problema do

dualismo.97

É a compreensão de Enrique Dussel, filósofo argentino, que afirma que

desde Tertuliano somente um autor, Tomás de Aquino, procurou articular a

realidade da unidade básica do ser humano, enxergando a completa necessidade

de complementariedade entre as dimensões humanas, corpo e alma, e a absoluta

impossibilidade de existência do ser humano, real e concreto, no de divórcio entre

tais dimensões.98

Para Dussel, Tomás de Aquino, utilizando-se do instrumental filosófico

aristotélico, no séc. XII, desenvolveu uma visão original do ser humano ao

introduzir importantes correções no pensamento de Aristóteles, que era lido de

maneira dualista nos comentários de Avicena e pelos árabes e judeus.99 O

hilemorfismo aristotélico100, que prevalecia no Ocidente afirmava: “se tanto a

alma quanto o corpo têm forma e matéria, haverá no homem duas formas

substanciais (uma da alma e outra do corpo)”101. Este pluralismo de formas

reforça o dualismo. Segundo Aquino, não pode haver no ser humano duas formas,

antes é a alma a única forma do corpo. Propõe com isto que a união do corpo e

alma, no ser humano não é união acidental de duas substâncias, como se dá no

dualismo. Garcia Rubio conclui: “não existe, pois, união acidental entre alma e

corpo, tal como aparece em todas as correntes dualistas. Propriamente falando,

97 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. .335-337. 98 Cf. DUSSEL, Enrique D. El dualismo en la antropologia de la cristianidad. Buenos Aires:

Editoral Guadalupe, 1974, p. 234. 99 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 335. 100 O renascimento dos estudos aristotélicos no fim do século XII, produziu no século XIII a

aparição do Hilemorfismo. A doutrina da forma e matéria aplicada ao homem dual tende a reforçar

o dualismo. Tal é o caso de Boaventura: a alma tem forma e matéria; o corpo tem forma e matéria.

Há o dualismo e há, ao mesmo tempo, mais de uma forma. Se dá aí um pluralismo de formas. Cf.

DUSSEL, El dualismo en la antropologia, p. 255. 101 Ibid.

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não existem duas partes no homem, pois alma e corpo não podem ser

consideradas duas substâncias completas. ” 102

São Tomás de Aquino a partir da noção de ser humano como única pessoa,

compreenderá a alma como única forma da “matéria-prima”. Nem a matéria, nem

a forma, separadas, são “entes”, mas a união entre forma e matéria, isto é, a

substância, é “ente”. Por isto, o corpo não deve ser confundido com “matéria-

prima”, vai além. O corpo é a “totalidade da substancia humana enquanto extensa,

sensivelmente percebida”, união da alma e matéria como estrutura constitutiva.

Por isto também, o cadáver é diferente do corpo, essencial e qualitativamente. Se

para Aristóteles a alma morria com a morte do ser humano, para Aquino a alma

subiste além da morte, pois está é uma “forma substancial subsistente”, mas

sempre necessitada de sua complementação com o corpo, aguardando a união

final com ele na ressureição. A alma sem o corpo não se encontra em estado de

perfeição maior do que quando unida ao corpo. 103

Na análise de Garcia Rubio, ao conseguir elaborar uma visão unitária do ser

humano, Tomas de Aquino dá importante passo na superação do dualismo, pois

não recua a posições pré-filosóficas, mas utiliza todo rigor instrumental filosófico

do pensamento grego sem sacrificar, como o fora antes por outros autores, a

unidade do homem, em nome de postulados filosóficos.104

Na compreensão do professor Garcia não houve uma superação definitiva

do dualismo por Aquino. No que se refere à intencionalidade dos seus estudos,

pode-se dizer que houve grande avanço e uma possível superação. Contudo

subsistem dificuldades de interpretação da sua antropologia. E hoje, também se

questiona o instrumental que Tomas de Aquino utilizou para fundamentar a visão

unitária do ser humano. Por outro lado, o influxo do dualismo agostiniano

continua muito forte, mesmo nos tempos posteriores a Santo Tomás, fazendo com

que fossem desvirtuadas, em parte, as teses unitárias deste. A antropologia

dualista ainda persistirá em Ockham e, de maneira mais radical, em Descartes,

Kant e no idealismo Alemão.105

A fundamentação da fé bíblico cristã no Deus criador que ao mesmo tempo

é Deus salvador, a fé na encarnação real deste Deus em Jesus Cristo, bem como a

102 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 336. 103 Cf. Ibid. 104 Cf. Ibid. p. 337. 105 Cf. Ibid.

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fé na ressurreição da “carne” se colocaram como sérios obstáculos ao dualismo

filosófico, e evitará que se chegue às últimas consequências de uma antropologia

dualista.106

2.3.4

Relação corpo-alma na teologia reformada

O movimento da Reforma Protestante do século XVI tem historicamente

como personagens principais o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-

1546)107, o principal teólogo do século XVI, e João Calvino (1509-1564), teólogo

francês de notável capacidade intelectual que criou uma igreja que ele mesmo

dirigiu em Genebra, como se fosse uma espécie de teocracia. Suas doutrinas

constituem a base das igrejas reformadas e do presbiterianismo em várias partes

do mundo, inclusive no Brasil.108

É correto afirmar que o movimento reformador teve Agostinho como seu

patrono. É sobre as bases do pensamento do Bispo de Hipona que Lutero e

Calvino erigem sua compreensão teológica. Como consequência, também não

ficam livres de uma determinada negatividade antropológica na compreensão do

ser humano, corpo-alma.

Percebe-se que Lutero advoga uma compreensão antropológica mais

integral. Na concepção do ser humano como imagem de Deus, Lutero retorna às

raízes da antropologia da fé bíblica e rejeita o dualismo medieval, que separa a

alma do corpo. Para ele, é no homem como um todo – físico e espiritual – que

reside a imagem de Deus.109

Vê essa maior compreensão de integralidade antropológica quando aborda a

questão do pecado também. O pecado não é inerentemente carnal, sendo a alma

vitimada por esta dimensão caída, todo o ser humano é afetado pelo pecado. No

comentário de Lutero sobre o Salmo 51:

106 Cf. GARCIA RUBIO, Unidade na Pluralidade, p. 337. 107 Martinho Lutero, semelhante a Santo Agostinho (seu pai na fé, ainda que separados

historicamente por doze séculos), terá sua teologia muito ligada à vida que viveu antes de sua

conversão. Uma melhor compreensão de sua jornada contribuirá para um devido entendimento das

matrizes e nuances teológicas que lhe ocuparam a reflexão. GONZALEZ, Justo L. Uma história

do pensamento cristão: Volume 3, da Reforma Protestante até o século XXI. São Paulo: Cultura

Cristã, 2004, p. 30-40. 108 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p.281. 109 Cf. ROSA, Antropologia filosófica, p. 277.

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Daí é grande sabedoria reconhecer que nós não somos nada além de pecado, de

forma que não consideremos o pecado tão levianamente como o fazem os teólogos

do papa, que definem pecado como ‘qualquer coisa dita, feita, ou pensada contra a

lei de Deus’. Definamos pecado, ao contrário, com base nesse salmo, como tudo o

que é nascido de pai e mãe, antes mesmo que um homem seja suficientemente

velho para dizer, fazer, ou pensar alguma coisa. De tal raiz, nada bom pode se

apresentar diante de Deus110

Gonzalez afirma que Lutero, diferente de exegetas anteriores, salienta o fato

de que o termo bíblico “carne” e “espírito”, como aparecem no Novo Testamento,

nos escritos Paulinos, são usados para referir-se à condição humana, e não são

sinônimos daquilo que é material e imaterial em nós. Mesmo compreendendo o

ser humano como corpo, alma e espírito, “carne” não corresponde às

concupiscências mais vis do corpo. “Carne” é a totalidade da pessoa que precisa

de redenção. “Nossa desagradável situação não é que nós sejamos tentados pela

carne, mas que nós somos carne.”111

Com relação a Calvino, sua antropologia é basicamente dicotômica. Ainda

que o dualismo calvinista não possa ser completamente identificado com o

dualismo platônico e menos ainda com o maniqueísta, Calvino vê a natureza

espiritual como algo mais elevado, identificada com Deus, e a natureza física

como algo inferior. O corpo não é intrinsicamente mal, mas o pecado lesou o

corpo, fazendo deste seu instrumento. Por isso a responsabilidade cristã, quanto ao

uso do corpo, que ainda pode ser usado para honrar a Deus. Há certa positividade

na visão de Calvino, mas ainda assim leva o agostianismo ao extremo e não foge

das categorias dualistas quando aborda a questão da depravação total do

homem.112

No livro I, Capítulo 15.2 das Institutas, onde Calvino trata da criação do

homem e da espiritualidade e imortalidade da alma, distinta do corpo, afirma:

Afinal, que o ser humano consta de alma e corpo, deve estar além de toda

controvérsia. E pela palavra alma entendo uma essência imortal, contudo criada,

que lhe é das duas a parte mais nobre. Por vezes também é chamada espírito. Ora,

ainda que estes dois termos difiram entre si em sentido quando ocorrem juntos,

contudo, onde o termo espírito é empregado separadamente, equivale a alma, como

quando Salomão, falando da morte, diz que “o espírito retorna então a Deus, que o

110 Comentário do Salmo 51 (LW, 12:307) 111 Cf. GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão, p.56. 112 ROSA, Antropologia filosófica, p. 282

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deu” [Ec 12.7]. E Cristo, encomendando o espírito ao Pai [Lc 23.46], como

também Estêvão o seu a Cristo [At 7.59], não entendem outra coisa senão isto:

quando a alma é liberada do cárcere da carne, Deus lhe é o perpétuo guardião.

A similaridade com o platonismo se vê na concepção da carne como cárcere

da alma, e a imortalidade desta, sendo criada mais nobre e dada às coisas do

espírito. Em sua compreensão, o Novo testamento ao referir-se tão propriamente à

separação da alma em relação ao corpo, não a afirma como algo distinto, somente,

mas oposto. Referindo-se ao texto da carta de Paulo aos Coríntios 5,1, a alma é

algo essencial, distinto do corpo. Habitamos em casas de barro e na morte

migramos do tabernáculo da carne, despojando-nos do que é corruptível, para que,

por fim, no último dia recebamos a recompensa, em conformidade com aquilo que

no corpo, cada um praticou.113

Esta e outras referências tanto distinguem a alma do corpo, quando lhe

fazem compreender que o designativo “homem” está relacionado a alma que este

possui, sua parte principal. Percepção firmada na análise de I Pe 2,25; I Pe 1,9;

2,11; Hebreus 13,17, onde tais ocorrências parecem designar o termo “alma”

como designativo prioritário do ser humano.114

O teólogo Paul Tillich, ao elucidar a compreensão da vida cristã que, tanto

Calvino quanto Lutero têm, contrasta as duas percepções: “...para Lutero, a vida

nova é alegre reunião com Deus; para Calvino, o cumprimento da Lei.”115 Há uma

maior positividade na maneira como Lutero concebe a vida cristã. Tillich

demostra que para Calvino, “O mundo é nosso lugar de exílio. O corpo não passa

de prisão da alma sem qualquer valor. (...) Contudo, Calvino negava que tivesse

qualquer ódio à vida. ” 116

Tillich mostrará como a negatividade antropológica influência a

compreensão da vida no protestantismo. Apesar do que compreendeu Weber, no

importante trabalho: “A ética protestante e o espírito do capitalismo”117, o

protestantismo seja marcado por um ascetismo intramundano, isto é, uma ascese

113 Cf. CALVINO, João. As Institutas ou tratado da religião cristã. Livro I. São Paulo: Casa

Editora Presbiteriana, 1985, Livro I, 15.2 114 Cf. Ibid, Livro I, 15.2 115 TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: Aste, 2000, p.266. 116 Cf. Ibid, p. 267 117 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Ed. Pioneira, 1998.

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118 não de fuga do mundo, mas de glorificação a Deus no mundo, por meio da

vocação, que é uma vida dirigida ao trabalho, no mundo. Há uma significativa

negatividade na compreensão de como a vida se dá na relação entre o que é

“espiritual”, e o mundano, ou carnal. Tillich pronunciará duas características de

tal ascetismo: limpeza e lucro por meio do trabalho. Limpeza entendida como

sobriedade, castidade e temperança.

Expressava-se em extrema limpeza externa e identificava o elemento erótico como

sujeira. Essa deturpação do erótico contrariava os princípios da Reforma, mas era

consequência natural da ética de Calvino. A segunda característica deste ascetismo

intramundano era a atividade no mundo para produzir instrumentos e ferramentas,

com os quais se alcançava lucro. O que Max Weber chamou de “o espírito do

capitalismo.119

Tais compreensões estão na base da repressão sexual, segundo Marilena

Chaui. Para a autora, “ascese quer dizer: limpar-se, purificar-se por meio de

exercícios físicos, morais e espirituais, que liberam a alma das impurezas e

imundícies do corpo, particularmente daquela que está na origem de todas as

outras: o sexo.”120

Tillich confirma tal questão quando discorre sobre o ascetismo sexual do

puritanismo:

O ascetismo sexual do puritanismo difere apenas no grau daquele monástico, mas

não no princípio; e de acordo com a concepção puritana do casamento, sua

influência prática é de muito maior alcance do que este. Por isso as relações

sexuais, mesmo no casamento, só são permitidas apenas como meio desejado por

118 Pelo termo ascese, que deriva do grego áskesis (=exercício), comumente se entende o conjunto

dos esforços mediante os quais se quer progredir na vida moral e religiosa. Originalmente o termo

a. indicava qualquer exercício – físico, intelectual e moral – praticado com certo método em vista

do progresso. No âmbito cristão a ascese tomou muitos significados mortificação, penitência,

exercício de virtudes para a consecução da perfeição. A este termo ligam-se as palavras 1)

ascética, doutrina relativa a ascese, ou seja, o empenho constante para alcançar uma perfeição

espiritual e progressiva; e ascetismo, que indica tanto a doutrina quanto a prática dos ascetas, ou o

estado dos que se dedicam a exercícios rigorosos de piedade. A ascese é, pois, a procura da

perfeição. Na experiência cristã, ela tende á adaptação sistemática de toda a vida do crente à

imagem e semelhança de Deus, inscrita na alma no momento da criação; é o esforço para

harmonizar a vida com fé por meio de uma morte contínua de cruz, segundo a linguagem de Paulo.

Portanto, ela não é o fim último da vida cristã, mas uma mediação instrumental para alcançar a

união com Deus Pai. Se houve desvios, exageros e confusões na prática da ascese foi porque se

instaurou, erroneamente, uma espécie de identificação entre a oposição, de origem grega, da alma

ao corpo e a oposição, da qual fala São Paulo, da “carne” ao “espírito”. BORRIELLO, L. et al.

Dicionário de mística. São Paulo: Paulus: Edições Loyola, 2003, Verbete: Ascese-Ascética, p. 117 119 TILLICH, História do pensamento cristão, p.267 120 CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa des(conhecida). São Paulo: Editora

Brasiliense, 1984, p. 149.

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Deus para aumentar Sua glória, de acordo com o mandamento “Crescei e

multiplicai-vos”. Ao lado de uma dieta vegetariana e de banhos frios, contra todas

as tentações sexuais é usada a mesma prescrição adotada contra as dúvidas

religiosas e o sentido de indignidade moral: “Trabalhe com vigor na tua vocação”.

Mas, a coisa mais importante é que, acima de tudo, o trabalho veio a ser

considerado em si, como a própria finalidade da vida, ordenada por. Deus. Nas

palavras de S. Paulo, “quem não trabalha não deve comer valem

incondicionalmente para todos”. A falta de vontade de trabalhar é sintoma da falta

de graça.121

Além de desvalorização da questão da sexualidade, o que será ainda,

analisado neste capítulo, a questão do corpo, como instrumento de produção,

sendo mecanicizado, quase assexuado, tratado como coisa, surge como uma das

dimensões desta desvalorização da corporeidade. Segundo Chauí, o trabalho surge

como salvador do corpo. O corpo do trabalhador é o corpo consagrado,

vocacionado, que glorifica a Deus. Há uma redução do significado do corpo

integrado a vida como um todo em todos os seus horizontes. Somente o corpo do

trabalhador, o corpo para o trabalho, no trabalho, como lugar de purificação. O

trabalho é o grande purificador daquilo que o puritanismo chama de vida suja. E

vida suja, tem a ver com uma sexualidade fora da disciplina, similar a monástica,

casta, refreada. “A ética puritana é como se o mundo todo virasse um imenso

mosteiro.”122

Weber dirá que em sua compreensão

na história, houve quatro formas principais de protestantismo ascético (no sentido

aqui adotado para a palavra), ou seja: o Calvinismo, na forma que assumiu na

principal área de influência na Europa ocidental, especialmente no século XVII, o

Pietismo, o Metodismo e as seitas que se desenvolveram a partir do movimento

Batista.123

2.3.5

Consequências da negatividade antropológica no protestantismo

brasileiro

É difícil a análise sobre o protestantismo brasileiro, por sua natureza

fragmentada. Mendonça resumindo introdutoriamente a questão, em sua obra

“Introdução ao Protestantismo no Brasil”, afirma:

121 WEBER, A Ética Protestante, p. 75. 122 CHAUI, Repressão sexual, p. 150. 123 Cf. WEBER, A Ética Protestante, p.41.

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Ao contrário da tradição católica, o protestantismo que surgiu na Reforma do

século XVI foi muito mais longe na variedade de tendências e instituições que

gerou, e desde cedo revelou-se incapaz de conservar-se unido. Por essa razão, é

muito mais adequado falar em “protestantismos” (luterano, calvinista, metodista,

etc.) que em “protestantismo brasileiro”.124

Contudo o que aqui se pretende é mostrar como existe no ethos protestante

de modo geral, uma determinada dificuldade com o corpo, oriundo de seu

percurso histórico. Ainda que inúmeras transformações tenham sido gestadas no

interior destes “protestantismos”, há um fundo comum de percepção do ser

humano e o dualismo moderado está lá, firmemente presente.

Gedeon Alencar ao apresentar sua pesquisa sobre o protestantismo

brasileiro, sobretudo o visto na igreja Assembleia de Deus, de matriz pentecostal

afirma:

...todo ethos protestante foi construído em termos de negação da

sexualidade, da atuação política, da participação artística, do incentivo ao

lazer, da vida na sociedade brasileira. Como diz Fernandes (1977), o

protestante tem preconceito de ser social; ser social é ser “mundano”. O

chavão repetido é: “Não somos deste mundo”. A conversão é, objetiva e

subjetivamente, incentivada e requerida em demonstração de aversão “às coisas

do mundo” e total separação do tudo o que possa parecer mundano. 125

Por certo, a compreensão acima descrita é derivada da influência pesada que

a visão dualista antropológica teve sobre a espiritualidade cristã. Mesmo

referindo-se à Assembleia de Deus e aos pentecostais, igrejas de missão como

batistas, congregacionais, luteranas, etc., também assumiram comportamentos

próximos, por vezes menos radicais, mas igualmente assentadas na mesma

dificuldade dualista. 126

Um dos traços de tal espiritualidade é a questão da conversão como rejeição

da cultura. Segundo Mendonça, o protestantismo que se instalou no Brasil trouxe

toda problemática da cultura americana. As missões protestantes, mais do que

124 MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no

Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1990, p.11. 125 ALENCAR, G. F. Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição à cultura

brasileira. 1. ed. São Paulo: Arte Editorial, 2005. p.71. 126 MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no

Brasil, p.216

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uma vivência religiosa, queriam também transmitir uma visão de mundo que

abarcava a cultura e moralidade.

“A conversão de brasileiros deveria ser uma adesão à religião – puritana,

petista e reavivalista – dos novos missionários, e para isso era necessário mudar

profundamente valores culturais, e morais. A conversão ao protestantismo e seus

valores implicava, portanto, completa rejeição da religião dos colonizadores”

(portugueses católicos).127 Atrelaram-se a uma compreensão cultural muito mais

americana e europeia, do que gestada em solo brasileiro. Isto é bem visto na

dificuldade que se deu na música, onde o ritmo brasileiro é visto como

“mundano” e pecaminoso. Os elementos da cultura são sempre colocados sempre

sob suspeita.

O protestante, em geral, se tornou conhecido pelo que é proibido fazer e não

pelo que positivamente faz. Fruto desta tendência escapista e em oposição às

realidades sociais. Daí toda teologia fica submetida a tal orientação. Encarnação,

missão, ressurreição, parousia são realidades que perdem força na vivência da

vida aqui e agora, sendo realidades que se aneladas somente no além e porvir.

Alencar atesta como, no pentecostalismo, uma acentuada tendência

escatológica, “nascida do fundamentalismo religioso, agravada pela contingência

dos conflitos mundiais – pelo período entre as duas grandes guerras” moldou uma

pesada tendência de negatividade com o mundo. A teologia pentecostal

assembleiana não quer resgatar o mundo, mas as pessoas do mundo. “O

pentecostalismo não tem esperança ou alguma boa vontade para com o mundo, e

tudo que lhe diga respeito. Ele, o mundo, está irremediavelmente perdido e a

única relação possível é de desprezo. Portanto pretende literalmente sair dele. Por

que, então, haveria a preocupação de modifica-lo? Influencia-lo?”128

2.4

Síntese conclusiva

O corpo pode ser um dos poucos lugares onde existe espaço para falar ao

homem contemporâneo. A modernidade opera uma virada humanista que estende

127MENDONÇA, Antonio Gouvêa; FILHO, Prócoro Velasques. Introdução ao protestantismo no

Brasil, p.216 128 ALENCAR, Protestantismo Tupiniquim, p.47.

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seus contornos até o tempo presente e nos chega através de uma crise profunda de

modelos e estruturas. A Igreja, em um primeiro momento, experimenta profundo

desconforto diante do esvaziamento que o transcendente sofre neste ambiente. No

que diz respeito à visão do ser humano, diante do avanço e descoberta das

ciências, a Igreja foi muito criticada. Esta, ressentida, se apegou a concepções

antigas, do homem e do mundo ampliando tal enfrentamento e ruptura com a

modernidade.129 Soma-se a isto a própria dificuldade que teve em lidar com a

dimensão do corpóreo, pela infiltração do dualismo platônico e neoplatônico e

posteriormente dualismo cartesiano moderno.

129 Cf. GARCIA RUBIO, Alfonso (org.), O humano integrado. Abordagens de antropologia

teológica. Petrópolis: Vozes, 2007, p.268.

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