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www.revista365.com FERN ANDO RIBEI RO JOÃ O PER EIRA COU TINH O DISTRIBUIÇÃO GRATUITA MÁ RIO BRU NO PAS TOR NUNO CASIMIRO PED RO SEN A-LI NO ED UA RD O PI NT O ELMANO MADAÍL VALTE R HUGO MÃE VAS CO BAR RETO JOSÉ LUÍS PEIXOTO

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ON-OFF

Y#29

EDUARDO PINTO

ELMANO MADAÍL

FERNANDO RIBEIRO

JOÃO PEREIRA COUTINHOJOSÉ LUÍS PEIXOTO

MÁRIO BRUNO PASTOR

NUNO CASIMIROPEDRO SENA-LINO

VALTER HUGO MÃE

VASCO BARRETO

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Detodasasmudançasporquea365passouaolongodasuaexistência,

aqueopresentenúmeroprotagonizaé,provavelmente,amaisextrema.Enãofalamosdeconteúdos,destavez,masdocaminhoqueameninadosnossos

olhospassaráatomaratéaoleitor:debaldeassilvaseostojoscorrompendoaalvuradassuascastaspernas,iráagorapeloatalhomais

curto;passaráaserdedistribuiçãogratuita.

Sabemosqueaquelemacacomecânicoquefalacastelhanoedábrindes,amáquinadaslatinhasdepistáciosedeamendoinspicantesea

geringonçadospeluchesdevemestaradarvivaseagritarvitória,pensandoque,assim,amoedadedoiseuros,porfaltadepréstimo,lhes

acabaránasrespectivasranhuras,masnãonosimportamos:oressaibonãomoraaqui.Tudooquequeremosélevarosautoresquegenerosamente

nosconfiamosseustrabalhosaopúblicomaisvastoquenosforpossível.

Portanto,estenúmeroestaráàdisposiçãosobretudoemlivrariasealgunsbares–sendoapenasnecessário,paraficarcomele,pegarnele,

semsenhas,abre-te-sésamosouósculosemcódigonasbochechasrosadaseexpectantesdequemquerqueseja.

Eparacomemoraramudança,decidimosrevisitaralgunsnúmerosidoserecolherdelestrabalhosque,deumaformaoudeoutra,

nosmarcaram:eis-vos,pois,peranteumaespéciedebestof.Edigoespécieenãobestofsemrodeiosporqueestaéapenasumadasselecções

possíveis,dadaaquantidadeeointeressedomaterialquefomosacumulando.

Aacrescentaraolote,uminédito–pelomenosnestaspáginas–:oconto«MárciaFúnebre»,dePedroSena-Lino,publicadooriginalmente

novolume«MuseudeHistóriaSobrenatural»(Autoria,2007),masrevistoparaapresenteedição.

AntónioGregório

fotografia Rockie Nolan

EDITORIAL

36502

DIRECTORFernandoAlvim

alvim@revista365.comEDITOR

AntónioGregórioa.gregorio@sapo.pt

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AlexGozblau,ÂngelaBerlinde,AslisuTurkmen,EduardoPinto,ElmanoMadaíl,FeliciaSimion,FernandoRibeiro,JoannaKudzbalska,JoãoPereiraCoutinho,JoséLuísPeixoto,MárioBrunoPastor,

MicaelPóvoa,NunoCasimiro,PedroSena-Lino,RockieNolan,VascoBarreto

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36503

01Editorial04Biografias06EduardoPintoPorquenãogostodemaestros 10 Elmano Madaíl Ad aeternum... 14 João PereiraCoutinho As palavras propriamente ditas 22 Micael PóvoaTheeffectsofindiemusic24MárioBrunoPastorOscãesdeOlenka30 365 Serviço público 32 valter hugo mãe sexta carta 34 JoséLuís Peixoto O grande amor do mudo 38 Nuno CasimiroC.S.I. Coisas sem importância 45 365 Brinde 48 Vasco BarretoOSoldado,crónicadeumcolecionador54FernandoRibeiroVisitasobreobairrodaspessoas58 PedroSena-Lino [MárciaFúnebre]

fotografia Joanna Kudzbalska

BIOG

RAFIA

SEduardo PintoéopseudónimodeumEduardocujoapelidorealéparecidíssimocomPinto.«PorqueNãoGostodeMaes-tros»foipublicadononúmero20,emMaiode2005.Elmano MadailnasceuemÁguedahá38anos.ÉjornalistadoJN.Oconto«AdAeternum...» foipublicadononúmero26,emMaiode2008.Fernando Pinto do AmaralnasceuemLisboa,em1960.Époeta, professor, crítico literário e ensaísta. O seu livro maisrecente é um romance, chama-se «O Segredo de LeonardoVolpi» (DomQuixote,2009).Oconto«OceanoPacífico» foipublicadononúmero23,emAbrilde2006.Fernando Ribeiro é músico dos Moonspell e poeta. O seumais recente livrodepoemaschama-se«DiálogodeVultos»(Quasi,2007).Oconto«VisitaSobreoBairrodasPessoas»foipublicadononúmero19,emFevereirode2005.João Pereira CoutinhonasceunoPorto,em1976.ÉformadoemHistória,navariantedeHistóriadaArteepós-graduadoemCiênciaPolíticaeRelaçõesInternacionais.Oseulivromaisre-cente, «Avenida Paulista» (Quasi, 2008), reúne algumas dascrónicasquepublicounaimprensa,nosúltimosanos.Éautordosítiowww.jpcoutinho.com.Oconto«AsPalavrasPropria-menteDitas»saiunonúmero7,noOutonode2002.José Luís PeixotonasceuemGalveias,distritodePortalegre,em1974.Époetaeromancista.Asuamaisrecenterecolhadepoemaschama-se«GavetadePapeis»(Quasi,2008),eoseumaisrecenteromance«CemitériodePianos»(Bertrand,2006)–estandoanunciadoumnovoparaofimdoano.Masésobre-tudoportersidoeditorda365queJoséLuísPeixotoéconhe-cido.Oconto«OGrandeAmordoMudo»foipublicadononúmero14,emAbrilde2004.Mário Bruno Pastor nasceuno Porto em1976. Padecedebissextismoecusta-lheaaceitarqueexistamcalendáriosparaosanosvindouros.Apardissotempublicadopoesiaemedi-çõesliteráriascolectivas.Oconto«OsCãesdeOlenka»foipu-blicadononúmero24,emMarçode2007.Nuno Casimironasceuem1977,emCoimbra,viveunoPortoeagoraviveemSantander.Éautorde«Históriasdeembalar»(Quasi, 2000). O conto «CSI – Coisas Sem Importância» foipublicadononúmero24,emMarçode2007.

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FOTO

GRAF

IA FE

LICIA

SIM

ION

Pedro Sena-LinonasceuemLisboa,em1977.Époeta,críticoeformadordeescritacriativa.Oseuprimeiroromance,«333»,serápublicadoemJulho,pela Porto Editora. O conto «Márcia Fúnebre» é inédito nas páginas da365.valter hugo mãenasceuemAngola,em1971.Comoromance«oremor-sodebaltazarserapião»(Quidnovi,2006),venceuoPrémioJoséSaramago,tendopublicado,depoisdesse,«oapocalipsedostrabalhadores»(Quidnovi2008).Comopoeta,tempartedasuaobrareunidanovolume«folcloreín-timo»(Cosmorama,2008).«sextacarta»foipublicadononúmero14,emAbrilde2004.Vasco Barretofoiumdoseditoresquepassoupela365.Oconto«OSolda-do»foipublicadononúmero22,emNovembrode2005.

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Muitos são os ofícios que desempenham um

papel fulcral no progresso e avanço da humani-

dade. Temos como exemplos máximos a medici-

na, a afinação de carros quitados, a biologia

molecular e o coleccionismo. Contudo, outros

métiers existem cuja sua importância prática é al-

tamente diminuta, senão nula. E pior do que isso

é o facto de tais profissões serem amplamente

respeitadas em toda a sociedade, considerada

esta num eixo transversal. Falamos, obviamente,

de um dos mais inúteis trabalhos – porém,

dos mais prestigiantes – que a humanidade já

conheceu: ser maestro.

NopassadomêsdeDezembro,tiveaoportunidadedemedes-

locaraVeneza,numaviagemdecontornospoucoclaros,cujoconteúdo,

porrazõesdesegurançapessoal,nãovouaquirevelar.Adianto,sim,que

duranteaminhaestadianaAveiroitalianaperipatetiquei-meporvielas,

ruasobscuras, cafés famosos, judiariase loggias sinistras.Relembreias

passadasdeGustavvonAschenbacheoseuquaseamorporTadzio,re-

lembreiViscontieDirkBogarde,WoodyAlleneCortoMaltese,Hemin-

gwayeobomleão.Tudoistoindependentementedenãocompreender

emqueéqueestacidadeémaisbonitaqueAveiro,onde,aomenos,os

proto-gondoleirosqueguiamosmoliceirosnãocantamoOSoleMioao

berros.

Numadeterminadaterça-feira,encontrava-mesentadonaes-

planadadocaféFlorian,hipnotizadopeloSirocco,abeberumtraçadoe

aobservaraluminosidadedaPiazzaSanMarco,quandoumvelhocana-

lhaeamigoitalianomedesafiouairverDonGiovanni.Deimediato,su-

pusqueoconhecidoallenatoreiriaproferirumapalestrasobreasvirtudes

quasemelódicasdocatenaccio,masprontamentefuiinstruídoqueodito

DonGiovannimaisnãosetratavaqueumaóperadogiganteWolfgang

AmadeusMozart,dequemsouprofundoadmiradoreconhecedor.Acei-

teioconvitecomoformadequebraramonotoniaalcoólicadosmeusfins

detardevenezianoselárumeiaoreconstruídoLaFenice.

Serveesteintróitoparadescrevercomescusadosdetalhesaminhachega-

da triunfal ao La Fenice, onde fui, como habitualmente, efusivamente

saudadopeloporteiroepormaisduasoutrêspessoasquedevoconhecer

dealgumladomaisoumenosobscuro.

Postoisto,cumpre-medizerqueaóperafoi,comosempre,supina.Aliás,

ao soarem os primeiros acordes, lembrei-me logo que já tinha visto o

MozartemAlvalade,tendo-lheatépedido,aosberros,paratocaroPapa-

geno.

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Falemos,então,doquemefaztergiver-

saremredordesteassunto:afunçãodomaestro.

Sinceramente,esendoeuummelómanoconvicto,

nunca a percebi. Ou melhor, percebo-a tão bem

comoapresençadavacaedoburrinhonopresé-

pio, ou seja, num mero contexto acessório. Ora,

istonadatemderevoltantequandosecumpreo

desígniodeThomYorke:everythinginitsrightpla-

ce.Etaldesígnio,comoéintuitivo,nãoseverifica

nestescasosumavezqueomaestroéotipoque

colheoslourostodos,quandopoucoounadafez

paraisso.Senãovejamos.

Aprimeiraovaçãoésempreparaele,só

pelosimples factodeentraremcena.Aindanão

feznadadedignoejáestáacomercompalmase

maispalmas.Aúnicacoisacomverdadeirosentido

queummaestrofazemtodaasuaactividade–seja

emensaiosouemperformancesaovivo–éaquele

inspirarprofundo,seguidodeumasubidadebra-

ços,emumedoisetrêsezás,queamúsicacome-

ce.Aí sim,háalguma função,uma coordenação

útil que permite que dezenas de instrumentistas

comecematocarumaobraexactamenteaomes-

mo tempo, sem falsas partidas, o que, como se

sabe,éalgodifícil.Claroqueopercussionistaouo

tipo dos pratos – elementos que nas orquestras

tambémnãofazempraticamenteapontadeum

chavelhoesãopagos–podiamfazerexactamente

omesmo.Masnão.Temdeserotipocomarmais

velhoerespeitado,paraconferirumacertasoleni-

dadeaocertame.Depois,andaaliamexerabatuta

deum ladoparaooutro,aosabordamelodia–

coisaquequalquertipocomomínimodesentido

rítmicopoderiafazersemterdedizerquepassou

peloconservatório,pelaGuildhallSchoolofMusic

andDramaemLondresoupelaAcademiadeMú-

sicadaPSP–,temumajudantequelhemudaas

páginasdapartitura–oqueindiciaqueatépode

nãosaberlerumapauta–e,porregra,usaumar

graveesérioparaaspartespesadasdaestrutura

musicaleumaraborboletadoparaaspartesmais

aligeiradas.Duranteaobraquerege,deve,prova-

velmente, irpensandonascomprasquetemque

fazer,nofraquequevesteequelheficaamatar,

vaiolhandolascivamenteparaasegundaviolinista

–umclássico–etudoistosobavestedisfarçante

damaisabsorventecompenetração.Algumasho-

rasmais tardearrisca-sea serovacionadodepé.

Nadademais,quandocomparadocomoquevem

aseguir:flores,maisaplausos,calorososamplexos

acompanhados de frases do género “brilhante”,

“magistral”, “dotou esta ópera de uma nova

vida”,entremuitosoutroselogiosabsolutamente

imerecidos,quandooqueobatutas fezéquase

igualazero.Honrosaexcepçãonestaabsorçãode

méritos é apenas o reencaminhamento de parte

das estrondosas ovações mencionadas há pouco

paraosverdadeirosexecutoresquesãoos instru-

mentistas.Depois,chegamasregalias,ossalários

principescos,onomequenodiscosesobrepõeao

doprópriocompositoreaquelaauraquasemística

quesetraduzmuitobemnafrasequesedizaum

próximo:“devias irverestasinfonia,omaestroé

fulano”.Comotodaagentesabe,istoéverdadei-

ramenterevoltanteeultrajante:insultaoscompo-

sitoreseasuamemória,insultaosinstrumentistas

e o seu virtuosismo. Glorifica-se o intermediário,

esquece-seoprodutordamatériaprimaeocom-

pradorfinal. JeanBaptisteSay–queestevepara

sermaestro–eKarlMarx,essemelómano,porcer-

toquedãovoltasnatumbacomisto.Eupróprio

nãoescondoomeuincómodo.Maestro,caroslei-

tores,sóháum:oRuiCosta.k

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ELMANO MADAIL

Ad Aeternum…ilustração ALEX GOZBLAU

Militar medíocre inflamadoporsonhos imperiaisnuncacumpridos,numfracassoatribuídoadifusaconspi-ração judaico-maçónica ordenada peloKremlin,simpatizanteprofessodadisci-plina teutónica e tão obsessivo comoKantpelapontualidade,opai deArle-quimtornara-se,comaviuvezsúbitaeagotainclemente,obstinadonocontrolodotempo.

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Austero, permitia-se um único prazer: coleccionar máquinasparaaferirotempogasto.Commuitométodoemaiorinvestimento,ocronófilocastrenseacumuloucentenas,senãomilhares,derelógios.Detodaasorteefeitio,comorigemesofisticaçãodiversas,nointuitodori-gorabsolutonamediçãodosinstantes.Adquiriu,até,comocoroláriodasuaexcentricidade,umaréplicadoAstráriodeGiovanniDondi,maisper-feita aindadoque a expostano relicário suíçode LaChaux-de-Fonds,empenhandonodesvairadonegóciotodasas jóias legadaspelaesposasuicida. Avetustaresidência,partilhadacomofilhoúnico,Arlequim–suportadocommenoscomplacênciadoqueasdoresnasarticulações–,foienchendo,atéàsaturaçãodoespaçodisponível,decronómetrossemconta.Nelessededicavaovelhocoronel,atiradoparaareformacompul-sivanasequênciadosaneamentopolíticoqueo tomarapor fascista,aregularocompassodosengenhosvisandoasincroniatotal.Comomo-nóculodeourivesrenteaoglobooculareumfunilcravadonoouvido,vigiava-lhesarotaçãodosponteiros,auscultava-lhesoevoluirdasengre-nagens,saltitandodeumparaoutrorelógioepercorrendotodosnumaurgênciadeestafeta,atéosdeclararafinados. Depois,sentadonapenumbradasala,aguardava,imersonumtiquetaquecolossaletomadodeexpectativafebril,pelahoracerta,quefariasoarumescarcéudebadalosecampainhas,anunciandoaosgritosodobrardoderradeirosegundo.Nuncaconseguiu,porém,dominarare-beldiadosmecanismos.E,nomeiodacacofoniaqueassolavaacasavinteequatrovezespordia,odurocoronel,quedegolarapretosnassavanasultramarinas,entregava-seaochoroconvulsodasupremafrustração,an-tesdevolveràzelosatarefadoacertoradical.Debalde. Tamanha obstinação acabou por lhe consumir as energiase roubarasatençõesaoherdeiroque,dequalquermodo, jápoucoasrecebia.Esempreporviadareprimendacoléricaoudotabefeimpositivo.Demodoque,internadoaos12anosnumsemináriorecôndito,acargo

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decenobitasdadosàcontemplação,Arlequimpreferiaacruelpraxedosnoviçosà indiferençadopaieàsinfoniaatonaldasucessãodosminu-tos. E,quantomaisobsessivosetornavaovelhooficialpelamira-gemdapontualidadeextrema,desgastando-seemfúriasvãscomainso-lênciaarrítmicados relógios,menosensejo tinhaArlequimde tornaracasa.Noseminário,astarefassucediam-senosuavesilênciodeumavi-vênciaserena,consoantearotaçãodosolenãodasrodasdentadas.Se as houvesse, jaziamnoúnico relógiodomaciçoprédio conventual,cujaconstruçãoorçariaquatrocentúrias,talvezmais.Foracongelado,po-rém,numahoraindiferenteporumatempestadederaiosetrovões,quelhedesarranjouomecanismodeescapedecilindroe roda.Demasiadoantigoparaterconserto.Mudoequedo,pregadonotorreãodabibliote-camonástica,naparalisiadetalrelógioreconheciaArlequimosímbolodasualiberdade.Provisória,todavia. Atéque,nodiasegundodeAgosto,deixoudehaverrelógiosepai,varridostodosporumadeflagraçãopoderosíssima.Emborachegadonavéspera,paragozodasprimeirasfériasestivais,Arlequimnãoestavaemcasa.Saírapoucoantes,paraumpasseiosolitárionasruasvaporosasdissolvidaspelacanícula,escapandoaohorrordaschamas,àfragmenta-çãodocorpoexplodido.Eludindoodestinodopai.Ocoronelobtusoforavítimadeumafugadegás,conformegarantiaorelatóriodosbombeiroslocais,algosurpreendidospelosestragosdeumasóbilhadepropano. Extintaaúltimafaúlha,Arlequimdeitouforaosfósforoseador-meceu.Comumsorrisoestranho,atribuído,pelobandoqueoadoptou,aodesnortedaorfandaderecentíssimaeàprivaçãodasprimeirasfériasemfamília.Puroengano,poissemelhantesorrirsóacometeosvirtuosos,essespoucosquelogramdescobrirafelicidadeplenanascoisasmaissim-plesefundamentais.Comoosilêncio.Eadocealforriadeumamorfilialimprovável.k

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JOÃOPEREIRA

COUTINHOas palavras

propriamenteditas

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–Quandoreparonaformacomoolhasparamim,quandoolhasesabesquenãoolho,quandovêsereparasoquefaço,quandofaçooquefaço,eentãodizesaspalavrasquesótusabes,esãosemprepalavrasdeamor,eeupenso:entãoeupensoquetensmedodeumsilêncio,umsilêncioqualqueraalastrar,equeopreenchescomodeves,ouachasquedeves.Sóentãotufalas.–Comoagora?–Sim,comoagora.Equandonãofalas,sãoosteuspensamentos.–Mastunãoouvesosmeuspensamentos.–Talvezporisso.Ouçooquenãoouço.Éosilêncioqueelesfazem.Osilênciodastuaspalavrasperturba-memaisdoqueaspalavrasditas,aspalavraspropriamenteditas.Eentãopeço-tequefales,oqueéamesmacoisa,porquenãoconsigosuportaraausênciadas tuaspalavras.Ouapresençadelas.Nãosei.–Entãooquequeresquefaça?–Apenasquefaças.Quenuncadigasoquefazesounãofazes.Nãomeinteressaoquepensasdemim,oquedizesouconsentes.É-meindiferen-te.–Talveznãogostesdaminhavoz.Talvezsejasóisso.–Talvezsejasóisso.Masjáémuito,paraseralgumacoisa,nãoé?–É.–Masgostodastuasmãos.Achoquegostoapenasdastuasmãos.Vive-ria comelaso restodosmeusdias,mesmosabendoque«o restodosmeusdias»éapiorexpressãoqueexiste,paraalémdesermuitotempoparaexistir,oumuitosdias,oqueéamesmacoisa.–Talvezasfaçaemgessoeentãoserãosótuas.–Acópiadastuasmãosnãoseránuncaastuasmãos.Gostodeassentirquentesoufrias,normalmentefrias,egostoquandometocasorosto,oqueéumaintromissão,masébomnamesmaeeunãomeimporto.–Egostasdosmeuspés?–Achoosteuspéshorríveis.Massoucapazdesimpatizarcomatuaboca.Talveznemsejaatuabocatoda,apenasoteu lábio inferior,quandoosintoentreosmeuslábios,quandotebeijo,oumelhor,quandonãotebeijo,sintoapenasosmeuslábiossobreosteus,muitoquietosquenãoparecenuncaumbeijo.–Gostasdaminhaconinha?–Nãosedizisso.Éfeio.

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–Eaconinha:achasaminhaconinhafeia?–Jáviconinhasmelhores,sequeresquetediga.Masnãoéumaconinhafeia.–Parvo.–Jáviconinhasvaidosas,alegres,simpáticas,arrogantes,cerebrais,intui-tivas,cordiais,virtuosas,prazenteiras,românticas,bondosas,medonhas,infantis,ciumentas,vulgares, incompreendidas,entusiastas.Atuaconi-nhasótempoucapersonalidade.Nãoégrave.–Oquequeresdizercomisso?Olhaparaelacomatenção.–Estouaolhar.–Achasquelhefaltaassimtantapersonalidade?Olhabem.–Acho.–Oquequeresdizercomisso?–Personalidade.Atitude.Éumaconinhapassiva.Parece-melenta.Nuncaouvisteahistóriadaconinhaadormecida?Nãoseisemeentendes.Éumaconinhamandriona,éoqueé.–Umaconinhamandriona?–Nãoterias.Nãoémotivopararisos.–Nãomeestouarir.–Entãoéela.Olhaparaela.Ri-sedequê,estaputainteresseirona?–Ri-sedetiedatuapichotaridícula.–Qualéomaldaminhapichota?Éumapichotaelegante,dir-se-iaatédistinta,helénica,vigorosa,apessoada,tranquila,apolínea,marmóreaeculta.–Éumapichotapequena,meuamor.Sempredissequeeramuitopeque-na,parecemeioatarracada.Oteupaiéasiático?–Não.–Atuamãe?–Não.–Atuapichota?–Jáláesteveenãogostou.–Sódizesdisparates.Alémdissogostodela.Nãofiquesassim.Éumapi-chotagorda,gostodeasentirentreosdedos,duraequente,apertá-laquandotebeijo,quandotevensnasminhasmãos.–Atuaconversadá-menojo.Ésumanojenta.Umaputinhanojenta.De-viastertentonalíngua.Afinal,souteutio.–Quemaniatutensdedizerisso.Queésmeutio.

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–Sou.Oteupaiémeuirmão.Éumsegredomuitobemguardado,nin-guémsabedenada.Masomeupaifodeuatuafamíliainteira,incluindoatuaavó,queeraumanjomuitobeloemuitotriste,maslevementedis-tante.Normalmente,estavasempreadoisoutrêsmetrosdaquelesquelhesaltavamemcima.Oquefoi?Nãomebatasnacabeça,merda.–Queroquetecalesimediatamentecomisso.Ésummentiroso.Claroqueésummentiroso.Excitas-tecomisso,tarado?–Naturalmentequesim.Éparacompensar.–Paracompensaroquê?–Afriezadasobrinha.–Quero-teforadestacama.–Nãose falaassimcomumtio.Respeitinho. Jáandeicontigoaocolomuitasvezes.Mudei-tefraldaselimpei-teocuzinho.Jánaalturatinhasumcuzinhobonito.–Gostasdomeucuzinho?–Nãoéassim.É:gostasdomeucuzinho,tio?–Gostasdomeucuzinho,tio?–Gosto.Eagoraperguntas:éocuzinhomaislindoquejáviste,tio?–Éocuzinhomaislindoquejáviste,tio?–É.Éocuzinhomaislindoqueotiojáviu.–Possoperguntarmaiscoisas?–Não.–Estásaserinfantil.–Nãoperguntasnada.Paraissoeraprecisoalgumainteligência,coisaquenãotensequedificilmenteterás.Compreendeste?–Porqueéquemebatestenacara?–Porqueésestúpidacomoumaporta.–Párademebateres.– Paro se me contares uma anedota. Mas não pode ser uma anedotaporca.Sevierescomporcarias,arreio-tecomocinto.–Oquê?–Estásarir,putinha?–Arreio-tecomoquê?–Páraderir.–Falascomoumcampónio.Secalharésum.Ondeéquenasceste?–Nascinacidade.Masfalocomooshomensdocampoporqueacreditoque a proximidade com a terra nos faz melhores. Lê Thomas Wolfe e

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compreendesqueéàterraquedevemosavidaeaeternidade.Acabare-mostodosporadormecernofrioonderepousamoscorpos.–Eunão.Querosercremada,ascinzassobreasondas,etalvezoventomeleveemprocissãopelomar.–Éstãoridículaeprevisível.Agoratodaagentequerserlançadaaomar.Nãohárespeitopelocorpo.SeDeusquisessequefôssemoscremados,tinha-nosfeitotroncosdemadeira.Masnão:somosfeitosdepele,estapequenavariaçãoda terranegraeescuraquenosespera.Alémdisso,achashigiénicoqueselancempessoasaomar?Secalharatéachas.Falardehigienecontigoéumaconversadedoidos.Contalácomolavasaco-ninha,conta.Éamelhoranedotaquesabes.–Mastudissestequenãoqueriascoisasporcas.–Éverdade.Émelhornãocontaresnada.Agorasóqueroquemebeijes.–Nãomeapetece.–Nãoéumaquestãodevontade.Avontadetempoucoavercomisto.–Podesbeijar-me,sequiseres.Euficoondeestou.–Quero.–Gostaste?–Gostei.–Maseunãotebeijeiati.Osmeuslábiosestãoparados.Parados.–Melhorassim.–Souumcorpoparadoeéassimquedevoser?–Sim.Nãogostoquemebeijem.Gostodetebeijarprolongadamente.Massóeu.Nãoénadacontigo.Masétudoparati.Aideiadepartilharsóseaplicaacoisasvisíveiseinúteis–umlivro,umalaranja,umpardepeú-gas.Paratudooresto,aspartilhassãoimperfeitas,paranãodizeranedó-ticas.Aspessoasnãosebeijam.Hásempreumaquebeijamaisdoqueaoutra.Queamamaisdoqueoutra.Quesenteousofremaisdoqueaoutra.–Possodizerqueteamo?–Não.Sóeupossodizerqueteamo.Eamo-temuito.Maisdoquepen-sas.–Talvezqueirascasarcomigo.Ésdoidoosuficienteparaisso.–Quero,queromuitocasarcontigo.Aceitasseraminhalegítimaesposa,nasaúdeenadoença,atéqueamortenossepare?Éassimquesediz,nãoé?–Porqueéqueestásnessafigura,dejoelhos?Ficasridículodejoelhos,aí

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naalcatifa,atuapequenapichotacomoumenfeitedeNatalpenduradonoteucorpo.Levanta-teecaminha.–Aindanãoquero irparaacaminha. Istoagoraéasério.Nãoterias.Ouveoquetedigo:casacomigoefazdemimumhomemfeliz.–Querofazeramoroutravez.–Primeiro,casamos.Nuncaconcordeicomsexoantesdocasamento.Te-mosaminhapequenapichotacomopadrinhoeatuaconinhamandrionacomomadrinha.Echega.Agoraenfiaistonodedoedizaspalavras.–Umpreservativo?–Enfia-onodedo.Nãoénessededo.Énoanelar.Isso.Agora:aceitasserminhaesposa,nasaúdeenadoença,atéqueamortenossepare?–Espera.Queespéciededoenças?Todasasdoençasousóalgumas?–Todas.Mesmoasmaisgraveseasquedãomaistrabalhoalimpar.–Incluindootifoeaescarlatina?–Nãoterias.Sim,incluindootifoeaescarlatina.Asdoençasmedievais,asviroses,acegueira,asemboliascerebrais,aguentastudo.Mesmoqueafatalidademetafraldas,enãopudermosfodermais,osnossoscorposdefinitivamente apagados, e que do nosso amor só reste a memória.Compreendesoquetepeço?Chama-sesacrifício.Enuncasaberásoqueéamaralguémsenãoamarestambémosacrifício.Porqueéqueestásachorar?–Nuncapenseiquequisessescasarcomigo.Ésóisso.Eébonitooquedizes.–Nãoconsigover-techorar,meuamor.Partes-meocoração.–Nãodigasisso.Sãoapenasfrasesfeitas.– Precisamente. São frases feitas, porque feitas para momentos comoeste.Casocontrário,nãosaberíamosnuncaoquedizer.Páradechorar.Cobreoteucabelocomolençolparaeutepoderbeijarsobovéu.Limpaaslágrimascomosmeusdedos.– Amo-te muito. Já to disse várias vezes, mas nunca numa cerimóniacomoesta.–Tambémteamomuito.–Diz:amo-temuito,querida.–Nuncatechamei«querida».–Masgostavaqueodissessesumavez.ComonosromancesdoHemin-gway.–NãogostodoHemingway.Tusabesdisso.Alémdisso,detestohistórias

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deamor.Navidanadaacabacomosecomeça.Tudopermanece,perma-neceaomenosnamemória,ounasmemóriasdetantasoutrasmemórias,masnadaterminaemnada.Osescritoressãoosúltimosresistentesdeumahipocrisiamuitodeles,queescrevemapenasoquenãosentem,esesentissemnãoescreviamcomoescreviam.ChoreiquandoliOAdeusàsArmas,maschoreipelatristezadepersonagenstãocondenadasaofra-casso,etudopelavontademesquinhadeumhomemmesquinhoqueasfezviver,esentir,eamar,elhesrouboutantoetudoaduaspáginasdofim.Nãohaviaalegriaouprazernomeuchoro.Apenasódio,emágoa,etalvezmesmodesencanto,meuamor.–Compreendo.«Meuamor»serve.–Entãodizapenasque«sim»parapassarmosaobanquete.–Quebanquete?–Aquecemosqualquercoisa,abrimosumagarrafadevinhoedançamosoquerestardanoite.Queroquesejasminhamulher.Equeeupossadizerqueésaminhamulher,porquetesintopróxima,eminha,esentir-temi-nhanãosóporquedormimosouconversamos,masporqueprometemosamartanto,esecalharnemdevíamospornãosepoderjurarumacoisadessas,enãosepode,decertezaquenãosepode.Mascasacomigoeacabacomigo,porteamarmuitoetantomaisquequeroficarcontigo,nãodireiparasempre,parasempreémuitotempo,masotemposuficien-teparaenvelheceremorrercontigo,enãomeimportocomatuaconinhaporqueétua,eminha,disseoquedisse,edisseoquedisseabrincar.Sãoapenaspalavras,palavrasquenadavalememuitopouco temerecem.Aceitascasarcomigo?–Caso.–Nãoé«caso».Éaceito.–Aceito.–Aceitasoquê?–Aceitocasarcontigo.Eaceitoatuapichotapequenina,meuamor.Es-touabrincar.Nãochores.Nãogostoquechores.Oshomensnãodeviamchorar.Olhaparamim:aceitocasarcontigoefazer-teohomemmaisfeliz.Nãodireiomaisfelizentreoshomens,masomaisfelizentreoshomensdepichotaspequeninas.Agoraris?–Rio.–Estamoscasados?–Estamos,meuamor.AosolhosdeDeussomosduasalmasgémeasque

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seencontraramnofirmamento.Páraderir.–DeDeusedofirmamento?Foiissoquedisseste?–Putinha.Minhagrande,adorada,ecasadaputinha.NuncanosdevemosrirdeDeus.Sódofirmamento,porqueeleégrandeenãose importa.Deusolha-nos,ondequerqueesteja,eestásempreondemenosespera-mos,queéemtodaaparte.Eaíestamosnóstambém.–AmasDeus?–Amomuito.QueroqueOrespeites.–Respeito-Oporti.–Não.Porti.–Estábem.–Estámal.SenãoabriresocoraçãoparaDeus,nãoopodesabrirparamim.–MaseuabroocoraçãoparaDeus.Juro.Ésó issoquequeresqueeuabra?–Nãomefaçasrir,merda.Istoéumacoisasolene.–Enfiaaaliança.Deixa-meenfiar-taondeeuquiser.–Páracomisso.EstouaficarcomtesãoeDeusaver.–Nãoestánada.Elefechaosolhosnestaspartes.–Estáaver.Pára.Pousaaaliança.Porta-tecomoumamulhercasada.–Amanhãvouligaràsminhasamigasacontaranovidade.–Dizsóquemeamasmuito.–Voudizer,nãotepreocupes.–Nãoéàstuasamigas.Éamim.Agora.Diz:tio,euamo-omuito.–Euamo-temuito.–Nãoteesqueçasdotio.–Eunãomeesqueço.–Entãorepeteoqueeudisse.–Oqueeudisse.–Isso.Issomesmo,querida.k

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THE EFFECTS OF INDIE MUSIC

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fotografia MICAEL PÓVOA

THE EFFECTS OF INDIE MUSIC

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Eraquasenoite,opárocoIvanichregressavadascaçadas,vinhaumpou-cotocadopelabebida,masmantinhaaposturaascética,abarbaespes-sa,ohábitomuitocoçadoeaespingardaatiracoloabalouçar,junta-mentecomumcrucifixodemadeira,ondeocristoortodoxo,deolharpiedoso,vertiaosanguedeumgansobravoqueosantohomemtraziapenduradoàcintura.Olenka,aafilhada loira, tinhavoltadoàcabanamaiscedoparaprenderamatilha,eramuitonova,masfizerasucessonascaçadas,tinhasidoelaaatiçaroscãescontraaspresas.Umachaci-na!todaaaldeiacelebrou.Atéosmaisconservadores,comoofeitorNicalai,queporprincípionãogostavadevermulheresnaartedacaça,tinhaidofelicitarebeijaracatraia. Ivanichatravessouoportãodaquinta.Enquantopassavapeloceleiroouviuumchorodecriança,entrou,acendeuacandeiaeviuumbebélargadoemcimadeumdospoucosfardosquearmazenava,pe-gounacriançaelevantou-anosbraços,eraumrapaz.DozeanosdepoisdeOlenkatersidoencontradanasimediaçõesdafloresta,Ivanichen-contravaoutroórfão,umórfãoaindavivo.Osoutrosabandonadosqueforamaparecendoao longodosanosti-nhamsidoencontradosmortos,osgelosdooutonoedoinvernonãopermitiamqueaspequenasvidasresistissem.Foramtantos,queopáro-cocavaraumcemitérionasuapropriedade.

Os Cães de OlenkaMário Bruno Pastor

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O cemitério ficava ao lado do quinhão onde se cultivavamumaspobreshastesdecenteio,ascamponesaschamavam-lheocemi-tériodosanjos.Iamlámuitoamiúdedepositarumaououtraflorsilves-tre, picadapelas suas consciências inquietasqueprocuravamalgumareconciliaçãocomaquelesbocadinhossubterradosdecarne.Ivanichob-servava-asdacabana,balouçandoacadeira,comasgalochasnopara-peitodajanela,nemelesabiaaquetúmulocorrespondiacadamãe. Tendoresistidomaisdetrêsdias,opárocopreparou-separabaptizaromenino,seriaAmadeoRavesky,foiungidoconformeoritoerecebeudosbraçosdeOlenkaoprimeiroconfortodasuavida,seriaelaaresponsávelmaternalpeloseucrescimento.Alimentava-ocomleitedevacaoudeégua,masdeixava-omamarsempreque Ivanichestivesseporperto.Ovelhosentava-se,acendiaocachimboeapreciavaoquadrodaafilhadaloiraamamentandoonovoorfãozinho. PoucoantesdosétimoaniversáriodeAmadeo,Ivanichsofreuuma congestão torácica. Estavana cabanaapreparar a armapara acaçadaquandosentiuumadorfortenocoraçãoeajoelhou-se,tentouchamarporOlenka,masnãoteveforçasparagritar.Orapazviu-ona-quelaposição,comasduasmãosagarradasaopeito,primeiropensouqueestivessearezar,depoispercebeuqueeraalgodegraveecorreuaavisarOlenka,quealimentavaoscãesnajaula.Quandoosdoischega-ramàcabanajáIvanichtinhamorrido. Acerimóniafoidiscreta,arranjou-seummongequalquerdeVladivostokparaviabilizarofuneraleofeitordisseumaspalavraslauda-tóriassobreoexemploqueIvanichderaatodososcamponeses.Depoisaurnafoidepositadadebaixodosoalhodaigreja,NicalaibeijouOlenkaeAmadeoedisse-lhesqueregressassemàquintaparacontinuaremaboaobradopároco. NuncachegouàaldeiaumnovosubstitutodeIvanich,osin-vernospassavameasdificuldadesdeOlenkaeAmadeoagravavam-se.Orapazinhocrescerapouco,erafracoeiadiariamentepedirmaçãseoutras frutasàsportasdoscaseirospara senutrir convenientemente,masnãohaviamuitacomidaemtodaaaldeia.Valiaporvezesacarne

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salgada que Olenka preparava depois das caçadas e guardava numaarcajuntoàportadacabana.A raparigadesenvolveu-se, era fértil e continuava a tratar daquinta,mas tal como os molhos de centeio, os rendimentos eram escassos,faltavam-lhe os meios para criar apropriadamente o miúdo; o poucodinheiroqueentravaemcasaprovinhadoscãesquecriavanajaulaequevendianasaldeiasvizinhas.OfeitorNicalaioferecia-seàsvezesparadisponibilizaralgunskopecs,Olenkanãogostavadeganharessasmoe-das,mas serviamparaconseguirumaalimentaçãoumpoucomelhorparaopequeno.Ànoitecontinuavaaoferecerosseiosaorapaz,eraumaformadelenitivoparaofrioeparaasolidão. Osenjeitadostambémforamaparecendomenos,semIvanichnãohaverianinguémparacuidardeles.Nosprimeirostemposlogoapósamortedopároco,Olenkaaindaencontroudoiscadaverzinhosnaflo-resta, recolheu-ose sepultou-osnocemitériodosanjos,os rarosqueapareceramnosanosseguintesjánãoeramsepultados.Arapariganãoachavaquetivessemaisobrigaçõescomosmortosdoqueasmãesde-les;essastambémjánãotraziamfloressilvestresparaascampas,cadavezmaisintegradasnomundonaturalecobertaspelocenteioque,ain-daassim,medrava.UmdiaAmadeoviuOlenkatrazerumdoscorposdafloresta,embrulha-doemburel,eatirá-loaoscães.Orapazsempretiveramedodeles,dosseusuivoserosnares(nuncalatiam),masdepoisdeverosanimaisdes-pedaçaremosmembrozitosroxosedevorarementresioespólio,deci-diunãoseaproximarmaisdajaula. Semprequechegavaaépocadascaçadas,Amadeofugia,es-condia-se no celeiro e esperava que Olenka regressasse. Ela ganharafamadegrandecaçadoraeacompanhavaoscamponesespelafloresta,continuavaaatiçaroscãesdeformaexemplar,asoutrasmulheresdaaldeianãogostavamdela.Chegavasempreexausta,precedidapelama-tilhasilenciosa,mastraziasemprecarneealgumdinheiro.ErapenosodormircomOlenkanessasnoites. Depoisdascaçadasvinhaotempodascolheitas.Amadeore-

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vigorava,saíadacabanaedeixava-seperderpelafloresta.Passavaosdiasinteirosaexplorarcaminhos,avisitarasárvores.Àsvezesdesciaatéaorioenadava,brincavacomaspedras,observavaospássaros.Nessaalturachegavasempretarde,gostavadasolidãodafloresta,nãohaviacamponesesnemcaçadores,apenasosilênciodoarvoredoeomurmú-riodorio.Umdiaencontroualguémnafloresta,eraumamulher,fita-ram-se,masnãose reconheceram;quando jáestavaachegaracasaencontrouumbebémorto.NãocontounadaaOlenka.Outravez,aindanaépocadascolheitas,Amadeodecidiuatravessaraflorestainteira.Antesdesedeitar,preparouasuajornadaapenascomumpedaçodepãoeumpoucodecarnequeguardounocasaco.Quan-doOlenkafoitercomelenãodeupornada,Amadeoestavatãoentu-siasmadocomaviagemquenemseimportouqueasmãosdaraparigarecomeçassemooutropercursodetodasasnoites. Namanhãseguintelevantou-semuitocedoparasefazeraocaminho.Andouváriasmilhasatéaopontoemqueaflorestaaindalheerafamiliar,depoisdeixoudereconheceroterreno,mascontinuou.Ho-rasmaistardedeparou-secomumimensovaleeviupelaprimeiravezalinhaférrea,muitolongaebrilhante,cruzandoohorizonte.Amadeojásabia,atravésdasgravurasdos jornaisqueofeitorNicalaideixavanacabana,queeraaliquepassavamoscomboios.Osolhosbrilharam-lhedecontentamento,iaverumcomboio!Sentou-sejuntoàlinhaeespe-rou.Ocomboionãochegou,masanoitefoidescendo.Eratardeeesta-vamuitolongedecasa,paravoltarteriaqueentrardenovonaflorestaeatravessá-laaorelento,entreosloboseasoutrascriaturas.Achouqueseriamaisseguropernoitarnovale.Apanhouunsramosdochão,im-provisouumcolchãosobumabetoedeitou-separaadormecer.Anoiteestavabonita,via-setodoovale,aluafaziacomqueoscarriscontinu-assemabrilhar,eraaprimeiravezquedormiasozinho,masnãotevemedo.TinhaonzeanoseestavatãofeliznasuaautonomiaqueatéseesqueceudafomeedoscuidadosdeOlenka,adesesperaremdooutroladodafloresta. AindanãotinhaamanhecidoquandoAmadeoacordousur-

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preendidocomoritmomajestosodotransiberiano:eraumamáquinamagnífica,ejectandonocéubaforadasdensasdefumonegro,asjane-lasdascarruagensvinhamquasetodasiluminadaseviam-seassombrasdosperfisdosviajantes.Ah!embarcarnaquelemonstroecruzaromun-dointeiro,verMoscovo,SãoPetersburgo,osportosdemarouatéospaíseslongínquosqueficavamdepoisdaPolónia!Ocomboiomanteveasuacadênciaafinadaatésesumirtotalmentenacurvadohorizonte,masAmadeonãodesvioumaisolhosdocaminho-de-ferro,deixou-sesonhareviajartambém,rememorizavaasimagensdosjornais:osvelei-ros,ascaleches,ospalácios,umafotografiadoczar,atéopoderiavisitarelancharcomele,comoczar.Paraissoprecisariadeumafarda,entãoreconstruiumentalmenteumuniformequetambémviraestampadoal-gures,agorajánemprecisavadocomboio,via-seacavaloacombaterosinimigos...iajáameiodabatalhaquandoselembroudeOlenkaevoltouadeitar-senoseuleitoimprovisado. Aosbocadinhosovalefoi-seenchendodeumaluzrosada.Eraalturaderegressaracasa.Opercursoderegressofoimenosemocionan-te,sabiaocaminhobem,masestavacansadoenãotinhacomidonada.Quando chegou à cabana, já quasenofimdodia, vinha cabisbaixo.Duranteacaminhadapercebeuqueomundoqueoesperavaeraodesempre,osmesmoscãesarosnarodiatodo,amesmafome,osmesmosafagosdofeitorNicalai,amesmajanelaparaoquerestavadocemitériodosanjos,amesmaopressãonocturnaentreocorpodeOlenka. A raparigaviu-ochegarao longe,estavaaceifarquandoomiúdoatravessouoportão,limpouosuordatesta,desapertouolençodacabeçaefoiabraçá-lo, levantou-onosbraçosebeijou-lheaboca,quissaberporondetinhaandado,oqueacontecera.Disse-lhequeper-correuaflorestatodaanoitecomoscãesàsuaprocura,masnãoore-preendeu,levou-oparadentrodecasaepreparouumpratodepãoes-curocomvegetais,depoisamarrou-oàcamaenodiaseguinteapenasovisitouaoquartoparalhelevarumamalgadeleite. Foi só em dezembro que o miúdo conseguiu organizar osmeioseacoragemparaafuga.Olenkadeixava-omaislivredentroda

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cabana,masnãoodeixavasairporcausadaneve,Amadeoplaneoufugirduranteanoite,escondeuovelhosobretudo,ogorroeasgalo-chas de Ivanich dentro da arca da carne salgada e depois deitou-se.Olenkajuntou-seaelelogoaseguir,acariciou-o,abriuodecoteeaca-bouporadormecer. Láforaanoiteestavagelada,ofriofizeracomqueofechodacanceladajauladoscãesestalasse.Aindanacama,AmadeoafastouobraçodeOlenkaeesgueirou-se,gatinhouatéàportadoquartoepas-souparaacozinha.Lentamente,tacteandooespaço,encontrouaarcaeretirouosagasalhoseasgalochasparaseproteger,enfiounosbolsosumastirasdecarneesaiu.Nãoestavamuitovento,masoarfrionãosepodiarespirardirectamen-te,Amadeoenrolouocachecolàvoltadacaraecaminhouemdirecçãoàfloresta,sabiaopercursodecor,erasóatravessaroquintal,passarocemitérioesairiaparaarua,aluaquaseárcticaserviriadecandeia,an-tesdoamanhecerestarianovale,seguiriaalinhanadirecçãodopoen-te. Acreditava que em alguns dias encontraria uma estação de com-boio. Entretantoouviu-seouivodeumdoscães,eraoCossaco,omaiordetodos,líderdamatilha.Amadeoreconheceuosomdeimedia-to,masficoucomaimpressãoquenãovinhadastraseiras,ondeestavaajaula,masdadirecçãodocemitériodosanjos,aindaassimavançou,aopassarpelavelha janelade Ivanichcurvou-se,nãoquisarriscarservistodointerior.Quandoseergueuestavajáemfrenteaocemitério,oscãesdeOlenkaremexiamaterradaspequenassepulturas. OCossacofitou-o,arreganhouosdentes,quasesemrosnar.Numsegundotodaamatilhacaiusobreopequeno,primeiroagarra-ram-se-lheaosbolsosdosobretudo,depoisàsmãos,atéoderrubarem.Omedo,ofrioeocachecolemtornodacaraimpediram-nodegritar.EmpoucosinstantesdesfizeramedevoraramAmadeoRavesky.k

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AVISTÁMOS BELEZA RARA NO METROPOLITANO DE LISBOA.QUEREMOS UMA SEGUNDA DOSE.AJUDE-NOS A CONSEGUI-LO.TODAS AS INFORMAÇÕES QUE POSSAM SER ÚTEIS NESSE SENTIDO, DEVERÃO SER ENDEREÇADAS A INFO@REVISTA365.COM

AVISTÁMOS BELEZA RARA NO METROPOLITANO DE LISBOA.QUEREMOS UMA SEGUNDA DOSE.AJUDE-NOS A CONSEGUI-LO.TODAS AS INFORMAÇÕES QUE POSSAM SER ÚTEIS NESSE SENTIDO, DEVERÃO SER ENDEREÇADAS A INFO@REVISTA365.COM

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FOTOGRAFIA MICAEL PÓVOA

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Acadelanãopôdefazernadaquandoelecomeçouaespetaranavalhanomudo.Foiumatragédiamuitogrande.Acadelaestavalongeelevantouasorelhasquandoelecomeçouaespetaranavalhanocorpodomudo:acertava-lheporondeoapanhava:nopeito,nosombros,nopescoço.Acadelacorreudepressa.Asunhasdaspatascravavam-senaterra.Oinstantedaspatassobreaterrae,cadavezmaisperto,eleabatercomamãodireitanomudoe,dentrodamão,anavalha.Acadelaacor-rerealâminadanavalha,comraiva,aespetar-seentreascostelas,ouabaternascostelasduras,ouespetar-senopescoçodeveias.E,cadavezmaisperto,osgemidosqueomudoasfixiavaequeeramsonsdagargan-ta.Acadelaparoudecorrer.Aproximou-sedevagarporqueomudoesta-vadeitadonochão.Estavamorto.Doseucorpoestendido,escorriasan-gue grosso, como uma garrafa entornada sobre a mesa, como umanascente. As navalhadas atravessavam-lhe a camisa. Havia pedaços dotecidodacamisaqueentravamdentrodessesburacosdesanguegrosso.A cadela aproximou-semaisdevagarquando jánãopodia fazernada.

O GRANDE AMOR DO MUDOJOSÉ LUÍS PEIXOTO

fotografia Aslisu Turkmen

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Omudoestavamorto.Acadelaparou-seaosseuspés.Tinhaosolhospesados.Pousouofocinhosobreasbotasdomudo.Elevantouacabeçaquandoquisolharparaoseurostomorto. Ouvitantoestahistóriaque,decadavezqueaconto,tenhosempreasensaçãodequerepitocadaumadaspalavrasqueavelhaEs-trudesmecontava.AvelhaEstrudeschamava-seGertrudes.Viviapertodaminhacasaeaspessoasdiziamquejánãotinhaojuízotodo.Masnãofaziamalaninguém.Lembro-medequandoelaiaàvenda.Eueosoutrosrapazesestávamosajogaràbolaeparávamosquandoelapassava.Quan-doregressava,parávamosdenovo.Nãoforampoucasasvezesemqueela,depoisdepassarpornós,pousouaalcofaquetilintavadegarrafassobumpanoda loiça,abriuaspernasumbocado,subiuasaiaatéaojoelhoeurinounarua.Nessesfinsdetarde,ficávamoscomaboladebai-xodobraçoaveraurinaquedesciapela regadeira.Esperávamosquepassassepelabalizadofundo,duaspedras,econtinuávamosa jogaràbola.Lembro-metambémdequandoiaacasadela.Aportaestavasem-preaberta.Euentravaeelanãoseassustava.Pareciaqueestavaàminhaespera.Começavaafalarcomconversasameio,comosejáestivesseafalarparamimantesdeeuchegar.Eutinhadozeanos.Elacontavahistó-rias.Umaqueelagostavadecontar,enquantofaziaocomer,enquantomisturavafeijõesecouvesnapanela,eraahistóriadecomoomudosetransformounumaflorsobreoseuprópriocaixão. Euchegueiaconheceromudo.Aindanãoandavanaescola.Nãoseisejátinhacincoanos.Subiaedesciaomurodoquintal.Asmi-nhasmãoscabiamnosburacospequenosdomuro.Osmeuspéscabiamnascurvasténuesdacal.Quandoomudopassava,todovestidodepreto,comabarbamuitocomprida,seguidopelacadela,eutinhamedoenãotrepavaomurodevolta.Abriaaportaefugiaparadentrodecasa.Quan-doestavanaruacomaminhamãe,escondia-meatrásdassuaspernas.Tinhamedodomudo.Todasascriançasdaminha idadetinhammedodele.Nessa altura, eunão sabiaque ahistória domudo começava aí.Quandosubiaaminharua,vestidodepreto,comabarbamuitocompri-da,seguidopelacadela,omudoiaparaacasadeumamulhercasada.AvelhaEstrudes,nasombradasuacozinha,contava-mequeomudoeamulhereramfelizesnoseusegredo.Algumassemanas.Comotodosossegredosqueexistiamnaminhavila,tambémessenãoduroumuitotem-po.Quandoalguémsuspeitou,quandoalguémimaginouquepodiaser

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possível,quandoalguémselembrouquepodiaseralgoqueacontecia,aspessoasfalaramdissodurantedoisdiasseguidos.Depois,semquenuncaninguémtivessevistoomudoentrarnacasadamulher,semquenuncaninguémostivessevistojuntos,todaagentedeuporassentequeomudoeamulhereramamigos.Quandoomarido seaproximava,aspessoasmudavamdeconversa.Depoisdetodaagentesaber,depoisdospastoresquesótornavamàvilaumavezporsemanasaberem,tambémomaridosoube.Ninguémlhedisse.Soube,porquealguémlhefalouquehaviaumhomemque tinhaumamulherque tinhaumamigo.Soubeporqueosoutroshomensolharamparaeleehouveumquedissepoisé,háporaíumhomemquetemumamulherquetemumamigo.Essehomemnãosabiaqueamulhertinhaumamigo.Esseamigoeraomudo.Nessanoite,omaridoestavaajogaràscartaseperdeu.Saiudatabernaefoiparacasadevagar.Foipelasruasmaisescuras. Não passaram muitos dias, mas passaram tranquilamente. Omaridomarcouumencontrocomomudonaherdadeondetrabalhava.Omudo,seguidopelacadela,fezocaminhosempreconvencidodequelhequeriaoferecertrabalho.Foidissoquefalaram,debaixodeumaazinheirafinaetorta.Acadelaestavalongeporque,sobavozcalmaedistantedomarido,perseguiagafanhotospequenosquesaltavamentreaservaseoscardos.Foiderepentequeohomemtirouumanavalhaabertadobolsoecomeçouaespetá-lanomudo.Acadelacorreu,correueomudo,morto,ficoudeitadonochão.Acadelanãopôdefazernada.Ficoutriste.Oho-memabriuumacovanochãoeenterrouomudo.EraNovembroe,nessatarde,choveusobreaterra. Quandoomudodesapareceu,aspessoasdavilafalaramsobreisso durante dois dias seguidos. Depois, tomou-se por assente que omudotinhadesaparecido.Amulherencontrouumaangústia.Omaridovia-a sem ânimo e não dizia nada. Houve homens que procuraram omudo.Masninguémoprocuroucomvontade,porquechoviamuitoeporqueomudojánãotinhafamília.Aúnicapessoaquesentiumesmoasuafalta,amulher,nãopodiairprocurá-lo.Àsvezes,àtarde,sentava-seaolumeejulgavaouviraportaaabrir-se.Cresciadentrodesiaesperan-ça,voltava-separaver,eeraoventooueraosbarulhosqueamadeirafazsozinhaquandoévelha.Houvehomensquedesconfiaramquepodiater sido o marido. Alguns perguntaram-lhe se tinha visto o mudo. Elenuncarespondia.

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QuandochegouMarço,nasceramfloresnoscampos.Debaixodaazinheiranasceuumaúnicaflor.Eraumaflorbravia.Asraízesdessaflorentravamdentrodocorpodomudo.Aquiloquetinhasidoavidadomudoentravaporessasraízesecorriadentrodessaflor.Ninguémsabia,masomudoeraessaflor.Continuavamudo.Assuasroupaspretas,apo-drecidasdebaixoda terra,erampétalasbrancas.Osfiosda suabarba,misturadoscomaterra,erampétalasbrancas.Acadela,semsaberqueeleeraumaflor,continuavaperdidapelasruasdavila.Foiacadela,numdosdiasemquesedeitoudebaixodaazinheira,aoladodaflor,quefezcomqueumpastordescobrisseocorpodomudo.Trêshomensrevolve-ramaterraedescobriu-seomistériodoseudesaparecimento.Andaramduasmulheresapedirdeportaemportaparaoenterrodomudo.Quan-dochegaramàportadamulher,quandodisseramandamosapedirparaoenterrodomudo,osolhosdamulher tornaram-semaisescuros.Eraimpossíveldistinguirofundonaáguadaquelespoçosnegros.Navenda,houvetrêshomensqueperguntaramaomaridosesabiadomudo.Quan-dovirouacara,oshomensagarraram-noeentregaram-noaosguardas.Foipresonofortedeumacidadeenuncamaisvoltouàvila.Namadruga-dadoenterro,amulhersaiudecasa,vestidadepreto.Efezocaminhoatéàherdade.Ficouemsilêncio.Assuasmãos,osseusdedos,aproxima-ram-sedomontedeterraqueestavaaoladodacova.Assuasmãos,osseusdedos,agarraramocaulefinodaflore foi-seembora.Aspoucaspessoas que estavamno enterro do mudo, ficaram admiradas quandoviramamulherentrarnocemitério.Aspessoasmurmurarampalavrasporcimadosombros.Amulher,sozinha,estendeuamão,osdedos,epousouaflorsobreocaixão. Nesteponto,avelhaEstrudesnãocontavamais.Ficavaemsi-lêncioe,comumgarfo,esmagavaasbatatascozidasdentrodapanela.Eratambémnestepontoqueeu,muitasvezes,saíaparaaruaeiajogaràbola.Sómuitomaistarde,passadosmuitosanos,soubequeamulherqueamaratantoomudoeraavelhaEstrudes,quandoaindanãoeratãovelha,quandoaspessoasnãodiziamaindaquetinhaperdidoojuízo.k

CSICoisas Sem Importância

Nuno Casimirofotografia Ângela Berlinde

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Choveusempre.Choveumuito.Umacortina riscadaemper-manentemovimento:foiaprimeiraimpressãoquetiveaosairdoaviãoereceberachuvaentreaescadaeoautocarronomeiodapista.Durantedezdiasumserenodilúvioocupoutodoaquelebocadodegeografiasemexaltaçõesabruptas,semventonemaguaceirosfortes,mantendoumrit-moconstantequeregulavaolangordosrelógioseescurecialigeiramenteoscontornosdapaisagemembaciada.Océuunidoaochãoemperma-nênciaporumafaixahúmidaequenteque,dajanelaabertadoquarto,pareciaagradartantoaautóctonescomoaturistas.Dapoltronavoltadaparaoexterior,aquelasfigurasapareciamcomopeixesesguiosmovendo-sesatisfeitosnavertical,quasesemseagitarem. Foiaodécimodia,horasantesderegressar,quematei Ingridcomomesmolentordoaquárioquepartilhámosporunsdias.Nãomedeuqualquerespecialprazernemmeexcitou.Apenasmesentimaisrela-xado,comosetivesseexecutadoumatarefadeformacompetenteesemdeixartrabalhoparacasa.Elanãogritou,comportou-seatécomgentile-za,comosetivéssemosensaiadoomomentonosmaisínfimospormeno-res.Ofereceu-seaosacrifícioedeixou-seaolhar-mecomoseparasempreeucontinuasseàsuafrente,comosesepreparasseparafalar,comabocaentreabertaameiocaminhoentreosorrisoeogrito. OpanfletoqueoCarlosmeentregaraequeeuprovavelmenteesquecinoaviãofalavadaságuasmornasderarabelezaedoritmoquen-tesemprenoar.Exultavamasinesquecíveisdunaseummarsemfimaencenaremaspraiascomopedaçodeéden.Nãorecordoreferênciasaospeixesverticaisouapluviosidadesdequalquertipomassuspeitoqueserianaturalnaépocabaixa,aquelaemquememandaramparalá.Paramim,aquelachuvapersistenteeraapenasumelementodecorativocujateimo-siamedespertavaalguminteresse,umacertacuriosidadetécnica,comoquemlevantaocapotdeumcarroignorandoporcompletoosenigmasdamecânicaautomóvel. Doismesesantes,tinhasaídodoquartoconvencidodequeelacontinuariaestarrecidaaolharajaneladefronte,comarealidadeache-gar-lheligeiramenteatrasadadepoisdaminhapartida.Imaginei-aaten-tarperceberodesfasamentoentresom,imagemepensamentos,aprocu-rar suprir os hiatos, sobrepondo os bocados que gradualmenteapreendesse.Provavelmentesóquandopasseiaentradadoprédioteráouvidocomprecisãodefinitivaasminhasderradeiraspalavrasepercebido

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queomeuperfumeserarefaziajáempoucomaisqueumrastoténue.Quandoabriaportadocarro imaginei-aarepetirentredentes“ésumverme!”eadesatarnumchoroeducado,numdesesperocontido,commedoquealguémapudesseouvir. Mesmocommaisdeumaviãodedistância,osolhospousadosnoscoqueirosaperderdevistaqueopanfletodoCarlosprometia,aIn-gridlânguidaeaindaviva,eunãoconseguiadeixardemeconvencerdajustezadaviolênciaverbal.Lánoíntimotentavajustificar-meperanteumaputativaplateiadedesconhecidosquevisivelmentesuspendiaareprova-çãosobremim,ogajoqueadeixoucomum“ésumverme!”. Foiumabatotainocente.Aliás,foiapenasumaformadereporajustiça,oumelhor,deevitarainjustiça.Oobjectivonãofoipuni-lamassimprovocarumsofrimentoqueseabeirassedomeu.Nestascoisas,aúnicapreocupaçãoéarepartiçãoparitáriadasdores.Éissoquedeterminaqueeuleveocandeeiroparaminhacasa:nãoporquegostemaisdeledoquetu,nãoporquemeincomodeparticularmentedeixardeoterpertomasapenasporque,aolevá-lo,tedeixoatimaisvazia. Apesardetudo,jáfizcoisasbempiores,obrasbemmaisrastei-ras.Semesmocomumatlasinteiroaseparar-nosmeatormentavaafraseeogestoéporqueaminhaeducaçãofoiesmerada.Ouentão,secalhar,éparajustificarasoutrasfalhas,outalvezparaasmenosprezar.

QuandooCarloseaminhairmãsesentaramàminhafrenteepousaramoenvelopeemcimadamesadocafé,penseiquemeiamcon-vidarparapadrinhodecasamentoeaideiaassustou-me.Aminhairmãcomeçoupordizer-mequetinhafaladocomaTeresaequeestavatudobem,queelatambémachavaqueeraboaideiaeuarejarumbocadoedebomgradomeconcediaunsdiasdeférias. Fiquei baralhado mas tentei disfarçar. Certamente contribuíparaalimentaraideiageneralizadadequemesentiaabaladopelasepa-ração.Aminhairmãaolhar-mecommaternaldoçura,oCarlosaafagar

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asprópriasmãos,concentradonumpontoindefinidodotampometálicoda mesa, a sofrer solidário os horrores por que eu passava. Os outrosachamsemprequeéaseparaçãoenquantorupturaoquenosagastamasnãoé.Oqueincomodasãoascircunstâncias:euandavaensimesmadocomaquelevermequemesaíradesabrido.Nãoforaessaapalavraqueeuqueriadizermas,aomesmotempo,consolava-meaconvicçãodeaterdeixadodesconcertada.Muitomaisdoqueesperaraconseguir.Aindaas-sim,moía-meessedesconfortodoargumento,umafífiaincontornável,apinceladasuplementarquearruinouapinturaenenhumamemóriainven-tadasupririaafalha. Asdespedidaseosrompimentosamorososdeviamserciclica-menteensaiadoscomoosplanosdeemergênciacomossimulacrosdeincêndioedeatentadosterroristas.Dequandoemvezládisparavamasluzesvermelhaseligava-seoalarme,soavaacampainhaecomeçávamosoexercíciodaseparação.Nofim,discutíamosasfalhas,revia-seosplanosecimentava-seasegurançaquevalidaosimprovisos.Pararematar,toma-va-seumabelarefeição,jantarromânticoousimilarparapremiaroesfor-ço. Poupar-se-iaumadoseconsideráveldecomiseraçãooptando-sepelaeducaçãoparaacatástrofe.Emtodoocaso,nãovaliaoesforçoargumentarcomeles. Nãodiscuti,portanto.Dissequeestavabem,iriadefériascomcertezamaseraumdisparateestaremassimcomessascoisas,queeviden-tementepagariaaviagemeque,indosozinho,atéteriaagorauminvejá-velfundodemaneioparagastarnoócio.Issodepoisvê-se,responderam,elámeenfiaramnoaviãotrêsdiaspassados,comamalaedoiscompri-midosparasuperaraclaustrofobiaporumadúziadehoras.

Apregoavaodesdobráveldaagênciaque,aosatributosnatu-rais se somavamaalegria,o caloreahospitalidadedopovodaquelasterras,asuagastronomia,oseuartesanatoeumfolclorericoevariado.

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Euvia-osemmanchasverticais,moles,movendo-sesempressasporden-trodachuva,equedava-mepeloquarto,entreapoltronaeocolchão,numapacatezdeeremitériodeluxo. Asinterrupçõesnaplanuradashorasficavam-seporumacertaagitaçãonoscorredoresquandoalgumgrupodeexcursionistasentravaousaíadohotel,rumoresderecém-casadoseamovimentaçãoreptiláriadeumououtroalcaiotedepraia.Havia,comosemprehánestesdepósi-tosdeturistas,umbarefestasnocturnasparaoengatemaseununcafuihábilnasestratégiasdeseduçãodeestrangeirasemfériaseomeufeitionãoédadoagrandesaventurassexuais.Tenhoaconsciênciadequeasminhas veleidades de amante ficaram sempre pela literatura erótica enemcomogabaroladebalneárioalgumavezmedestaquei. Querocomistodizerquenãofoipremeditado,antespelocon-trário,fiqueiatésurpresoquando,apartirdosegundodiadehotel,passeiaacordarcomosotaqueescandinavocarregadíssimodeIngrid. Ingrideraumamulherbonita.Desembarcaraanorteunsmesesanteseestavaporaliadesfazer-sedodinheirodopai.Dinheirosebento,disseelae,duranteosnovediasdanossarelação,asconfidênciasbiográ-ficaspraticamenteseconfinaramaessecomentáriosobreahigienedocapitalpaternaldaminhacompanheira.Asconversasquetivemoserammuitomaisfechadasemcomidasebebidasetraduçõesparaportuguês.Ingriddetudoperguntava“comosediznatualíngua?”e,nouniversolimitadodeumquartodehotel acrescidodaspossibilidadesoferecidaspelajanelaaberta,nadateráescapadoànomeaçãoemportuguês. Deresto,entretivemo-nospartilhandocitaçõesdelivrosemo-dorras,numverter lentodeálcoolealgumsexo.Omundoeraapenasaquelebocadodehotel,postodevigiadoaquárioláforaetudoomaisexistiaapenasaespaços,quandoentravanonossocampovisualouquan-donossocavamaportaparaentregaracomida.

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Ocorreu-meovermeumasquantasvezesenquantoaliestive-mosmasnãofoiessaparticularembirraçãoamover-me.Nãofoisequerumaextemporâneamanifestaçãodedistúrbiosmentais.Terásidotão-sóumalíviodemuitasdores.Nuncaantesperspectivaraumamorte.Nãoimaginavaa facilidade comque sepodia subtrair a vida a alguém.Namolezaemquenospreservámosporaquelesdias,foiquasesemesforçoqueatravesseicomalâminadocuteloaroupaeascamadassucessivasdetecidoseórgãosdeIngrid.Nenhumdenósdespendeunogestodemasia-daenergia.Cadaumcumpriuoseupapeldeformacordata,semgrandesestremecimentosnemrumores,deixandoavidaescoar-sesemurgência.Nãoseiquantotempodurouoprocesso.Diriaque,maisdoquelentofoiindolente,comoumamornadoce. Ocabeloenleou-se-lhenumnimboloirosobreoslençóisdeli-nhorosadoeatúnicabrancaacabouporcolar-seaocorpocomosangue.Vendo-a da poltrona, com os braços abandonados sobre a cama e aspernaspendendoparaochão,pensavanumadasmulheresdo«BanhoTurco»deIngres.Tivevontadedefotografá-lanaqueleabandonodefimdecópula. Fiqueinoquartomaisumashoras,entrecigarrosecontempla-ção.Limpeiasimpressõesdigitaisdafacaepousei-anamesinhadecabe-ceiraantesdesair.Fi-lomaisporalgumaesconsareminiscênciacinemato-gráficadoqueporumavontadedeliberadadeesconderalgumindício.Atéporque,eIngridconcordaracomigonesseponto,arealidadeemsimesmaéapenasumindíciodavisãoquecadaumtemdela. Depois,sobrou-meapenasotempodefazeramalaeentrarnoautocarrodeligaçãoparaoaeroporto.Aindahoje,nãopercebocomomedeixaramentrarnoaviãoderegresso.k

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O SOLDADOcrónica de um coleccionista

Vasco Barretofotografia Micael Póvoa

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Chamam-mevadio.Masjulgoqueestãolongedesaberquan-toseaproximamdaverdade.Umhomemquefazumacolecçãoéumterrenoarmadilhado.Podetropeçar-senele.Emnoitescomoadehoje,enquanto vou circulando pelos becos, por estes lugares escuros dasadjacênciasdacidade,lembro-medecomoeraumtiponormalantesdeiràtropa.Sãopoucas,masfelizes,asmemóriasdessaépoca.

Eraumbomrapaz.Estudeiatéaononoanosemnegativas,tinhaumanamoradafixaesóchegavatardeacasaaofimdesemana.Aocontráriodomeuprimo,queseembebedavatodasasnoitesdesdeosquinzeanosequeeusempreviraserameaçadodedespejamento,eununcabebia.Muitonovo,arranjeiempregonumrestaurante,eiaquaseemchefedecozinhaquandofuichamadoàinspecção.

Osmeuspaiserampessoassimples.Casaramnovosecome-çaramaesgravatar.Oseuúnicoobjectivoeraterumafamíliagrande,cheiadefilhoscapazesdeviremaolharporelesnavelhice.Depoisdeeunascer,aminhamãefoioperadaàbarrigaenãopôdevoltaraengra-vidar.Quandosoubedisto,percebiqueeraeuoculpadodasuainfelici-dade.Decidientãoterumranchodefilhosomaiscedopossível.QuemmeensinoucomoissosefaziafoiaTânia.Nãoseiporquemelembrodistoagora.

Elajátinhaensinadoomeuprimoeoutrosrapazesládobair-ro.Umdia,foiaminhavez.Vínhamosjuntosdoliceu.Eutraziafatodetreinoporcausadeumaauladeginástica.Tinharasgadoascuecasasaltaroplinto.Eraumaboasensação,tertudoàsolta.Elaeramaiordoqueeu.Usavasaiarodada,soquetesderendaetrançasnocabelo,comoseviessedejogaraoelásticonorecreio.Masaverdadeéquejátinhasidoencontradaatrásdopavilhãoumameiadúziadevezes,debruçadaparaacerca,comasaiaatiradaparacimadascostasealguémencosta-doatrás.Nessedia,eraaprimeiravezqueestávamossozinhos.Jáen-tão,eunãogostavadesexo.Oudaideiadesexo.Noentanto,pensaremtudooquetinhamcontadoacercadelafez-mecrescerumtumordentrodas calças.Quandodeipormim,estávamosatrásdomilhoafornicar.

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Éfrequenteperder-menestasdivagações.Àsvezesumanimalchianoescuro,atrásdasárvores.Éosuficienteparaquebraracadeiadospensamentos.Paroeviroacabeça.Cruzooolharcomummocho,umcão.Sento-menumbancoequaseadormeço.

Fuiparaainspecçãoconvencidodequeiaencontrarumaes-péciedeselecçãonacionaldeatletismomasdefarda,unstipossimpáti-cosaquereremsaberseeucorriamuitooupouco,seeusabia fazercontasefalaringlês,gritaralto,partirpedra,dartirosaospássaros.Fi-queisurpreendidoquando,aochegar,meempurraramcontraaparede,paraumafiladerapazesassustados,apraguejaremsemquenosconhe-cessemdeladonenhum.Passeiumdiaatarefado.Questionáriosparapreencher,filasindianasparamostrarostestículos,tiposaporemletrasparaeuleredesenhosesquisitos,berrosparairalmoçarouparaoutracoisaqualquer.Nofim,fiqueiapto.Aindahojenãoestoucertosobreaquesereferiam.Aptoparaquê?Talveztivessemrazão,nofimdecon-tas.

Seismesesdepois,nasvésperasdecasar,recebiumpostalquememandavaapresentarnaEscolaPráticadeArtilharia,emVendasNo-vas,afimdeserincorporado.Despedi-medorestaurante,adieiocasa-mentoefuiapanharocomboio.Osprimeirosdiasderam-measensaçãodeestarnumacolóniadefériasondehaviaumgrandejogodeestraté-gia.Eueosoutrosvintedomeupelotão.Osberros,asmariquicesnaparada,agraxanasbotas,abarbaverificadaàlupa,ascamaspassadasaferro,oscincominutosparatomarbanho...enfim,sópodiamestarabrincar.Masquandocomeçouaporradaeoscastigos,etodaagentecontinuavamuitosériaadizerasmesmascoisastodososdias,aíperce-bemosqueestávamosfodidos.Tínhamossidopostosnasmãosdeumacambadadeterroristasautorizadosafazeremoquefosseprecisoparanósficarmosiguaizinhosaeles.Arecrutaduroucincosemanas.Foiumpesadelo.Masopioraindaestavaparavir.

Ontem,aosairdomuseu,tiveumatontura.Pareceu-meouviralguématrásdofrigorífico.Voltei-me.Nãoeranada.Apagueia luzesaí.

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FuicolocadoemÉvora.Trabalhavanacozinhadorefeitórioedormianumacamaratapestilenta,ondeapanhávamospulgasduasve-zesporsemana.Felizmente,osoficiais,dequemtínhamosummedodemorte, iam comer à messe. À noite, ficávamos poucos. As praças, ograduadodediaeumcertocivil.Ociviljantavasozinhoeeraoprimeiroasairparaoclaustro.Eraumtipogordo,melífluo,sempredecamisabranca transpirada.Comportava-secomopessoa importante,e todospareciamprestar-lhereverência,masnósnãopercebíamosdeondelhevinhaesseestatuto.OúnicocomquemfalavaeraoMarreiros,umsol-dadoaltoevoluptuosocomoumafêmea.Aumsinal,oMarreirosapres-sava-separaasuamesaeficavaumquartodehoraaronronarfrivolida-des inaudíveis, intercaladas por gargalhadinhas. O civil mantinha-sesérioecalado.Umavezporoutra,faziaumaperguntaentredenteseespraiavaoolharpelasala.Nofimdanoite,quandoeusaíaafecharacozinha,quasesempreosurpreendianumasombra,encostadoàpare-de,afumar.Euaindanãosabiaquemeleeranemoquefazianomeiodosmilitares.

Aumasemanadesairdatropa,ocomandantechamou-me.Emcincomeses,nuncasemedirigira.Entreinogabineteemsentido.Comumsorrisosolto,verdadeiro,mandou-meestaràvontadeesentar.Sabiaqueeumeiaembora,eporissoqueriaconvidar-me,eaosoutrosrapazes,paraumafestadedespedidanasuacasadecampoemMar-vão.Aprincípio,nãosoubeoquedizer.Umtenente-coronelaconvidar-mefosseparaoquefossepareciadetalmaneirainsólitoquenãomesaíanada.Fiqueidepensar.Noentanto,malsaídogabinete,soubequeiria.

Lembro-mecomsórdidanitidezdetodosospormenores.AsaídadeÉvora,ocivileocomandantenocarrodafrente,eueumcon-dutornodetrás(osoutrosiriamláter),asbermasdaestradaamuda-rememdirecçãoaonorte(maispedra,maisrelevo,maisocrenassea-ras),ascurvasdeMarvãoeapaisagemaperderdevistaatrásdenós,olargoemqueestacionámoseeuvomitei,aruelaestreitaquesubimosentremurosdegranitoatéàportinhademadeiradacasa,dentrodacasaumaabundânciadegatos,dezouvinte,detodasascores,lisos,

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elegantes,encostadosapoltronas,comolharessnobes,altivos,indife-rentes,lembro-medocheirodemijodegatonostapetes,nasalmofa-das,debaixodosofá,dentrodasanita,naterracáfora,nascalçasdocivil,nasdocomandante,ocheirodemijodegatoemtodososlugaresondemeenfiaramacabeçaenquantoocomandanteeocivilsereveza-vamaespancar-meascostas,amorder-measnádegas,asodomizar-mehorasafioatéeufazerumbarulhooco,dofundodagarganta,oudatripa,oudaalma,ecairdesmaiado.

Apanho-ospequenos.Denoite.Há-osportodoolado.Naslixeiras,naorladorio,debaixodoscarros,portrásdequalquerarbusto,nassoleirasdasportas.Afago-lhesopêlo.Pego-lhesporbaixo,aospa-res.Tomoapressãodosventressedosos,entreoesternoeopúbis.Emcasa,dou-lhesbanho.Rapo-lhesopêlo.Deito-osnalousaeatoaspati-nhas duas a duas. Arranco os bigodes um por um, com esta pinça.Miam,aresmungar.É insuportável.Rio-meparaeles,estaloa língua,assobio.Dou-lhescocaínaacheirar.Lambem-seeespirramcomocrian-ças.Baixoasluzes.Calçoluvasdelátex.BesuntoasmeninascomBeta-dine.Agitam-se,arreganhamosdentes.Detestam.Então,pegonobis-turi,façoumaincisãolongitudinaleexponhoasentranhas.Acocaínafá-lassangraremesguichosimparáveis.Introduzocompressasnoabdó-men,paraabsorveropequenolagoquesevaiformando.Astripasre-bolamcomocobras.Afasto-asgentilmenteparaforadacavidade.Furoabexiga,queseesvaziacomoumbalão,eafasto-a.Comamãoesquer-da,apanhooútero.Comamãodireita,destaco-odoresto.Útero,oprincípiodavida.Ai,mãe.Nãotemereço.Mais tarde,catalogá-lo-ei.Teráoseulugarnomuseu.Oh,osúterosbrilhantesdestemundo,ladoaladonagaleria.Inúteiseorgulhosos.Depois,agatinhavaidesistindo.Aceleraedesaceleraarespiração,cadavezmaissuperficial,comosolhi-nhosreviradosepingadosdesangue.Viro-meentãoparaomenino.Ogatinhomaroto.Esfrego-lheoânuscomóleodelinhaça.Alguémima-ginacomoépequenooânusdeumgatinho?k

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VisitaSobre o Bairrodas PessoasFernando Ribeirofotografia Micael Póvoa

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Pessoas velhas que descolam das paredes e que têm línguas nas mãos. Jovens em início de fim de vida, invisíveis, a escaparem rapidamente e a recolherem aos ninhos. Mãos que lambem e línguas que tocam. Perguntas sobre nós, para saber e esquecer no próprio momento. Jovens a aparecerem aos poucos. Varandas sem ninguém mesmo quando lá está alguém. A luz é fosca, amarela e branca, está morta pelo pior que há nestas duas cores. O sol que nos calhou é doente e cospe sangue. A noite nada nos traz porque os nossos olhos se habituaram à escuri-dão do dia. O suor dos velhos é um lago de veneno. O suor dos jovens é um copo de veneno. Contam-se os pedaços da mulher que saltou do quinto andar. Metem-se as crianças na cama. O suor de uma família escorre para a roupa de outra. Os pedaços da mulher bóiam num copo de suor. No último andar, na cave ou no rés-do-chão, não se percebe. Todos somos iguais. O homem que parou a dormir e não sabe que dorme. O vapor do ál-cool, cinzento e espesso, a sair porta sim, porta não. Fruta em árvores que não existem, tocadas. Árvores verdes como seringas gastas. Veias verdes. Veias verme-lhas. Veias sujas. Baldios com carros estacionados. Vege-tação da cor do nosso sol por baixo do negro dos pneus que nos ajudam a fugir daqui. Ruas nunca limpas porque são feitas de sujo. Um único azulejo azul morto, a tapar um buraco de calçada imunda. Amor nas ondas da cal-çada destroçada pelos passos apressados dos jovens. Princesas magras e lindas a copularem com sapos nascidos príncipes. O choro dos animais dia e noite, sem parar. A visita diária da ambulância a descolar os velhos das paredes. Não deixes os meus textos voarem com o vento. Amo-te. Compro isto ou compro aquilo. Não sei o que comprar, não sei o que fazer. Deixa-me estar

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escondido na cama. Sofro a andar por aqui com o sor-riso do nosso sol. Uma fila gigantesca de madrugada. Foi lá que te vi a última vez que te vi. Pretos, brancos, cinzentos, matadores, e sem cores. Voltam a noite e ouvem música alta. Lixo que se acumula, depositado nos corações. Um homem de branco com uma pistola na mão. Aperto a mão forte e calejada de um assassino. Varandas com mantas e luzes e um megafone a amplifi-car a voz destruída de um cântico à padroeira do bairro. Passos lentos como batidas fúnebres nas têmporas. Casa-mentos ao Domingo. Nascimentos na parte nova. Passa um sapo nascido príncipe numa motorizada transformada em rápida, rente a uma carrinha para lhe fazer soar o grito, sónico, irritante, ensurdecedor na noite. Repete o círculo quatro, cinco vezes. A pausa entre os alarmes da carrinha, um silêncio que nos espera, opressor. Está dado o sinal. Os barulhos da noite acordam para o seu dia que é a noite. Alguém grita na televisão. No azulado do ecrã que sai pelas cortinas gastas e feias, alguém grita mais alto que a pessoa que lhe gritou primeiro. Alguém come-ça a limpar a casa com um aspirador potente quando a meia noite chega. O barulho das portas que batem com violência planeada tem algo de vítreo. Por dentro das próprias portas ouve-se um viver de um outro mundo sem resguardo. Uma circulação sanguínea e microscópica. Dois irmãos de doçura vivendo no espaço de um só. O rumor de fundo esconde rumores que entram e saem como líquidos das bocas das paredes. Circulação ao ritmo da nossa. Sobe, desce, sai, torna a entrar em gotas de suor e ar. A brisa regressa, expirada de volta para o círculo maior. Os candeeiros de sol, amarelos como os dedos nos copos e nas curtas luzes, abrigam os vultos e choram a chuva. Cada gota circula sanguínea, microscó-

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pica, largada na vida. Vultos desabrigados que pedem dinheiro para uma recusa, de dia e de noite desapareci-dos. Olha-se a miséria que aqui é a vulgar pedra em que se pisa, em que se escorrega e se cospe, a que os animais enchem dos restos da sua vida. Os vultos saem da luz. E finalmente vemos quem eles são, projectados contra o negro da aura solar. Os seus passos marcados na rua. Vozes que se levantam da calçada, que saem da parede, que entram pela espessura falsa do vidro. Setas letais de direcção convicta: a nossa. Muitas vozes agora multipli-cadas por cem em cada grito. Há crianças acordadas que fingem dormir ao colo do vapor do álcool. Existem pais que os abraçam numa mão. A outra leva o copo à boca. Os lábios descolam. Cheira a fruta de vidro. Um ho-mem tenta sair sem pagar a conta. O dono do café toma-lhe a vida como garantia. O homem regateia e perde de propósito. A mulher chora cá fora com o filho a dormir a fingir aninhado na mão. A mulher diz-lhe para ele não a procurar mais. O homem é um copo que enche devagar de sangue e os seus olhos vermelhos res-pondem que nunca soube onde a encontrar. A camione-ta do lixo é um monstro rodado de verde de dor e de cheiro. Descem dois homens das suas costas, prestáveis e simpáticos a recolher os despojos. Fica lixo espalhado na estrada como sementes. Como uma pista a seguir para nos encontrarmos naquilo que deitamos fora. O condu-tor faz brilhar a ponta do seu cigarro curto e pensa que um dia alguém escreverá as histórias que ele sabe de verdade. Dentro de casa alguém sente medo. Num quarto pequeno, os carinhos possíveis mais altos que os ruídos. Por cima de tudo um céu que desce cada vez mais e se cola aos tectos das casas fazendo de todos nós reféns. k

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comotodasasmanhãs,aípelasonzehoras,quandoosoleraquaseomeiodocéuearuaseperturbavacomainumeragemdospassa-geirosdediferentesorigensedestinos,HorácioRessurgitaabriaolongo,odorosoestojodepele,afastavaosprotectorespanospúrpurapuídosdotempo,comascabeçasansiosasdosdedostocavasaboreandoofriodometal, e com duas mãos ansiosas e másculas de posse, maritalmenteagarravaasuatuba.maritalmente,possessivamente,mascomumcora-çãoinfante,quasevirgemdeexcitaçãoeentrega,assimofazia,todososdias.osdedossonhavamcomosbotõesmetálicos(“oslábios,oslábiosdatuba!”)sonsquenenhumapautacontinha,eerabrancodeoiroesonhometálicooespaçoplanoondeasuaalmacaminhava–tudoisto,milisse-gundamente,antessequerdeaproximaratubadasuaboca,emisturan-dooslábiosnobocal,seenvolveremambosnumbeijosonoro.todasasmanhãs,pelasonzehoras,HorácioRessurgita,navegavaempla-nícies de luz metálica, nova, rasgava solenes e crepusculares entradas,

PEDRO SENA LINO

[MÁRCIA FÚNEBRE]para Josiane Guiraud

fotografia Ângela Berlinde

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odoresdepalmaedevitória.dasuasaladequatrorectangularmenteal-tasjanelasparaaRuadoMundo,HorácioRessurgitaabraçavaoinstru-mentoquecriavaoespaçodasuainterioridade.seHorácioRessurgitaeraalguém, seriaaquele somde luze triunfoqueescoava, caminho,pelomundo.etodososdiasHorácioRessurgitaensaiavaescalas,suadamente,comosbraçosgrossoscomopernasdevalquíria,atéseprepararparaograndemomento,achegada,oclímax:a“MarciaFunebre”daSinfonia“Eroica”deBeethoven.homem,masaEroicanãoprecisadetubadizia-lheosargentoRodrigues,chefedebandaeensaiador-mor.desdequetinhaentradoparaabanda–jáláiamunsbonsvinteaninhosdesdeaquelediadaprocissãodoSenhorMortoemqueoPaivadosCharutostinhatidooenfarteeHorácioRessurgitatinhasalvoahonradabanda,entrandocomosubstituto–queHoráciotinhaprocuradofazeroesforçodenão confidenciar aRodriguesoprazerque teria em tocar a Eroica.tristedia,esse,emquecomduascervejastomadas,nãotinharesistidoacontar-lhe…homem,masaEroicanãoprecisadetubaeaindahojeecoavanasuacabeça,sempreàsonzehoras,quandotoma-vaatubanosbraçoseseatubavaàssuascurvasdeourofísicoesonhado,primeiroquasechorando,comovidodaimpossibilidade,edepoistocandoconvictamente,somasom,araar,comosecomissoconseguissecalarnãosóoecodavozdeRodrigues,masinserir,deplenodireito,umatubanapartituradaEroica...quebemquelhesoavatodaaquelamarcha,len-ta, sepulcral,perdida,nossonsqueeramasuavoz...equepenaseomestreBeethovensetinhaesquecidodaquilo...umafalta,umafalta.Ho-rácioRessurgitaouvia,nacabeçaondesecruzavamtodosossons,oiníciodaqueletemaaaparecer,nítido,límpido,navozdasuatuba.estáslouco,homem...nãotepossopôratocarisso:nãoestánapauta...tinha sidoaúltima respostadeRodrigues. contrafeito,numasegunda-feirafriadeInvernoemquetinhafolganotalho,HorácioRessurgitatinhaapanhadoocomboioatéàcapital,ondeàtardehaviaumensaiopúblicodaEroicacommaiororquestradopaís.doisbeijosàmulher,Firmina,quelhepareceumaiscaladaeinchadaqueocostume,ealiestavaeleacami-nhopelacidade,comoestojodepeleatiracolo.asbotascardadasescon-diamdoispésimensos,largos,triunfais,eascalçasdeumasarjasujapa-

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reciamrebentaracadamovimentovitoriosodepernas.caminhavacomabarrigalargaadescreverumalevesensaçãodecompassobinário,ede-poisospésbemparacada lado,eumaagitaçãosincopadadecabeça.assim,feliz,cumprimentandotudooquepassava,comolevebatucardoestojoaapagaroesticardos tecidos,Horácio tinhachegadoàgrandeGare,pedidodoislugares,claroestá(«umparamimeoutroaquiparaaminhaloira»,disseaofuncionáriodabilheteira,apontandoparaoestojodatuba),sentadoosseuscentoedezquiloseosmuitomenosdatuba,etinha feito todo o caminho com a Eroica na cabeça a estruturar-lhe opropósito«euhei-deconvenceromaestroapôr-menaorquestraatocara Eroica». tinha sido rápido o caminho (quase três Marchas Fúnebres,pelassuascontas),rápidaachegadaaoAuditório,ondeumaorquestraemconversaeafinaçãoesperavaachegadadoMaestro.eranovoporaquelasparagens:tinhavindodaAlemanha,depaisnórdicos.amisturapareciaprometeraHorácioamelhordascompreensões.foidirectoelivreemdirecçãoaohomem,assimquecurvadoebaixochegavaaoestradodeondedeviadirigiroensaio,maslogoumfuncionárioseinterpôsnãopodeinterromperoensaio...agorasónofinal,eHoráciobempensouemdisparar-lheumbaláziodepunhosnacaradediarreicomedieval,mastentouoseumelhorsorrisoaofuncionárioefoi-sesentar.omaestroeramuito,muitoincómodo,efaziamaispausasqueoRodri-gues mesmo antes de resolver o problema da flatulência (aquilo erampausasatodaahora,dabandaedele);faziaunsgritinhosquandoaquilonãoiacomoelequeria,etinhampassadobemtrintaminutoseaindanãotinhamsaídodoprimeiroandamento.quandofinalmenteelesedeuporsatisfeito, e passou para o segundo andamento – a Marcia -, HorácioRessurgitasentiuocoraçãocavalgar,osdedosmover-secontraasuavon-tade,osolhosdispararemfaíscasdelágrimasincontroláveispelaemoção.grande, ele, emaioro sentimento,um relâmpagodepranto cruzouoespaçoacústico,efoiaterrardirectamentenosouvidoscuidadosemal-humoradosdomaestro.tudoacompanhouaquelesecomoverdeombros,amúsicacaiunochãoesóseouviuogritodeHorácioasuplantaroanterior.comofimdamú-sicaetantosolhosdispostosnele,HorácioRessurgitaviuchegadaasuaoportunidade.encheuopeitodearparaacabarcomossoluços,levan-tou-se (comasuameninadebaixodobraço)ecaminhoudirectamenteparaoassunto, sempausasnemhesitações, comoumgrande solode

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tuba:-desculpeosenhormaestro...HorácioRessurgita,tubista…eunãocon-sigoaguentaraemoçãoqueaMarciaFunebredaEroicameprovoca...eutocotuba,sabe...evimcáassistirparafalarconsigo.eutenhoumagran-dedor...équeeuqueriatocartubanaMarciaFunebre,masoBeethovennãoquer...osenhor,queéumaautoridade,podia-medizersenãohámaneiraderesolveristo...orquestra, funcionários, audiência, tudo franzia o sobrolho esperandoumadascélebresreacçõesdomaestroquefariamHorácioRessurgitaes-conder-separaaeternidadeesubsequentesdebaixodascosturasdoUni-verso.masnão.ohomemlevantou-sedacadeira,aproximou-se(quasesebaixou!)dofimdopalcoeolhouparaHorácioRessurgitacomsimpatia,tranquilidadeemuita,muitacuriosidade:Horácio,éumprazer.subaaliporaquelasescadasevenha-memostraroquequerdizer...Horácio,comocoraçãoacavalgarocorpoeossonhosimpossíveis,senta-senomeiodaorquestra,eaosinaldomaestro,começaatocaraFunebreondeconsideravabem.eomaestronãomandouparar,masfazia-lhesinalparaprosseguir.aorquestraacompanhava,comrisosescondidosentreosarcosdosprimeirosviolinos.ocoraçãodeHoráciosaía-lhedabocadirec-tamenteparaatuba,fundia-senavoz,dilatavaosespaçoseasmodula-ções.Horáciotocava–planava,sangrava–eumadorfísicanasciadosseusmovimentos;parecianascerdos sons, formar-sedeles,e lançar-sesobreaterratoda.ossonslevavam-noasuacasa,tingidadevermelho.nasparedescorriamgrossasefundasgotasdesangue,comopinceladas,enquantoasnotasiniciaisdaMarchaFúnebresesoltavamdosseuslábiosedocoração.otemacomeçavanosclarinetes,easuatubasuperava-o,maisaltoemaisbrilhante,pelochãodosom.asuamulherdeitada,comaspernasaltaseabertas,suada,eumacabeçadecriançasurgia,enquan-toatubadeHoráciodialogavacomosvioloncelosemzonasnegrasqueaparedecaíadesombraMárcia,esubianosom,enquantoaorquestrarespondianumavozsó,numchorodoUniverso,enquantoele,nosom,viaafilhanascer,nasparedessonorasdevermelhoMárciaFúnebre.vouchamar-lheMárciaFúnebre,disse,quandoagarrouafilhainesperadanosbraços.nãotinhavoltadoaoconvíviocomomaestro.asuasaídadisparadado

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ensaio,atécasa,tinha-odeixadoenvergonhado,eaosonhoaindamaisimpossívelporquepossível.todos os dias, agora, às onze horas da manhã, Márcia sorria, andava,brincava,enquantoopaienchiaasalacomossonsmetálicosesuspensosdaMarcha.passaramassimmuitosdias,eumdestes,estandoassimosdois,tocaramàporta.FirminafoiabrirmoraaquiosenhorHorácioRessurgita,tocadordetuba?Horácio desceu as íngremes escadas com Márcia num braço e a tubanoutro.tervisitaseramaisestranhodoqueterquemoouvissetocar.comomesmoespantoreconheceuomaestro.demoreiaencontrá-lo...queroquevenhatocarasua improvisaçãoempúblicoepassouotempoprevistoparaosensaios,otempodepreparação,todootemponecessárioaosonho,queésempredemasiadoepouco.MárciacresciaaossonsdaMarcia.nodiadoconcerto,numengalanadoAuditó-rio,HorácioRessurgitasentouamulhereafilhanomelhorlugar,enquan-toolhavatriunfanteparaoRodrigues,metidodentrodofatonaúltimafila,entreavergonhaeavergonha.foi,bináriotriunfante,paraaentradadeartistas.compalmaseestrépito–aqueavozprofundadeMárciasejuntou–Horácioentroucomoexperimentalmaestro,sentou-sediantedeleedaorquestra,ecomeçouatocarasuaimprovisaçãosobreaMarciaFunebre.viaoespaçodoseucoraçãoalargar-se,enquantobeijavaoslá-biosdatuba,easuamãoentravanaconcavidadeenorme.tocavacomoseoseuoprópriocoraçãocomandasseosopro,eosoprotodoseaban-donassedeleparacairdentrodasubstânciadamúsica.viaoseuserintei-rocairparadentrodapauta,enchê-ladeumsomdetubaincendiadoeluminoso,eoseuprópriosangueencherdecomoçãoe luzouniversointeiro.viuluzesaquáticas,imersas,caíremdentrodocoraçãodasuafi-lha,enquantooseucoraçãosedilatavapelosopro.Horáciotocava–pla-nava,sangrava–eumadorfísicanasciadosseusmovimentos;parecianascerdossons,formar-sedeles,elançar-sesobreaterratoda.quandoascordaseostímbalespreparavamofinal,Horáciorespondeucomtodooseucoraçãoàqueleúltimoconvocardotema,chamandotodasasforçasetodosossonsetodasasmanhãsàsonzehorasondesonhavacontraomundo,eaopousardosbraçosdomaestro,caiu.

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MárcianãodeixouquetocassemaMarciaFúnebrenofuneraldopaifoiessamúsicaqueomatoudizianosseuscincoanosroucos.amortedopaipareciatê-laestranha-menteenvelhecido.umamadeixadecabelobrancodividia-lheacabeça,eosolhospareciammolhadosemduaspequenaspoçasdesangue.nin-guémpareciaestranharaautoridadedaquelacriança,esóosilênciole-vouocadáverpesadoefelizdeHorácioRessurgitaparaaterra.foidefatodegala,abarbadeuma luzmetálicaedefinitiva,bonitocomonunca,agarradoàtubaqueninguémconseguiudesprenderdele.Márciacresceuencostadaaosilêncio.comoamãepunhaumlutopesa-do,Márcia cresceuenvolvidaempanospretos. silêncioescuro, andavapelacidade,naescola,cosidacomamorte.asoutrascriançasevitavamopretodasvestesedavozrouca.poucodepoisdeentrarparaaescola,começouopiornavidadeMárciaFúnebre:osgritos,altoseassustadores,

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quelançavasemcontrolardocoraçãoparaasruas,poucoantesdeal-guémmorrer.maisqueossinosdaIgreja,aspessoasbenziam-se,eenca-minhavam-separaoadro,atéafamíliadomortoovirchorarpublicamen-te.osanospassavam,eMárciaanunciavamortesforadaaldeia,naprovíncia,nopaís.osanoscresciameocoraçãoalargava-se.distendia-se,comoumsomqueviessedasprofundezasdomundo.mesmovidente,MárciaFúne-breeamãeeramestranhas,vistasdelado,malqueridaspelopovo.dezinvernosdepoisdopai,Márciaperdeuamãe.masdestaveznãogritou.elaandafeitacomamorte,diziadelaaaldeia,caladanamortedamãe,quandoosgritosdeMárciaaumentavamdemorteparamorte,eopovodeixavalentamentedeosouvircomoanúncio,mascomoconvocaçãodamorteelaandafeitacomamorteparanoslevaratodosnumanoitedeAgosto,quandoopovotodosepreparavaeensaiavaparaafestadoSenhorMorto,comosacristãoemfrente,umbandodemulhe-resavançouparaa“bruxa”comdoisarchotesnamão.deitandoofogoerezaseáguabentasobreacasadeparedesaltasquedavaparaafrentedaRuadoMundo,quiserammatarMárcia.ofogoapanhou-aadormir,colou-seaoscabelosquasetodosbrancosaodesceraescada,misturou-secomaslongassaiasdovestidonegro.MárciaFúnebrecorriapelapovoação, corria,aosgritos,os cabelosde fogo,amorteardendo.correuatéaolargo.aofundo,pertodocoreto,RodrigueseabandaensaiavamaMarciaFunebreparatocarnafesta,«emhonradoHorácio».assimqueelaseaproximoudamúsica,ofogosuspendeu-se,enumsommetálicoeluminoso,MárciaFúnebrevoou,oscabelosemfogo,ocorporubro,avozsilênciogritante,edesapareceuinteiraparadentrodamúsicak

estecontofoioriginalmentepublicadoem

MuseudeHistóriaSobrenatural(Autoria,2007)

eaquirepublicadorevistoemAbrilde2009,emParis,

aosomdamesma“MarciaFunebre”daTerceiraSinfoniadeBeethoven,

interpretadapelaOrquestradaRádiodeBerlimdirigidaporFerencFricsay

Seja responsável. Beba com moderação.