Corporeidade Na Arte Atual Brasileira

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Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas Autor: Andrea Matos da Fonseca2012Dissertação

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO Programa de Ps-Graduao Interunidades em

    Esttica e Histria da Arte

    Andrea Matos da Fonseca

    Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas

    So Paulo 2012

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    Andrea Matos da Fonseca

    Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas

    Linha de Pesquisa: Metodologia e Epistemologia da Arte

    Orientadora: Profa. Dra. Carmen Sylvia Guimares Aranha

    So Paulo 2012

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre.

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    Fonseca, Andrea Matos da.

    Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas. So Paulo (SP), 2012.

    153f. : il.

    Dissertao (Mestrado - Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte da Universidade de So Paulo) Orientadora: Profa. Dra. Carmen Sylvia Guimares Aranha

    1. Corpo. 2. Corporeidade. 3. Arte Contempornea brasileira. 4. Fenomenologia. 5. Maurice Merleau-Ponty

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    FONSECA, Andrea Matos da. Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas. 2012. 153f. Dissertao (Mestrado) Programa Interunidades de Esttica e Histria da Arte, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    BANCA EXAMINADORA

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    Dedico este trabalho aos meus pais, Aurea e Joo.

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    AGRADECIMENTOS

    profa. Carmen Aranha, pela orientao e admirvel disposio de ensinar.

    Aos professores que fizeram parte da banca para o exame de qualificao, Ktia Canton e Joo Augusto Frayze-Pereira, pelas profcuas contribuies.

    Aos artistas que inspiraram este trabalho Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto.

    Aos artistas Jlio Meiron, Amanda Mei, Lia Chaia e Vitor Mizael, pela participao nesta pesquisa.

    Aos meus pais, Aurea e Joo, pelo amor e por todo o apoio.

    Ao Alexandre, pela compreenso e doao de sua paz em meus momentos difceis.

    Denise Peixoto, pela sua incansvel generosidade de compartilhar ideias.

    Elizabeth Brait Alvim, por recuperar a beleza e a poesia nos meus dias difceis.

    Leticia Leonardi e Andria Ferreira Reis, pela solidariedade acadmica ao dividir comigo suas dvidas e compartilhar suas respostas.

    Aos amigos e s amigas, pelo incentivo e dilogo ao longo destes anos.

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    Blanco Me vejo no que vejo

    como entrar por meus olhos em um olho mais lmpido

    me olha o que eu olho minha criao isto que vejo

    perceber conceber guas de pensamentos

    sou a criatura do que vejo (Poema: Octvio Paz/Verso: Haroldo de Campos)

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    RESUMO

    FONSECA, Andrea Matos da. Corporeidade na arte atual brasileira: sensibilidades desveladas. 2012. 153f. Dissertao (Mestrado) Programa Interunidades de Esttica e Histria da Arte, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    Este trabalho um estudo sobre a produo de alguns artistas brasileiros procurando situar o fenmeno corporeidade percebido em algumas obras. Aspectos da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty serviro de base para as anlises que sero feitas. No tratamos de definir um conceito final sobre o assunto, mas propomos a articulao de aspectos estudados na arte atual com temticas da filosofia pontiana que nos aproximam da compreenso de um entrelaamento entre o artista e o mundo, com o qual buscaremos desvelar possveis caractersticas da sensibilidade atual. Neste sentido, nos aproximamos da produo de trs artistas brasileiros de geraes diferentes: Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto. E, depois, procuramos observar como algumas questes ainda permanecem operantes nas produes e experincias de criao de jovens artistas, nascidos por volta dos anos de 1980: Jlio Meiron, Amanda Mei, Lia Chaia e Vitor Mizael. Esse tratamento permite um olhar para arte do qual emerge uma nova ideia de corpo no s como presena e fisicalidade, mas como ausncia e extenso, senciente-sensvel manancial fecundo para a expresso artstica.

    Palavras-chave: Corpo, corporeidade, arte contempornea brasileira, fenomenologia, Maurice Merleau-Ponty.

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    ABSTRACT

    FONSECA. Andrea Matos da. Corporality in Brazilian contemporary art: the sensitivities unveiled. 2012. 153 f. Dissertao (Mestrado) Programa Interunidades de Esttica e Histria da Arte, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    This research is a study on the production of some Brazilian artists and it seeks to locate the phenomenon corporality. Aspects of the phenomenology of Maurice Merleau-Ponty will be the basis for analysis that will be made. We dont try to set a final concept on the subject, but we propose the articulation of aspects studied in the current art and themes of the Merleau-Ponty's philosophy. So, we approach the production of three Brazilian artists of different generations: Amelia Toledo, Carmela Gross and Ernesto Neto. And then we observed how some issues continue still in production and operating in the experience of creating young artists: Julio Meiron, Amanda Mei, Lia Chaia and Victor Mizael. This treatment allows one to look at art from which emerges a new idea of the body not only as a presence and physicality, but as an absence and extension fruitful source for artistic expression.

    Keywords: body, corporality, Brazilian contemporary art, phenomenology, Maurice Merleau-Ponty.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: Amlia Toledo, Plano Volume, 1959 Figura 2: Amlia Toledo, Caminhos do Oco (processo), 1982 Figura 3: Amlia Toledo, Labirinto de Azul, 1993 Figura 4: Amlia Toledo, Poo, 1967-1969 Figura 5: Amlia Toledo, Caderno de Terra, 1999 Figura 6: Carmela Gross, Feche a Porta, 1997 Figura 7: Carmela Gross, Comedor de Luz, 1999 Figura 8: Carmela Gross, Em Vo, 1999 Figura 9: Carmela Gross, Aurora, 2003 Figura 10: Ernesto Neto, Ora Bolas... Alguma coisa acontece no mergulho do corpo, no horizonte, na gravidade, 2005 Figura 11: Ernesto Neto, We stopped just here at the time, 2002 Figura 12: Ernesto Neto, Navedenga, 1998 Figura 13: Ernesto Neto, Humanides, 2001 Figura 14: Jlio Meiron, s/ ttulo, Srie Retificao, 2006 Figura 15: Jlio Meiron, s/ ttulo, Srie Retificao, 2005-2009 Figura 16: Amanda Mei, Memorabilia, vista exterior da sala, 2009 Figura 17: Amanda Mei, Memorabilia, detalhe interior da instalao, 2009 Figura 18: Amanda Mei, Reflexo de uma intimidade, 2009 Figura 19: Lia Chaia, Desenho-corpo, 2001 (vdeo, 51) Figura 20: Vitor Mizael, s/ ttulo, Srie Autorretrato, 2006-2007

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    SUMRIO

    Introduo. O enigma da comunho com as coisas 12

    Captulo 1. Aparncias e sentidos da noo de corporeidade: as trajetrias de Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto

    18

    1.1. As trajetrias de Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto

    19 1.1.1. Amlia Toledo e o desvelar de um aspecto mstico do envolvimento corporal no trabalho artstico

    21 1.1.2. Carmela Gross e o deflagrar de um corpo atravessado pelo mundo percebido

    28 1.1.3. Ernesto Neto e o corpo como guardio da potica do onrico 33

    Captulo 2. Situando o fenmeno da corporeidade: leitura de produes artsticas atuais

    42

    2.1. Jlio Meiron: A obra de arte como plataforma para o mundo

    45 2.1.1. Descrio de trabalhos de Jlio Meiron a partir das unidades de significado

    49 2.2. Amanda Mei: construir e reconstruir com os restos do mundo 51 2.2.1. Descrio de trabalhos de Amanda Mei a partir das unidades de significado

    54 2.3. Lia Chaia: A plasticidade do corpo na apreenso do mundo 57 2.3.1. Descrio de trabalhos de Lia Chaia a partir das unidades de significado 60 2.4. Vitor Mizael: a codificao do vivido como elemento da linguagem plstica

    62 2.4.1. Descrio de trabalhos de Vitor Mizael a partir das unidades de significado

    66 2.5. Alguns indcios para a leitura de produes artsticas atuais 68

    Captulo 3. A Fenomenologia de Merleau-Ponty como matriz de fundamentos para a compreenso do fenmeno corporeidade nas artes visuais

    73

    3.1.A filosofia do olhar e o corpo fenomenolgico 74 3.2. Matriz de fundamentos: a noo de corporeidade 77 3.2.1. O encontro com o corpo prprio 77 3.2.2. O situar de um campo de presena 80 3.2.3. A aproximao de um cogito tcito 83 3.2.4. O entrelaamento entre a carne e o sensvel 85

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    Consideraes Finais. Alguns aspectos da sensibilidade atual desvelados pela arte 90

    Referncias

    Bibliografia consultada 98 Filmografia 104 Websites 104

    Anexo 1: Entrevistas 106

    1. Entrevista com Jlio Meiron 107 2. Entrevista com Amanda Mei 117 3. Entrevista com Lia Chaia 127 4. Entrevista com Vitor Mizael 142

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    INTRODUO. O ENIGMA DA COMUNHO COM AS COISAS

    (...) Eu tinha mais comunho com as coisas do que comparao. Porque se a gente fala a partir de ser criana, a gente faz comunho:

    de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garas, de um pssaro e sua rvore. Ento, eu trago das minhas razes crianceiras a viso

    comungante e oblqua das coisas. (...) Manoel de Barros1

    erta vez, durante a mediao de uma visita em um museu para um grupo de jovens e adultos, paramos em frente a uma obra e perguntei o que viam. Instalou-se um silncio, rompido, aps alguns minutos, pela fala e pelos gestos de uma participante. Ela dizia saber do que tratava a obra e mostrava, nas cicatrizes do seu prprio corpo, aparentemente, marcas de uma compreenso da linguagem depositada pelo artista no trabalho. Haviam vrios elementos presentes na obra, mas essa visitante destacou apenas um deles, ao qual relacionou a sua prpria vivncia corporal. Estas situaes me fizeram perguntar sobre as escolhas do artista e o emprego de suas prprias experincias ao criar a obra. Como educadora em exposies constru observaes e interrogaes a respeito da relao do visitante com os objetos ali presentes, fossem eles artsticos ou histricos. Para mim, intrigante pensar sobre o olhar, j que ao olhar o todo o visitante focava-se e escolhia alguns ou, at mesmo, um objeto ou trabalho artstico para comentar ou perguntar, mesmo que este, a princpio, no fizesse parte da visita. Essa afinidade do visitante com uma ou outra pea, muitas vezes, fundava-se em um encontro, talvez, de uma memria, de uma experincia, ou, talvez, de sentidos do objeto artstico ou histrico com os do prprio indivduo que o experienciava. Entretanto, esse encontro no se encerrava um no outro, ou seja, havia algo entre o visitante e a obra, incidncias para as quais eu no poderia nomear naquele momento.

    Era certo, para mim, que o artista em suas produes emprega algo de si que tambm diz respeito ao visitante. Sua experincia parece emergir como ancoradouro para dar visualidade ao encontro do visitante com a obra de arte. Para alm de um saber intelectual sobre a obra, esse visitante parecia oferecer as memrias de significaes vividas ou de uma compreenso da obra por meio de gestos, expresses, palavras, entre outros indcios que, no entrecruzamento com o trabalho do artista, construa novos elos de comunicao e 1 BARROS, Manoel. Memrias inventadas: a infncia. So Paulo : Planeta, 2009.

    C

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    compreenso com a obra. Em minhas diferentes experincias com atividades educativas que envolviam as linguagens das artes visuais, o corpo era convocado como dimenso que sincronizava a experincia individual, o conhecimento socialmente construdo e o mundo percebido, quer dizer, o corpo abarcava o que aquele indivduo era no seu ser-estar no mundo, o que j tinha apreendido, formalmente ou no, e o que ele percebia naquele momento. Neste sentido, fui me aproximando dessa motivao, no como conceito ou tema do processo criativo, mas como uma matria artstica que entremeia a criao. Do corpo que, para alm de sangue, msculos e ossos, constitui-se, tambm, por um parentesco com o mundo sensvel e que nele encontra extenses.

    Essas intuies e pensamentos iniciais sobre essa ideia encontraram na obra filosfica de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) um acolhimento, especialmente, na proposio da unidade do corpo como matriz da reflexo e do fenmeno expressivo, no sentido de uma

    reciprocidade entre esse corpo e o mundo, o senciente-sensvel do qual nos fala o filsofo2. E,

    por outro lado, a prpria filosofia pontiana, tambm, trouxe outros questionamentos em relao a essa troca, por exemplo, podemos no processo de criao artstica situar essa possibilidade de troca entre o corpo do artista e o corpo do observador da obra? E mais, presentemente, como a arte contempornea revela esse fenmeno?

    Assim, este trabalho comea a se constituir no bojo da minha convivncia com produes artsticas atuais e do meu encontro com as interrogaes que a obra de Merleau-Ponty me traz, enquanto exero minha prpria prtica que articula educao e linguagens artsticas, buscando a natureza das afinidades que se tecem entre o ser e os fenmenos esttico-visuais que se do no encontro com a obra de arte, ou seja, um fenmeno do conhecimento, inscrito em um sistema aberto de correlaes que envolve corpo e mundo3. A minha pergunta, assim, caminhou para o enigma da comunho do corpo com as coisas no processo de criao artstica e se sintetiza, agora: quais relaes so possveis entre o corpo e o processo de criao?

    Essa pergunta deu origem a minha procura pela compreenso do encontro com o

    2 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem

    indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 17-18. 3 (...) O corpo nos une diretamente s coisas por sua prpria ontognese, (...) massa sensvel que ele e a massa

    do sensvel de onde nasce por segregao, e qual, como vidente, permanece aberto. (...). MERLEAU-PONTY, Maurice. O visvel e o invisvel. So Paulo : Perspectiva, 2005, p. 132.

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    corpo prprio4 no que diz respeito a obra de arte. O trabalho artstico podia ser entendido como um processo no qual esto envolvidos operaes de reversibilidade, ambivalncia e reciprocidade entre o corpo do artista, o objeto artstico e o observador. Porm estas noes parecem inscrever a produo artstica em uma relao de inacabamento, uma articulao espao-tempo, uma experincia entre sujeito e objeto que se d no emaranhado do mistrio indicado por Merleau-Ponty entre o vidente que percebe que visvel e sensvel para si

    mesmo5.

    Esse mistrio situa-se, tambm, como uma ausncia que, ao mesmo tempo, parece desvelar vestgios de presena do prprio corpo do artista no seu fazer-pensar, no carter primordial da experincia vivida. Isto quer dizer que h um substrato de ausncia do corpo no fazer artstico articulado na obra que se institui, para alm da sua representao enquanto fisicalidade da obra, como visualidade e se constitui na simultaneidade entre os outros entes e as coisas do mundo.

    E esta perspectiva relacionava-se ao meu trabalho com a educao e as linguagens das artes visuais, pois este no se configurava como uma transmisso-assimilao de conhecimentos relacionados a determinadas obras de arte. Esta ao educativa se caracterizava pela compreenso de movimentaes do olhar e do corpo do observador que poderiam ser apreendidas como dimenso de um conhecimento presente no ser que lhe permite decifrar-se na sua percepo esttica e na sua prpria experincia, construindo e atribuindo significados ao mundo.

    Entre todas as noes que me interessaram nos trabalhos do filsofo, encontrei nas suas reflexes sobre o corpo um encaminhamento para as minhas prprias questes. Essa decodificao do visvel realizada no corpo caracteriza uma compreenso visual do mundo e

    sua decorrente interpretao plstica como ordenamento de um processo de conhecimento6.

    4 Merleau-Ponty desenvolve no seu livro Fenomenologia da Percepo (1999) um captulo com o ttulo de A

    sntese do corpo prprio (p. 205-212). Neste captulo o filsofo apresenta o corpo enquanto noo primordial de nossa existncia, na qual o espao esta enraizado na existncia (p. 205), ou seja, no temos um corpo como pensamento ou ideia, somos nosso corpo. Para Merleau-Ponty nosso corpo comparvel obra de arte, pois seja uma pintura, uma poesia ou uma msica, as sensaes que essas obras nos propiciam vm de um todo no qual no possvel separar partes; um conjunto, uma totalidade, que ele entender como um n de significaes vivas (p. 210), logo esse corpo que percebe e tem suas experincias no mundo indicado por ele como corpo prprio. Ele nosso recorte do mundo e com o qual o vivenciamos, pois, podemos, ao mesmo tempo, ver e ser vistos, senti-lo e, simultaneamente, tambm experiment-lo. Outros aspectos do corpo prprio sero desenvolvidos no decorrer deste trabalho, especialmente no Captulo 3: A Fenomenologia de Merleau-Ponty como matriz de fundamentos para a compreenso do fenmeno corporeidade nas artes visuais. 5 MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem

    indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 17. 6 ARANHA, Carmen Sylvia. G. Exerccios do olhar: conhecimento e visualidade. So Paulo: Editora UNESP;

    Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008, p. 12.

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    O presente estudo destaca, ento, questes plstico-visuais que visam fomentar a discusso sobre a interao entre a produo artstica e o conhecimento da obra filosfica de

    Merleau-Ponty7. E o objeto de estudo deste trabalho, ento, composto pela ideia que h um enigma da comunho com as coisas, um encontro com a plasticidade do mundo-vida como indcio para situar as potencialidades do encontro com o corpo prprio como uma experincia

    que exige a criao, que indicaremos como sinalizador de uma corporeidade8 que

    pretendemos situar e compreender com este estudo. A partir da pesquisa visual de artistas contemporneos e das leituras dos escritos de Merleau-Ponty, este projeto articula aspectos filosficos presentes na obra pontiana para se aproximar do fenmeno identificado como corporeidade na arte. Esta aproximao no trata da definio de um conceito, mas de uma conjuno de aspectos a partir dos escritos fenomenolgicos pontianos que se entrelaam na sua constituio.

    O objetivo deste escrito, ento, no estudar a representao do corpo traduzido em critrios plsticos, mas compreender e articular um entendimento do corpo na sua extenso com o mundo por meio de visualidades das obras de arte contemporneas, o que tambm ilumina e revela possveis aspectos de uma sensibilidade atual, a partir da concepo do fenmeno corporeidade. Ou seja, pode-se dizer que partimos de um corpo como presena real - tanto nas visitas, como nas obras - para alcanar um corpo como fenmeno. Assim, importante ressaltar que durante as leituras que tratavam de aes do corpo na arte contempornea, como o happening, a performance, a body art, a body modification, entre outros, percebemos que a motivao deste trabalho no se refere to somente a uma presena fsica do corpo no trabalho artstico, mas, principalmente, dos processos do corpo como participante do trabalho, em um 7 Reconhecemos que Maurice Merleau-Ponty especialmente, em suas trs principais obras: A estrutura do

    comportamento, A Fenomenologia da Percepo e O Visvel e o Invisvel constri seu pensamento no dilogo crtico com outros pensadores e quadros tericos da filosofia. Outro aspecto importante, que sua produo traz em seu bojo uma filosofia como interrogao constante, um pensar sempre em movimento distante da construo de sistemas fechados de pensamento. Tambm, podemos dizer que seus escritos encontram na obra de arte uma abertura para o que a cincia e a filosofia deixaram de interrogar. Logo, dado o mbito deste estudo, realizado no Programa de Ps-Graduao Interunidades em Esttica e Histria da Arte, abordaremos as diferentes contribuies de seus escritos sem realizar uma periodizao ou um entrecruzamento de sua obra com outras correntes do pensamento do sculo XX. Adotaremos aspectos dos trabalhos pontianos em suas convergncias e diversas possibilidades de articulao. Ao identificar as dimenses filosficas na arte atual no vamos ilustrar sua filosofia, mas, sim, refletir sobre a atualidade de seu pensamento e proposies para a compreenso da produo artstica atual e, por outro lado, pensar como a arte atual pode clarear alguns pontos dessa filosofia fenomenolgica. 8 O vocbulo corporeidade aparece em dicionrios de filosofia e estudos acadmicos. Porm, no apresentaremos

    uma definio a priori deste termo, pois no o intento deste estudo realizar uma reviso crtica da literatura cientfica que aborda essa noo. Nosso objetivo construir uma noo de corporeidade situada como fenmeno interrogado na arte atual brasileira. Assim, no decorrer deste trabalho a palavra corporeidade ser indicada sempre em itlico, j que se trata de uma noo a ser desenvolvida ao longo deste estudo.

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    carter que se assume como extenso do mundo ao ver-se entre as coisas e, principalmente, no seu entrelaamento solidrio com os outros entes, as coisas e o mundo.

    (...) H uma experincia da coisa visvel como preexistindo minha viso, mas no fuso, coincidncia: j que meus olhos que veem e tocam o visvel, o tangvel, pelo interior, j que nossa carne atapeta e at mesmo envolve todas as coisas visveis e tangveis por que este envolvida, o mundo e eu somos um no outro, e do percipere ao percipi no h anterioridade, mas simultaneidade ou mesmo atraso. (...)9

    Para a construo deste estudo realizamos um levantamento bibliogrfico de carter exaustivo do tema, verificando a existncia ou no de correspondncias com outros estudos j realizados e recolhendo possveis contribuies advindas desses trabalhos. A anlise bibliogrfica, o aprofundamento da leitura das obras de Merleau-Ponty e a investigao sobre elementos plsticos-visuais de produes artsticas contemporneas so auxiliares para a composio de entrevistas que fazem parte da pesquisa no sentido de aproximar-se da experincia vivida de jovens artistas em seu processo de criao e oferecer, por meio da escrita, operaes e visualidades dessa corporeidade em obras escolhidas de artistas estudados. As entrevistas tambm subsidiam reflexes a respeito de aspectos da sensibilidade contempornea que podem ser desvelados por meio da arte, pois parecem revelar fenmenos relativos construo do conhecimento humano que estamos interrogando. Assim, questionamentos individuais dos artistas se entrelaam ao tecido cultural da humanidade e a histria da arte deixa, desse modo, de ser compreendida como processo linear para tornar-se o campo no qual possvel perceber e destacar um emaranhado composto entre corpo e mundo no processo de criao artstica. O primeiro captulo, Aparncias e sentidos da noo de corporeidade: as trajetrias de Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto, apresenta uma aproximao inicial do fenmeno que queremos identificar como corporeidade, busca-se uma anlise realizada a partir de exerccios do olhar, por meio de investigaes visuais que situam a minha prpria experincia como fruidora e do que alcano enxergar nesses trabalhos artsticos e, tambm, a partir de leituras bibliogrficas. Por isso, selecionamos esses artistas, Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto que situam algumas noes de corporeidade percebidas em um carter pr-reflexivo e de visualidades da arte contempornea brasileira. A realizao de entrevistas foi um recurso para averiguar e situar algumas questes

    9 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visvel e o invisvel. So Paulo : Perspectiva, 2005, p. 121.

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    que percebemos como operaes da corporeidade que permanecem ou no operantes em jovens artistas brasileiros. A entrevista se configura como uma possibilidade de construo de narrativas a partir de dados da experincia vivida com a qual nos aproximaremos do fenmeno pesquisado. O contato com os artistas buscou uma aproximao dos seus processos de criao e possibilidades de leitura de suas produes com o substrato da corporeidade que buscamos investigar, estes contedos subsidiaram a escrita do segundo captulo Situando o fenmeno corporeidade: leitura de produes artsticas atuais.

    A pesquisa apresenta um carter mais reflexivo no terceiro captulo A

    Fenomenologia de Merleau-Ponty como matriz de fundamentos para a compreenso do fenmeno corporeidade nas artes visuais. Este se constri a partir da apresentao de quatro aspectos motivadores selecionados na obra de Merleau-Ponty que visam compreenso da representao do corpo no caminho para uma noo de corporeidade, no encontro com o corpo prprio na criao artstica. Isto tambm sinaliza uma ampliao no campo da expresso artstica durante o sculo XX e permite refletir sobre as passagens de um corpo que sair da condio de objeto de representao mimtica para estender-se condio de existncia da produo artstica.

    A partir deste percurso, espera-se trazer algumas consideraes que sero realizadas ao final deste trabalho, ou seja, espera-se poder indicar alguns aspectos constituintes de uma sensibilidade contempornea desvelada, aqui, por meio da linguagem das artes visuais e trazer algumas contribuies para a reflexo sobre como a arte se apresenta como fundamento para recuperar aspectos estticos da sociedade e tambm relativos prpria condio humana.

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    CAPTULO 1. APARNCIAS E SENTIDOS DA NOO DE CORPOREIDADE: AS TRAJETRIAS DE AMLIA TOLEDO, CARMELA GROSS E ERNESTO NETO

    principal objetivo deste captulo buscar compreender, por meio de uma trajetria de pesquisa, o vivido, transcendendo o dado emprico no sentido de cercar o tema investigado que se d no encontro entre o pesquisador e o fenmeno a ser pesquisado10. Ou

    seja, o objeto deste trabalho no trazer uma definio ou construir um conceito a partir de um corpo que manipula o mundo e renuncia a habit-lo afastando-se para v-lo de longe, antes o desafio deste trabalho olhar a corporeidade das coisas; abertura ao mundo,

    implicao como ser em entrelaamento solidrio com os outros e com os objetos11. Neste sentido, no se pretende apresentar um inventrio de artistas contemporneos nos quais seria possvel perceber o fenmeno corporeidade. Realizamos, outrossim, uma construo provisria do fenmeno interrogado, a partir de descries e indicaes de algumas aparncias e sentidos, situando-o no itinerrio de criao de trs artistas brasileiros de diferentes geraes.

    Ao olhar a produo destes artistas, desejamos perceber indcios do fenmeno interrogado corporeidade como uma origem da criao artstica, j que este nos aponta para uma experincia vivida recoberta da sensibilidade que atravessa o artista e o permite encontrar em seu corpo no s a potncia do gesto criador, mas, tambm, a gnese de sentidos culturais constituintes de sua vivncia na sociedade contempornea.

    Assim, a pesquisa sobre os artistas brasileiros procurou compreender a epokh12, conceito grego revivido por Husserl, com a qual se buscou aproximaes do fenmeno interrogado como corporeidade na arte contempornea, tendo em vista uma abertura para a multiplicidade de aparncias que o mesmo poderia assumir e sua reduo forma essencial do

    10

    Cf. MACHADO, Ozeneide V. de Mello. Pesquisa Qualitativa: Modalidade fenmeno situado. In: BICUDO, Maria Aparecida Viggiani; ESPOSITO, Vitria Helena Cunha (orgs.). A pesquisa qualitativa em educao: um enfoque fenomenolgico. Piracicaba : Editora Unimep, 1994, cap. 3, p. 35-46. 11

    MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 13. 12

    1. Suspenso do juzo, no aceitar nem refutar, no afirmar nem negar. 2. Em Husserl contemplao desinteressada; atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicolgico na existncia das coisas do mundo ou do prprio mundo na sua totalidade. ABBAGNANO, Nicola (Ed.). Dicionrio de Filosofia. 5 Edio (revista e ampliada). So Paulo : Martins Fontes, 2007, p. 395-396.

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    fenmeno13. Logo, os artistas selecionados como ncleo desse estudo, Amlia Toledo, Carmela Gross e Ernesto Neto, possibilitam discutir e apontar movimentaes que nos aproximaro das formas essenciais e estruturas do fenmeno que interrogamos. Assumimos um horizonte conceitual ligado fenomenologia de Merleau-Ponty, no sentido de compreender a noo de no separao do corpo como experincia e do pensamento como um saber com base no vivido. Merleau-Ponty aponta para o entendimento de um corpo que habitado por uma conscincia que tem vida em si por meio de uma maneira ativa de ser, um ser conhecedor que se volta para o mundo-vida no seu agir-agindo, pensar-pensando, sentir-sentindo, uma entrada no mundo que, misteriosamente, nos volta a

    ns mesmos14. Inicialmente, tomaremos como base a epokh e a reduo fenomenolgica para

    descrever e compreender as aparncias e sentidos do fenmeno que queremos situar, partindo de aspectos que nos ofeream uma aproximao gradual do fenmeno interrogado enquanto

    corporeidade na arte atual15. A noo de corporeidade apresentada neste captulo tratar a multiplicidade de

    aparncias e sentidos que surgem da deciso de ir a coisa mesma e da tentativa de torn-la visvel como fenmeno que se constitui e se ilumina pelo mundo-vida. O captulo pretende assumir caminhos abertos e fludos pela prpria caracterstica da formao da percepo. No se deseja, a priori, explicar, mas apontar e compreender a sua existncia fenomenolgica.

    1.1. AS TRAJETRIAS DE AMLIA TOLEDO, CARMELA GROSS E ERNESTO NETO

    egundo Merleau-Ponty16: O Ser o que exige de ns criao para que Dele tenhamos experincia. Assim, falar de trajetrias em um trabalho que procura investigar o fenmeno corporeidade na arte atual , em essncia, enunciar alguns lugares e experincias que se perguntam sobre o que isto a criao artstica atual?

    13

    O estudo da essncia como evidncia na reduo fenomenolgica foi introduzida na filosofia contempornea por Edmund Husserl (1859-1938). O termo eidtico, originado de eidos, utilizado (...) para indicar tudo o que se refere s essncias que so objeto da investigao fenomenolgica. Cf. ABBAGNANO, Nicola (Ed.). Dicionrio de Filosofia. 5 Edio (revista e ampliada). So Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 360. 14

    CHAU, Marilena. Experincia do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo : Martins Fontes, 2002. (Coleo Tpicos), p. 166-167. 15

    Cf. MACHADO, Ozeneide V. de Mello. Pesquisa Qualitativa: Modalidade fenmeno situado. In: BICUDO, Maria Aparecida Viggiani; ESPOSITO, Vitria Helena Cunha (orgs.). A pesquisa qualitativa em educao: um enfoque fenomenolgico. Piracicaba : Editora Unimep, 1994, cap. 3, p. 35-46. 16

    CHAU, op. cit., p. 151.

    S

  • 20

    Por que criao? Porque entre a realidade dada como um fato, instituda, e a essncia secreta que a sustenta por dentro h o momento instituinte no qual o Ser vem a ser: para que o Ser do visvel venha visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o Ser da linguagem venha expresso, pede o trabalho do escritor; para que o Ser do pensamento venha inteligibilidade, exige o trabalho do filsofo. Se esses trabalhos so criadores justamente porque tateiam ao redor de uma inteno de exprimir alguma coisa para a qual no possuem modelo que lhes garante o acesso ao Ser, pois sua ao que abre a via de acesso para o contato pelo qual pode haver experincia do Ser. (...)17

    Neste sentido, discutir e compreender melhor este lugar da criao como um stio do instituinte no qual a ao do artista se articula ao perceber algo ainda a exprimir, que

    ainda no foi expresso. Merleau-Ponty18 ao estudar a produo artstica de Czanne

    esclarece-nos que um recurso bastante utilizado na histria da arte a compreenso da obra de um artista por meio de sua biografia, o que, muitas vezes, leva a uma psicologizao da obra, tratada a partir de anlises que privilegiam o estudo da subjetividade do artista. O autor nos adverte que essa perspectiva pode limitar e obscurecer a leitura das obras de arte por no considerar elementos do discurso plstico adotados pelo artista, alm de dar margem a proposies equivocadas que vo dar a obra artstica apenas um carter sintomtico. Pois, (...) certo que a vida no explica a obra, mas certo tambm que elas se comunicam. A verdade que essa obra por fazer exigia essa vida. (...).19. Merleau-Ponty quer nos aproximar da obra de arte possibilitando-nos descrever seus elementos e perceber a produo artstica como uma vivncia significativa do mundo, uma (...) manifestao codificada da prpria vivncia do artista. A obra pode nos oferecer o acesso expresso de aspectos da experincia

    alojada no ser artista (...).20. Nessa tentativa de compreender vida e obra como uma nica aventura como nos

    indica Merleau-Ponty21, Frayze-Pereira22 considera que um exerccio de leitura de obra precisa considerar a concretude sensvel do que criado, a historicidade dos meios e o seu contexto de realizao, pois, muitas vezes, a crtica de arte se concentra em uma leitura psicolgica e em um discurso clnico. Segundo o autor, a escrita sobre um artista necessita ter como fio condutor a dinmica interna da sua obra temas, materiais, tcnicas, tendncias estilsticas, compromissos crticos e estticos j que a obra deve ser o princpio fundamental para se 17

    CHAU, Marilena. Experincia do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. So Paulo : Martins Fontes, 2002. (Coleo Tpicos), p. 151-152 18

    MERLEAU-PONTY, Maurice. A dvida de Czanne. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 125. 19

    Ibid., p. 136. 20

    ARANHA, CARMEN S. G.; BRITO, AMAURY C.; ROSATO, Alex. Cultura de visualidades: aproximaes da linguagem artstico-visual. In: ARANHA, Carmen S. G.; CANTON, Katia (coords.). Espaos de mediao. So Paulo : PGEHA / Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo, 2011, p. 38. 21

    MERLEAU-PONTY. A dvida de Czanne, op. cit., p. 136. 22

    FRAYZE-PEREIRA, Joo Augusto. Arte, Dor: inquietudes entre esttica e psicanlise. 2. Ed. revista e ampliada, Cotia, So Paulo : Ateli Editorial, 2010, p. 243-244 e p. 267-268.

  • 21

    pensar a expresso artstica que se articulada simultaneamente vida. O fenmeno corporeidade, do qual queremos nos aproximar, instaura esse stio do

    instituinte como um dos possveis lugares da criao. Porm importante salientar que a dimenso da corporeidade, apontada em cada artista, no excludente das outras faces da criao, ao invs se comunicam, tem pontos em comum e esto entrelaadas. Alm disso, nosso objetivo nesse trabalho, no esgotar todas as possibilidades de anlise das obras dos artistas ou mesmo fazer afirmaes definitivas sobre a trajetria dos artistas e fases de suas obras. O escopo desse estudo trata da seleo de algumas obras que nos desvelam movimentos da criao em visualidades, experincia primordial do mistrio do mundo continuamente renovada.

    Assim, selecionamos trs artistas de diferentes geraes da arte brasileira para nos orientar em nossa pesquisa, em um primeiro momento: Amlia Toledo (1926), Carmela Gross (1946) e Ernesto Neto (1964). Ao realizarmos um estudo mais atento de momentos de sua produo, vislumbramos possibilidades do lugar e das movimentaes do fenmeno que identificamos como corporeidade na criao artstica atual.

    1.1.1. Amlia Toledo e o desvelar de um aspecto mstico do envolvimento corporal no trabalho artstico

    odemos iniciar nossa fala sobre a potica de Amlia Toledo nos apropriando de alguns versos de Carlos Drummond de Andrade.

    Tenho apenas duas mos e o sentimento do mundo,

    mas estou cheio de escravos, minhas lembranas escorrem e o corpo transige na confluncia do amor. 23

    Estas mos se unem aos olhos curiosos e a um pensamento solidrio s coisas como em um entrelaamento entre o mundo e a corpo constitudos da mesma carne, do mesmo

    tecido24, espessura constituinte entre o vidente e o visvel que permite a ambos se

    23

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 1. Edio Rio de Janeiro : MEDIAfashion, 2008. (Coleo Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 4), p. 9 24

    MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o esprito. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 17.

    P

  • 22

    comunicarem25. As experincias de Amlia Toledo caracterizam-se como um contato com a

    experincia mais plena e ampla da criao, segundo nos aponta Frayze-Pereira26.

    Nascida em So Paulo no ano de 1926, no possvel ligar Amlia Toledo e seus trabalhos a uma vertente artstica especifica devido a sua intensa experimentao de tcnicas, materiais e suportes e aos processos diversificados de produo artesanal, industrial e coletivos presentes em sua obra, como uma contnua contribuio para renovar a experincia

    do mundo27. Pode-se dizer, ento, que Amlia realiza um inventrio do mundo que emerge na sua potica em espaos-tempos, matrias e luzes, cifras que passam pelo corpo e se

    transformam em extenses da cultura do prprio artista. A acumulao de objetos, tais como pedras, conchas, caramujos, ostras, desvela

    escolhas e invenes de nexos que organizam os fragmentos da prpria existncia da artista. No um colecionismo, mas um tratamento do objeto total como uma "descoberta" que complementa o corpo pelo invlucro exterior. Esses "recortes do mundo" apontam para uma totalidade, cmplice do seu olhar e das coisas em um circuito de vertigens de novos sentidos.

    Amlia Toledo parece desvendar a matria enquanto um enraizamento de uma experincia do mundo continuamente renovada. A artista no s utiliza um repertrio de materiais existentes nas artes visuais, mas descobre condies de linguagem em materiais no usualmente adotados em trabalhos artsticos: plsticos, chapas de ferro, materiais orgnicos e minerais so selecionados tendo em vista alcanar o que almejado pela artista na sua produo.

    (...) As sensaes, as qualidades sensveis, esto longe de se reduzir experincia de um certo estado ou de um certo quale indizveis, elas se oferecem com uma fisionomia motora, esto envolvidas por uma significao vital. Sabe-se h muito tempo que existe um acompanhamento motor das sensaes, que os estmulos desencadeiam movimentos nascentes que se associam sensao ou qualidade e foram um halo em torno dela, que o lado perceptivo e o lado motor do comportamento se comunicam. (...)28

    Esse carter instaurador nas produes de Amlia Toledo se inscreve na problematizao de questes visuais que so marcadas pela ao do corpo, como pode ser percebido na obra Plano Volume (1959): marca a converso do plano em volume, que 25

    MERLEAU-PONTY, Maurice.. O visvel e o invisvel. So Paulo : Perspectiva, 2005, p. 132. 26

    FRAYZE-PEREIRA, Joo Augusto. Arte, Dor: inquietudes entre esttica e psicanlise. 2. Ed. revista e ampliada, Cotia, So Paulo : Ateli Editorial, 2010, p. 409. 27

    FARIAS, AGNALDO. Amlia Toledo. As naturezas do artifcio. So Paulo: W11, 2004, p. 24 28

    MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepo. 2 Ed. - So Paulo : Martins Fontes, 1999, (Tpicos), p. 282.

  • 23

    ocupa o espao e expressa por meio de seus cortes, curvas e dobras a exigncia da atuao do corpo em uma apreenso na qual a obra emerge enquanto correlaes entre o corpo e o espao vivido.

    Figura 1: Amlia Toledo, Plano Volume, 1959

    Em Plano Volume (1959), figura 1, a lmina de cobre, recortada e desdobrada, se espacializa como complementaridade entre dentro e fora, a ambivalncia entre o cheio e o vazio, a tenso entre o espao slido e o virtual. As formas adotadas pela artista tambm marcam uma ambiguidade que a obra assume no espao devido as diferentes possibilidades que apresenta para sua contemplao. Estes so recursos para uma obra aberta que articula a ideia de um volume nico articulado a suas partes. O trabalho da artista quer situar um estudo sistemtico do espao escultrico moderno de raiz abstrato-geomtrica, isto

    construtiva29, que se apropria do corpo como espao de movimentaes que atualiza a

    historicidade dos movimentos e estilos artsticos modernos. Diversos trabalhos de Amlia Toledo apresentam um tempo-existncia que se configura em diferentes operaes que assumem as escolhas da artista: os materiais selecionados apresentam um estado de decomposio mais lento, como as pedras; a deciso

    29

    FARIAS, AGNALDO. Amlia Toledo. As naturezas do artifcio. So Paulo: W11, 2004, p. 81.

  • 24

    de ver o carter fludo do tempo natural encarnado na deteriorao de objetos naturais, como nas conchas; na organizao dos materiais, um trabalho cientfico de classificao, ordenao e observao de seu comportamento; no dilogo com a histria manifesta em alguns trabalhos dos anos de 1960-1970; na possibilidade de perceber os vrios gestos da artista nas camadas e sobreposies da cor em suas pinturas monocromticas; ou ainda, na coleo de materiais, resduos de suas experincias significativas.

    Figura 2: Amlia Toledo, Caminhos do Oco (processo), 1982

    Na figura 2, o processo de trabalho Caminhos do Oco, 1982, parece revelar a experincia do tempo como durao e fluidez: perfila os objetos naturais encontrados, as conchas, retiradas de seu espao natural e depositadas sobre a matria, no caso areia, desenhada pela artista como indcios de sua passagem pelo mundo, nos remetendo, assim, a um tempo, pela ao de recolher e dar organicidade s conchas, de formatos e tamanhos variados. As linhas marcadas na areia, material utilizado para medir o tempo deste a Antiguidade por meio de ampulhetas, parecem indicar um caminho percorrido e o reconhecimento da transitoriedade da vida.

    A artista viaja pelo tempo. Segue por ele como que o desfibrando, experimentando suas verses, sopesando-o e articulando alguns dos infinitos modos por que ele se faz sentir. As obras produzidas a partir desse exame lento e percuciente tanto isolam aspectos particulares dessa dimenso cujo enigma se mantm inclume ao longo das eras como os trazem combinados uns aos outros. Ora a artista cuida simplesmente em apresentar o tempo tal como ele manifesta nas coisas, no serrilhado cortante das bordas das conchas, num seixo alisado pelo polimento macio da gua corrente, ora ela se coloca como parceira, sublinha-o como aliado poderoso na realizao de seus trabalhos.30

    Alm disso, os trabalhos de Amlia Toledo tambm apresentam uma especulao 30

    FARIAS, AGNALDO. Amlia Toledo. As naturezas do artifcio. So Paulo: W11, 2004, p. 143.

  • 25

    sobre o espao enquanto relao e mobilidade. O espao criado pela artista expansvel e

    retrtil 31, um convite ao encontro, uma dimenso construda na relao simultnea entre as

    coisas e as pessoas. Em algumas de suas obras, o observador convidado a rever sua prpria experincia, ao fazer e refazer uma experincia proposta pela artista. Tal como na obra Labirinto de Azul (1993), figura 3, por exemplo, o observador convidado a entrar e circular entre as formas curvilneas das chapas de ao. O vazio entre as chapas so o espao do encontro da proposta da artista com seu fruidor, em um jogo de cores, luzes e sombras.

    (...) Nessa srie de obras de Amlia Toledo, a fratura da polaridade clssica entre sujeito e objeto apresenta solues singulares sob a forma da investigao das relaes entre o dentro e o fora e, alm disso, obtida pela presena do espectador, que se funde obra pela via de sua imagem refletida e deformada, de acordo com seu movimento.32

    Figura 3: Amlia Toledo, Labirinto de Azul, 1993

    Em Amlia Toledo, o recurso da participao do observador como rompimento da polaridade sujeito-objeto explorado de diferentes formas: no adentrar o interior da obra, na manipulao de peas, no carter ldico de muitas produes ou, ainda, no prprio reflexo do corpo do espectador incorporado como parte da obra. Em O Poo (1967-1969), figura 4, as linhas saem de um ponto localizado no centro da obra. Ao concentrar-se no centro da pea, os

    31

    FARIAS, AGNALDO. Amlia Toledo. As naturezas do artifcio. So Paulo: W11, 2004, p. 50. 32

    Ibid., p. 74.

  • 26

    olhos mergulham na profundidade sugerida pela altura. Como as chapas de ao inox so espelhadas possvel perceber os prprios reflexos do corpo do observador na pea como parte da obra.

    Figura 4: Amlia Toledo, Poo, 1967-1969

    Segundo Frayze-Pereira33, Amlia Toledo alia-se a tendncia fenomenolgica no estmulo ao engajamento do outro, na proposio ldico-sensorial como via cognitiva, na livre apropriao do natural e do industrializado. As proposies plsticas da artista provocam o espectador para uma experincia que envolve seus sentidos. A vivncia do ato

    esttico proposta como experincia da unidade e da multiplicidade do sensvel34. Caderno de Terra (1999), Figura 5, um exemplo de instalao penetrvel e malevel na qual o visitante envolvido pela obra e se mistura ao jogo de luz e planos variveis de tecidos pendurados: dilogo entre estrutura e forma apresentado de maneira no definitiva, mas como fludo de passagens.

    33

    FRAYZE-PEREIRA, Joo Augusto. Arte, Dor: inquietudes entre esttica e psicanlise. 2. Ed. revista e ampliada, Cotia, So Paulo : Ateli Editorial, 2010, p. 374. 34

    Ibid., p. 412.

  • 27

    Figura 5: Amlia Toledo, Caderno de Terra, 1999

    (...) Ora, a concepo da obra de arte total ou plurissensorial no uma abstrao terica. Como sabemos, ela teve lugar em vrios momentos da histria das artes e o problema que continua a nos propor o de que entre corpo e mundo, entre meus atos perceptivos e as configuraes das coisas h comunicao e reciprocidade. Quer dizer, se cada sentido se abre para um mundo absolutamente incomunicvel para os outros sentidos, ao mesmo tempo est ligado a algo do prprio mundo que, por sua estrutura, abre-se para os outros sentidos constituindo com eles um nico Ser. E isto porque corpo e mundo so tecidos de uma mesma trama: a trama expressiva do Sensvel. 35

    No pretendemos aqui empreender a tarefa de esgotar as anlises da obra de Amlia Toledo ou, ainda, enquadrar trabalhos da artista em algum tipo de cronologia ou linha de desenvolvimento. O objetivo tratar de uma obra que se ampara em uma experincia que envolve de maneira cclica o corpo, os sentidos e a reflexo em um contnuo refazer-se no prprio ser. Essa potica em Amlia Toledo nos aproxima de alguns indcios do fenmeno corporeidade que pretendemos apontar nos prximos captulos tendo em vista, tambm, melhorar a compreenso da arte contempornea.

    35

    FRAYZE-PEREIRA, Joo Augusto. Arte, Dor: inquietudes entre esttica e psicanlise. 2. Ed. revista e ampliada, Cotia, So Paulo : Ateli Editorial, 2010, p. 412.

  • 28

    1.1.2. Carmela Gross e o deflagrar de um corpo atravessado pelo mundo percebido

    ambm iniciaremos essa escrita oferecendo ao trabalho artstico de Carmela Gross alguns versos de Carlos Drummond de Andrade:

    No serei o poeta de um mundo caduco. Tambm no cantarei o mundo futuro. Estou preso vida e olho meus companheiros. Esto taciturnos, mas nutrem grandes esperanas. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente to grande, no nos afastemos. No nos afastemos muito, vamos de mos dadas. 36

    As produes de Carmela Gross (So Paulo, 1946) assumem uma fluncia de sentidos que busca as visibilidades em um campo aberto. O gesto da artista se apropria, por meio do desenho, muitas vezes, como suporte da forma expressiva. O trabalho de Carmela Gross no um duplo de sua vivncia enquanto representao, mas concentra os sentidos atravessados pela relao com o mundo, que incorporam uma potica do fluxo da vida urbana.

    Os trabalhos de Carmela Gross situam o tempo como deslocamento, movimento realizado na experincia comum, cotidiana e involuntria da cidade. Parecem materializar aspectos da prpria existncia. Uma vivncia atravessada pelo universo catico de linhas, cores e artificialidades da paisagem da cidade. Uma ao de operaes simblicas, procedimentos heterogneos e apropriao de materiais da realidade vivida.

    Acredito que a visualidade tenha fundamento, de modo geral, na experincia vivida. prprio do olhar: movimentar-se no campo visual, atravessar dimenses, sem se deter em limites da matria. O deslocamento do olhar curioso parece atender uma vocao paisagstica, enquanto a construo visual resultante, derivando de um acordo entre o que o artista deseja ver e os meios de que dispe, consegue guardar certos percursos do olhar.37

    Segundo Carmela Gross, no documentrio Investigaes: o trabalho do artista 38, a

    cidade tem pontos fixos e, ao mesmo tempo, composta por elementos fluidos. A percepo da cidade pela artista se encarna em materialidades e procedimentos artsticos que lhe permite dar fluncia a sua experincia sensvel como condio de linguagem e, assim, oferecer novas

    36

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 1. Edio Rio de Janeiro : MEDIAfashion, 2008. (Coleo Folha Grandes Escritores Brasileiros; v. 4), p. 53 37

    Carmela Gross Apud BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Carmela Gross. So Paulo : Cosac & Naify Edies, 2000, p. 13 38

    Investigaes: o trabalho do artista. So Paulo : Ita Cultural, 2000.

    T

  • 29

    significaes ao mundo. Seu trabalho Feche a porta (1997), figura 6, se configura como linhas esboadas no

    papel e materializadas no espao oferecendo a ideia de um conjunto de cadeiras perfiladas e fixadas na parede, lado a lado em uma sala, o espao fica aberto para especulao e mobilidade do pensamento e do corpo do observador. As linhas, barras de metal projetadas no espao, oferecem ao fruidor a experincia modular de planos e profundidades, prprios da conquista da realidade pelo desenho e pela pintura. As linhas emolduram e expem o vazio da sala, situando um olhar-pensar que preenche o espao com partes intercambiveis (artista-obra-observador, exterior-interior, espao definido-espao aberto). O encontro com uma matria se oferece como complementariedade entre espao-lugar e espao-corpo da artista, estendendo um elemento visual (linha) a uma experincia corporal.

    Figura 6: Carmela Gross, Feche a Porta, 1997

    O carter construtivo das produes de Carmela Gross comporta inquietaes sobre esse lugar de entremeio entre o olhar e a obra, essas operaes de reversibilidade entre o ver e o que visto prprios do mundo-vida que a artista pretende tratar em seus trabalhos. Outra dimenso das produes de Carmela Gross um experimentar da

  • 30

    transitividade39, a unidade-totalidade, o uno e o mltiplo. O seu trabalho move-se entre sensibilidade e racionalidade, ou seja, o carter construtivo de sua produo encontra uma razo sensvel que percebe em aspectos formais e conceituais prprios do objeto condies de linguagem artstica. Assim, seus trabalhos instauram uma potica que parece explorar o limiar entre as sensaes advindas da intensa experimentao matrica e a procura por procedimentos significativos que se refletem na liberdade artstica ao tornar tnues as

    fronteiras entre pintura, instalao e objeto40. A experincia comum retirada da leitura cotidiana do mundo apresenta a figura da artista como presena sensvel e ausncia ativa na criao de novas snteses visuais sempre provisrias para o mundo. Carmela apresenta trabalhos com materiais quase desconhecidos e informes que tambm assumem certo inquirir sobre os elementos da linguagem plstica, como linhas, cores, massas e volumes. Em relao cor, por exemplo, ela articula, em algumas de suas produes, a possibilidade de uma luminosidade que interfere ou preenche o espao ou a paisagem como experincia a ser vivida. Neste sentido, a cor assume uma densidade fsica que pode criar novos espaos, como no trabalho Comedor de Luz (1999), ferro articulados a lmpadas fluorescentes, figura 7. Este guarda na funo do material (apagar ou ascender) a ideia de claro-escuro, o que parece trazer para o espao da existncia da artista uma tcnica bastante tratada e utilizada na histria da pintura. Carmela vai definir o espao da obra pelo contraste entre luzes e sombras que ela prpria projeta. O material tambm revela a relao de continuidade e passagem do tempo (noite/dia), alm de ressaltar a vivncia da artista na cidade e seu olhar para a iluminao artificial urbana.

    39

    BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Carmela Gross. So Paulo : Cosac & Naify Edies, 2000, p. 40. 40

    Ibid., passim.

  • 31

    Figura 7: Carmela Gross, Comedor de Luz, 1999

    Carmela atua frequentemente na fronteira entre o corpo projetado e o corpo tensionado, descobrindo sempre novas funes tensionantes para articular novos trabalhos. Por um lado convida o sujeito a se introduzir, cada vez mais, nos interstcios da matria (que aqui poderia ser entendida como energia). Por outro lado, prende seu olhar na superfcie aparente da obra, impedindo-o de penetr-la. Ela no ignora que cada material possui leis prprias e tem sua vocao formal, apenas despreza o saber tcnico e normativo que fixa regras de percepo e consolida domnios estticos. Prefere preservar sua relao ldica com os materiais e reinventar procedimentos. (...)41

    Outro recurso utilizado por Carmela Gross para alcanar essa projeo do corpo do artista no espao o desenho. Em muitos de seus trabalhos, o desenho se configura como marcas desse pensamento e do processo impresso na obra. Caracteriza-se como um processo de criao que encontra no desenho a linguagem que ocupa o espao e se torna volume, superfcie, textura, cor, luz, etc.

    Em Vo (1999), figura 8, se configura em fios elsticos esticados e dispostos no espao: ganham ritmo e seu movimento faz com que linhas componham desenhos de formas geomtricas que ocupam o espao. O desenho torna-se um procedimento de construo, uma marca do gesto da artista no espao.

    41

    BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Carmela Gross. So Paulo : Cosac & Naify Edies, 2000, p. 91.

  • 32

    Figura 8: Carmela Gross, Em Vo, 1999

    A produo de Carmela Gross tambm faz uma apropriao da palavra, enquanto uma linguagem fundada nas significaes vividas pelo corpo que ganha uma direo de fisicalidade no sentido de oferecer existncia ideia como expresso artstica. A palavra potncia que pode dar presena ao pensamento da artista. Como nos permite afirmar o trabalho Aurora, figura 9, que revela o uso da palavra em seu carter instituinte, enraizada em uma dimenso existencial, espacial e material situada pela experincia vivida pela artista na cidade. A escrita de luz apresentada por Carmela Gross possibilita que a palavra encarne a fisicalidade frgil das lmpadas tubulares to comuns aos centros urbanos, (...) uma dimenso experimentada pelo artista na contingncia do ato de criar 42. Uma linguagem falante que pode criar significaes e sentidos novos43.

    42

    CMARA, Jos Bettencourt da. Expresso e Contemporaneidade: a arte moderna segundo Merleau-Ponty. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 129. 43

    MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silncio. In: ______. O olho e o esprito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio e A dvida de Czanne. So Paulo: Cosac & Naify. 2004, p. 109.

  • 33

    Figura 9: Carmela Gross, Aurora, 2003

    A partir das propostas artsticas de Carmela Gross encontramos outras aparncias e sentidos que colaboram para elaborar a noo de corporeidade da qual queremos nos aproximar como fenmeno na arte atual e continuaremos a desenvolver no estudo da produo artstica de Ernesto Neto.

    1.1.3. Ernesto Neto e o corpo como guardio da potica do onrico

    Por muito tempo achei que a ausncia falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje no a lastimo. No h falta na ausncia. A ausncia um estar em mim. E sinto-a, branca, to pegada, aconchegada nos meus braos, que rio e dano e invento exclamaes alegres, porque a ausncia, essa ausncia assimilada, Ningum a rouba mais de mim.44

    m poema de Carlos Drummond de Andrade tambm inspira o incio dessa parte do captulo sobre a anlise dos trabalhos de Ernesto Neto, artista carioca nascido em 1964. Seus trabalhos, ao mesmo tempo, preenchem o espao, e guardam vazios, espaos a serem, muitas vezes, habitados. Essa ausncia, por outro lado, no somente um vazio, mas tambm

    44

    ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. 19. Edio Rio de Janeiro : Record, 2007, p. 31.

    U

  • 34

    um movimento de ludicidade. Desde as suas esculturas do final dos anos de 1980, Ernesto Neto revela seu interesse pela transformao e interao entre diferentes tipos de matrias que se instalam no espao, pela dualidade e reciprocidade na convivncia entre diferentes tipos de materiais e suas caractersticas (orgnico/inorgnico, rgido/macio, leve/pesado, frgil/forte, masculino/feminino, juno/separao, equilbrio/queda, entre outras). Pode-se dizer que h uma abertura sensorial que envolve o corpo no espao e permite uma srie de variaes em sua obra.

    As produes de Ernesto Neto, desde os ttulos revelam uma proximidade da experincia corporal, suas formas orgnicas e de grandes dimenses correspondem a uma criao que se interroga pela via do corpo. Essa potica restaura uma vontade de continuidade entre corpo e ambiente, (...) diferente de um sentido cubista de figura e fundo, pois o corpo no modelo de representao, mas lugar de experincia-vivncia, gerando esta interao

    entre ser e ambiente. 45. Sua explorao do espao, cada vez mais a partir dos anos de 1990, passa a abrigar o

    corpo em esculturas que implicam o entrar e o sair, a penetrao, a navegao. Alm do carter interativo, suas produes ganham cada vez mais as possibilidades do toque e do

    aconchego, como espao de intercmbio e reconhecimento46. A escultura Ora Bolas... Alguma coisa acontece no mergulho do corpo, no horizonte,

    na gravidade (2005), figura 10, mostra que a trama de linhas usada pelo artista acolhe o corpo do observador: uma experincia sensorial, mas tambm sensvel, pois envolve intimidade e acolhimento no espao da obra. As cores rosa e azul, a forma e os materiais (bolas de plstico, bolas de borracha, rede de algodo, espuma, entre outros) oferecem um carter ldico obra j que se relacionam a brinquedos da infncia. A plataforma na entrada convida o observador a mergulhar na obra e a emergir de dentro dela.

    A transubstanciao da experincia corporal configura este elemento carnal, encontrado nas obras de Ernesto Neto como expresses deste corpo que acolhe o mundo e por ele acolhido. Pois, segundo o prprio artista, suas obras tambm manifestam uma preocupao em (...) entender o ser como lugar onde corpo e paisagem se fundem, permitindo a transio entre escultura e ambiente. Desejo criar este espao de lugar-corpo, como espao contemplativo-interativo, como metfora do conhecimento do nosso prprio

    45

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 289. 46

    Cf. CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001

  • 35

    corpo orgnico a nvel de superfcie e de profundidade. 47.

    Figura 10: Ernesto Neto, Ora Bolas... Alguma coisa acontece no mergulho do corpo, no horizonte, na gravidade, 2005

    O corpo, ento, convocado como "topos" do tempo, no qual a transitoriedade convertida em um raciocnio sensvel experimentado na fruio de um outro tempo-espao oferecido pela obra, h fluidez entre o ser presente, o devir e o porvir, enquanto simultaneidade dos tempos proposto pela situao provocada pelo ser-estar na obra. O prprio tecer em sua obra tambm denota um questionamento do tempo. O entrelaamento entre linha, agulha e tecido a prpria metfora de um tempo fludo: o ponto da costura do qual a linha agora sai do tecido, presentifica todos os anteriores em seu movimento que tambm anuncia o porvir de um novo ponto. Em We stopped just here at the time (2002), figura 11, a instalao de Ernesto Neto opera quase uma suspenso dos elementos no ar (o artista costuma rechear suas esculturas com bolinhas de chumbo, especiarias, miangas, espuma, etc.), na qual a ideia de tempo aparece como durao na interrupo do movimento de queda dos pesos de chumbo presos leveza do tecido transparente (voil). Esse tempo suspenso se opera na negatividade e na positividade, pois fala de uma presena da no queda diante da sua prpria eminncia. Mas tambm nos oferece uma contemplao de uma fluidez temporal na qual a visualidade da obra associa-se ao movimento de escorrer. 47

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 291.

  • 36

    Figura 11: Ernesto Neto, Just Here at the time, 2002

    Ernesto Neto tambm apresenta uma especulao sobre a plasticidade dos materiais, o contraste entre o flexvel e a rigidez, entre o mvel e o fixo, entre o estvel e o precrio, entre o simples e o complexo. Suas produes armazenam uma potncia de provocar experincias nas quais no possvel separar sujeito-e-objeto, j que suas grandiosas formas orgnicas convidam seu observador a fruir de uma experincia intercorporal de intimidade entre artista, obra e observador. As membranas criadas pelos tecidos transparentes usados por Neto tambm se

    configuram como uma pele, uma epiderme48 que oferece essa possibilidade de uma membrana

    que, ao mesmo tempo, que nos individualiza tambm nos une ao outro, marca uma identidade e permite esse contato, pois perpassa diferentes elementos, espaos e pessoas. Os materiais revelam assim uma articulao entre escolhas formais e simblicas que tambm ressaltam uma no separao para o artista entre racionalidade e subjetividade, um olhar para dentro de si que encontra uma complementariedade no mundo e no outro. O artista e o observador tomam lugar central na obra e as prprias esculturas procuram colocar em evidncia essa relao entre interior-exterior, essa paisagem interna e externa por relaes de

    48

    JIMNEZ, Jos. O cosmos na pele. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 207.

  • 37

    complementariedade.

    (...) A pele o lugar do entre, pois o fato que ela, ainda que fronteira, parte do corpo. O entre estaria de forma invisvel entre a pele e o ambiente; talvez a pele seja o eu quase-no.49

    No caso de Navedenga (1998), figura 12, o tecido translcido possibilita a experimentao do tato e da viso e um outro olhar para o mundo de dentro da obra. Alm disso, o tecido tambm permite ao observador participar de jogos de luz e sombra. A obra transpe para o espao da experincia do visitante as noes presentes na composio pictrica, tais como luzes, equilbrios, iluso de profundidade.

    (...) Ernesto Neto modifica o visvel tingindo a luz, mas as suas intervenes tem uma decisiva fora sensual, dominada por uma linguagem corporal (...). No em vo que o corpo aparece como eixo de sua proposta, e a ele constantemente alude: a imagem da pele ou o interior do corpo tratado como paisagem. (...).50

    Figura 12: Ernesto Neto, Navedenga, 1998

    Os ambientes criados por Neto tem um carter coletivo, de encontro, de interao

    49

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 289. 50

    FERNNDEZ-CID, Miguel. Esculturas delgadas. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA, op. cit., p. 28

  • 38

    entre as pessoas51. Por outro lado, a arquitetura criada pelo artista dentro de outra arquitetura

    convida tambm, ao penetrarmos neste mbito, a uma intimidade com a prpria obra52. O

    prprio artista comenta que um de seus objetivos que as pessoas se sintam bem53 e acrescenta: (...) tirar do caos a poesia. No sei. Basicamente, existe uma vontade de criar um espao de conforto e proteo que permite alcanar um estado de silncio reflexivo para entrar em contato com o nosso prprio corpo. Chegar a um ponto de desbloqueio social gerado pela surpresa desta experincia e provocar o intercmbio ldico com pessoas

    desconhecidas. 54.

    (...) essa operao pela qual um certo arranjo dos sinais e das significaes j disponveis logra alterar, e depois transfigurar, cada um deles e finalmente segregar uma significao nova.55

    Alm do silncio, da ausncia e do tempo como elementos incorpreos, as esculturas de Ernesto Neto tambm trabalham com o ar, o odor e a transparncia, a luz em suas relaes com o espao. Essa nova arquitetura dentro da pr-existente, mais intimista, composto por materiais flexveis e cotidianos que possibilitam ao espectador explorar e perceber o mundo na sua pluralidade de sentidos, j que muitas esculturas permitem, alm do carter contemplativo do olhar, envolvido pela estrutura, o toque e o odor.

    (...) Quem pinta, pinta sobre algo. Voc no pinta no ar. A escultura no. A escultura voc faz no ar. Ela tem uma relao de materialidade, de estruturalidade que a pintura no tem. Usualmente, a relao com a pintura distanciada. Ela mediada pelo pincel. Voc pode tocar a pintura, h artistas que pintam com as mos, mas na pintura existe um mediador entre voc e o objeto, enquanto que na escultura no h. Por mais que voc v quebrar a escultura, h um momento em que voc vai passar a mo, seja para limpar ou para verificar se h alguma rebarba. 56

    Ernesto Neto no um escultor comum. Sua escultura, muitas vezes, se d a partir de um acrscimo de matria, por exemplo, na confeco de estruturas de tecido o uso de bolinhas de chumbo, especiarias ou miangas para o preenchimento de armaes que ficam suspensas, entre outros materiais que se somam para a realizao da obra. Alm disso, o seu tecer, que se

    51

    CHAIMOVICH, Felipe. Vida Mole. In: MUSEU DE ARTE MODERNA DE SO PAULO. Ernesto Neto: Dengo. Museu de Arte Moderna de So Paulo : So Paulo, 2010, v. 2, p. 65. 52

    PEDROSA, Adriano. Esculturas ntimas. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 76. 53

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA, op. cit., p. 292 54

    Ibid., p. 292. 55

    CMARA, Jos Bettencourt da. Expresso e Contemporaneidade: a arte moderna segundo Merleau-Ponty. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 185. 56

    Entrevista com Ernesto Neto. In: SCOVINO, Felipe (org.). Arquivo Contemporneo. Rio de Janeiro : 7 Letras, 2009, p. 161.

  • 39

    configura, como um esculpir reflete sobre a capacidade das mos em estabelecer uma conexo entre o olhar e o desejo construtivo do corpo expressos, por exemplo, na composio de suas naves (figura 12).

    Os trabalhos Humanides, figura 13, so esculturas que o espectador pode vestir e acomodar seu corpo. Revelam a influncia de Hlio Oiticica e tentam captar a unicidade de cada instante, do viver este instante, discutindo com sua plstica, assim, a transitoriedade e a permanncia do prprio humano. Adentrar a sua obra torna-se, ento, um exerccio de transcendncia da prpria realidade direta das coisas, da objetivao do mundo; uma nova ordem oferecida enquanto corporeidade no processo de trabalho do artista que nos permite, nesta suspenso do tempo, percebermos que somos habitados pelo outro e que este outro tambm nos habita.

    Figura 13: Ernesto Neto, Humanides, 2001

    Essa percepo da unidade das coisas aparece nas palavras de Ernesto Neto em um

    depoimento em vdeo para o Inhotim - Instituto de Arte Contempornea e Jardim Botnico57, referente a montagem de seus trabalhos nesta instituio no ano de 2010:

    Esta estrutura, ela toda slida, mas quando a gente vai construir ela, que eu chamo de um processo de arrebentao, porque ela tem uma boca e a gente pega uma jarra cheia dessas bolinhas de chumbo e enche essa boca. E essas partculas slidas, aparentemente, elas se tornam lquidas, eu acho isso muito interessante. Tem esta relao entre o frgil e o forte, o duro e o mole, o lquido e o slido, as coisas so muito paradoxais, o que masculino, o que feminino? Na hora que uma coisa termina comea a outra. Eu acho muito interessante este momento. (...) Ento, tinha essa coisa de uma coisa super masculina que o chumbo para caa e uma coisa que super feminina que a meia-cala. Que tem essa interao to... Parecem que nasceram um para o outro nas minhas esculturas.

    57

    Disponvel em: www.inhotim.org.br. Acesso em: 13 de Setembro de 2011.

  • 40

    Ainda sobre este aspecto das produes de Ernesto Neto podemos dizer que, de certa maneira, o artista habita a paisagem por meio de sua produo, pois assume um olhar que pretende se aproximar do entorno em uma tentativa de entend-lo enquanto meio fsico-material que dialoga com a constituio das pessoas. Ernesto Neto, podemos dizer tambm, apresenta uma no conformao ao estabelecido e uma curiosidade pelo lugar onde as coisas e as pessoas esto, procurando fortalecer a experincia comunicativa e potica deste encontro. Nesta perspectiva, para Ernesto Neto: (...) fazer arte ter f, no em Deus, mas na vida, no quotidiano. (...)58. O artista tambm declara que: Existe uma espcie de verdade intuitiva, que transcende a linguagem. Interessa-me o encontro dessa verdade com um corpo sensual

    numa equao matemtica para conseguir uma lngua universal. 59.

    Podemos falar, ainda, de uma dimenso existencial presente nas obras de Ernesto Neto na relao da pessoalidade do artista com os outros e com o mundo, j que o artista sempre ressalta a correlao plstica e sensvel entre a sua produo e o seu habitat, a cidade do Rio de Janeiro. Sua produo, em muitos momentos, se relaciona conceitualmente e plasticamente com objetos e situaes que ele encontra em seu prprio cotidiano, entendidos pelo artista como inventos para a vida, para viver 60. Com Ernesto Neto, percebemos, ento, que os mistrios da existncia e do mundo vivido esto mesclados nas experincias mais comuns, confundidos com a percepo do mundo. Conforme ele mesmo nos revela,

    Qual o fundamento da obra. Qual a sua inteno. A importncia de uma obra naquele lugar e naquele momento concreto. A fragilidade do mundo. A fragilidade da prpria obra, que s vezes o poder da obra reside na sua prpria fragilidade. A arte vive num estado de fragilidade, talvez no haja nada a compreender. (...) Assim a nossa vida. (...) A vida delicada. Embora fortes, somos ao mesmo tempo muito delicados. A vida pode fugir muito rapidamente. (...) importante viver mais intensamente, de forma menos despreocupada, questionar mais as verdades do bom senso. Interessa-me muito pensar a vida. Considero-a muito importante, muito mais importante do que a sociedade. Como diz Nietzsche: preciso ter o caos dentro de ns para dar a luz a uma estrela danante.61

    *****

    58

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela : Xunta de Galica, 2001, p. 294. 59

    Ibid., p. 297. 60

    Ernesto Neto. Objetelementos. In: In: MUSEU DE ARTE MODERNA DE SO PAULO. Ernesto Neto: Dengo. Museu de Arte Moderna de So Paulo : So Paulo, 2010, v. 2, p. 21. 61

    Ernesto Neto Apud PEREIRA, Cecilia. A fragilidade do mundo. In: CENTRO GALEGO DE ARTE CONTEMPORNEA, op. cit., p. 300.

  • 41

    A experincia sensvel, advinda da convivncia com trabalhos destes trs artistas em exposies e museus, indica alguns sentidos e aparncias que reconhecemos como indcios da presena do fenmeno interrogado como corporeidade. A reflexo sobre estas produes nos aproxima da diversidade de dimenses que este pode assumir na produo artstica brasileira atual. Assim, reiteramos que nossa inteno no oferecer uma classificao ou hierarquia do tema abordado, mas oferecer alguns subsdios tambm fundamentados na experincia pr-reflexiva para a compreenso e aproximao do fenmeno que identificamos como corporeidade. Assim, no captulo seguinte daremos mais um passo no sentido de situar algumas reverberaes deste fenmeno no discurso e no pensamento de jovens artistas.

  • 42

    CAPTULO 2. SITUANDO O FENMENO DA CORPOREIDADE: LEITURA DE PRODUES ARTSTICAS ATUAIS

    ste captulo pretende apresentar quatro jovens artistas - Jlio Meiron, Amanda Mei, Lia Chaia e Vitor Mizael aproximando-se do fenmeno corporeidade que pretendemos situar em seus trabalhos artsticos. O modo de aproximao escolhido foi por meio de entrevistas como alternativa para o prprio entrevistado construir uma narrativa a partir de dados da sua experincia criadora, entendida como aglutinadora de possibilidades de reflexo sobre sua produo plstica. Temos em vista alcanar indcios para se reconhecer possveis reverberaes e operaes do fenmeno corporeidade nesse recorte da produo atual da arte brasileira. A seleo destes quatro artistas foi realizada com o intuito de perceber como alguns questionamentos se configuram em uma gerao. Para efetivar essa escolha procuramos

    programas que incentivam a produo e exposio de trabalhos de jovens artistas. Alm de visitas a estas exposies, foram realizadas leituras e pesquisas de catlogos, principalmente,

    vinculados ao Programa Rumos Ita Cultural62 e ao Projeto Trip do SESC So Paulo63, nos quais esses quatro artistas j expuseram seus trabalhos.

    A escolha de entrevistas reflete um percurso dialgico proposto nas conversas que abriu caminhos para uma escuta sensvel da fala e dos silncios dos artistas. Acreditamos que esta pode ser uma maneira de nos aproximar do fenmeno que interrogamos, o qual pode se deflagrar na descrio verbal de suas experincias na criao artstica.

    A fenomenologia, como j colocado, permite o estudo e a descrio do sentido da experincia vivida ali situada com vistas a buscar sua estrutura essencial, ou seja, os elementos invariantes e os significados centrais dessas experincias individuais, como forma

    de alcanar um sentido mais amplo e fundamental do conhecimento64. Esse retorno s coisas mesmas coloca o prprio pesquisador como indivduo que interroga o mundo e procura sua compreenso a partir tambm do seu mundo-vida. Ao buscar desvendar um fenmeno para

    62

    Rumos Ita Cultural um programa de apoio e fomento produo artstica e intelectual das mais variadas expresses e regies do pas em atividade desde 1997. 63

    Realizado no SESC Pompia desde o ano de 2004, o projeto Trip formado por mostras peridicas de jovens artistas que buscam espao para mostrar seus trabalhos. 64

    HOLANDA, Adriano. Questes sobre pesquisa qualitativa e pesquisa fenomenolgica. Anlise Psicolgica, Lisboa, v. 24, n. 3, p. 363-372, 2006.

    E

  • 43

    alm de sua aparncia, o pesquisador tambm se deflagra nas palavras e nas experincias de seus pesquisados. No h hipteses a serem comprovadas, conceitos previamente definidos ou definies a priori a serem verificadas, mas as dvidas e as suposies a serem respondidas se constituem por intermdio das produes plsticas e dos relatos dos prprios sujeitos da pesquisa.

    O roteiro de entrevistas se configurou como uma situao geradora de narrativas, no qual se props aos participantes comentar temticas comuns relativas aos significados de suas experincias como artistas e que explorassem o fenmeno interrogado neste trabalho. Assim, o roteiro foi construdo a partir das seguintes proposies:

    1. Quais aspectos o artista considera importantes para o processo de criao?

    2. Existem articulaes/relaes entre os elementos plstico/visuais de sua produo artstica e o processo de suas experincias corporais? Quais?

    3. Voc v alguma(s) ideia(s)/sentido(s) de corpo/corporeidade nos seus trabalhos?

    3.1. Voc percebe algum dilogo, fluncia de sentidos ou encontro entre as suas produes e um corpo "vidente-visvel" (que se v entre as coisas do mundo)?

    4. Outras consideraes.

    Estas proposies tambm se apresentaram como possibilidade para situar alguns aspectos j estudados da fenomenologia de Merleau-Ponty para o artista, quando se apresentaram pertinentes. Assim, sempre que possvel, durante as conversas os artistas foram motivados a oferecer alguma compreenso sobre o terreno no qual a pesquisadora buscava se situar e no qual encontrava seus fundamentos. No tendo em vista alcanar uma neutralidade ou uma objetividade total, apresentamos nosso horizonte de estudos em palavras e expresses recorrentes aos estudos fenomenolgicos como forma de iniciar uma aproximao reflexiva do fenmeno estudado (o corpo prprio e um entrelaamento com o mundo, o cogito tcito e as experincias vividas, a carne do sensvel e uma possvel extenso eu-mundo, o campo de presena, f perceptiva, entre outras); esta proposio permitiu que as perguntas fossem formuladas como campos de reflexo abertos s diferentes compreenses e interpretaes dos artistas. Tambm foi possvel nos aproximar do quanto esses aspectos do pensamento pontiano fazem sentido para os entrevistados ou, ainda, possibilitam a pesquisadora a escuta de alguns de seus silncios.

  • 44

    esse silncio o do corpo no trabalho de parto da expresso primordial. (...) este silncio que se qualifica de primordial: o da experincia no dita ainda, seja pela palavra, seja j no silncio do gesto propriamente dito. 65

    Para situar as formas essenciais do fenmeno corporeidade interrogado no presente

    estudo, realizamos a transcrio dessas entrevistas66. Nas suas diversas leituras, desvelamos

    significados na prpria fala dos artistas e os dados obtidos sero apresentados para cada artista, por meio de aspectos que procuram situar as diversas aparncias que chamam a ateno da pesquisadora. Estas se configuram como snteses que sero apresentadas em

    unidades de significado67. Estas so afirmativas curtas que enunciam possveis articulaes de sentidos e ideias percebidos no discurso do sujeito. Tambm se caracterizam como redues s essncias, as snteses das proposies mais consistentes reveladas na fala dos artistas. Estes agrupamentos so entendidos como categorias abertas com os quais

    perceberemos a essncia ou a estrutura do fenmeno corporeidade na arte atual68. Apresentaremos, ainda, outro tipo de anlise, mais geral, que articular as relaes das

    estruturas percebidas entre si. Convergncias e correspondncias sero indicadas como nossa interpretao da estrutura geral do fenmeno, o que nos possibilitar ilumin-lo e refletir

    sobre ele69. Tambm foi consultado materiais impressos e digitais sobre os artistas, tendo em vista

    preparar fichas com anotaes que pudessem apoiar o dilogo com os participantes da pesquisa.

    A partir deste percurso, espera-se trazer algumas consideraes que sero parte de uma reflexo inerente prpria pesquisa fenomenolgica, tendo em vista algumas aproximaes de formas essenciais do fenmeno corporeidade no processo de criao na arte atual, para, a seguir, discutir caminhos para a leitura da produo artstica contempornea. Esses pensamentos, tambm, daro encaminhamentos reflexivos a alguns aspectos que vo compor nossa matriz de fundamentos na ltima parte da pesquisa.

    65

    CMARA, Jos Bettencourt da. Expresso e Contemporaneidade: a arte moderna segundo Merleau-Ponty. Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, p. 129. 66

    Para ler as entrevistas na ntegra ver Anexo 1. 67

    Cf. MACHADO, Ozeneide Venncio de Mello. Pesquisa Qualitativa: Modalidade fenmeno situado. In: BICUDO, Maria Aparecida Viggiani; ESPOSITO, Vitria Helena Cunha (orgs.). A pesquisa qualitativa em educao: um enfoque fenomenolgico. Piracicaba : Editora Unimep, 1994, p. 41. 68

    Ibid., p. 41. 69

    Ibid., p. 42.

  • 45

    2.1. JLIO MEIRON: A OBRA DE ARTE COMO PLATAFORMA PARA O MUNDO

    transcrio e leitura da entrevista realizada com Jlio Meiron permitiu encontrar alguns elementos estruturais de seu discurso que foram sintetizadas em unidades de significado que apresentamos com algumas de suas frases como indcios do fenmeno corporeidade que queremos situar. Alm disso, realizaremos a partir dessas indicaes a leitura de uma de suas obras.

    (1) Presena mltipla dos processos do corpo no trabalho artstico (...) Produzir uma obra de arte, de certa forma, externalizar o corpo, no simplesmente representando-o, mas mostrando mltiplos processos do corpo.

    (...) a partir da pegada do corpo dele que ele percebe como a pegada humana influencia, marca e tece territrios no mundo.

    (2) Experincia individual de descoberta do mundo e que busca alcanar um corpo universal

    (...) A gente v tudo a partir de uma perspectiva, que uma perspectiva pessoal. (...) que a partir dessa perspectiva pessoal voc pode refletir sobre uma perspectiva dos outros. Porque a obra no simplesmente um exerccio autobiogrfico, ela pode partir dessa experincia pessoal. (...) E s possvel partir desse seu ponto de estar no mundo. Mas, o que mais interessa, uma entrega que, por mais que parte de voc, reflita sobre um todo, ou seja, mostra a sua origem no jogo.

    a partir de uma experincia pessoal, de uma vista pessoal que eu posso me instalar no mundo e emitir significados para o mundo. Mas existiria um giro imprescindvel em que quando eu mostro a minha posio no mundo, que eu posso marcar esse ponto de minha posio no mundo como referncia para descobrir o prprio mundo. (...) O pessoal origem a partir do qual se pode descobrir o todo.

    (3) Demarcao de um territrio enquanto campo significativo e espao habitado como potncia

    (...) Acredito que a obra de arte uma demarcao de um territrio que se torna importante. (...) A potencializao desse espao justamente porque a gente vai habitar esse espao. Ento, a obra se torna um campo. Um campo significativo em que o corpo habita ou que o corpo pode habitar ou que o corpo habitou, deixou rastros. sempre um espao de potncia.

    (...) Essa concepo da obra como um espao potente, um espao potncia, que lembra que ele j foi habitado e que lembra que ele ainda pode ser habitado e que convida para habit-lo.

    A

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    (...)Neste espao significativo. Em um espao que a gente deixa estes rastros. Isso acho que pode acontecer na produo tridimensional, mas tambm na produo bidimensional, que tambm um espao habitado. O artista habitou aquele desenho em algum instante e ali deixou alguma marca, algum rastro, alguma pegada, a partir do seu prprio corpo.

    (...) Ele instaurou, ele incitou, ele, de certa forma, inaugurou um espao e um tempo que continuam sem o artista. E convidam o outro, o espectador que deixa de ser simplesmente um espectador e se integra no prprio tempo dele, no prprio espao dele.

    (4) Concepo artstica est intrinsecamente relacionada com o encontro do artista com o mundo

    (...) Jogo neste sentido de troca. (...) Experincia de viver em expanso pelo mundo e, ao mesmo tempo, em deformao pelo mundo. Porque a gente tenta se expandir e o mundo espremer. (...) A partir dela, as obras de arte podem vir ao mundo.

    (...) Uma relao de humildade em relao ao mundo. (...) Ser entrelaado com o mundo a ponto de pertencer ao mundo. (...) Desse entrelaamento com o mundo que o mundo pode passar por ele, e se o mundo pode passar por ele, ele pode ter sido um aglutinador de obras de artes. Algum em quem uma obra pode se aglutinar.

    Esse campo de obra, que um espao e tempo vivenciado... Esse campo de obra no isolado em relao ao mundo. Ele um terreno do mundo que pode virar uma obra de arte. (...) A obra de arte um pedao do mundo, um recorte do mundo, um lugar que eu marco no mundo. Ela s pode existir por estar no mundo.

    (5) Carter pr-reflexivo dessa experincia (...) Ento, uma imagem anterior a experincia, um preconceber antes da experincia seria algo a ser evitado, j que o encontro real onde a experincia de fato se dar mais do que em uma mquina mental que imagine que capaz de abarcar o mundo. Ela no vai ser capaz de abarcar o mundo, a experincia vai modificar o mundo e o mundo ser... Sero vrios mundos para cada um.

    (...) A viso lgica que no se encontra, que apenas o maniquesmo mental que no encontra a realidade tortuosa das coisas. (...) Nosso maniquesmo mental, ele que anterior a experincia real do mundo, a mquina mental anterior a experincia do mundo ela pode ser muito bruta.

    (6) Experincia da viso que envolve o corpo como um todo Ver algo muito mltiplo. E ver no simplesmente atravs dos olhos, mas a gente v atravs do corpo. O corpo que busca se encontrar no mundo, se encaixar no mundo. (...) um corpo que v este mundo. Ento, essa experincia de ver com o corpo inteiro, ela marca, com certeza, a minha produo (...).

  • 47

    A arte como esse campo de relaes... (...) Aquelas que do a sensao de pertencer a um lugar, poder transcorrer os olhos por um lugar e se sentir como parte. O corpo passeia. O olho passeia. O olho o que talvez mais faa o corpo passear. E esses passeios pelo mundo, a partir do olhar, a que muitas das relaes propostas pela arte acontecem. Claro que quando o olho passeia, ele passeia com o corpo inteiro.

    (7) Materiais tornam-se uma metfora do corpo do artista que desvelam outras formas de sua presena

    (...) A arte um marcar no mundo. De fato nosso corpo marca o material, que vai marcar o mundo, como num jogo de positivo/negativo, cheio/vazio. Eu busco materiais que possam refletir sobre isso.

    (...) Os materiais para o artista plstico so o cerne. (...) Eles, de certa forma, so uma metfora do corpo do artista. Nosso corpo material, a partir do qual vemos, ele se reflete no material plasticamente usado pelo artista. (...) Ele se impregna, ele cria negativos do corpo do artista, quando voc deixa sua marca de mltiplas formas.

    (...) A presena do material e a falta do material me interessam na construo de uma obra de arte. A escolha do espao vazio, j que esse espao vazio vai ser um espao de potncia de ocupao. Essa potncia de ocupao pode ser, simplesmente, uma ocupao do olhar, mas tambm pode ser uma ocupao do corpo do outro. Se eu deixo marcas, eu tambm deixo vazios para serem marcados. Pode ser marcado pelo olhar, pode ser marcado pela presena fsica. Eu acho que esse jogo, ento, de cheios/vazios, positivos e negativos, em um espao marcado com matria e no matria que pode criar uma obra de arte.

    (8) A coleta e a acumulao de objetos e matrias como reflexos do tempo vivido e do tempo de viver

    A coleta fala de um tempo vivido. Se a gente diz de um espao vivido, que o artista torna significativo... (...) Se a gente, ento, fala de um espao significativo. A gente pode falar tambm, e devemos falar, de um tempo significativo. Um tempo vivido pelo artista, esse tempo potencializado assim porque foi um tempo de vida, esse tempo se agrega com o espao na produo de uma obra de arte e o tempo de coletar o tempo de viver. A coleta, a busca pelo material, a coleta pelo material, a coleo do material, uma coleo