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1 .
Na casa da minha avó Rita há um calendário.
Está pendurado na parede da cozinha, por
baixo do relógio.
O relógio tem a forma de uma maçã vermelha, onde
cabem muitos algarismos e dois ponteiros pretos, um
mais comprido que o outro. No meio daquela apetitosa
maçã há uma borboleta amarela, cheia de sono.
No calendário há uma montanha com rochedos,
ervas, fl ores, neve, e duas vacas muito gordas. A vaca que
tem mais manchas pretas está a comer ervas, a outra
olha para o céu, se calhar a ver se chove, ou se vai cair
mais neve.
O calendário está cheio de círculos, de palavras e
de pontos de interrogação. A avó Rita gosta de escrever
com um lápis naquele calendário com uma montanha
e duas vacas. Mas nem sempre usa o lápis porque no
calendário há algumas datas pintadas com um marca-
dor amarelo fl uorescente. São os dias dos aniversários.
Ela chama-lhe as datas brilhantes do ano. E ri-se.
No mês de Agosto, o dia dez é a única data brilhante.
Está pintada a azul, a cor preferida da avó Rita, porque é
o dia do seu aniversário.
07
A avó Rita comemora a sua data brilhante de
uma forma muito especial. Nesse dia não há bolo de
aniversário, nem velas, nem cantorias. Levanta-se muito
cedo, senta-se ao volante do seu carro azul e desaparece.
Minha mãe telefona-lhe muitas vezes, manda-lhe imen-
sas mensagens, mas ela não responde porque tem o
telemóvel desligado, ou sem rede. A meio da tarde,
a avó envia uma mensagem com quatro palavras:
“Vou regressar beijinhos Rita”. Minha mãe fi ca menos
preocupada e espera que ela volte a telefonar. A avó
regressa no dia seguinte. Depois de ter estacionado o
carro na garagem, telefona a dizer que já chegou.
Este ano, no último dia de Julho, a avó Rita fez-me
uma pergunta muito estranha:
— Tens algum compromisso para o dia dez de
Agosto?
— Vou ver… — disse eu, muito sério. Depois de
fazer de conta que tinha consultado a agenda do meu
telemóvel, respondi que não, que tinha todo o dia livre.
— Artur, queres vir comigo?
Fiquei muito espantado. Teria ouvido bem? A avó
Rita estava a convidar-me para sair com ela no dia dez
de Agosto, a sua data brilhante?
08
Perguntei, para ter a certeza:
— Avó, estás a convidar-me para irmos passear de
carro no dia dos teus anos?
— Exactamente.
— A sério? Mas vais sempre sozinha.
— Mudei de opinião. Chegou o tempo de ir acompa-
nhada pelos meus dois netos. Não queres ir comigo? É
um dia diferente, disso podes ter a certeza…
A minha prima Sandra, que só é mais velha do que
eu dois anos, disse que não podia acompanhar a avó
porque no dia dez de Agosto contava estar com a mãe
dela, a minha tia Fátima, a gozar férias na praia de Monte
Gordo, no Algarve.
A avô Rita, que detesta a praia e muita gente api-
nhada no mesmo sítio, resmungou que não entendia
como era possível haver seres humanos com paciência
para estarem como os lagartos horas e horas deitados ao
sol, a queimar a pele e a apanhar com areia nos olhos, no
nariz e nas orelhas, e a levar com bolas na cabeça…
— Enfi m, gostos não se discutem — , concluiu. Mas eu
bem via que ela falava assim porque estava triste por a
Sandra não poder estar com ela no dia dez de Agosto.
— Artur, no dia dez vens comigo. Combinado?
— Sim, avó, está combinado.
— Será melhor vires jantar e dormir em minha casa
no dia nove. Assim não perdemos tempo. Achas bem?
— Acho muito bem.
Quando contei a novidade, minha mãe também fi -
cou admirada. E eu estava contente. A avó Rita cozinha
muito bem.
10
2 .
Fartei-me de esperar que chegasse o dia dez de
Agosto.
Um, dois, três, quatro… em poucos segundos con-
tamos de um a dez. No entanto, quando fi camos à espera
que o dia um de Agosto dê a vez ao dia dois, e o dia dois ao
dia três, e assim sucessivamente, demora uma eternidade,
e sofre-se muito.
No dia nove, depois de ter tomado o pequeno-almo-
ço, liguei o computador e procurei o sítio da meteorologia
para saber a previsão do tempo para o dia de aniversário
da minha avó. Fiquei contente. Ia haver muito sol e muito
calor. Também fi quei a saber que no fi m da tarde do dia
dez, havia “probabilidade de trovoadas”. Como eu não
sabia muito bem o signifi cado da palavra probabilidade,
e tive preguiça de me ir informar, achei que não valia a
pena estar a pensar em faíscas, trovões e muita chuva, no
dia de anos da minha avó, era o que mais faltava.
Ao fi m da tarde, minha mãe deu-me muitos beijos
antes de me deixar em casa da avó:
— Vê lá como te portas, menino Artur! — repetiu mais
de trinta vezes.
Antes de se ir embora, cheia de pressa, obrigou
minha avó a prometer-lhe que desta vez não iria desligar
o telemóvel.
— Eu nunca desliguei o telemóvel. Não me podes
culpar se fi car sem rede — respondeu minha avó com voz
fi rme.
— Portem-se bem — recomendou minha mãe, antes
de fechar a porta de vez. Ela anda sempre muito atare-
fada, sempre a correr de um lado para o outro, sempre
a queixar-se que não tem um minuto de descanso. Ser
mãe é muito complicado.
— Está bem! — respondeu minha avó, piscando-me
um olho.
Depois de termos jantado, ou, para ser mais ver-
dadeiro, depois da minha avó me ter visto a comer uma
tigela de sopa de legumes, um bife com um ovo estrelado,
batatas fritas e salada de tomate, porque ela apenas
comeu a sopa e uma maçã, ajudei a limpar a cozinha.
Escovei os dentes antes de me sentar no sofá da sala.
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