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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
GT 51 Pentecostalismos e assembleianismos
Em tensão com o mundo: identidade jovem assembleiana
Alexander Soares Magalhães 1
1Doutorando em Ciências Sociais na UERJ. Orientado pela profa. dra. Cecília Mariz. Professor EBTT do CEFET-RJ. Endereço eletrônico: alexird@yahoo.com.br
Resumo: O trabalho visa compreender sociologicamente como jovens membros da
Assembleia de Deus elaboram sua identidade, pensando como os valores associados ao
pentecostalismo tradicional conflitam com o contexto da sociedade ‘pós-moderna’, onde
temos identidades múltiplas e relações sociais fluídas como características marcantes. Neste
sentido, ganha importância a dicotomia mundo x igreja – reforçada pelo discurso pastoral e
muito presente na vida religiosa dos jovens. A hipótese inicial é que, como uma forma de
religiosidade congregacional, o pertencimento a AD é relevante para a construção da noção
da identidade entre os jovens, uma vez que a igreja atua como espaço de convivência,
influenciando sua construção de valores. Parto da Sociologia da religião de Weber,
especialmente suas contribuições acerca de rejeição e ascetismo e sua tipologia de
religiosidade congregacional. Como metodologia utilizo entrevistas estruturadas, além da
observação de cultos e demais atividades do grupo jovem.
Palavras-chave: Assembleia de Deus; juventude; identidade.
Introdução
Passam das nove da noite de um sábado quente em São João de Meriti, cidade
densamente povoada da baixada fluminense, região periférica do Rio de Janeiro. Cerca de mil
pessoas, sendo de metade jovens, lotam a matriz da igreja Assembleia de Deus Meritiense
(nome fictício, doravante ADM). Está ocorrendo uma festividade de jovens, no qual se
comemora cinquenta anos da mocidade da igreja. Este é o terceiro dos quatro dias do evento.
O culto demora cerca de duas horas e meia. É composto por louvores – que são canções
cantadas em grupo ou por cantores, que geralmente resultam em catarse de alguns, que
gritam aleluia, falam línguas estranhas e até correm e choram pelo espaço lotado. São
intercalados por pequenas pregações a partir da leitura solene da Bíblia, assim como
apresentações de grupos jovens deste ministério e convidados de outras igrejas pentecostais
da região, todas atividades comuns e costumeiras de um culto pentecostal. O momento alto
do culto é a pregação de um preletor convidado, cujo tema era ‘dar alegria aos pais’. O jovem
assembleiano “dá alegria aos pais quando combina seu esforço individual em tarefas
cotidianas como estudos e auxílio nos afazeres domésticos” (este último aspecto mais
enfatizado entre as moças, que deveriam desta forma ser vocacionadas para as atividades
domésticas e familiares). A certa altura, o preletor pergunta aos jovens: ‘qual jovem aqui
queria dar alegria aos pais e não tem feito isso ultimamente? ’. Alguns levantam e são
convidados para ir a frente. Eles se abraçam e choram. O preletor afirma: ‘o mundo é muito
convidativo, sedutor, mas o crente, o crente é separado! Se (alguém) chamar fazer coisa
errada, você fala: não posso. Por que? Porque o crente é separado, separado! ‘. A igreja pula,
grita, louva e chora. No fim, há o convite para ‘aceitar Jesus’. Alguns aceitam e outros, já
membros da congregação, são ‘batizados no espírito santo’. A pregação acaba. O pastor
presidente encerra o culto com uma oração final e as pessoas se despedem. Fim de culto.
Nas dezenas de cultos e pregações voltadas aos jovens que assistimos nos últimos
anos, em virtude do trabalho de campo para nossa pesquisa de doutorado em andamento –
que subsidia os dados empíricos deste trabalho – todo o discurso doutrinário tem o mesmo
sentido: que o jovem deve se voltar para a família, a escola, o namoro ‘comportado’ entre
pessoas da mesma fé e a rejeição dos perigos do ‘mundo’. Esse modelo de vida oficial se
caracteriza, além da resistência ao ‘mundo’, pela permanente vigilância para com a fé e os
valores cristãos (ALVES, 2010). A partir deste quadro, tentarei neste trabalho brevemente
compreender sociologicamente como jovens pentecostais elaboram sua identidade, tendo
como chave a noção de ‘resistência ao mundo’ que entram em conflito com o contexto da
sociedade ‘pós-moderna’, que tem entre suas várias características, identidades múltiplas e
relações sociais pautadas pela fluidez (HALL, 2011; BAUMAN, 2001).
Este trabalho é escrito do ponto de vista da tradição da Sociologia e da Antropologia
da Religião e é fruto da pesquisa da elaboração da tese de doutorado do autor, ainda em
andamento. Os dados da pesquisa foram obtidos a partir da observação participante de cultos
religiosos, análise de manifestações religiosas nas redes sociais e entrevistas semiestruturadas
com jovens de 15 a 24 anos participantes frequentes da rotina da igreja. Nesta entrevista em
profundidade foram ouvidos 11 jovens, sendo 7 moças e 4 rapazes. Também foi aplicado um
questionário estruturado para 100 jovens, sendo os respondentes 65 moças e 35 rapazes. Para
preservar as fontes, todos os nomes citados ao longo deste trabalho são fictícios.
Inspirações weberianas
O ponto de partida teórico deste trabalho é a Sociologia da religião de Max Weber.
Não como forma de reverência, mas como reconhecimento da utilidade e atualidade de suas
contribuições. Será utilizada especialmente sua noção de congregação, entendida como uma
comunidade de fiéis associados de forma permanente, com objetivos de missão e salvação
(WEBER, 2000), assim como suas contribuições acerca das diferentes atitudes de rejeição e
ascetismo e sua tipologia de religiosidade congregacional. Entende-se que a religiosidade
congregacional possui certos atributos que lhe são peculiares e a partir daí orienta-se o olhar
que conduz esta tese. Contudo, não se deve perder a noção que se trabalha neste particular
com tipos ideais, exageros que servem com balizadores da observação.
Desta forma, nos termos weberianos a comunidade religiosa pesquisada neste
trabalho pode ser compreendida como uma ação comunitária permanente e participação dos
leigos para sua manutenção, e daí cria-se um sentido específico do qual parte olhar que
orienta este trabalho. A leitura de Weber nos permite perceber a existência de um dualismo
da moral do ‘nosso grupo’ e do grupo exterior, fundada na moral interna baseada na
reciprocidade, na qual a ideia de salvação é muito importante e se coaduna diretamente na
condução da vida dos membros e sua atitude para com o mundo, e ao mesmo tempo uma
tensão de levar a igreja ao mundo e não permitir que o mundo não dite as normas e as
condutas internas da igreja e da vida de seus fiéis. Segundo Weber, as principais diferenças
entre as religiosidades soteriológicas predominantes no mundo oriental e no ocidental
consistem em que a primeira termina essencialmente na contemplação, e a última, no
ascetismo (WEBER, 2000). Assim, os ascetas procuravam participar nos processos do mundo,
os místicos dispunham-se à possessão contemplativa do sagrado. A atitude religiosa ascética
conduz o virtuoso a submeter seus impulsos naturais ao modo sistematizado de levar a vida,
o que pode provocar uma reorientação da vida social da comunidade num sentido ético
religioso, um domínio racional do universo. No caso que nos interessa para fins da análise
deste trabalho, o tipo ideal de ascetismo orientado para o mundo, no qual ele se torna uma
obrigação, e a missão do crente, que se torna um reformador ou revolucionário racional,
consiste em transformá-lo segundo os ideais ascéticos. (WEBER, 2000). As relações sociais e o
mundo representariam tentação e prazeres sensuais eticamente irracionais.
Uma aproximação do conceito de juventude
Não existe uma definição completa para o termo juventude, devido à complexidade
que essa categoria possui e a densidade que a mesma vem ganhando com os estudos
específicos das várias áreas de conhecimento. É preciso evitar certas idealizações e
generalizações acerca deste grupo social, que pode agrupar sobre o mesmo nome pessoas de
faixa etária semelhante que nada têm em comum (BOURDIEU, 1983). Todavia, os jovens são
uma considerável força a ser acionada para a transformação social, embora possuam valores
sociais ambivalentes, não tendo uma natureza reacionária ou conservadora (MANNHEIM,
1980). Já no contexto da pós-modernidade vivemos uma era de risco e o futuro é o campo das
incertezas. Mas o jovem teria a capacidade de resignificar esta incerteza e não a tomar como
algo simplesmente ruim. (LECCARDI, 2005). A literatura contemporânea sobre o assunto tem
preferido utilizar a noção de juventudes para dar contar da diversidade interna da categoria,
(ABRAMOVAY, et al 2007). Desta forma cabe distinguir condição juvenil, “modo como uma
sociedade constitui e atribui significado a esse momento ciclo da vida, que alcança uma
abrangência social menor, referida a uma dimensão histórico-geracional (ABRAMO, 2005) ”
situação juvenil, que “diz respeito à maneira como tal condição é vivida a partir dos diversos
recortes referidos às diferenças sociais – classe, gênero, etnia etc. (ibidem) ”. Pesquisando no
campo de interface entre juventude e religião, Mariz argumenta que no contexto da
subjetividade juvenil, existe uma propensão a atitudes heroicas e radicais assim como
virtuosismos religiosos devido a uma menor prática da análise racional e pouco conhecimento
prático. No caso da adesão religiosa, esse fato teria como consequência que o jovem tende a
ter uma forte adesão religiosa – ou o seu reverso, a negação da religiosidade (MARIZ, 2005).
Desta forma, os trabalhos que formam o campo da confluência entre juventude e religião
tendem a reproduzir as clivagens teóricas dos estudos de juventude, que salientam a noção
de marco geracional e pluralidade da juventude (TAVARES; CAMURÇA, 2004). No caso
específico do grupo estudado nesta pesquisa, as igrejas da Assembleia de Deus trabalham com
uma noção de jovem particular e realizam trabalhos e atividades específicas. De uma forma
geral, é considerado jovem a moça ou o rapaz a partir dos 14 anos de idade, que permanece
solteiro. Alguns podem permanecer no grupo com idade superior a 20 anos, desde que ainda
não tenham se casado. Em geral, os membros da Assembleia de Deus são estimulados a casar
cedo, para evitar ‘tentações’, ou seja, manter relações sexuais antes do matrimônio. Este fato
já era observado por Mariz há mais de 25 anos (MARIZ, 1994).
Identidade do jovem assembleiano: questões preliminares
A igreja Assembleia de Deus é a segunda igreja pentecostal mais antiga do Brasil,
fundada em 1911 e segundo o censo do IBGE possui mais de 12 milhões de seguidores, sendo
a maior igreja evangélica do Brasil. Contudo, possui grande diversidade interna. A literatura
recente defende que é preciso referir-se a centenária igreja no plural: Assembleias de Deus
(ADs), tal qual a literatura mais recente defende (ALENCAR, 2013; CORREA, 2013; GANDRA,
2014; FAJARDO, 2015). O uso no plural é adequado pois desde a década de 1930 a AD tem se
desenvolvendo e expandindo no Brasil a partir de modelo de fracionamento institucional, no
qual as igrejas crescem e se multiplicam sem controle de qualquer órgão de controle externo.
Desta forma são criados inúmeros ministérios, que ostentam o nome Assembleia de Deus,
guardam algumas de suas tradições doutrinárias e práticas, mas diferem-se em inúmeras
outras. Apresentam divisões verticais (Convenções) e horizontais (Ministérios). Ocorre que
alguns ministérios se tornam grandes demais do ponto de vista do número de fiéis e poderio
político-econômico e formam suas próprias Convenções. Desta forma, as ADs estão
organizadas numa espécie de e árvore, na qual cada Ministério é constituído pela igreja-sede
com suas respectivas filiadas, congregações e pontos de pregação (subcongregações).
Sem embargo, optei por orientar esta pesquisa junto a um ministério filiado à CGABD.
Dentro do vasto universo assembleiano, este ministério (ADM) possui um perfil mais
tradicional. Repete o padrão das ADs de igrejas com liturgias simples, foco na palavra bíblica,
controle moral dos membros e ênfase nos dons e curas, se aproximando da tipologia de
assembleianismo rural proposta por Alencar (2013).
Contudo, não é tarefa fácil apresentar sucintamente um grupo de juventude a partir
de suas características identitárias. Pensando a identidade como uma relação social construída
a partir a partir da interação com outro e no seu dinamismo (HALL, 2011; SILVA, 2000)
podemos problematizar a identidade do jovem assembleiano a partir de marcadores que,
apesar de não ser uma marcação definitiva, são úteis para dar algum aspecto de coesão ao
grupo. Contudo, essa identificação obviamente não é descolada do contexto maior no qual
esses jovens estão inseridos. Por exemplo, há um marco definidor claro na questão de classe
social (camadas populares), mas ele por si só não explica muita coisa, apesar de circunscrever
bem a realidade material que estão enquadrados. No grupo pesquisado, a maioria das moças
e rapazes estão na transição da vida escolar para o mercado de trabalho, e o contexto
econômico restritivo atual tem tido um impacto significativo no modo como essa transição
tem sido feita. Tampouco é novidade que o pentecostalismo enquanto força socioreligiosa
atua fornecendo estratégias culturais e apoio para que se possa lidar com inúmeras situações
de privação material e emocional presentes (mas não só) nas camadas populares (MARIZ,
1994; MAFRA, 2009).
Usos, costumes, resistências e identidade
Observando especificamente o grupo de jovens da ADM, tem-se que os chamados
‘usos e costumes’ estão presentes em seus cotidianos e funcionam como uma marca de
reconhecimento dos jovens de sua própria igreja. Quando perguntados “ Para você, qual a
maior diferença da Assembleia de Deus em relação às outras igrejas? ”, obtivemos as seguintes
respostas:
Tabela 1
OPÇÕES DE RESPOSTA PORCENTAGEM
Usos e costumes 62,5
Tradição Centenária 12,5
Fervor Religioso 21,9
Ponto de Vista 1,0
Não respondeu 2,1
Total 100,0
Muitos dos jovens, quando andando na rua podem ser facilmente reconhecidos como
“crentes” de acordo com suas vestimentas: rapazes e ‘varões’ usando calça comprida, sempre
que estão na rua, e moças e ‘irmãs’ usando saias e vestidos, cabelos longos e pouca ou
nenhuma maquiagem.
Contudo, observamos um fenômeno interessante: nem sempre esses usos e
costumes são observados na vida cotidiana destes jovens, caracterizando um fenômeno que
a jovem Clarice nos apontou como uma resistência silenciosa. Para ela, essa resistência aos
usos e costumes se dá de forma discreta e velada, sem configurar um desafio aos pastores e
líderes de jovens, A reação ao tradicional ocorre, ainda segundo esta jovem, num nível que
não cause mal-estar e desrespeito ao pastor. Essa resistência pode ser observada, nas palavras
de Clarice:
Na igreja, as moças adotam a indumentária assembleiana com poucas assimilações aos usos do mundo; fora dela, usam calça, joias e não seriam reconhecidas na rua como pertencentes à denominação pela forma de vestir. A verdade é que a maioria esmagadora dos jovens quer ser parecido com os demais para não parecer "quadrado" e também acham que roupa não leva para o céu, mas encontram um dilema quando vão à igreja. A saída encontrada por muitos é essa "resistência silenciosa" de que falei (CLARICE, 2016).
Em contrapartida, o jovem Cristiano tem uma leitura crítica aos usos e costumes, como
a vestimenta, mas entende que, mesmo que um jovem possa a não concordar com essa regra,
seu cumprimento é importante para o desenvolvimento da vida espiritual:
A nossa liberdade é um pouco diferenciada das pessoas que não estão dentro desse meio. Por exemplo, eu tive uma doutrina como a que não me permite usar camisetas e bermudas para poder sair na rua. Alguns amigos, acham isso um absurdo, não poder usar uma bermuda e uma camisa para sair na rua. Mas não é uma questão de ser um absurdo, é uma doutrina. E se eu não seguir essa doutrina estarei desobedecendo e desobedecer é uma coisa errada, ou seja, uma coisa leva outra eu fazer uma coisa que não está dentro da minha doutrina é uma coisa errada, é desobedecer, é pecado, isso acaba me prejudicando na minha vida espiritual (CRISTIANO, 2015).
Desta forma, tem-se um reconhecimento que os ‘usos e costumes’ são uma marca que
distingue e demarca a AD dentro do campo evangélico. Mas, ao mesmo tempo, uma não total
concordância e observância dos mesmos. Assim, esta identidade é construída também a partir
deste conflito, no qual se parecer com os outros jovens, mas ao mesmo tempo tem-se que ser
‘separado’, distinto das pessoas do mundo. Aqui temos uma amostra daquilo que Hall (2009)
identifica como uma construção identitária típica da contemporaneidade, onde vários
simbolismos são acionados de acordo com o contexto específico. Na seção seguinte veremos
um pouco do investimento das lideranças em controlar essa identificação.
Em tensão com o mundo: um marco de identificação
Quando perguntados ‘o que é ser jovem? ’, vários entrevistados consideraram uma
questão difícil de ser respondida. Em geral foi salientado que é a juventude seria uma fase de
a vida em que começam as responsabilidades, o que dentro do contexto socioeconômico
destes jovens implica muitas vezes em ajudar nas despesas do lar, e também de escolhas que
vão perdurar por toda a vida. E dentro da tradição assembleiana, tais escolhas que são feitas
na vida e no cotidiano, tem impacto em sua existência para além da vida na terra. Por isso as
escolhas são tão importantes e geram tantas dificuldades. Sobre o que é ser jovem, o relato
da jovem Viviane, de 18 anos, é bem significativo:
Ser jovem... é difícil essa pergunta, ah eu acho que é fazer escolhas, eu acho que como estamos na juventude eu acho que estamos na época de fazer escolhas. Tanto no pessoal, profissional, na igreja, por isso que, tipo assim, na juventude é a época que mais saem pessoas da igreja, e também é quando mais entram na igreja, juventude é isso, fazer escolhas. Existem vários desafios em ser jovem, como a inexperiência, o conflito diário, ser jovem é difícil, em relação ao primeiro emprego, relacionamento amorosos, amizades... é muito complicado (VIVIANE, 2016).
De fato, não é tarefa fácil caracterizar sociologicamente um grupo tão diverso como o
da juventude assembleiana, ainda mais dentro do contexto da vasta fragmentação que as
Assembleias de Deus têm no Brasil. Vários marcadores identitários poderiam ser invocados
para tentar realizar este exercício de compreensão. A escolha da questão do jovem com
rejeição do mundo deve-se a presença da questão em todos os cultos e demais atividades
promovidas pela igreja envolvendo os jovens. Em todas as atividades presenciadas, era
salientado que o jovem deve ser vigilante com os ‘perigos do mundo’, afim de não serem
desviados dos caminhos da igreja e de sua salvação individual.
A noção dicotômica ‘mundo’ x ‘igreja’ é importante para o entendimento da identidade
do pentecostal, em especial o assembleiano, na medida em que o indivíduo, na experiência
de sua conversão ‘rejeita o mundo’ e renasce para vida ‘nova’, e assume também uma nova
identidade, forjada em valores como o asceticismo, o louvor e o orgulho de ser ‘crente’. O que
denomino neste trabalho como ‘mundo’ é uma representação social de espaços, situações e
interações que contrariam o que os crentes entendem por algo que os afasta dos caminhos
do senhor, ou seja, da salvação de suas almas. Não trabalhamos com um conceito fechado de
mundo, mas tentamos tomar o discurso êmico e a sua representação de mundo como
verdade. Como algo interpretativo, esta noção pode variar entre contextos e interlocutores
diferentes, mas em geral apresenta as mesmas características.
Uma pregação que simboliza bem esta questão tinha como tema ‘Dar alegria aos pais’.
De todo modo, a forma de o jovem assembleiano de dar alegria aos pais consistia em combinar
esforço individual em tarefas cotidianas como estudos e auxílio nos afazeres domésticos (este
último aspecto mais enfatizado entre as moças, que deveriam desta forma ser vocacionadas
para as atividades domésticas e familiares). Algumas dimensões do mundo aqui são
valorizadas, especialmente a escola. Agradaria a Deus o esforço e bom desempenho nas
atividades escolares, que embora seja do mundo, é vista como uma instituição de respeito
pela comunidade assembleiana. Todavia, a postura e comportamento entendidos como
mundanos neste espaço devem ser rejeitados. A escolha de amizades aqui é vista como
fundamental. A ênfase é na defesa dos valores morais da igreja nos espaços mundanos,
inclusive a escola. Aqui aparece um reforço da identidade assembleiana, marcada na crítica a
atitudes, comportamentos e formas de vestimenta e aparência. ‘Crente não usa cabelo manga
espada’2 foi uma frase que ouvi e que é boa para pensar esta demarcação de território
identitário construído a partir da rejeição de símbolos da moda juvenil recorrente. Além disso,
alguns tipos de peças de vestuário e uso de brincos, maquiagem e outros adereços são
criticados. Em entrevista, uma jovem de 18 anos afirmou que um dos motivos de sua saída da
AD foi a crítica ao uso de maquiagem e escova no cabelo e que em sua nova denominação,
também pentecostal, se sentia mais acolhida e poderia usar estes adereços sem embaraço.
Um dos temas mais valorizados nas pregações pentecostais é a capacidade de
transformação de uma vida mundana para uma existência tida como pura. Um pregador
narrou uma história sintomática neste sentido: conhecera uma pessoa que era um cantor
gospel de carreira promissora, de família criada na igreja (AD) e que por ‘influência’ das
amizades se desviou ‘dos caminhos do senhor’ e caiu no ‘mundo’. De cantor, o personagem
2 O jogador de futebol Neymar, que é considerado atualmente o principal futebolista e maior astro do mercado
publicitário brasileiro, é conhecido por seus penteados irreverentes. Muitas crianças e jovens o imitam e o cabelo manga espada era referente a corte de cabelo assemelhado ao do referido atleta.
da pregação vira persona do mundo, cai nos ‘vícios’, se afasta dos amigos certos. Seu fim é
trágico: o homem adere a uma vida criminosa e acaba por morrer.
Nas entrevistas que foram realizadas, o tema da tensão com o mundo, é de grande
relevância na vida espiritual dos jovens, e ganha centralidade na vida cotidiana dos mesmos,
o que denota uma efetiva interiorização dos valores e do discurso da igreja para com esse
grupo específico. Assim a jovem Kelly (nome fictício), de 20 anos, me explicou sua relação com
o ‘mundo’:
Fomos chamados para ser separados, de ser o exemplo. Assim... as coisas do mundo, são boas? São. Só que nos buscamos algo muito melhor, então o que a gente encontrar aqui, o que a gente tiver não se compara a gloria que nós vamos receber a tudo o que vamos ter se nós formos corretos, se formos fiéis àquilo tudo o que nos colocamos no nosso coração aquele propósito que nós temos, então eu acho que não vale a pena, se sujar com as coisas do mundo (KELLY, 2015).
A fala de Kelly é bastante significativa pois ela representa bem como os jovens
internalizam e reelaboram a tensão com o mundo tão citada nas falas da igreja. O mundo é
visto como algo que suja a pessoa, e mesmo sendo visto como um espaço que oferece coisas
boas, deve ser rejeitado. Assim, a noção de propósito é chave para o entendimento do esforço
do jovem: o propósito é uma espécie de compromisso assumido no qual ele se coloca como
sendo ‘separado’ do mundo para ‘estar junto com Deus’, e para tal esforça-se no sentido de
seguir uma vida guiada neste compromisso e nas regras estabelecidas para tal. As principais
regras são: não fazer sexo antes do casamento; não consumir álcool, cigarro e drogas ilícitas;
ter comportamento considerado ‘digno’ em todos os espaços sociais. Também há algumas
formas de propósitos mais específicos, que se assemelham como ‘votos’, como fazer uma
promessa para uma finalidade específica, também algo comum na prática espiritual dos
jovens. Desta forma, a noção de ‘propósito’ materializa e dá sentido concreto na tensão com
o mundo, uma vez que ceder às suas tentações representariam uma falha neste compromisso.
Por sua vez, o jovem Walter sintetiza a compreensão da noção de mundo entre os jovens
assembleianos que foram fonte deste estudo:
Quando a gente fala do mundo, tem três coisas que a gente pode interpretar, basicamente, a gente fala do mundo como terra, como globo, a gente fala de mundo toda a população, ou a gente fala de mundo como toda a corrupção do gênero humano, sistema corrompido(...), como lugar de muitas coisas erradas, pessoas assaltando, se viciando em drogas, muita gente assim andando fora do contexto
bíblico (...) acho que a gente fala do mundo a gente fala dos conceitos e dos padrões bíblicos a gente entende que Deus tem uma vida para nos dar uma vida eterna e se a gente está aqui está só de passagem e a gente tem que renunciar a isso para ir viver no céu, viver com cristo (WALTER, 2015).
A fala de Walter é representativa pois ela resume bem a visão do ‘mundo’ como um
local onde há corrupção pois nele não há a presença de comportamentos que se baseiam nos
‘padrões bíblicos’. A renúncia aos prazeres que ‘mundo oferece’ às pessoas, principalmente
aos jovens, é uma das condições para a salvação. E por isso, indispensável para aqueles que
criam laços de pertencimento e reconhecimento deste grupo identitário.
Contudo, a tensão com o mundo deve ser relativizada neste contexto: ela possui alguns
limites e é constantemente objeto de reelaborações. Não existe consenso sobre até onde vai
o ‘mundo’ como uma representação daquilo que não é próprio da igreja. A oposição ‘mundo’
x ‘igreja’ não obedece uma lógica rígida de oposição como a pensada por Durkheim (1996)
sobre o sagrado e profano. Algumas atividades fora do âmbito da igreja são incentivadas e
outras apenas toleradas3. Nunca presenciei, por exemplo, em qualquer culto ou demais
atividade da igreja qualquer menção à política partidária. De acordo com as informações da
pesquisa, alguns jovens têm simpatias políticas, mas a maioria ignora esse assunto. Como um
dado subjetivo, o ‘mundo’ está sujeito a várias intepretações e reelaborações de sentido,
mesmo que tal sentido seja demarcado pela instituição. Na seção seguinte será visto um
exemplo destes limites e reelaborações.
Em busca de um projeto
Um exemplo interessante para ser aprofundado neste exercício de compreensão
acerca da tensão com o mundo entre os jovens assembleianos é o incentivo a que os jovens
tenham, através de seu ‘propósito’, um projeto de vida. Para tal, uso a noção de projeto de
Velho (1987): ‘a conduta organizada para atingir finalidades específicas’. O projeto é
3 É importante salientar que no contexto especifico do grupo estudado não há influência significativa da Teologia da prosperidade.
elaborado, ainda segundo Velho dentro de um campo de possibilidades, definido pelo autor
como sendo ‘dado com as alternativas construídas do processo sociohistórico e com o
potencial interpretativo do mundo simbólico da cultura’. No contexto da análise de Velho, o
projeto seria uma preocupação típica das camadas médias urbanas.
No contexto estudado aqui, o projeto entre os jovens assembleianos ganham alguns
contornos específicos neste contexto sociocultural. A principal característica é a meta de
formar uma família, que está presente em todas as falas dos jovens. Quando perguntados
como imaginam e planejam sua vida dentro de 10 anos, o desejo de formar família é comum
entre moças e rapazes. Entre os rapazes, há também uma grande preocupação em construir
uma carreira estável, que possibilite dar mais conforto à futura família. Umas das carreiras
preferidas dos rapazes é a de militar, citada por alguns como um desejo profissional, devido
principalmente à estabilidade que a mesma proporciona (sendo que um deles já se encontrava
engajado no Exército através do serviço militar e almejava seguir na instituição). Entre as
moças também há o desejo de ter uma carreira, mas em primeiro plano aparece a questão do
casamento e da maternidade, que pode vir a ser priorizada frente à carreira. O jovem
Cristiano, de 17 anos, sintetiza bem a noção de um projeto de vida no contexto da juventude
assembleiana local, onde profissão e família convergem com os valores pentecostais:
Eu me imagino (daqui a cerca de 15 anos) já um oficial da Marinha. Com certeza, um homem casado, com filhos e claro que uma vida mediante à igreja. Com certeza para poder fazer mais por mim mesmo ser ter uma família. Próspera e bem-aventurados, vamos assim dizer. (...) (Minha família) tem esse hábito de planejar. E a daí é que vem os meus projetos, eu aprendi tudo isso. Como eu disse, com os meus pais, eu aprendi a planejar o futuro sem esquecer o meu presente, buscar o futuro, mas não esqueceu meu presente (CRISTIANO, 2015).
Observando o incentivo por parte da igreja ao projeto, através da noção nativa
supracitada de ‘propósito’, além de uma preocupação genuína para com seus jovens e sua
condição emocional e socioeconômica, o projeto neste contexto deve ser compreendido
também como forma de evitar as tentações do ‘mundo’. Se um jovem, seja ele moça ou rapaz,
tem um projeto de formação de família e de meios de sustenta-la, estará focando seu tempo
e suas prioridades para atividades que vão de acordo com a doutrina, da mesma forma,
evitando cair ‘nas tentações do mundo’, que segundo a narrativa corrente deste contexto, é
um dos maiores desafios de ser um jovem assembleiano. Desta forma, os jovens são
incentivados a casar o quanto antes, desde que tenham meios materiais de sustento. Assim,
os estudos e o engajamento profissional são incentivados entre a mocidade (embora sejam
mais entre os rapazes do que entre as moças).
Considerações finais, mas não conclusivas
Como palavras finais, mas sem elaborar uma conclusão sistemática e apontando para
um possível aprofundamento desta agenda de pesquisa, inferimos que o ‘mundo’, enquanto
um espaço construído em oposição à virtude da igreja e da ‘obra do senhor’, é uma poderosa
construção discursiva, que por sua vez tem grande relevância nas estratégias culturais
empregadas pelos jovens assembleianos do grupo estudado de construção de suas
identidades. Contudo, a ‘rejeição ao mundo’ deve ser relativizada, na medida em que nem
sempre ela é acionada como um mecanismo identitário, como mostra o exemplo da chamada
‘resistência silenciosa’ aos usos e costumes, tão caros à identidade assembleiana.
De certa forma reproduzindo a clássica análise de Weber (2004) sobre a ética
protestante, a individualização da fé enquanto esforço para a salvação individual ainda é
percebida claramente no contexto estudado. Seguindo esta trilha, o sucesso dos jovens,
segundo o discurso e o incentivo da igreja, seria fruto da combinação de sua fé com um
genuíno esforço individual.
E finalmente a identidade deste jovem assembleiano, sem dúvidas, carrega consigo
as marcas da tradição da centenária igreja. Contudo, tal como a AD, tal identidade vem sendo
fruto de reelaborações e transformações, variantes conforme o contexto. Evidentemente, a
agência individual – cada indivíduo, situado no seu campo de possibilidades, tem sua
estratégia de construção dessa identificação social – não pode ser desconsiderada. A
identidade é fluída e dinâmica, e desta forma, acompanha a dinâmica do próprio campo
religioso no Brasil, em constante transformação.
Referências bibliográficas
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