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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ECONOMIA
MONOGRAFIA DE BACHARELADO
A FOCALIZAÇÃO COMO PRINCÍPIO DAS
POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO
BRASIL AO LONGO DA ÚLTIMA DÉCADA
IGOR D’OLIVEIRA BRIGUIET
matrícula nº: 105.018.952
ORIENTADORA: Prof. Lena Lavinas
JUNHO 2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ECONOMIA
MONOGRAFIA DE BACHARELADO
A FOCALIZAÇÃO COMO PRINCÍPIO DAS
POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO
BRASIL AO LONGO DA ÚLTIMA DÉCADA
__________________________________
IGOR D’OLVIEIRA BRIGUIET
matrícula nº: 105.018.952
ORIENTADORA: Prof. Lena Lavinas
JUNHO 2010
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RESUMO
O trabalho procura compreender o crescimento das políticas de transferência de
monetária de renda no Brasil ao longo da ultima década. Para isso a monografia procura
fornecer as bases teóricas para o desenho e a avaliação dessa modalidade de política, bem
como uma descrição do modelo de Seguridade Social adotado no Brasil e sua evolução
recente, fornecendo, por fim, uma análise mais acurada dos impactos das políticas
assistenciais de transferência monetária de renda, avaliando a eficiência da focalização e a sua
importância no combate à pobreza.
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ÍNDICE
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................................6
CAPÍTULO I: TRANSFERENCIAS DE RENDA...................................................................................................9
I.1. Razões para a intervenção estatal........................................................................................................................9
I.2. O sistema de proteção social......................................................................... ....................................................17
I.3. As modalidades de transferência de Renda. .....................................................................................................20
I.4. Transferências de Renda e combate à pobreza.................................................................................................23
CAPITULO II: AS TRANSFERÊNCIAS DE RENDA NO BRASIL ........ ............................................. ..........28
II.1. Os gastos públicos no Brasil............................................. ............................................. ............................ 28
II.2. Os benefícios da Previdência Social ............................................. ............................................. ................. 37
II.3.1. Assistência Social ................ ............................................. ............................................. ...........................45
II.3.1. Assistência Social no Âmbito da Seguridade Social ...................................................................................45
II.3.2. Bolsa Família ............................................. ............................................. ...................................................49
CAPÍTULO III: EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS DA FOCALIZAÇÃO NO CASO BRASILEIRO ........................55
III.1. Breve histórico da focalização .. ............................................. ............................................. .......................55
III.2. Análise da focalização com dados da PNAD ......... ............................................. ........................................59
III.3. Estudo de caso da população do PBF em recife. ...... ............................................. ..................................... 65
III.4. Bolsa-Família no Recife e as dimensões não monetárias de Bem-Estar ............................................. ........71
CONCLUSÃO ..... ............................................. ............................................. .....................................................76
INTRODUÇÃO
Durante a última década do século XX, o Brasil vivenciou o surgimento das reformas
neoliberais em sua estrutura econômica. A estabilização econômica, após diversos planos
econômicos de características heterodoxas, praticados ao longo da década de 1980, sem
sucesso no tocante ao controle inflacionário, finalmente veio a se concretizar com o Plano
Real, porém, com pesados custos para a nação. Houve longos períodos de baixo crescimento,
privatizações e redução dos gastos públicos, em particular dos gastos sociais, representando
uma estagnação do ponto de vista do desenvolvimento nacional e da solução dos problemas
sociais.
Na segunda metade da atual década o Brasil caminhou na direção contrária a essa
lógica; os gastos públicos iniciam, novamente, um período de expansão, em particular os
gastos sociais. Entretanto, esse crescimento não se deu por igual em todas as dimensões do
gasto do governo. Em particular, houve crescimento acentuado dos gastos com transferências
monetárias de renda, não acompanhado por outras formas de se promover políticas públicas.
Dessas transferências, o crescimento das políticas assistenciais focalizadas na pobreza, a
exemplo de programas como o Bolsa-Família registrou taxas bem mais elevadas que o gasto
em outras funções, a despeito de sua magnitude ainda ser pequena (Lavinas, 2008).
Creditam-se a essa expansão os resultados observáveis nos últimos anos, em termos da
evolução positiva da renda dos mais pobres e da redução das desigualdades sociais. Por outro
lado, houve de igual maneira, a retomada do crescimento econômico, visto que o Brasil
cresceu a uma taxa média de 3,5% ao ano entre 2003 e 2006 e 4,4% ao ano entre 2007 e 2010,
o que tem impacto positivo na criação de novos postos de trabalho, expansão da formalidade e
elevação dos salários. Desde 1999 o Brasil apresenta saldo positivo na criação de empregos
formais, entre 2007 e 2010 foram criados 1,4 milhões de novos empregos de carteira assinada.
Aliado a esse fato, houve uma política de elevação do valor real do salário mínimo, que em
1992 circulava em torno dos R$ 200, e em 2010 encontra-se próximos à R$ 500,00, medidos a
preços de 2010 pelo INPC. Analisados em conjunto, isso representa um crescimento real de
30%, desde 2003, do total da massa salarial efetivamente recebida.
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Observados esses fatos, essa monografia busca investigar o gasto com políticas de
transferência monetária de renda no Brasil, descrever suas diversas modalidades, estabelecer
seu perfil, e avaliar a sua adequação como política de solução dos problemas sociais. Em
particular a monografia avaliará a focalização como princípio fundamental para o
estabelecimento das políticas sociais, procurando estabelecer seus efeitos e suas
particularidades. A monografia demonstra que a focalização é um instrumento que,
considerado de forma isolada, se revela insuficiente para lidar com a totalidade dos problemas
sociais que o Brasil enfrenta.
Esse objeto de estudos se justifica na medida em que a redução das desigualdades
sociais, a elevação da renda dos mais pobres com conseqüente redução da pobreza pode ser
creditada tanto à evolução recente dessas políticas sociais quanto às melhorias do mercado de
trabalho. Na prática, a crescente expansão das transferências de renda de cunho focalizado
tem sido adotada em substituição a uma expansão de gastos com políticas de provisão de bens
e serviços in natura, e, principalmente, de cunho universal (Lavinas, 2007).
Isso significa que, embora permaneça uma importante escolha política na alocação dos
gastos do governo, é desconhecido o real impacto dessas políticas na vida das populações que
a recebem, bem como em que medida o formato em que se apresentam se revela adequado,
eficiente, e a maneira com que as políticas focalizadas se configuram como um substituto
adequado a políticas de infra-estrutura, políticas de provisão de bens e serviços e mesmo
políticas de transferência monetária que adotem o principio da universalização.
Para abordar essa problemática, o primeiro capítulo dessa monografia buscará situar,
em termos teóricos, as justificativas para a intervenção estatal, que levam por sua vez à razão
da existência de cada uma das diversas políticas públicas que foram praticadas ao longo da
história, e que compõem, em conjunto, a rede de proteção social. Ficará claro que cada qual
tem uma justificativa teórica distinta, de forma que, adotadas em conjunto, freqüentemente
funcionam de maneira complementar e não substitutiva. Dessa forma, o capítulo procurará
ressaltar o papel das transferências focalizadas de renda no combate à pobreza e fornecer
elementos para a avaliação de sua eficácia.
Segue um segundo capítulo de cunho expositivo, onde será traçado um perfil das
transferências de renda monetárias no Brasil, expondo as suas diferentes modalidades, seu
peso, e sua evolução no conjunto dos gastos públicos nacionais. As transformações instituídas
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pela Constituição Federal de 1988, que introduz legalmente o conceito de Seguridade Social
se revelaram uma mudança conceitual na forma de lidar com diversas políticas públicas na
área de previdência e assistência, em particular no tangente à introdução da universalização
como parâmetro inerente às políticas da Seguridade, transformações essas que ainda não
foram plenamente absorvidas pela legislação infraconstitucional e pelos policy-makers, e que
suscitam divergências no meio acadêmico.
Por fim, uma análise empírica buscará demonstrar, no capítulo três, características
relevantes das políticas focalizadas no caso brasileiro. Deverá ficar claro que a despeito das
alegações de que a totalidade do público-alvo obtém cobertura nos programas assistenciais do
governo, na prática há ineficiências na focalização que representam um déficit de cobertura
para parcelas significativas do público-alvo, o que significa que uma fração relevante dos
pobres permanece sem amparo. Para uma analise mais detalhada será utilizada uma pesquisa
de campo realizada em parceria do Instituto de Economia da UFRJ com a Escola Nacional de
Ciências Estatísticas do IBGE, com apoio da FINEP e do PROSARE. O Survey, realizado
entre os beneficiários em potencial do Programa Bolsa-Família no município de Recife,
revelará detalhes da população não apenas em relação à dimensão monetária da pobreza,
como a respeito de déficits em dimensões do Bem-Estar que justificam uma ação do governo
para além da transferência monetária de renda.
A análise indica que a função dos gastos sociais em benefícios focalizados de renda
promove um alívio na severidade da pobreza, e uma redução das desigualdades entre os
pobres, ao garantir uma renda mínima, sem ser capaz, entretanto, de retirar as populações
dessa situação, visto que não interferem de maneira preventiva, nas causas da pobreza.
Aponta ainda para a existência de ineficiências horizontais que representam a desproteção de
uma parcela do público-alvo em relação à políticas públicas. Conclui-se, portanto, que essa
modalidade de política social não deve se sobrepor à pratica de políticas e universais em uma
perspectiva de reconhecimento e ampliação da Seguridade Social, cuja virtude precisamente é
atuação preventiva nas vulnerabilidades que geram a pobreza..
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Capítulo I: Transferências de Renda
O objetivo desse capítulo é expor as razões pelas quais o Estado interfere na economia
provendo diversas políticas sociais que se integram, formando uma rede de proteção social, na
qual as transferências focalizadas de renda exercem papel específico, complementar a outras
formas de políticas. Essas diversas formas serão expostas ao longo do capítulo, bem como as
justificativas para sua institucionalização. Para desenvolver esse tema, o capitulo apóia-se
fundamentalmente na obra The Economics of The Welfare State, de Nicholas Barr, 2004, que
revela-se adequado esse fim devido ao seu conteúdo sintético e analítico.
Seguindo a metodologia apontada pelo autor, para compreender a atuação do Estado
na economia por meio de políticas públicas, e o papel de cada uma desta política, o ponto de
partida será os modelos mais genéricos, elaborados em termos teóricos precisamente com o
objetivo de compreender a organização econômica em sua totalidade. A partir desses modelos
mais amplos e abstratos, será possível demonstrar, primeiramente, que é necessária a
intervenção estatal, em comparação a situações hipotéticas em que não há qualquer tipo de
intervenção pública na economia, e posteriormente, demonstrar em que termos essa
intervenção se dará de forma ótima, entre as diversas possibilidades de práticas
intervencionistas.
I.1. Razões para a intervenção estatal
Os modelos neoclássicos, em particular a Teoria do Equilibrio Geral Walrasiano,
conquanto seja alvo de diversas criticas a respeito de seu poder explicativo, e de sua
aplicabilidade em questões práticas, fornece a ferramenta mais genérica que se dispõe para
avaliar o sistema econômico em sua totalidade, e, portanto, será o ponto de partida para a
compreensão da atuação do Estado na economia.
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A formulação convencional desse modelo aponta as questões econômicas como um
estudo estático da organização de uma sociedade, problematizando em termos da alocação
ótima de recursos entre os agentes, sejam eles produtores ou consumidores. Em função de
como esses recursos serão alocados, atinge-se diferentes patamares de satisfação individual,
avaliada pelo conceito de utilidade. O bem-estar da sociedade como um todo, será
compreendido como uma agregação das utilidades de seus indivíduos. (Barr, 2004, p. 65-72)
Embora sejam conceitos abstratos, supõe-se que essas satisfações possam ser
representadas por valores quantificáveis. Assim, a organização ótima, será o resultado de um
problema de maximização dessas variáveis, haja vista as possibilidades alocativas, como
descrito pelas equações abaixo:
(1)
(2)
(5)
No modelo simplificado descrito acima, os dois fatores de produção K e L, quaisquer são
divididos para a produção dos n bens da economia, Xi; de acordo com uma função de
produção com tecnologias dadas. Esses n bens serão distribuídos entre os agentes, cada qual
aferindo uma utilidade Ui, dessa cesta de bens, dada pelo seu conjunto de preferências. A
sociedade irá apresentar, portanto, um bem-estar agregado W, função do conjunto das
utilidades individuais Ui de cada um dos seus agentes.
Supõe-se no modelo que os indivíduos irão tomar suas decisões alocativas, isto é, decidir
a sua cesta de bens, como resultado da maximização de sua função utilidade em função da sua
dotação de fatores em um sistema de trocas livres. O resultado do modelo, portanto, é um
sistema de preços que determina a razão pelos quais todos os bens são trocados nessa situação
em que cada um dos agentes maximiza sua utilidade de forma individual. Como a definição
de bem é genérica, e pode envolver inclusive a forma como o individuo percebe valora seus
direitos, ou mesmo escolhas intertemporais e futuras, este modelo supõe-se suficiente para o
conjunto de decisões relevantes ao sistema econômico.
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No modelo acima exposto, não há uma definição teórica clara do formato da função que
irá agregar as utilidades individuais Ui em um bem-estar social W. Isso abre a possibilidade
de que uma determinada situação alocativa, conquanto seja resultado da maximização das
utilidades individuais, do ponto de vista social não represente um máximo, devido aos
diferentes formatos que a função W pode assumir na modelagem do ótimo social. Essas
diversas maneiras de representar a função de bem-estar social correspondem a diversas
formas de representar as percepções, subjetivas, das sociedades sobre a importância da
igualdade social, e de distribuições que sejam percebidas como justas.
Uma economia que esteja buscando o ótimo social, tal como no modelo acima, deve
buscar, alocações de recursos que sejam socialmente justas. Entretanto, essas alocações
devem de igual maneira, ser eficientes. Há diversas maneiras de se conceituar eficiência,
sendo a mais conhecida delas o ótimo de Pareto. Uma economia é eficiente, no sentido de
Pareto, se for impossível melhorar a situação de um indivíduo sem levar à piora de outros
indivíduos. Se um indivíduo, em uma dada alocação inicial, puder atingir uma situação de
maior bem-estar sem que isso prejudique o bem-estar alheio, não há razões de eficiência
(embora possa haver razões de justiça social) para que essa alocação seja considerada ótima.
Do contrário, apenas são eficientes alocações em que a melhora de um indivíduo representa
uma piora para outrem, portanto. Tal conceito se desdobra em outros três, relevantes para a
análise econômica.
Primeiramente, é desejável que haja eficiência alocativa na esfera da produção. Isso
significa que devem ser produzidas quantidades máximas de bens para a sociedade, tendo em
vista as restrições tecnológicas e de dotação de fatores. Isso significa que as sociedades devem
funcionar sempre na fronteira de produção, não sendo possível produzir maiores quantidades
de um bem, sem que isso represente uma realocação de fatores que leve à produção de menor
quantidade de outro. Em contrapartida, se é possível produzir mais de um bem sem que isso
afete a produção de outros bens, essa sociedade não se encontra em um ponto ótimo. Isso
significa que a alocação eficiente no sentido da produção deve estar na fronteira de
possibilidades de produção (Barr, 2004, p. 67).
Em seguida, cabe observar que a presença de eficiência na produção não garante, por si,
que as quantidades adequadas de cada bem estejam sendo produzidas. Uma determinada cesta
de bens, ainda que faça parte ponto da fronteira de possibilidades de produção pode não ser
preferível, socialmente, se comparados a outros pontos da fronteira. Isso significa que a
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alocação produtiva da sociedade deve não apenas estar na fronteira de possibilidades de
produção, como deve escolher, dentre esse conjunto de pontos, aquele que satisfaça o ótimo
social. Esse conceito de eficiência é referido na literatura como eficiência no mix de produção
(Barr, 2004, p. 68).
Por último, uma economia só será eficiente no sentido de Pareto, se esses bens estiverem
alocados da melhor maneira possível entre os consumidores; isto é, deve ser eficiente também
no sentido do consumo. Se existe possível uma situação em que ambos os indivíduos ganhem
trocando os bens entre eles, sem prejuízo para nenhuma das partes, essa economia não se
encontra em um ponto ótimo, pois essa troca ainda deve ser efetuada. Portanto, em uma
alocação eficiente, não haverá maneiras de redistribuir bens entre consumidores, tornando
melhor a situação de alguns consumidores sem a piora a de outros. (Barr, 2004, p. 68).
A teoria do equilíbrio-geral Walrasiano demonstra teoricamente que uma economia
organizada puramente pelas forças de mercado e pela livre iniciativa privada cumpre os
conceitos de eficiência de Pareto acima descritos. Quando isso ocorre, descreve-se essa
situação como uma organização social do tipo first-best. Esse resultado tem sido a principal
razão pela qual o livre-mercado é amplamente reconhecido como uma organização social
eficiente, portanto, desejável sobre outras situações com maior grau de intervenção estatal.
Caso o resultado dessa economia, descrita pelo equilíbrio-geral Walrasiano, em que os
agentes tomam decisão de forma individualizada, não seja capaz de atingir o ótimo social
devido à sua distribuição de utilidades ser percebida como injusta, as injustiças poderiam ser
compensadas pelo Estado transferindo bens entre os agentes. Para que essa transferência não
afetasse o sistema de preços, portanto não interferisse na eficiência econômica, o Estado
deveria fazer isso por meio de transferências do tipo lump sum. Isso significa que o Estado
transferiria entre os agentes um percentual fixo de cada bem, sem que isso afete os preços
relativos. Na situação hipotética dessa modalidade de transferência, não há trade-offs entre
eficiência e justiça social, razão pelo qual essa situação é descrita como modelo first-best.
A eficiência dos mercados no modelo Walrasiano é construída, em termos teóricos, por
meio de hipóteses simplificadoras, que levam a um modelo idealizado do sistema econômico.
Essas hipóteses não se confirmam na observação da economia real, e serão explicitadas a
seguir (Barr, 2004, p. 72 – 79).
13
Como observado anteriormente, no modelo Walrasiano os preços funcionam como
principal instrumento, por meio do qual as forças de mercado irão alocar os recursos e são
frutos do encontro de preferências de cada indivíduo. Para que os preços desempenhem
corretamente esse papel, é fundamental que os agentes, individualmente, sejam incapazes de
afetar seu valor; devem ser price-takers. Uma economia funcionando sob essa hipótese, diz-se
estar em estado de competição perfeita. Para que isso ocorra é necessário que tanto a oferta,
quanto a demanda estejam dissipadas em um grande número de agentes, sejam eles indivíduos
ou firmas, além de não haver mecanismos como barreiras de entrada, que impeçam novos
agentes de participarem do mercado (Barr, 2004, p.74).
A condição de pulverização dos agentes não funciona, na parte da oferta, caso a
tecnologia apresente retornos crescentes de escala, pois isso levaria a um ganho de eficiência
com o aumento do tamanho das firmas, e a um mercado com tendência para a concentração.
Portanto, o modelo Walrasiano é dependente da existência de perdas de eficiência devido à
elevada escala de produção, que devem ocorrer limitando o tamanho das firmas; caso
contrário seria impossível um equilíbrio competitivo entre os agentes (Barr, 2004, p. 75 – 76).
Para que os mecanismos de preço exerçam um papel alocador, é necessário ainda que
todos os agentes estejam perfeitamente informados sobre as condições de mercado. Isso inclui
perfeita informação sobre quais produtos disponíveis, sobre sua qualidade e seu preço.
Informação perfeita, inclusive, sobre o mercado de trabalho e as condições de risco inerentes
às suas escolhas. Tal assunção é necessária para que os agentes possam racionalmente
maximizar sua utilidade realizando uma escolha alocativa ótima.
Os bens somente são comercializáveis caso haja formas de cobrar os custos sociais de
produção dos indivíduos que irão realizar o consumo. Para que possa ser feita essa cobrança
na forma do preço é preciso que seja economicamente viável a exclusão do acesso aos bens
dos consumidores que não tenham pagado o preço; é preciso que haja um custo marginal
relevante para a inclusão de novos consumidores e é preciso que o consumidor seja capaz de
rejeitar o consumo do bem, caso assim deseje. Caso alguma dessas condições não se
verifique, os mecanismos de mercado serão incapazes de operar corretamente, e estaríamos
diante de um caso de bem público. (Pindick, 1999, p. 662)
Os agentes individuais devem ser capazes de obter do mercado todos os bens para o qual
tem preferências definidas, ou seja, é necessário que os mercados provenham todos os bens
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para os quais os agentes estejam dispostos a pagar um preço que cubra seus custos de
produção, portanto, não deve haver bens para o qual não haja um mercado que seja capaz de
provê-lo. Isso significa que os mercados devem ser completos.
No modelo Walrasiano, os agentes tomam suas decisões de forma individualizada,
observando a otimização de sua utilidade pessoal. Para que esse sistema funcione em
harmonia, não devem ocorrer situações em que as escolhas de um agente influenciem o bem-
estar, tanto positivamente quanto negativamente, de outro agente, sem que os próprios
mecanismos de mercado sejam capazes de impor uma compensação a esse efeito. Essa
interdependência indesejável do ponto de vista teórico é denominada na literatura econômica
como a existência de externalidades. (Pindick, 1999, p. 702 - 706)
É pertinente observar que modelos que levam em conta a escolha intertemporal dos
agentes agregam à visão de equilíbrio de mercado Walrasiana a possibilidade de que o mesmo
tratamento seja dado às questões de alocação futura e presente dos recursos econômicos.
Como não há incertezas, de forma geral, na economia; devido à hipótese de informação
perfeita, os agentes individuais conhecem as oscilações futuras e as distribuições de
probabilidade dos eventos aos quais estão submetidos, e podem se proteger de uma hipotética
queda nos níveis de renda e de utilidade. (Pindick, 1999, p. 667 - 700)
Nesse universo hipotético, o estabelecimento de um sistema público de proteção social
seria desnecessário. Isto, pois os agentes seriam capazes de lidar com as oscilações na renda e
no consumo oriundas de situações de envelhecimento, de problemas de saúde, de desemprego,
ou mesmo, de pobreza temporária por meio de poupança privada voluntária, por meio de
crédito pessoal em mercados de capitais perfeitos, ou mesmo por meio da contratação de
seguros em um mercado de seguros eficiente. Não há, portanto, incerteza, se todos os riscos
são conhecidos e seguráveis.
A única razão para intervenção estatal em tal universo econômico é, como observado,
para lidar com a solução de problemas de pobreza permanente, oriundos de uma baixa
dotação inicial de recursos, que leve a uma baixa renda. Caso essa baixa renda, função da
baixa dotação inicial de recursos, seja percebida como indesejável do ponto de vista da justiça
social, o Estado pode lançar mão de transferências do tipo lump sum, para obter uma
distribuição mais justa, como visto anteriormente.
15
As hipóteses para o comportamento da economia exigidas para o funcionamento do
modelo de equilíbrio-geral Walrasiano como ferramenta para explicar os sistemas econômicos
e para nortear o planejamento das políticas públicas são muito restritivas, e obviamente não
correspondem ao funcionamento da economia no mundo real. As violações às hipóteses do
modelo são conhecidas na literatura econômica como falhas de mercado.
Sua existência implica no fato de que as economias puramente mercadológicas não
apresentam o patamar de eficiência previsto pelo modelo, justificando, assim, outras formas
de intervenção do Estado no sistema econômico. Além da razão de justiça social, o Estado
deve intervir no sistema econômico também para mitigar os efeitos das falhas de mercado e
garantir a eficiência econômica. Essa situação é conhecida como second-best.
Para determinar o nível de intervenção estatal deve ser conhecida e corretamente avaliada
a escala em que os mercados em questão se distanciam da situação descrita pelo equilíbrio
geral Walrasiano, para que se saiba em que medida o mercado, de maneira autônoma, será
eficiente, e em que medida a intervenção do Estado será custo-eficiente no sentido de
solucionar suas falhas e levar a uma melhoria do bem-estar social. O estudo das falhas de
mercado envolvidas no mercado em questão é fundamental para que se descubra a melhor
forma de intervenção.
Em relação às intervenções por razões de justiça social, pode-se observar que alocações
por meio de transferências lump sum são inviáveis do ponto de vista de sua operacionalização
no sistema econômico. Os preços e quantidades de equilíbrio são desconhecidos e
desconhecíveis, porque essa situação é apenas uma ficção teórica para uma primeira
abordagem da questão. Na prática, as intervenções para garantir redistribuição de renda
afetam de diversas maneiras o sistema de preços, fazendo com que as economias apresentem
algum grau de trade-off entre eficiência e justiça social. Assim, as sociedades podem tolerar
perdas de eficiência, se isso representar ganhos de justiça social. A ponderação entre ambas as
variáveis não pode ser determinada em termos técnicos, sendo uma decisão política da
sociedade.
A distinção entre os objetivos de justiça e de eficiência, bem como a avaliação de quais
situações ambos os conceitos são interrelacionados por meio de trade-offs e em quais
situações a intervenção estatal amplia ambos, de forma complementar, afeta intimamente os
métodos pelos quais o estado intervirá no sistema econômico, e os desenhos institucionais daí
16
derivados. A intervenção estatal deve tomar a forma mais adequada para lidar com o
problema em questão, seja ele uma falha de mercado, ou uma redistribuição mais equitativa
de renda. Há diversas formas pelas quais ela pode se dar, agregadas em quatro grandes grupos
como descritos a seguir (Barr, 2004, p. 80-81).
A intervenção pública toma a forma de regulação quando há a interferência indireta do
Estado no comportamento dos agentes por meio de legislações coercitivas. As regulações
podem agir exigindo que sejam prestadas informações necessárias ao bom funcionamento do
mercado, agindo sobre a assimetria de informações. Podem ainda determinar máximos e
mínimos para os preços ou para as quantidades produzidas. Regulações podem, por exemplo,
afetar o mercado de trabalho, por meio de políticas de salários mínimos, jornadas máximas,
ou afetar a oferta de bens, com especificações de qualidade, de higiene, obediência a normas
ambientais ou qualquer outro instrumento legal ao qual os agentes privados estejam
condicionados a obedecer.
A intervenção pública pode ser financeira, quando o estado afeta o livre-mercado por
meio de incentivos como a incidência de tributos ou o estabelecimento de subsídios, no
sentido de estimular ou desestimular mercados ou bens e serviços particulares por meio do
sistema de preços. Subsidios ocorrem quando, devido à existência de externalidades positivas,
o equilíbrio sem intervenção em determinado mercado se dá em um ponto que o benefício
social da produção é inferior ao seu benefício individual. Por outro lado, setores com
externalidades negativas podem receber taxação para que o custo individual de produção se
iguale ao seu custo social.
O Estado pode decidir suprir inteiramente a provisão de determinado bem na economia
por meio da intervenção produtiva. Tal provisão se dá nos casos clássicos de bens-públicos,
ou seja, bens que sejam não-excludentes, não-rivais ou não-rejeitáveis, e que, portanto não
serão produzidos de forma privada. Há, também, diversas outras hipóteses que sustentam que
a provisão de bens públicos é desejável. São exemplos dessas situações os casos em que as
externalidades não possam ser compensadas meramente por mecanismos financeiros, ou em
que se deseja uma provisão universal independente do sistema de preços, por razões de
justiça.
Por último, o Estado pode agir por meio de transferências de renda, monetárias ou em
espécie, que, conforme visto são reconhecidas como os mecanismos de intervenção com
17
menor impacto nos mecanismos de preços, portanto menor impacto no mercado privado. O
objetivo desse trabalho é analisar mais especificamente as políticas de transferência de renda,
de modo que sua função dentro do conjunto de políticas públicas será alvo de análise
detalhada nas seções subseqüentes.
I.2. O sistema de proteção social
Conforme visto na seção anterior, em uma economia hipotética como a descrita pelo
modelo Walrasiano, não é necessária a atuação do Estado, a não ser, possivelmente,
promovendo redistribuição por meio de taxas do tipo lump sum, já que os mercados são
capazes de suprir de forma eficiente as necessidades da sociedade. Devido às falhas de
mercado, entretanto, é necessária a intervenção pública.
Um mercado de particular interesse para o planejamento público é o mercado de seguros.
De acordo com o modelo teórico Walrasiano, as pessoas podem utilizar o mercado de seguros
para se proteger de situações de risco que envolvam perda de utilidade. Isso envolve doenças,
desemprego, acidentes, roubos e todos os tipos de infortúnios aos quais os indivíduos estão
expostos. Um mercado de seguros privados, teoricamente, funciona de acordo com algumas
presunções, vistas a seguir (Barr, 2005, 105 – 115).
Sendo conhecida a probabilidade de ocorrência de um sinistro que leve à perda a utilidade,
por exemplo, devido à queda da renda de um patamar Y1 para um patamar Y2 um seguro será
demandado se a esperança matemática da utilidade supondo a renda incerta for inferior à
utilidade de uma renda certa, ainda que, inferior à Y1. Isso significa que o agente está disposto
a pagar um prêmio para remover o risco de sua expectativa futura de renda.
A oferta do seguro será garantida se o valor que os demandantes se dispuserem a pagar
pelo seguro puder superar a esperança de pagamento do valor segurado mais uma taxa de
lucro que viabilize o negócio. O cálculo atuarial exige algumas hipóteses sobre a
probabilidade de ocorrência do sinistro. Em primeiro lugar, elas devem ser conhecidas, para
que os agentes possam decidir sobre os preços a que estão dispostos a ofertar ou demandar
seguros. Em seguida, as probabilidades dos diversos agentes devem ser independentes entre
18
si. Por último, as probabilidades devem ser inferiores à unidade, portanto, os eventos não
podem ser certos.
A hipótese de informação perfeita garante que as probabilidades de ocorrência dos
sinistros sejam conhecidas, garantindo o bom-funcionamento do mercado de seguros. Duas
circunstâncias em particular afastam-se dessa situação. Há o risco de ocorrência de seleção
adversa, em que o demandante conhece melhor as informações necessárias para a avaliação
da probabilidade do sinistro do que o segurador, e pode escondê-las para se beneficiar da
assimetria de informação. Há, também, o risco moral, situação em que o contratante, ao saber
que se encontra coberto pelo seguro, adota condutas de maior risco, elevando a probabilidade
do sinistro (Pindyck, 1999, p.680).
A hipótese de independências das probabilidades não se sustenta, entretanto, em diversos
mercados. Um exemplo importante é o mercado de emprego, porque a ocorrência de
recessões econômicas, que leva à períodos em que há desemprego em massa e momentos de
crescimento acelerado, com elevadas contratações, revela que há uma interdependência
sistêmica nesse mercado.
Em situações de certeza o mercado de seguros não funcionará corretamente. Uma pessoa
com doença crônica, por exemplo, ou incapaz de adentrar o mercado de trabalho, terá o
sinistro ocorrendo com probabilidade unitária, o que leva essas situações a serem
categorizadas como não seguráveis. Por outro lado há situações de incerteza, cuja definição se
dá em oposição ao conceito de risco. Enquanto o risco representa um evento com
probabilidade estimável, a incerteza se dá quando há insuficiência de informações necessárias
para que essa probabilidade seja conhecida. A existência de incerteza quanto a esses eventos
faz com que estas circunstâncias também sejam caracterizadas como não-seguráveis.
Em resposta às falhas no mercado de seguros, o Estado intervém fornecendo seguro
social. O seguro social possui características próprias, que a faz tomar o lugar do seguro
privado na proteção contra o risco e contra as incertezas, nas situações que sejam
categorizadas como não seguráveis, ou em situações que o mercado privado de seguros e/ou a
poupança privada sejam insuficientes. Assim, o seguro social previne não apenas contra o
risco como também para as incertezas, ou seja, para os eventos cuja probabilidade de
ocorrência seja desconhecida (Barr, 2004, p. 116-118) .
19
O caráter compulsório da contribuição ao seguro social é o instrumento formal que
permite a quebra da lógica atuarial privada. Isto, pois perde a relevância a relação entre
contribuição e benefícios do ponto de vista individual, cara ao seguro privado; cedendo lugar
a relação entre contribuições e benefícios de todos os beneficiários, o que permite que seu
orçamento seja ponderado por um risco médio. Como ela é compulsória, não há risco moral e
seleção adversa, pois aqueles de baixo risco não podem optar por excluir-se do sistema,
representando uma transferência de renda entre os de elevado risco e os de baixo risco.
Representam, portanto, uma modalidade de transferência de renda vertical.
No seguro social as contribuições compõem um orçamento único, e cumprem uma função
social que é incapaz de ser provida pelo setor privado. Age reduzindo incertezas e riscos, e
sustentando os níveis de bem-estar por meio da suavização do consumo, face à ocorrência de
uma contingência específica. A sustentação do consumo representa do ponto de vista
macroeconômico, a sustentação dos níveis de demanda, em momentos de recessão na
economia. Devido a essas características o seguro social cumpre um serviço para a sociedade,
razão que justifica que seu orçamento possa ser complementado com tributações indiretas,
além das contribuições diretas ao sistema.
Pode haver ainda sistemas de seguro especiais, que garantam a proteção a situações
conhecidas de risco de maneira independente da contribuição prévia de maneira direta ao
sistema. Essas modalidades representam uma transferência vertical de renda monetária.
Além do seguro social, o Estado pode garantir auxilio nas situações de risco e de
incertezas provendo benefícios universais. Tal mecanismo abandona a tentativa de se
aproximar do seguro privado, provendo bens e serviços de forma independente de qualquer
tipo de contingência, focalização ou de contribuição prévia. Funcionam, assim, do ponto de
vista do indivíduo, como transferências não monetárias de renda, ou transferências em
espécie.
São bens e serviços cujo caráter excludente e rival característicos da provisão privada leva
a efeitos indesejados do ponto de vista da eficiência econômica e da justiça social,
justificando uma provisão igualitária e sistemática. Como observado na seção anterior, isso
de deve, em termos da eficiência, à existência de externalidades positivas na prestação desses
bens, ou de externalidades negativas em sua não prestação. Gastos em educação e saúde, por
exemplo, possuem comprovadas externalidades positivas para o conjunto da sociedade, e uma
20
avaliação que aponte a insuficiência do gasto privado nesse setor funcionaria como uma razão
para que o Estado transfira renda na forma da prestação desses serviços.
Por último, a Assistência social emerge em circunstâncias que apresentem situações de
vulnerabilidade, que podem ser permanentes ou temporárias, que exijam uma solução para
além dos benefícios previdenciários e cujos tratamentos transcendem a questão de acesso a
bens de provisão universal. Com grande freqüência os benefícios assistenciais se compõem de
transferências de renda específicas e focalizadas, sem elas monetárias ou não.
Como pode ser observado, as transferências de renda tem papel especifico em cada uma
das categorias acima dispostas. Para compreender melhor as suas diversas categorias, e a
forma como elas se inserem no sistema de proteção social cabe ainda explorar as diversas
modalidades que podem, institucionalmente, adotar. A realização de uma tipologia para a
categorização sistemática das variadas formas de transferência será o alvo da próxima seção.
I.3. As modalidades de transferência de Renda.
As diversas formas por meio do qual o Estado pode transferir renda aos agentes podem
ser categorizadas sob alguns parâmetros característicos, cada qual associada a um conjunto de
funções que se espera que o Estado seja capaz de executar (Barr, 2004, p. 221-230 e passim) .
Primeiramente, as transferências de renda podem ser monetárias ou em espécie. Serão
monetárias quando a circunstância que se deseja sanar por meio da transferência de renda
possa ser fornecida por um mercado privado que funcione relativamente bem. Pressupõe-se
nesses casos que a falta de acesso a esses bens é um problema de falta de renda monetária, o
que justifica um beneficio nesse formato.
Há razões específicas, entretanto, para acreditar que uma transferência em espécie,
portanto na forma de algum bem ou serviço, ou por meio de direitos que garantam acesso a
bens e serviços específicos, seja preferível a um beneficio monetário. Isso ocorrerá quando, de
alguma forma, julgar-se que a decisão do Estado será melhor para o individuo ou para a
coletividade, do que a decisão do próprio indivíduo. Pode-se preferir uma transferência em
21
espécie, quando, supõe-se que a informação dos agentes seja insuficiente, ou quando se
acredita que as preferências dos indivíduos os levarão a realizar seus gastos de forma que não
atinja o ótimo social desejado.
Nas circunstâncias em que o mercado funciona de forma adequada, por outro lado,
prover transferências na forma de bens e serviços pode-se revelar uma alternativa ineficiente
de lidar com os problemas sociais. O mercado de alimentos, por exemplo, é relativamente
bem organizado: há informação plena e elevada competitividade. Assim, não há razões de
eficiência para crer que a provisão de alimentos na forma de produto seja preferível à
transferências na forma monetária.
As transferências de renda podem ainda ser contributivas ou não contributivas. Serão
contributivas se o direito ao seu acesso estiver vinculado, de alguma forma, à comprovada
contribuição prévia, em condições pré-estabelecidas. Essa modalidade é adotada quando
deseja-se que a transferência cumpra as funções sociais do seguro, a exemplo de grande parte
das transferências do seguro social, como observado anteriormente. A contribuição funciona
como especificação da origem dos recursos, fazendo com que essa transferência tenha um
impacto reduzido no conjunto dos gastos públicos. Caracterizam-se como uma poupança
forcada, destinada à realização de redistribuição horizontal da renda ao longo do ciclo de vida.
O caráter contributivo, entretanto, impõe um efeito catraca naqueles que são ou foram
incapazes de contribuir diretamente para o beneficio devido a alguma circunstância. Ainda
assim, pode ser desejável do ponto de vista da justiça ou da eficiência que alguns benefícios
sejam providos, justificando a existência de transferências sem caráter contributivo.
Funcionam, portanto, como redistribuições verticais da renda (Barr, 2004, p. 216).
Por ultimo, mas não menos importante, se pode categorizar as transferências de renda
como focalizadas ou universais. A universalidade diz respeito à amplitude total de acesso ao
beneficio, não sendo necessária a comprovação de nenhuma contingência especifica. São
benefícios não contributivos e isentos de qualquer outro tipo de seleção que limitaria o
público-alvo. Representam reduções nas desigualdades tanto verticais quanto horizontais, ao
estabelecer patamares comuns de acesso a bens e serviços. Tem por finalidade promover a
eqüidade de acesso e equalização das oportunidades (Lavinas, 2007).
22
As transferências focalizadas, entretanto, se vinculam a algum tipo de contingência, a
alguma situação de vulnerabilidade que se queira amenizar por meio da transferência de renda
em questão. O argumento central em defesa dos benefícios focalizados é que, agindo somente
sobre aqueles em situação de comprovada necessidade, há economia de recursos, em relação a
um beneficio que haveria de ser provida a toda a população, independente da condição dessas
pessoas. Freqüentemente a focalização envolve a comprovação de insuficiência de renda,
embora possam ser traçados outros critérios. A focalização necessita de alguns parâmetros
para funcionar corretamente, que serão descritos adiante
Primeiramente, é necessário que o benefício atinja somente aqueles para o qual o
programa foi criado. Não deve haver vazamentos, ou seja, o recebimento do beneficio por
parte daqueles que não seriam caracterizados como beneficiários da transferência. Para que
isso ocorra é necessário que o público-alvo seja facilmente identificável e selecionável, e que
aqueles que não pertençam ao grupo sejam facilmente excluídos. Quando essa condição se
cumpre, diz-se que o programa apresenta eficiência vertical (Barr, 2004, p. 218).
Quer-se, ainda, que a transferência seja capaz de atingir a todos aqueles a que se
propõe a atingir, conforme o conceito de eficiência horizontal da focalização. Para que isso se
cumpra é necessário minimizar o efeito estigmatizante da transferência, que funcionaria como
um desincentivo ao recebimento. E necessário ainda que os mecanismos formais de
habilitação e elegibilidade sejam capazes de atingir o público-alvo em questão, tarefa que
pode ser particularmente difícil quando o público-alvo dos benefícios constitui-se
precisamente das populações com restrição da acesso à sociedade formal, ou a outros
benefícios do Estado.
Por último, a focalização representa custos administrativos adicionais na gestão dos
condicionantes, ou seja, para cumprir os dois parâmetros de eficiência descritos acima. Esses
custos não devem ser impeditivos, ou representar uma parcela muito grande do volume de
recursos destinado ao programa. A razão entre o que é gasto com a atividade-fim, concessão
dos benefícios, e o que é gasto com as despesas administrativas necessárias a conduzi-lo é um
importante indicador da eficiência do programa.
De posse dessa terminologia, pode-se compreender melhor como cada tipo de
transferência age dentro do sistema de proteção social, de modo a promover a elevação do
bem-estar para o conjunto da sociedade. A proposta desse trabalho é avaliar a expansão dos
23
gastos assistenciais, no formato de transferências de renda focalizadas e não-contributivas, aos
moldes do Bolsa- Família. Esse programa, assim como outros benefícios assistenciais de
modo geral, objetivam a mitigação de alguma, ou de mais de uma das diferentes formas de
pobreza.
Cabe, portanto, uma análise mais específica desse objetivo, posto que há detalhes que
diferenciam o combate a pobreza de outras formas de transferência de renda. A maneira de
definir e de conceituar a pobreza e sua inter-relação com as transferências de renda serão fruto
de analise na próxima seção.
I.4. Transferências de Renda e combate à pobreza
Como visto, a mensuração do bem-estar social tem como ponto de partida as utilidades
de cada individuo dessa sociedade, transformadas por alguma função do bem-estar social,
teórica. As utilidades individuais são, por sua vez, função de uma cesta de bens, entendida no
seu sentido mais amplo, para incluir tudo aquilo que o individuo venha a precificar, tanto do
ponto de vista material quanto imaterial. Sendo a utilidade de um individuo fruto da
composição desses diversos bens, podemos compreender o bem-estar como grandeza que
possui diversas dimensões. A pobreza, compreendida como situação particular de carência, de
perda de bem-estar, é, por conseguinte, de igual maneira composta por diversas dimensões.
Mensurar essas dimensões, embora seja de extremo interesse no desenho das políticas
publicas, não é tarefa simples.
Um ponto de partida para a avaliação do bem-estar individual é a avaliação da sua
renda. A maior parte dos bens materiais e de serviços de que necessita um individuo em uma
sociedade capitalista pode ser provida pelo mercado, razão pela qual a renda monetária é
utilizada como uma aproximação da renda total de um individuo. Entretanto, configura-se
como uma aproximação imperfeita, pois a renda monetária em um determinado período não
capta o bem-estar oriundo de outras dimensões da renda, devido, por exemplo, ao acesso a
ativos, ao acesso a bens produzidos para consumo próprio, ao acesso a bens públicos ou a
outras formas de renda não-monetária (Barr, 2004, p. 121-134).
24
Ainda que a renda total pudesse ser empiricamente verificada, ela seria apenas uma
das dimensões dos elementos que produzem utilidade aos indivíduos. O agente poderia
escolher ter uma renda inferior, por exemplo, como fruto de suas preferências. Não há razão
para crer que esse individuo, embora possa ter uma renda total inferior a outros, esteja em
situação de bem-estar inferior, dado que ele optou por se encontrar na determinada situação.
Não há mecanismos práticos para avaliar de forma objetiva a utilidade aferida pelos
indivíduos de maneira subjetiva por meio de direitos ou de possibilidade de escolhas. Assim,
toda tentativa de mensuração do bem-estar apresenta simplificações de natureza
discricionária.
A partir desse problema de mensuração surgem as dificuldades de prontamente
caracterizar e mensurar pobreza. O conceito de pobreza multidimensional deveria ser
utilizado, para que se avaliassem os déficits em relação aos diversos campos ao qual se supõe
que o individuo deva ser capaz de obter seu bem-estar. Nessa situação, mensurar a pobreza
implicaria em estabelecer uma linha, para cada uma das dimensões relevantes, abaixo do qual
as pessoas são consideradas pobres. Freqüentemente, entretanto, as informações caras a cada
um dessas dimensões não se encontram disponíveis, de modo que o critério de renda é
utilizado como aproximação, e, em se tratando disso, novamente aproximada pela renda
monetária declarada, e não pela renda observada.
A linha da pobreza costuma ser estabelecida de duas formas distintas. A primeira e
chamada de pobreza absoluta. Há o estabelecimento de um critério que seja considerado
mínimo, seja na dimensão em questão, seja na renda monetária, e, abaixo desse critério, os
indivíduos são considerados pobres. Esses critérios são traçados de forma absoluta, em
relação a um nível de consumo desejado. Soluções empíricas envolvem, por exemplo, o
cálculo de custo de nutrição, abaixo do qual o individuo encontrar-se-ia ingerindo quantidade
insuficiente de calorias. Evidentemente o custo da nutrição envolve uma avaliação qualitativa
dessa alimentação. O mesmo funcionaria quando são pensados patamares mínimos em outras
dimensões como renda, educação e moradia. O estabelecimento desse tipo de critério
conquanto possa funcionar como base para as decisões públicas, não remove seu caráter
discricionário.
Uma alternativa é o estabelecimento de uma linha de pobreza relativa, ou seja, uma
função da distribuição da renda como um todo. Nessa visão a pobreza esta associada não a um
déficit em relação a um mínimo estabelecido, mas à distância que essa pessoa se encontra do
25
padrão médio ou mediano da população como um todo. Quando a pobreza é percebida como
um fenômeno relativo, o número de pobres aumenta se a sociedade enriquece de forma
desigual, devido ao aumento da distância dos mais pobres aos mais ricos, embora, em termos
absolutos, eles possam estar na mesma situação, transformando a pobreza em um fenômeno
com características históricas e geográficas especificas, com fortes implicações para o
desenho das políticas publicas de combate a pobreza. Nessa visão, ainda, a noção de justiça
social é associada à equidade social e ampliada (Barr, 2004).
Uma vez estabelecida uma linha de pobreza, a sua correta avaliação empírica para o
desenho de políticas públicas envolve o cálculo de três outros importantes conceitos: a sua
grandeza, sua intensidade e duração. A grandeza envolve o número de pessoas que se
encontram na situação de pobreza, e que, portanto será alvo das políticas direcionadas a sua
solução. A intensidade diz respeito à distância que as pessoas tipicamente se encontram da
referida linha, justificando uma seleção do aporte de recursos que deverão ser providos e a
duração diz respeito ao tempo que elas tipicamente permanecem na pobreza. Há distinções
importantes com tratamentos distintos para situações de pobreza que por algum motivo se
revelem permanentes, e pobreza que se revele temporária.
As múltiplas dimensões da pobreza, associadas, por exemplo, à incapacidade de
participar do mercado de trabalho, à má alimentação, à incapacidade de acessar serviços de
saúde, às más condições de moradia, à falta de acesso a ativos, à elevada razão de
dependência (razão entre o número de pessoas dependentes e o número de pessoas com renda
do trabalho) ou a outras contingências verificáveis, são todas correlacionadas entre si, na
medida em que a presença de uma dessas situações de vulnerabilidade aumenta a
probabilidade de que o indivíduo venha a vivenciar a pobreza também em outras dimensões.
O principal objetivo das transferências monetárias de renda não contributivas é a
redução da pobreza percebida em sua dimensão monetária. Seu maior objetivo é atingir
pessoas incapazes de se inserir no sistema de Seguridade social de outra maneira, por
exemplo, por não estar incluída nas hipóteses previstas pelo seguro social, ou cuja inserção no
sistema de Seguridade social seja incapaz de removê-las de uma situação de pobreza devido à
gravidade das contingências que explicam o seu déficit de renda.
Nesse caso, o objetivo da transferência é permitir que a pessoa ultrapasse a linha de
pobreza estabelecida. Supõe-se que os ganhos monetários possam suprir os déficits nas outras
26
dimensões da pobreza, por meio da obtenção desses bens no mercado. Há a assunção de que a
correlação seja uma via de mão dupla: da mesma forma que um déficit na educação pode
levar à pobreza monetária devido a uma inserção precária no mercado de trabalho, uma
melhoria na pobreza monetária por meio de uma transferência pode levar esse individuo a
consumir, no mercado, educação, e, portanto à melhorar sua inserção no mercado de trabalho
(Barr, 2004, p. 229).
Esse tipo de assertiva será verdadeiro quanto melhor funcionarem os mercados
privados em questão, e quanto mais se espera que o agente aja dessa forma. Caso contrário,
conforme visto na seção anterior é mais eficiente promover a educação na forma de
transferência em espécie.
O recebimento da renda terá uma serie de efeitos para esses indivíduos (ou famílias)
receptores, posto que ira alterar a rede de incentivos nos quais esses agentes se encontram. O
formulador de políticas deve estar atento para o estabelecimento desses incentivos, de modo a
não estimular comportamentos sociais sub-ótimos.
Um possível incentivo famoso na literatura econômica e a armadilha da pobreza que
benefícios focalizados podem promover. O individuo que se visse diante de uma oportunidade
de uma melhora da condição de pobreza pela obtenção de, digamos, um novo emprego,
poderia chegar à conclusão de que a perda da elegibilidade no programa não e compensada,
caso a melhora não seja substantiva o suficiente. E importante, portanto, avaliar em que escala
se espera que um benefício focalizado provoque a armadilha da pobreza, que funcionará como
um contratempo ao ganho de eficiência sistêmica, e avaliar ainda, a medida que os ganhos em
termos de justiça social compensem a referida situação de ineficiência (Barr, 2004, p. 225).
A rede de incentivos que circunda a situação de pobreza, porém é muito vasta, o que
exige avaliação minuciosa da população que será alvo da transferência de renda. A pobreza
possui uma vasta gama de externalidades negativas para o conjunto da sociedade, por
exemplo, quando compromete a nutrição e a educação das gerações futuras, ou quando
funciona como incentivo à criminalização dos indivíduos. As razões de eficiência, além das
razões de justiça e equidade, para agir nessas externalidades são claras, justificando o combate
à pobreza ser um dos principais focos da política social.
27
A partir das diversas categorias apresentadas ao longo desse capítulo, e das razões
apresentadas para a intervenção pública no formato de transferência de renda, pode-se avaliar
com embasamento teórico adequado o desenho do sistema de proteção social no Brasil, e
adequadamente caracterizá-lo, mostrando seus pontos fortes, suas falhas, e em que dimensões
têm-se expandido. Esse será o objetivo do próximo capítulo.
28
CAPITULO II: AS TRANSFERÊNCIAS DE RENDA NO BRASIL
Este capítulo irá descrever as principais modalidades de transferência monetárias de
renda praticadas no Brasil. A Constituição Federal de 1988, trouxe inovações para o regime
previdenciário e para a Assistência Social ao institucionalizar do ponto de vista formal a
Seguridade Social. Para além das políticas da Seguridade Social o Governo Federal veio, ao
longo dos anos 90, praticando uma política de ampliação das transferências monetárias
focalizadas, política que culminaria na criação do Programa Bolsa-Família, em 2003. Esse
capítulo visa descrever essas diversas modalidades, de transferência monetária bem como
revelar números de sua cobertura e dos valores pagos destes benefícios.
Para tanto, a primeira seção irá fornecer uma descrição sobre o funcionamento e a
evolução recente, no período de 2000 a 2009, dos gastos públicos do governo federal
brasileiro como um todo, mostrando a evolução da parcela dos gastos sociais no conjunto da
economia nacional e dos seus valores per capita. Em seguida serão analisadas em maior
detalhe as políticas no âmbito da Previdência Social, os regimes de aposentadorias, rural e
urbanos, bem como as diversas modalidades de seguro social nela implícitas. Por fim, uma
última seção irá tratar das políticas assistenciais, tanto no tangente à Seguridade Social,
quanto o programa Bolsa-Família.
II.1. Os gastos públicos no Brasil
O objetivo dessa seção é analisar o conjunto dos gastos públicos no Brasil, de modo a
precisar como se dá sua distribuição entre as diversas despesas realizadas pelo Estado
brasileiro e como elas têm evoluído ao longo da última década. Para isso iniciaremos olhando
o volume dos gastos e da arrecadação do Estado de forma agregada. Serão utilizados dados
deflacionados pelo IPCA, para valores constantes do mês de dezembro de 2009.
29
A figura 1 revela o resultado fiscal do governo central: a diferença entre as receitas
líquidas totais: receitas fiscais, da previdência social, e do Banco Central, excetuadas as
transferências a estados e municípios; e o total das despesas, excetuando o pagamento de juros
da dívida pública, todos como parcela do PIB.
Figura 1
Como pode ser observado, o governo federal vem praticando uma política de elevação
gradual da arrecadação e das despesas, se compreendidas como percentual do PIB. As receitas
e as despesas apresentaram redução em relação ao ano anterior apenas no ano de 2003. A
partir de 2003 as parcela do PIB ocupada pelas receitas e pelas despesas cresce de forma
conjunta, exceto nos anos de 2008 e 2009. No ano de 2008, devido a um forte crescimento no
PIB, de 5,1%, houve crescimento das receitas de forma mais acelerada que das despesas. As
receitas federais foram capazes de crescer 9,1%, elevando-se de R$ 566 bi para R$ 618 bi, a
preços de 2009. Já as despesas cresceram apenas 4,8% de R$ 502 bi para R$ 527 bi, o que
representou uma queda na sua participação do PIB, de 17,1% para 16,6%.
Em 2009 houve recessão econômica, com redução de 0,2% no PIB real. As receitas
acompanharam esse movimento, tendo sua participação no PIB reduzida em 1%. Já os gastos
30
públicos se elevaram 8% em relação ao ano anterior, representando uma política anticíclica de
estabilização da demanda. Nesse ano, houve queda do superávit para o nível de 1,4%, em
função dessa elevação da despesa, o que se configura como um rompimento à tendência
anterior, visto que desde 2002 o governo federal vem praticando uma política de manutenção
do superávit primário no patamar de 2,2%, exceto nos anos de 2004 e 2005.
Cabe analisar como essa despesa se distribui entre as diversas funções do governo.
Para tal, a figura 2 revela essa distribuição no ano de 2009. As despesas previdenciárias
urbanas representam a maior parcela dos gastos públicos, sendo os benefícios urbanos
responsáveis por 31% do valor dos gastos e os benefícios rurais responsáveis por 8% do
gasto.
Figura 2
Os benefícios assistenciais do BPC-LOAS e da Renda Mensal Vitalícia correspondem,
juntos, a 3% das despesas primárias do governo central. Por outro lado essa cifra não revela
um importante programa da assistência social, o Bolsa-Família, responsável por uma boa
parcela da evolução do gasto social recente. Isto ocorre pois este programa se encontra entre
31
as verbas de uso discricionário do Governo Central, que representaram, em 2009; R$ 110
bilhões.
Os gastos previdenciários e os benefícios assistenciais do BPC-LOAS, bem como as
despesas da saúde compõem o orçamento da Seguridade social, e são financiados por meio de
contribuições dos empregados e dos empregadores, bem como por tributos indiretos
vinculados a essa instituição. A previdência social será tratada com maior detalhe na seção
2.2, e o BPC-LOAS e a RMV, bem como outros benefícios de transferência de renda serão
tratos na seção 2.3.
Para melhor captar a evolução dos gastos sociais, foi selecionado um conjunto de
funções do gasto público para análise. A evolução das despesas sociais per capita no Brasil
pode ser observada pelos valores absolutos per capita na tabela 1, e como % do PIB na tabela
2, abaixo. Nela fica patente o aumento da importância da assistência social no conjunto dos
gastos sociais. Seus gastos passaram de cerca de R$ 7 bilhões, em 2000, para R$ 33 bilhões a
preços de 2009. Per capita, esse aumento representou um crescimento de R$ 42 para R$ 174,
elevação de 314%. Esse aumento reflete a crescente importância das transferências de renda
assistenciais no conjunto das políticas sociais praticadas pelo governo. Sua importância no
conjunto da sociedade cresce, no período, de 0,38% do PIB em 2000 para 1,05% em 2009,
como pode ser observado na tabela 2.
As despesas da previdência social cresceram 91% no período; de R$ 151 bilhões para
R$ 290 bi. O gasto per capita apresenta elevação de R$ 891 para R$ 1524, ou seja,
crescimento de 71%. O gasto previdenciário como proporção do PIB se elevou de 7,9% em
2000 para 9,2% em 2009.
A análise da evolução dos gastos revela, ainda, a estagnação dos gastos em provisão
de bens e serviços in natura. Houve redução real de 40% dos gastos de habitação e urbanismo
em relação aos níveis de 2000, com recuo do valor per capita de R$ 17 para R$ 9. O
saneamento teve elevação de R$ 2 per capita pra R$ 4 per capita, embora continue
representando menos de 0,0% do PIB. Isso revela a ausência de uma política federal de apoio
à infra-estrutura urbana e à moradia, funções cujo déficit é agudo na sociedade brasileira
(Lavinas, 2007).
32
Os gastos per capita com saúde cresceram 32%, (tabela 1) ao longo dos últimos 10
anos, mas sua participação no PIB reduziu de 1,7% para 1,5% (tabela 2), o que significa que
tal resultado não foi fruto de uma política de expansão dos gastos, mas apenas de
Tabela 1
Evolução dos Gastos sociais, Funções Selecionadas
- R$ per capita – Orçamento Fiscal e da Previdência
FUNÇÃO 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
Assistência Social 42 48 55 65 98 104 133 146 162 174
Previdência Social 891 975 1.049 1.119 1.172 1.239 1.314 1.386 1.449 1.524
Saúde 193 214 216 209 233 240 246 234 246 256
Trabalho 60 67 72 73 76 84 102 115 123 150
Educação 101 106 113 109 103 106 107 112 124 150
Habitação e Urbanismo 17 8 5 4 12 18 20 5 7 9
Saneamento 2 2 1 0 1 1 0 0 3 4
TOTAL 1.306 1.420 1.511 1.580 1.694 1.791 1.922 1.999 2.113 2.268
Fontes: SIAFI - STN/CCONT/GEINC e IPEA
Valores Constantes em R$ de dezembro de 2008. Inflator IPCA.
33
acompanhamento da evolução econômica. Gastos com educação, embora tenham crescido
50% per capita em valores reais ao longo desses 10 anos, mantiveram sua participação no PIB
constante.
Isso também se explica pela supressão da Contribuição Provisória sobre
Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira, a
CPMF, que se constituía de um imposto cujos recursos eram destinados ao Orçamento da
Seguridade Social,
Tabela 2
Evolução dos Gastos Sociais no Brasil,
Funções Selecionadas, em % do PIB
FUNÇÃO 2000 2009
Assistência Social 0,4% 1,1%
Previdência Social 7,9% 9,2%
Saúde 1,7% 1,5%
Trabalho 0,5% 0,9%
Educação 0,9% 0,9%
Habitação e Urbanismo 0,2% 0,1%
Saneamento 0,0% 0,0%
TOTAL 11,6% 13,7%
Fontes: SIAFI - STN/CCONT/GEINC e IPEA
Valores Constantes em R$ de dezembro de 2008.
Inflator IPCA.
34
A Previdência, a Saúde e a Assistência, juntas, constituem-se, de acordo com os
princípios desenhados na Constituição de 1988, o corpo da Seguridade Social e, portanto,
deveriam guardar estreita relação constitutiva entre si, por serem partes integrantes de um
conjunto conceitualmente interligado. Carece de regulamentação, ainda, como importante
fonte de recursos para a saúde, a Emenda Constitucional Nº 29, de 2000, que prevê a
destinação 15% das receitas tributárias líquidas dos municípios e 12% das receitas tributárias
líquidas dos estados para o setor da saúde. Tais elementos funcionariam como importantes
fontes de financiamento para a saúde, no âmbito do Orçamento da Seguridade Social (Lavinas
e Cavalcanti, 2007)
A Constituição define um conjunto de direitos e obrigações sociais tendo em vista
garantir a proteção contra a queda de renda face às situações clássicas de vulnerabilidade
social: doenças e outros agravos à saúde, idade avançada, invalidez, viuvez, acidente de
trabalho, desamparo à criança, ou mesmo ao desemprego involuntário. Tais direitos são
garantidos, diz ainda o Parágrafo Único do no título VIII, capítulo II, seção I, obedecendo aos
princípios da universalidade de cobertura e atendimento, a diversidade de bases de
financiamento, a irredutibilidade do valor dos benefícios, a equivalência de benefícios às
populações rurais e urbanas e na eqüidade na forma de participação e custeio. O
estabelecimento da universalidade como um princípio para o desenvolvimento de uma política
social ampla e ativa é precisamente a inovação da Seguridade Social.
Entretanto, os princípios de universalidade e amplitude na cobertura intrínseca à noção
de Seguridade Social, embora sejam garantidos por direito em termos da CF/88, não
encontram sua plena execução quando são analisadas a legislação infraconstitucional e as
políticas praticadas pelos órgãos que a compõe.
O Orçamento da Seguridade Social foi pensado de forma isolada das outras despesas
do orçamento do tesouro nacional, sendo estabelecida por lei mecanismos de financiamento
próprios, de forma a garantir o cumprimento das obrigações sociais assumidas em lei,
conforme explícito no parágrafo segundo do Art. 195:
“A proposta de orçamento da Seguridade social será elaborada de
forma integrada pelos órgãos responsáveis pela saúde, previdência social e
assistência social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na lei
35
de diretrizes orçamentárias, assegurada a cada área a gestão de seus
recursos.”(BRASIL, 1988)
Entretanto, em sentido oposto, diversas transformações legais vieram a interferir com
o Orçamento da Seguridade Social. São elas:
1) as desvinculações parciais de recursos das Contribuições Sociais (emendas
sucessivas do Fundo Social de Emergência, do Fundo de Estabilização Fiscal – FEF
– e da Desvinculação de Receitas da União – DRU); 2) a fuga de recursos de origem
tributária (recursos ordinários do Orçamento Fiscal), que são substituídos e não
incrementados pelos recursos das contribuições sociais; 3) as isenções de
contribuições sociais criadas pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS);
4) e a evasão fiscal detectada pelo indicador “Dívida Ativa” com o Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS). (IPEA, 2008)
O Orçamento da Seguridade Social, portanto, se constitui uma importante inovação da
CF/88, na medida em que representa uma garantia do cumprimento dos gastos sociais de
maneira independente do orçamento do tesouro. Essa autonomia, entretanto, se vê limitada
pelos elementos acima descritos. Quando analisados os orçamentos públicos, apenas são
representados de maneira isolada os gastos previdenciários, o que reflete a falta de absorção
institucional quanto à natureza integrada dos eixos da Seguridade social no Brasil, e reforça
uma lógica exclusivamente previdenciária, posto que o orçamento da previdência, analisados
isoladamente, representa um déficit. Em 2009, por exemplo, o resultado da previdência social
representaria um déficit de R$ 42,8 bilhões de reais.
Se compreendido como uma parcela integrante do Orçamento da Seguridade Social,
entretanto, o quadro é distinto. Deve-se recorrer às fontes de receita que, constitucionalmente
se estabelecem como constituintes desse orçamento. São elas as contribuições dos
Empregadores e Trabalhadores Segurados do INSS, Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social, Contribuição sobre o Lucro Líquido, Contribuição para o Programa de
Integração Social (PIS-Pasep), parcela do seguro-desemprego, Contribuição sobre a
Comercialização Rural, e Receita de Prognósticos.
36
Por sua vez, quando se analisa o destino dos recursos do Orçamento da Seguridade
Social, percebe-se o efeito dos desvios de parte destes recursos devido à DRU, para
composição do superávit primário do Governo Central e devido à Lei de Responsabilidade
Fiscal; destinada a financiar os encargos previdenciários da União no Regime Jurídico Único
(RJU). De acordo com cálculos do IPEA:
“Esses gastos somados consumiram, em 2001, 1/3 dos recursos – cerca de R$ 50
bilhões. Observe-se que quase 2/3 desse orçamento, que correspondem a gastos sociais
protegidos pelos princípios de direitos sociais regulamentados e exercitados por iniciativa do
cidadão (benefícios de previdência básica – INSS, acesso ao sistema hospitalar e
ambulatorial do SUS, seguro-desemprego e acesso ao benefício de prestação continuada da
Loas), estão sendo efetivamente exercitados e garantidos.“ (IPEA, 2008)
O Orçamento da Seguridade, portanto é fonte para diversas modalidades de gasto
público para além dos direitos constitucionais para as quais foi criado na Constituição
Federal. Ela é utilizada nos programas setoriais dos Ministérios da Saúde, Previdência e
Assistência, com os recursos destinados a cada um desses ministérios, sem, entretanto, seguir
o princípio da programação conjunta, tal como previsto no modelo da Seguridade. Em
particular, e de forma mais grave, ela é utilizada para outros fins, para além das funções
sociais para a qual foi criada.
O orçamento da Seguridade social é fundamental para a questão em análise, pois nele
se encontram grande parte das transferências de renda praticadas pelo governo brasileiro. Os
gastos com a saúde costumam representar transferências in natura, na forma da prestação do
serviço médico solicitado pelo paciente. A previdência e a assistência social, por outro lado,
se constituem, majoritariamente, transferências monetárias de renda, razão pela qual esse será
o objeto de análise das seções seguintes.
37
II.2. Os benefícios da Previdência Social
Como observado na seção anterior do capítulo, a função previdenciária é uma parcela
importante dos gastos sociais do governo, o que justifica uma análise mais específica dos seus
diversos benefícios. A Constituição Federal de 1988, no título VIII, capítulo II, seção III,
estabelece os parâmetros legais que irão nortear o desenho do regime geral da previdência
social na sociedade brasileira. Nos termos do Art. 201 da Lei:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime
geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios
que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei,
a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade
avançada; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego
involuntário; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos
segurados de baixa renda; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20,
de 1998)
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou
companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 20, de 1998). (BRASIL, 1988)
A Constituição prevê ainda, no mesmo Art., no parágrafo sétimo, em que
circunstancias se darão as aposentadorias previstas no inciso I, descrito acima. É assegurada a
aposentadoria por tempo de contribuição, de 35 anos para homens e 30 anos para mulheres,
ou por idade, 65 anos para homens e 60 para mulheres, idade redutível em 5 anos para os
casos de trabalhadores em regime de economia familiar, trabalhadores rurais e professores do
sistema infantil, fundamental e médio.
38
O parágrafo 12, do mesmo Artigo, estabelece que haverá um sistema especial de
inclusão previdenciária para atender a trabalhadores de baixa renda ou sem renda própria que
se dediquem ao trabalho domestico no âmbito da sua própria residência, se pertencentes à
famílias de baixa renda, no valor de 1 salário mínimo.
É um sistema, portanto, que protege o cidadão, funcionando como um seguro, contra
as queda da renda em virtudes das circunstâncias de vulnerabilidade acima oriunda de
acidentes, condições de saúde, morte dos familiares, desemprego involuntário e da
maternidade, seja o cidadão contribuinte direto do regime de previdência, contribuição
compulsória a todos os trabalhadores formais, ou cidadão de baixa renda.
O Boletim Estatístico da Previdência Social divide os benefícios do Regime Geral da
Previdência Social em duas categorias: os Benefícios Previdenciários, que abrangem as
aposentadorias, as pensões por morte, os auxílios, o salário-família e o salário-maternidade; e
os Benefícios Acidentários são destinados aos segurados que sofreram acidentes, ou aos seus
dependentes, quando o acidente ocorre no exercício do trabalho a serviço da empresa,
provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou redução da
capacidade para o trabalho. A evolução no número de benefícios concedidos pelo RGPS e o
valor total dos benefícios pode ser observado na figura 3.
39
Figura 3
A figura 3 revela que houve crescimento tanto no número de benefícios emitidos
quanto no valor total dos benefícios pagos pelo RGPS. Os benefícios emitidos cresceram de
17,5 para 22,7 milhões ao longo dos 9 anos considerados, o que representa um crescimento de
30%. Já os valores pagos cresceram do total de R$ 8,2 bilhões, em 2000, para R$ 15,8 bi em
2008, crescimento de 93%. Houve, portanto, crescimento mais acelerado no valor total pago
do que na quantidade de benefícios emitidos, conseqüência da evolução, simultânea, do valor
dos benefícios individuais.
Isso pode ser demonstrado quando se observa o comportamento do valor médio dos
benefícios pagos, tal como na figura 4. Houve evolução simultânea do valor médio dos
benefícios. Em média os benefícios passaram de R$ 469,11 em 2000 para R$ 695,51 em
2008, elevação real de 48%. Os benefícios urbanos alcançaram uma média de R$ 826,63 e os
rurais permaneceram na casa dos R$ 440,71; próxima do seu mínimo.
40
Figura 4
A evolução de ambas as médias se deve, em grande medida, à elevação real do salário
mínimo, praticada pelo governo federal. De acordo com os parágrafos 1º e 2º do referido
artigo constitucional, é vedada a concessão de benefícios inferiores ao salário mínimo, razão
pelo qual este valor funciona como piso previdenciário e regula grande parte dos valores
pagos. O salário mínimo, que em 2000 era de R$ 136, se elevou para R$ 415, em valores
nominais, em 2008. Isso representou, em termos reais, utilizando como deflator o IPCA, um
crescimento de 99%.
A figura 5 revela que piso previdenciário é um importante regulador do total dos
benefícios emitidos, pois 64% dos benefícios emitidos em 2000 e 66% dos benefícios
emitidos em 2008 foram no valor de um salário-mínimo. Em particular, o salário mínimo
regula praticamente a integralidade dos benefícios rurais, representando o valor de 99% dos
benefícios. As faixas de rendimento mais elevadas, em relação ao número de samários
mínimos, tiveram sua participação reduzida no conjunto dos benefícios emitidos. Os
benefícios que somavam acima de 5 pisos previdenciários tiveram sua participação reduzida
de 8%, em 2000 para 2% em 2008.
41
Figura 5
Ainda uma característica que distingue os benefícios previdenciários urbanos dos
benefícios rurais se dá quanto à sua base contributiva. Como visto, o caput do art. 201 da
CF/88 estabelece que a previdência será organizada com base contributiva. Isso vai de
encontro ao princípio da universalização estabelecido no parágrafo único Art. 194. Uma
primeira leitura do principio da universalidade deveria apontar para uma cobertura ampla e
irrestrita, portanto não sujeita à comprovação de tempo de contribuição. Nesse sentido, o
caráter contributivo seria um contra-senso.
O sistema previdenciário brasileiro compreende a universalidade, do ponto de vista
urbano, como inexistência de restrições à filiação de qualquer grupo ao sistema, observado
por meio de políticas de incentivo à filiação de grupos com baixa capacidade contributiva.
Entretanto, por meio da categoria de “segurado especial”, os trabalhadores rurais podem ter
acesso aos benefícios previdenciários comprovando apenas tempo de serviço, dispensando
contribuição direta ao sistema previdenciário. Tal diferença de tratamento se deve à
características intrínsecas ao trabalho na agricultura de subsistência, que, além de penoso e
desgastante, e, freqüentemente não envolver objetivos de lucro; também tem severas
implicações em termos de segurança alimentar para essas famílias, razões que justificam um
42
tratamento de proteção diferenciado, de modo a garantir que a previdência mantenha-se
pautada nos princípios da Seguridade. A figura 5 revela a distinção entre as populações
urbanas e rurais no tocante às contribuições e aos benefícios.
Figura 6
A análise da figura 6 revela que a previdência rural, por ser de cunho não contributivo,
mantém-se constante, na casa dos R$ 4 bilhões. As despesas da previdência urbana, por outro
lado, apresentaram elevação de R$ 22,8 bi para R$ 44,8, ou seja elevação de 96%. As
despesas com benefícios urbanos também cresceram, do patamar de R$ 95 bi para R$ 180 bi,
elevação de 89%. As receitas da previdência social urbana, por outro lado, acompanhou esse
movimento subindo de R$ 94,7 bi para R$177,4 bi, elevação de 87%.
Os benefícios previdenciários, como observado nos incisos I a V do art. 201, buscam
oferecer proteção à uma ampla gama de riscos, razão pela qual cabe analisar a forma como o
total dos benefícios emitidos se distribui entre as suas diversas categorias. A distribuição
43
percentual do volume de benefícios concedidos no ano de 2008 pode ser analisada na figura 7,
abaixo.
Figura 7
Os benefícios acidentários representam, em quantidade, apenas 4% do total dos
benefícios pagos pelo Regime Geral da Previdência Social. Entre as suas modalidades se
destaca o pagamento de auxilio-acidente, representando 34% do total de benefícios. Os
auxílios doença, as pensões por morte e as aposentadorias por invalidez representam, por sua
vez, 21, 16 e 19% do total dos benefícios acidentários. Cabe observar a pequena participação
dos benefícios acidentários recebidos pelos trabalhadores rurais. Foram pagos, ao todo, ao
longo do ano de 2008, apenas 28 mil benefícios, representando 3% dos 803 mil benefícios
acidentários pagos na totalidade.
O RGPS pagou, em 2008, 22 milhões de benefícios previdenciários, o que representou
96% do total de benefícios emitidos. Pensões por morte representaram no ano em análise 29%
dos benefícios previdenciários e auxílios-doença representaram 5% desse total.
44
Apenas 54 mil benefícios de auxilio maternidade foram emitidos ao longo do ano,
representando 0,3% dos benefícios previdenciários. A maternidade é uma conhecida situação
de risco para as famílias. Durante a gestação e os primeiros anos de vida da criança há uma
elevação dos gastos familiares e a necessidade de cuidados da criança leva à incapacidade da
família de dispor de todos os seus membros para participar do mercado de trabalho, elevando
a probabilidade de que essa família venha a sofrer queda na renda e portanto a se inserir na
pobreza. O baixo número de benefícios concedidos pelo auxilio maternidade, entretanto,
revela a ausência de uma política de apoio governamental à essa dimensão da vulnerabilidade
das famílias, até porque a cobertura só é garantida às trabalhadoras do setor formal, seja ele
privado ou público.
As aposentadorias, por outro lado, representam cerca de 65% dos benefícios
previdenciários emitidos em 2008. A soma dos benefícios emitidos, em suas diversas formas,
é de 14 milhões e 400 mil. As aposentadorias por idade representam 52% do total das
aposentadorias, enquanto as aposentadorias por tempo de contribuição e por invalidez
representam, por sua vez, 28 e 20% respectivamente. Se analisadas as distinções entre
aposentadorias rurais e aposentadorias urbanas, pode ser verificado que praticamente
inexistem aposentadorias rurais por tempo de contribuição, estas somam apenas 12 mil. Os
cidadãos rurais recebem quase que a totalidade da suas aposentadorias ( 92% ) oriundas da
idade avançada, e apenas 8% devido à invalidez.
Os dados acima revelam que, embora os gastos com a previdência social tenha
apresentado crescimento de 94% no período considerado, esse aumento se deve, em grande
parte à efeitos indiretos relacionados com o aumento do salário mínimo, que regula o piso
previdenciário, e portanto os benefícios dos segurados especiais. A expansão de 40% na
quantidade de benefícios emitidos se deve não à uma política de expansão e inclusão
previdenciária, mas ao exercício dos direitos já estabelecidos no âmbito da CF/88.
A seção seguinte irá analisar os gastos com a Assistência Social, tanto no âmbito da
dimensão Assistencial da Seguridade Social, como estabelecida na Constituição Federal de
1988, quanto no âmbito das políticas de transferência de renda que se categorizam como
gastos sociais de cunho discricionários.
45
II.3. Assistência Social
As transferências montarias de renda de cunho assistencial se encontram em duas
diferentes dimensões no conjunto dos gastos sociais. Com a CF/88 estabeleceu a assistência
social como uma das dimensões integrantes da Seguridade, e incluiu a transferência monetária
de renda como uma de suas dimensões, vindo, posteriormente, com a regulamentação da Lei
Orgânica da Assistência Social a estabelecer o Benefício de Prestação Continuada – BPC,
como um importante direito à renda assistencial. Para além do BPC-LOAS, o governo federal
praticava diversas modalidades de transferência de renda, como os programas Bolsa Escola,
Cartão-Alimentação, Auxilio-Gás e Bolsa-Alimentação, que eram regidos por órgãos
distintos. A partir de 2003 tais benefícios foram progressivamente unificados no programa
denominado Bolsa-Família. A análise do BPC-LOAS e do Bolsa-Família serão os alvos das
sub-seções 2.2.1 e 2.2.2.
II.3.1. Assistência Social no Âmbito da Seguridade Social
A Constituição Federal de 88 trás um novo marco no que tange à consolidação da
assistência social como um direito garantido aos cidadãos brasileiros, e como um dos três
vetores que compõe a Seguridade social. Até então, a assistência social era efetivada a partir
da oferta de serviços mantidos pelo setor beneficente, ausente de qualquer principio de
regulação desta ação social, em relação ao planejamento da oferta, à estimativa da demanda
ou ao padrão de qualidade. A assistência social se destinava prioritariamente àqueles pobres
com comportamentos desviantes, mães solteiras e jovens infratores, e tinha padrão errático.
A CF/88 vem, portanto, reconhecer a Assistência Social como política específica para
além da Previdência, como parte integrante da Seguridade Social e, portanto, sujeita aos
princípios do Art. 194, como a universalidade da cobertura e irredutibilidade dos valor dos
benefícios (BRASIL, 1998).
46
Constitui-se, portanto, de um conjunto de benefícios de cunho monetário. O caráter de
universalidade supõe-se ser garantido pelo fato de serem benefícios não contributivos, mas
persiste, ainda, o caráter focalizado, devido à necessidade de comprovação da necessidade do
benefício, conforme pode ser observado no Art. 203 da CF/88, que estabelece as diretrizes
para a assistência social.
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independente de contribuição à Seguridade social, e tem por objetivos:
I – a proteção a família, à maternidade, à infância, à adolescência e à
velhice;
II – o amparo às crianças e adolescentes carentes
III – a promoção da integração ao mercado de trabalho
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência
e a promoção de sua integração à vida comunitária
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme
dispuser a lei.(BRASIL, 1998)
Desde 1974, pela Lei n. 6179, vigorava no sistema de jurídico brasileiro um benefícico
denominado Renda Mensal Vitalícia, pago pela Previdência Social aos maiores de setenta
anos de idade ou inválidos, que não exercessem atividade remunerada e não tivessem meios
de prover seu sustentento. Era pago o benefício de meio salário mínimo, desde que o
beneficiário tivesse sido filiado à Previdência Social por ao menos 12 meses. Com a CF/88, o
valor foi elevado a um salário mínimo, até a promulgação da Lei Organica da Assistência
Social (LOAS) , de n. 8.742; em 1993.
Após a promulgação dessa lei, que regulamenta o Art. 203 da CF/88, foram extintas as
concessões de Renda Mensais Vitalícias, sendo substituída pelo Benefício de Prestação
Continuada – BPC. Este estabelece o pagamento de um salário mínimo à idosos com idade
superior a 65 anos e deficientes físicos, desde que estes não sejam beneficiários de nenhum
47
regime de previdência e caso seja cumprida a exigibilidade de que sua renda familiar per
capita seja inferior a 25% do salário mínimo vigente (IPEA, 2008).
A figura 8 revela a evolução da quantidade de benefícios emitidos pelo Governo
Federal. O total dos benefícios pagos cresceu de 2 milhões em 2000, para 3,3 milhões em
2008, um aumento de 64%. Os benefícios para portadores de deficiência cresceram 87% ao
longo do período, de 806 mil benefícios em 2000 para 1,5 milhão em 2008. Os benefícios
para idosos cresceram 253%, de 403 mil para 1,4 milhão no período considerado. Como não
há mais concessão de novas Rendas Mensais Vitalícias, o número de benefícios pagos teve
redução, em 2008 os benefícios por idade e por deficiência representaram apenas 33 e 51% do
que eram em 2000, respectivamente.
Pode ser observada uma descontinuidade do ano de 2003 para 2004, devido à uma
mudança na legislação de concessão dos benefícios, realizada pelo Estatuto do Idoso, Lei n.
10.741/03, permitindo que a existência de um benefício assistencial em um membro da
família não entre no calculo da renda familiar per capita para o calculo de novos benefícios.
Famílias com mais de um idoso na situação de elegibilidade, portanto, passaram a ser capazes
de receber dois benefícios, não apenas um, como vigorou nos dez anos anteriores. Assim,
300.000 novos benefícios foram emitidos ao longo de 2004, em relação ao ano anterior.
Como pode ser observado, as rendas mensais vitalícias, representam no ano de 2008,
em conjunto, 9% do total dos benefícios emitidos, enquanto o BPC destinado a portadores de
deficiência e Idosos representa 43 e 36%, respectivamente, do total. As pensões mensais
vitalícias passaram a ser pagas a partir do ano de 2006 e apresentaram um total de 15.261
benefícios pagos ao longo de 2008, menos de 1% do total dos benefícios (figura 8).
48
Figura 8
A elevação do salário mínimo traz consigo não apenas a elevação da quantidade de
beneficiários, visto que inclui mais pessoas na faixa de elegibilidade, mas também a elevação
do valor dos benefícios. A figura 9 esclarece que houve elevação real de 80% no valor médio
dos benefícios, de R$ 244 em 2000 para R$ 441 em 2008, a preços de 2009. Isso representa
uma elevação no valor total pago pela previdência em transferências monetárias assistenciais
de renda, de R$ 495 milhões ao longo de 2000, para R$ 1,46 bi em 2008, elevação de 195%.
Figura 9
49
II.3.2. Bolsa-Família
Até a criação do PBF, em 2003, a transferência de renda se materializavam através de
programas com alvos distintos e geridos por órgãos distintos, o que dificultava, ou mesmo
inviabilizava a coordenação dessas políticas para um combate efetivo à pobreza. Era
permitido que uma mesma família pudesse ser beneficiária de dois ou três programas ao passo
que famílias com perfil semelhante não pudessem contar com o mesmo apoio.
Historicamente, a transferência de renda foi implementada em nível local em Campinas, com
o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) e no Distrito Federal com o Bolsa
Familiar para Educação – Bolsa Escola, seguidos, em 1995, pelo Programa de Renda Mínima
de Ribeirão Preto e do Bolsa Escola do Recife. Ao final da década de 90 havia programas de
garantia de renda mínima em 120 municípios brasileiros (IPEA, 2008).
Em 1997, foi aprovada a Lei n. 9.533 que previa que o governo federal passaria a
conceder apoio financeiro a municípios que instituíssem programas de renda mínima
associados a ações socioeducativas. A Lei previa uma expansão ao longo de 5 anos, até que
todos os municípios fossem contemplados. Em 2001 tal projeto foi substituído pelo Programa
Nacional de Bolsa Escola, PNBE, sob a gestão do MEC. No mesmo ano foram criados os
programas Bolsa Alimentação e Auxilio-Gás, que passaram a integrar então, os programas
sociais de transferência monetária de renda voltada ao combate à pobreza. O governo iniciado
em 2003 estabeleceu o combate a fome como prioridade, lançando o programa Fome Zero,
contendo uma nova forma de transferência de renda, o Cartão Alimentação.
Ainda em 2003 é criado o Programa Bolsa Família, que viria a revelar a importância
que teria no âmbito das políticas sociais ao longo dos anos subseqüentes o combate à pobreza
por meio de transferências monetárias de renda. Tal programa deu inicio à unificação dos
demais programas de transferência de renda que o antecederam, por meio da incorporação
destes beneficiários em um Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal –
CadÚnico. A Unificação foi concluída em 2006, quando todos os demais benefícios foram
extintos.
50
Na ocasião de sua regulamentação o Programa Bolsa-Família se constituía de um
benefício para famílias na pobreza, e na pobreza-extrema. Foram estabelecidas as linhas de
R$ 100,00 e R$ 50,00 de renda familiar per capita para cada uma dessas situações,
respectivamente. As famílias na pobreza extrema receberiam um benefício básico de R$ 50,00
somados a um benefício variável de R$ 15,00 por criança ou adolescente de até 15 anos.
Famílias na situação de pobreza, portanto com renda familiar per capita entre R$ 50,00 e R$
100,00 receberiam apenas o benefício variável (IPEA, 2008).
A linha de pobreza e o valor do benefício sofreram alterações nos anos subseqüentes.
O valor da linha passou, em 2006, para R$ 60,00 e R$ 120,00 respectivamente, para as linhas
de pobreza e extrema e pobreza. O valor sofreu ainda nova alteração passando a beneficiar
famílias com renda familiar per capita abaixo de R$ 70,00 e R$ 140,00 nas linhas de pobreza
e pobreza extrema.
O valor do benefício também sofreu alterações com o tempo. Em 2007 o valor do
benefício foi elevado, o benefício básico passando para R$ 68,00; o benefício variável para
R$ 22,00. Nesse mesmo ano foi criado ainda o Benefício Variável ao Jovem (BVJ), no valor
de R$ 30,00 para famílias com adolescentes de 16 e de 17 anos, até o limite de dois
benefícios.
Os benefícios, portanto, podem variar de R$ 68,00; para famílias sem crianças ou
adolescentes que se encontrem em pobreza extrema, a R$ 200,00; para famílias em situação
de pobreza extrema que possuam três crianças recebendo o benefício variável de R$ 22,00 e
dois jovens recebendo o BVJ de R$ 33,00. Famílias que não se encontram na pobreza extrema
não recebem o benefício básico de R$ 68,00, portanto podem receber até um máximo de R$
132,00 caso tenham duas crianças e um jovem.
Cabe observar que as elevações nos valores da linha de pobreza e do benefício não
representaram uma política de expansão do programa, mas apenas a correção do valor real do
benefício, visto que a inflação acumulada no período, até 2009, medida a partir do IPCA,
representa uma elevação nos preços de 41%. Isso significa que o valor de R$ 100,00 e R$ 50,
em 2003, representam em termos reais os mesmos valores de R$ 140,00 e R$ 70,00 em 2009
51
A figura 10 revela que, embora os valores nominais tenham se elevado de uma média
de R$ 73,40 para R$ 94,92, elevação de 29%, os valores reais não apresentaram a mesma
evolução, se reduzindo do patamar de R$ 99,89, a preços de 2009, uma diminuição real de
5%. Cabe observar, entretanto, que as mudanças normativas ocorridas em 2007 foram
fundamentais para reverter a tendência de queda do valor real dos benefícios, a partir da qual,
há elevação, tanto nominal quanto real, do valor médio pago a cada família.
Figura 10
O Programa Bolsa-Família manteve o princípio, já existente em seus antecessores, da
focalização. Serão beneficiadas as famílias que satisfaçam o critério de renda e que cumpram
as condicionalidades na área de saúde, educação e assistência social. As crianças da família
beneficiária devem manter freqüência escolar mínima de 85% para crianças e adolescentes
entre 6 e 15 anos e mínima de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos. Devem ainda
observar o acompanhamento do calendário vacinal e do crescimento e desenvolvimento para
crianças menores de 7 anos; e pré-natal das gestantes e acompanhamento das mães em etapa
de amamentação na faixa etária de 14 a 44 anos. No âmbito da assistência, devem
cumprir freqüência mínima de 85% da carga horária relativa aos serviços sócio-educativos
para crianças e adolescentes de até 15 anos em risco ou retiradas do trabalho infantil.
52
A figura 11 revela a evolução da quantidade de famílias beneficiárias e o valor total
pago em benefícios do Bolsa-Família. Ao final do ano de sua criação, o Bolsa-Família atendia
à 3,6 milhões de famílias, chegando a alcançar 10,9 milhões de famílias em 2006, o que
representa uma expansão de 203% no número de famílias beneficiárias. Entre 2006 e 2007
esse valor se mantém constante, com expansão de apenas 0,7% do número de famílias
beneficiárias. Entre 2008 e 2007 há uma redução de 4% no número de famílias beneficiarias,
visto que 485 mil famílias deixam de receber o benefício. Por fim, entre 2009 e 2008 há novo
crescimento, de 17% no número de famílias beneficiarias, atingindo o total de 12,4 milhões de
famílias em dezembro, o que representa um crescimento de 242% desde o ano de criação do
programa. Assinale-se que essa era a meta inicial de cobertura.
A redução da quantidade de famílias beneficiárias entre os anos de 2007 e 2007 se
deve ao fato de que o MDS realizou uma comparação entre as informações contidas no
CadÚnico e na Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e
Emprego para o ano de 2006. Tal cruzamento de dados revelou que a renda de 622 mil
famílias se encontravam fora do critério de renda do programa. Essas famílias tiveram o
benefício suspenso em setembro de 2008 e o prazo de dezembro para comprovar que
efetivamente satisfaziam o critério de Renda do PBF. Dessas 171 mil famílias foram capazes
de comprovar sua situação de elegibilidade e tiveram seu benefício desbloqueado nos
períodos subseqüentes.
53
Figura 11
A figura 11 revela ainda que o Governo Federal tem como política a expansão do valor
real pago anualmente. Em 2004 o governo pagou o equivalente a 4,8 bilhões de reais a preços
de 2009 em benefícios do Bolsa-Família, valor que recebeu aumentos, à uma taxa média de
21% ao ano, chegando a R$ 12,4 bi em 2009, um aumento de R$ 160% ao longo desses 6
anos.
A expansão dos gastos com o PBF tem sido, portanto, importante fator no conjunto
das políticas sociais brasileiras. Vale mencionar, entretanto, que a concessão dos benefícios
do Bolsa-Família é parte do conjunto de gastos discricionários do Governo Federal. O PBF
não tem caráter de direito, portanto não gera direito adquirido para as famílias. Se caracteriza
como um benefício temporário e sujeito à re-avaliações periódicas dos critérios de
elegibilidade. As famílias beneficiárias estão sujeitas, ainda, à mudanças no rumo da política
do governo federal, que pode decidir pela redução do número de beneficiários de acordo com
as decisões orçamentárias que julgar adequado. Não se caracteriza, portanto, como política de
Seguridade, não somente no plano institucional como no plano conceitual, à medida que não
fornece pleno apoio face às incertezas orçamentárias, não podendo funcionar como elemento
de apoio nas decisões familiares de longo prazo.
54
Os cidadãos brasileiros, portanto, serão beneficiários de transferências monetárias de
renda caso se enquadrem em algumas das categorias listadas ao longo do capítulo. Isso
significa que receberão os benefícios monetários do seguro social na forma de aposentadoria,
desemprego, doenças e acidentes de trabalho caso sejam contribuintes da previdência social.
Caso contrário, as famílias com idosos poderão receber as aposentadorias rurais, segundo
critérios estabelecidos. Idosos e deficientes pobres podem solicitar os benefícios assistenciais
do BPC-LOAS, desde que comprovem o critério de renda estabelecido. Por último, as
famílias descobertas em relação aos critérios acima podem ainda recorrer ao PBF, desde que
cumpridas as condicionalidades e o critério de renda, para obter alívio da pobreza.
Tal conjunto de políticas deve ser eficiente no sentido de garantir os preceitos de
universalidade de acesso, caros à noção de Seguridade, introduzida formalmente no Brasil
com a CF/88. O próximo capítulo avaliará em que medida esse conjunto de políticas
focalizadas, descritas acima, funciona como efetiva proteção do cidadão brasileiro às
situações de vulnerabilidade, às flutuações do mercado de trabalho, e de que maneira essas
políticas agem no sentido de superar a pobreza, compreendida em sua multi-
dimensionalidade, de forma permanente.
55
CAPÍTULO III: EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS DA FOCALIZAÇÃO NO CASO
BRASILEIRO
O objetivo desse capítulo é fazer uma avaliação da transferência monetária de renda no
Brasil, com particular atenção para a focalização como princípio norteador da expansão dos
gastos públicos, a exemplo, como observado, de programas como o Bolsa-Família.
De forma a compreender a razão pela qual o Estado brasileiro volta as suas atenções
ao desenho de políticas de transferência de renda focalizadas, em substituição, como descrito
no capítulo 1, à expansão dos gastos em benefícios universais e/ou benefícios in natura, o
presente capítulo apresentará, na primeira seção, as razões teóricas que justificam essa tomada
de decisão institucional. Em seguida uma outra seção irá tratar de fornecer evidências
empíricas quanto ao funcionamento das transferências focalizadas no Brasil.
III.1. Breve histórico da focalização
Conforme descrito no capítulo 1, a existência de falhas de mercado justifica, por parte
do Estado, a adoção de políticas econômicas que visem a elevação dos patamares de Bem-
Estar social, por meio da elevação da eficiência econômica ou da justiça social, se afastando
de uma situação de livre-mercado.
A segunda metade do século XX vivenciou uma transformação radical na forma de
compreender as políticas públicas, cujo marco inicial foi o Relatório Beveridge. Elaborado em
1942, avaliou a assistência social e a situação de vida das famílias trabalhadoras na Inglaterra
de então, e recomendou uma ampla gama de reformas nas políticas públicas, de forma a
garantir a solução do que ele chamou de os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a
doença, a ignorância, e miséria e a ociosidade (Briggs, 2000).
56
A partir dessas reformas, que tomaram como base a aceitação em termos amplos das
falhas de mercado e da existência de desemprego involuntário, elementos que justificam uma
ação sistemática do Estado, os governos europeus progressivamente moveram-se na direção
do chamado Estado de Bem-Estar Social.
Um dos princípios que norteou essa expansão foi o princípio da universalização. Na
perspectiva da universalização, os bens e serviços ofertados pelo governo se tornam
disponíveis e acessíveis para toda a população, indiscriminadamente, garantindo que os
beneficiários não seriam passíveis de nenhuma forma de estigmatização, de perda de
dignidade. A adoção de tal princípio representa um afastamento da visão assistencial que
caracterizava as políticas de alívio da pobreza praticadas até então (Titmuss, 2000).
A existência do Estado de Bem-Estar Social está intimamente ligada à idéia de que é
necessário construir um sistema de proteção social cujo objetivo é reduzir riscos oriundos das
situações de vulnerabilidade garantindo segurança à população na forma da concessão de
direitos sociais, que se constituem em um conjunto de serviços disponíveis para o cidadão de
maneira independente das situações de mercado, esses, passíveis de falha. Representa,
portanto, um importante processo de desmercantilização dos setores da economia associados a
essas vulnerabilidades.
Em particular em relação às transferências de renda, a idéia anterior ao Estado de
Bem-Estar era perceber o Seguro Social e a Assistência Social como duas dimensões distintas
e impermeáveis. O seguro se caracterizaria como um conjunto de benefícios de cunho
contributivo, portanto baseados na noção de mérito. Ao estabelecer a contribuição como pré-
requisito para a segurança fornecida ao seguro, essa modalidade excluía aqueles sem
capacidade contributiva. A Assistência Social, percebida como atividade distinta, era
constituída de um conjunto de medidas destinada à superação da pobreza com bases em fortes
preceitos morais. Tais beneficiários eram percebidos pelo conjunto da sociedade de forma
estigmatizada, indicador de um pertencimento à classes sociais marginalizadas, muito mais do
que como uma política de alívio à pobreza cuja necessidade se dá devido à falhas inerentes ao
sistema capitalista.
No âmbito das transformações institucionais, introduzidas com a noção de Estado de
Bem-Estar, surge o conceito de Seguridade Social, que é concebida como uma política para
além dessa da distinção entre seguro social e assistência social, que até então eram concebidas
57
como elementos distintos. A Seguridade integra elementos de ambas as políticas ao garantir a
provisão dos benefícios em bases universais, portanto, tornando esses benefícios direitos
sociais desvinculados da contribuição prévia. Rompe com a diferenciação estigmatizante entre
merecedores e não-merecedores implícita na noção de contribuição (Lavinas, 2008).
A Seguridade tem por diferença das modalidades praticadas anteriormente, uma
noção, cara ao princípio da universalização, de que é fundamental o trabalho de forma
preventiva, que rompe com o ciclo vicioso de pobreza, doença, negligência e exclusão social
que caracterizam o processo descendentes a que as famílias estão vulneráveis em uma
situação puramente mercadológica. Ao atuar de forma preventiva, o governo permite que essa
família se reabilite, e protege as gerações futuras, rompendo, igualmente, com a transmissão
inter-geracional da pobreza.
No Brasil, conforme descrito no capítulo 2 desta monografia, a Seguridade Social foi
institucionalizada a partir da Constituição Federal de 1988, mas seu conceito não foi
plenamente absorvido pela legislação infraconstitucional. Institucionalmente as políticas
assistenciais e previdenciárias ainda pouco dialogam e seu desenho demonstra que as
transferências mantêm, em larga escala, seu caráter contributivo, à exceção das
aposentadorias rurais e dos benefícios do BPC-LOAS. Isso significa que o conceito de
Seguridade não foi plenamente absorvido pelas políticas praticadas pelo governo brasileiro.
Cabe observar que, com a entrada de Margaret Tatcher no governo inglês e de Nixon
na presidência dos EUA, crescem em importância as teóricas econômicas liberais, com
subjacentes críticas ao modelo do Estado de Bem-Estar. As práticas Keynesianas de políticas
de pleno emprego, com ampliação do gasto público nos momentos de crise econômica e de
políticas anticíclicas, baseadas, de alguma forma, em teorias econômicas que focam na
necessidade de atuação do estado com base nas falhas de mercado cedem lugar à novas
práticas econômicas, de redução da participação do Estado na economia, baseado em teorias
econômicas que retomam a idéia de que o gasto público distorce os mecanismos de eficiência
do livre-mercado, gerando ineficiências (Titmuss, 2000).
A expansão do desemprego, característica do fim da chamada era de ouro do
capitalismo na Europa levou à elevação dos gastos públicos com seguro-desemprego e outras
formas de amparo, nos mecanismos anticíclicos automáticos implícitos nos programas de
Seguridade Social. A nova abordagem econômica adotada pelo governo Thatcher
58
pressupunha o incentivo ao livre-mercado, ao empreendedorismo, por meio das privatizações,
corte dos gastos públicos, e elevação dos juros de modo a conter a inflação.
Nesse novo contexto, a provisão pública de benefícios de forma ampla e universal
perde sua razão de ser. Foca-se na noção de que os sistemas de proteção social representam
um gasto ineficiente dos governos, e cresce o compromisso das sociedades com a redução do
gasto púbico em prol de uma alocação mais mercadológica, e, portanto, de acordo com essa
concepção, mais eficiente.
Cabe observar que não é convergente na literatura econômica se essas transformações
representaram, como se alega, o fim do Estado de Bem-Estar social. Autores como Pierson
(2000) realçam que a expansão do gasto social na Europa, até mesmo em tempo de
liberalismo, indica que não houve reformas radicais no sistema de Bem-Estar, mas apenas um
conjunto de transformações que levaram ao aumento proporcional dos benefícios focalizados
em detrimento dos benefícios universais, descentralização das políticas sociais e mudanças
nos critérios de elegibilidade. São portanto transformações nos parâmetros das políticas
públicas, sem entretanto, representar o desmonte das estruturas dessas políticas. Por outro,
lado autores como Clayton e Pontusson (1998) descrevem as mudanças ocorridas ao final da
década de 70 e ao longo da década de 80 como transformações profundas, pois a migração de
um sistema focado na realização de gastos com bens e serviços in kind para um sistema com
mais transferência monetária seria interpretado como um rompimento com a lógica não-
mercantil implícita nas políticas de Bem-Estar. (Lavinas, 2007)
Fica claro, portanto, que as transferências de renda monetária de cunho focalizado
ganham importância nessa conjuntura até mesmo nos países com sistemas de vocação
universalista. O caráter monetário das transferências reforça a lógica de mercado à medida
que permite que a decisão de gastos seja tomada pelos agentes privados. É um reforço à noção
que de as soluções para os problemas sociais e para as situações de pobreza podem ocorrer de
forma individual, cada indivíduo alocando os recursos monetários de que dispõe por meio dos
mecanismos de mercado, segundo racionalidade própria. Não há, portanto, em um benefício
monetário, a concepção de que é necessário transpassar as preferências individuais. (Barr,
2004)
O caráter focalizado dos benefícios garante, nessa visão, que o benefício não
representará um gasto para além do problema que se deseja solucionar, visto que, o mercado
59
proveria o Bem-Estar objetivado em grande parte das situações. Evita, portanto, o peso de ter
que arcar com a provisão de um benefício para aqueles que não necessitam. Os argumentos de
eficiência em defesa da universalização, que focam no papel das externalidades positivas da
provisão de bens e serviços em grau e extensão que o mercado seria incapaz de prover, de
maneira à equalizar oportunidades cedem lugar à argumentos de eficiência do gasto público,
minimizando o efeito crowding-out, ou seja, a substituição da provisão privada, entendida
como mais eficiente, pela provisão pública.
Em termos de justiça social, o valor dado à existência de patamares comuns para o
usufruto de bens e serviços em qualidade equânime cede lugar à noção de que o indivíduo
deve zelar pelo seu bem-estar de maneira individual, conforme suas preferências, não
havendo, portanto, a noção de que os indivíduos podem tomar, de maneira individualizada,
decisões que levem à um sub-ótimo social.
Dadas as restrições fiscais presentes no Brasil da década de 90, conjugadas com o foco
macroeconômico na estabilização dos preços, que tiveram conseqüências negativas nos níveis
de crescimento econômico, do emprego, e da capacidade nacional de realizar gastos públicos;
o país optou por adotar o modelo das transferências monetárias focalizadas, sobre o modelo
do Estado de Bem-Estar Social, apesar da revolução institucional consubstanciada na
Constituição Federal de 1988.
O desenho de um sistema de proteção social pressupõe ampla provisão de bens e
serviços de maneira universal e de qualidade nos setores de saúde, educação, infra-estrutura
urbana, ou ainda a adoção do modelo da Seguridade Social, com benefícios monetários de
cunho não-contributivo, que apresentam elevação dos gastos precisamente em momentos de
baixo-crescimento. Por essa razão, conquanto do ponto de vista constitucional a CF/88
indicasse a entrada do Brasil no conjunto de países a ter uma infra-estrutura em termos de
políticas de bem-estar, esse objetivo não se coordenou com a política orçamentária praticada.
Ao longo da primeira década do século XXI, entretanto, a retomada do crescimento
econômico, promove a retomada do gasto social. Como visto na evolução dos gastos públicos,
expostos na seção 2.1., a elevação do gasto social manteve a lógica do modelo centrado nas
transferências monetárias de renda, de cunho focalizado. É, portanto, fundamental investigar o
papel dessas políticas na efetiva redução da pobreza. Esse será o alvo da próxima seção.
60
III.2. Análise da focalização com dados da PNAD
Conforme visto no capítulo 2, os gastos com assistência social tiveram um
crescimento real de 314% ao longo dos últimos 10 anos, assim como os gastos com
previdência cresceram 91%, crescimento esse que não foi acompanhado por outras
modalidades de bens e serviços públicos in natura.
Para analisar o impacto da expansão dessas políticas na efetividade do combate a
pobreza, a tabela 3 demonstra a quantidade de pobres e indigentes, total e como porcentagem
da população brasileira, considerando, para cada ano, a linha de pobreza praticada pelo
programa Bolsa-Família.
Os dados da tabela 3 indicam a importância da retomada do crescimento econômico e
do gasto social para o conjunto da sociedade brasileira. Em 2001, cerca de 57 milhões de
pessoas se encontravam na situação de pobreza, ou seja, possuíam renda familiar per capita
abaixo de R$ 100,00. Desses, 26 milhões eram indigentes, e viviam com menos de R$ 50,00
per capita. Esses valores representavam no total da população brasileira 33% e 16%
respectivamente.
No decorrer dos 7 anos considerados, principalmente a partir de 2004, o Brasil retoma
o crescimento econômico, crescendo a uma taxa média de 3,6% ao ano, com impactos
positivos no mercado de trabalho. Em 2008, portanto, um outro cenário pode ser analisado. Se
considerados todos os rendimentos, 16% da população se encontra em situação de pobreza, e
7% na situação de indigência. Isso significa que ao longo desse período 27,8 milhões de
pessoas foram capazes de superar a linha de pobreza considerada pelo programa Bolsa-
Família.
61
Tabela 3
Número de Pobres e Indigentes, Antes e Após Transferências
Indigentes 2001 2004 2007 2008
Todos os Rendimentos 26.865.279 15.590.548 15.428.976 12.350.063
Rendimentos do Trabalho e Aposentadorias e pensões 29.143.176 20.698.258 20.592.390 17.773.725
Apenas Rendimentos do Trabalho 47.012.898 38.893.286 39.468.703 36.528.070
Pobres
Todos os Rendimentos 57.246.811 40.395.722 36.322.306 29.497.278
Rendimentos do Trabalho e Aposentadorias e pensões 59.410.723 45.453.053 41.244.408 35.466.179
Apenas Rendimentos do Trabalho 78.058.032 66.598.844 62.961.022 57.101.997
Indigentes 2001 2004 2007 2008
Todos os Rendimentos 16% 9% 8% 7%
Rendimentos do Trabalho, Aposentadorias e Pensões 17% 11% 11% 9%
Apenas Rendimentos do Trabalho 27% 21% 21% 19%
Pobres
Todos os Rendimentos 33% 22% 19% 16%
Rendimentos do Trabalho, Aposentadorias e Pensões 35% 25% 22% 19%
62
Apenas Rendimentos do Trabalho 45% 36% 33% 30%
Fonte: PNADs
Se considerados apenas os rendimentos do trabalho, 45% da população encontrar-se-ia
na pobreza em 2001 e 27% se encontraria na indigência. Isso significa que considerados
exclusivamente os rendimentos do mercado de trabalho, cerca de metade da população não
obteria a qualidade de vida mínima, estabelecida pela linha de pobreza, reflexo de um
mercado de trabalho precário, em uma época de baixo crescimento econômico. Em 2008, um
quadro distinto pode ser observado, considerando exclusivamente os rendimentos do trabalho,
a quantidade de pobres se reduz para 30%. Isso significa que melhorias no mercado de
trabalho, devido à retomada do crescimento econômico foram responsáveis pela remoção de
15% da população, ou seja, 21 milhões de pessoas, da situação de pobreza.
Ainda no ano de 2000 pode ser observada a importância da proteção previdenciária
para reduzir o número de pobres. Em relação à uma situação em que as pessoas contam
exclusivamente com o rendimento do trabalho, 18,6 milhões de pessoas são retiradas de uma
possível situação de pobreza pois são beneficiárias de rendas oriundas de previdência ou de
pensões. Isso significa que essas transferências removeram cerca de 10% da população da
pobreza em 2001. Muito embora os gastos com aposentadorias e pensões tenham apresentado
crescimento ao longo do período, conforme observado no capítulo 2, a porcentagem de
pessoas que são retiradas da pobreza com os referidos benefícios permanece constante.
Isso acontece porque, como observado no capítulo 2, a expansão dos gastos
previdenciários se deu em maior medida pelo aumento do valor dos benefícios, em grande
medida associados ao salário mínimo, do que, pela expansão da quantidade de benefícios
emitidos. A expansão dos benefícios observada se deve ao aumento das pessoas em condição
de se tornarem beneficiárias, tanto pelo aumento populacional quanto pelas mudanças no
padrão demográfico, não representando uma política de expansão da inclusão previdenciária
para as camadas mais pobres, o que reflete na estabilidade da parcela de pobres retirada da
pobreza (Lavinas, 2008).
63
Por fim, se considerados todos os rendimentos aferidos, ou seja, se incluirmos também
as transferências assistenciais, não computadas nas outras modalidades de rendimentos,
vemos que elas foram responsáveis, em 2001, pela remoção de 2,1 milhões de pessoas da
situação de pobreza. Em 2008, devido à criação e expansão do Programa Bolsa-Família, esse
número cresceu para R$ 5,9 milhões de pessoas. Ou seja, em 2008 as transferências
assistenciais foram responsáveis pela remoção de 2% da população brasileira da situação de
pobreza. Isso significa que seu efeito tem sido, dos elementos apontados, o menos eficaz em
termos de redução da pobreza.
Levando em conta que em dezembro de 2008 o PBF pagou benefícios a 10 milhões de
famílias (beneficiando, portanto, número ainda maior de pessoas), cabe analisar o porquê de
apenas 1,5 milhões de famílias terem sua situação de pobreza solucionada, e ainda, por quê,
dada a existência do Programa-Bolsa Família, ainda há, no ano de 2008, 30 milhões de
pessoas na situação de pobreza. Isso se deve, possivelmente, aos fatores descritos a seguir.
O valor pago pelo benefício não garante, via de regra, que a família seja capaz de
cruzar a linha da pobreza, fato que pode ser observado pelo fato de que, embora estejam em
famílias beneficiadas pelos programas de transferência de renda, 15,6 milhões de pessoas
permanecem abaixo da referida linha. Isso significa que o referido benefício não possui
efetividade no sentido de solucionar o problema da pobreza, ainda que compreendida
exclusivamente por sua dimensão monetária, mas tão somente de promover uma redução do
hiato da pobreza, ou seja, da distância que essas famílias se encontram da linha.
A análise dos dados da PNAD revela ainda a existência de severas ineficiências
horizontais, o que interfere na efetividade do programa em relação combate à pobreza. De
acordo com a PNAD 2008, dos 29,3 milhões de pobres, 47% se encontram em famílias que
não recebem rendas de outras fontes além do trabalho e das aposentadorias. Isso significa que
metade do público alvo do Programa Bolsa-Família encontra-se sistematicamente excluído do
programa.
Dados da PNAD apontam ainda para a existência de ineficiências verticais na
focalização do programa. Em 2007, 3 milhões de famílias estariam sendo beneficiárias dos
programas assistenciais do governo, embora não se enquadrem no critério de renda
estabelecido pela linha de pobreza do MDS, o que corresponde a 35% do total dos benefícios
emitidos ao longo desse ano. Esse tipo de evasão, conforme ficará claro na seção seguinte,
64
tipicamente não se constitui de fraudes, posto que essas famílias, embora não satisfaçam o
critério de renda, se analisadas as demais dimensões do bem-estar, possuem padrão de vida
semelhante ao daquelas que o satisfazem e são reconhecidas como pobres.
A elegibilidade ao Programa Bolsa-Família se dá por meio da renda declarada no
instante do cadastramento no CadÚnico. Posteriormente são definidas cotas aos municípios
em função da estimativa do número de famílias na faixa de elegibilidade, utilizando-se dados
do Censo Demográfico realizado em 2000. A maior parte dos países latinos americanos com
programas semelhantes adota indicadores compostos a partir de um conjunto de variáveis
auxiliares como índice de analfabetismo, saneamento básico, posse de bens duráveis, etc. As
regras que pré-determinam o número de benefícios para cada município não são garantia de
que o município os receberá na quantidade efetivamente demandada.
A utilização da renda declarada, devido à elevada taxa de informalidade do mercado
de trabalho, é de difícil verificação, e sujeita as populações a distorções nos mecanismos de
registro e de incentivos adversos. A utilização da RAIS, que registra apenas o trabalho formal,
como base para identificação de possíveis “fraudes” no critério de renda podem funcionar
como desincentivo à formalização, por exemplo, caso seja comprovado que este é o único
mecanismo de que dispõe o Governo Federal para avaliar este critério.
Na prática, o sistema de cadastros adotado no Brasil é de baixo aproveitamento para a
finalidade da avaliação do cumprimento das condicionalidades. Os registros da saúde, da
educação, e da rede de proteção social, de forma geral, apresentam baixo nível de
informatização, o que eleva custos, ou mesmo inviabiliza o acompanhamento da situação
socioeconômica dos indivíduos que circulam por essas esses programas. Recorrentemente o
cancelamento do benefício é o instrumento utilizado pelas prefeituras para garantir a
atualização cadastral na freqüência exigida pelo Ministério do Desenvolvimento Social,
devido à incapacidade prática dos entes públicos de entrar em contato com esses beneficiários
devido à sua característica de exclusão das esferas formais da sociedade.
A estrutura focalizada não apenas gera as ineficiências horizontais observadas, como
também gera dificuldades para que a cobertura dos programas de transferência de renda seja
suficiente. Eles se desenham como um conjunto de gastos discricionários, que não se
configuram como direitos para as populações elegíveis. Por isso, não há garantias de que os
benefícios serão providos na extensão em que as demandas sociais se põem, estando sujeitas
65
às oscilações políticas e orçamentárias. O problema da focalização nas políticas de
transferência de renda de cunho assistencial no Brasil, em função disso, é menos de
ineficiência vertical do que de ineficiência horizontal: a exclusão de parcela significativa da
população-alvo, devido à problemas de cobertura do programa (Lavinas, 2008).
A baixa ineficiência vertical ocorre não por força dos mecanismos de verificação das
condicionalidades, mas devido à existência de mecanismos de auto-focalização inerentes às
políticas de transferência de renda focadas no combate à pobreza extrema. Isto significa que,
devido ao fato de que os indivíduos incorrem em custos para se matricular no programa, como
ao de ser submetidos às filas de cadastramento, e devido ao caráter estigmatizante do
benefício, apenas aqueles em situação de pobreza, compreendida de forma ampla, como
carência em diversas dimensões do bem-estar, mais do que meramente o posicionamento
acima ou abaixo do corte de renda, percebem o valor do benefício como suficiente para
incorrer nesses custos.
Para avaliar as assertivas acima formuladas acerca da focalização dos programas de
transferência de renda assistenciais, a próxima seção irá fornecer um estudo de caso sobre o
Público-Alvo do Programa Bolsa-Família, por meio da análise dos resultados de uma pesquisa
de campo realizada no município de Recife entre beneficiários e não-beneficiários, inscritos
no CadÚnico no mês de setembro de 2007.
III.3. Estudo de caso da população do PBF em recife.
Esta seção tomará como base os resultados preliminares da pesquisa “Medindo o Grau
de Aversão à Desigualdade da População Brasileira Através dos Resultados do Programa
Bolsa-Família” realizada em parceria do Instituto de Economia da UFRJ e da Escola Nacional
de Ciências Estatísticas do IBGE, com apoio da FINEP e do PROSARE. A pesquisa foi feita
a partir de um Survey realizado em Recife junto à população cadastrada no CadÚnico, na
qualidade de público-alvo do programa. O Survey se constituiu de um questionário aplicado a
1364 famílias, uma amostra do CadÚnico, de outubro de 2007 a janeiro de 2008, tendo como
referência o mês de setembro de 2007.
66
Uma análise preliminar das informações do CadÚnico revelou que este cadastro,
devido às suas características, era insuficiente para fornecer a quantidade de informações
necessárias para a elaboração de uma amostra probabilística e para a localização das famílias.
Isto, pois a análise revelou diversos aspectos, como a inexistência de endereços, a
multiplicidade de registros referentes a uma mesma família, entre outras inconsistências que
impediram que fosse adotado um critério de amostragem estratificado entre beneficiários e
não beneficiários. De fato, devido à má qualidade das informações contidas no cadastro, era
impossível diferenciar beneficiários de não-beneficiários do programa. Como observado, a
qualidade do cadastramento é fator fundamental para garantir a eficiência da focalização e da
fiscalização do cumprimento das condicionalidades nesse tipo de política.
Após a realização de cruzamentos com o FOPAG e da realização de checks de
consistência interna, foi constatado que o universo de famílias cadastradas se constituía de
121.007 famílias aptas a integrar o CadÚnico, total que inclui famílias beneficiárias e não
beneficiárias. Foi realizado, por meio de uma amostra aleatória simples, a seleção de 1780
famílias, das quais 416 não puderam ser entrevistadas, resultando em um total de 1364
famílias entrevistadas. O elevado índice de perdas, de 23%, se deve principalmente a
problemas relacionados à informação do endereço contida no CadÚnico. Esse total
representou, entre famílias com informação incompleta de endereço, a não localização da rua
ou do número, cerca de 40% do total de famílias não entrevistadas. As famílias não
localizadas devido à mudança de endereço, dada a elevada mobilidade da população-alvo do
programa, somaram um total de 25% do total. Esses números revelam, novamente, a
dificuldade do cadastro de fornecer informações úteis para a localização e, por conseqüência,
acesso e acompanhamento dessa população.
Cabe observar que o conceito de família adotado pela pesquisa não possui uma
correspondência direta com os conceitos de "família" e "domicílio" usualmente adotados pelo
IBGE. A pesquisa se utilizou de informações prestadas pelas famílias no ato da inscrição, e
não foi possível associar uma família a um único domicílio com as informações do cadastro.
Ao longo do trabalho de campo não era raro encontrar mais de um beneficiário por domicílio,
e os beneficiários não necessariamente eram os responsáveis pela família em questão. Por
essa razão, o conceito adotado pela pesquisa, de "famílias cadastrais", serve a identificar que
se trata das famílias conforme encontram-se no CadÚnico de Recife e não representam o total
de famílias residentes no município de Recife.
67
A tabela 4 pode ser utilizada para analisar as informações sobre a população analisada
no tangente à sua distribuição entre o recebimento, ou não, do benefício do Bolsa-Família, e a
satisfação critério de elegibilidade, que, para o ano de 2007 era mensurado pela linha de R$
120,00 per capita.
Tabela 4
Fonte: Bolsa Família no Recife, IE/UFRJ-ENCE/IBGE, Apoio FINEP/PROSARE, 2007
A tabela 4 revela que 99.983 famílias são beneficiárias do PBF, ou seja, 82% do total
analisado. Das 20.848 famílias que não são beneficiárias do BF, 60% se constituem de
famílias que satisfazem o critério de renda, e, portanto, deveriam ser contempladas pelo
benefício, sendo que 7.896 famílias, 38% das não beneficiárias, encontram-se em condição de
pobreza extrema, ou seja, possuem Renda Familiar Per Capita inferior a R$ 60,00. Isso
significa uma severa ineficiência horizontal, pois indica que a maior parte dos não-
contemplados está sendo excluída não devido ao não cumprimento das elegibilidades, mas
devido à um déficit na cobertura. Em particular mais da metade das famílias excluídas do
programa são precisamente aquelas com maior necessidade, posto que se encontram abaixo
da linha de indigência. Cabe observar ainda que cerca de 19 mil famílias contempladas pelo
programa, 20% do total das famílias contempladas, possuíam Renda Famíliar per Capita
superior à linha de R$ 120,00.
O efeito do programa no combate à pobreza também pode ser verificado na tabela 4.
Apenas 7% das famílias beneficiárias cruzam a linha de pobreza após o recebimento do
benefício. Se considerada a linha de R$ 60,00 per capita, cerca de 10.000 famílias, 11% do
total de beneficiários são retirados da indigência. Para o total das famílias cadastrais,
portanto, o Programa Bolsa-Família remove 6% do universo selecionado da linha de pobreza.
68
O impacto do Bolsa-Família na renda das famílias entrevistadas pode ser observado com
mais detalhe na figura 12, abaixo.
Figura 12
0
60
120
180
240
300
360
0 8.871 17.743 26.614 35.486 44.357 53.229 62.100 70.972 79.843 88.715 97.586 106.458 115.329
Distribuição da Renda Familiar per capita (YFPC) das Famílias Cadastrais, com e sem o benefício do Bolsa-Família - Recife - 2007
TOTAL YFPC TOTAL YFPC s/ BF Linha de Pobreza 1 - R$ 60,00 Linha de Pobreza 2: R$ 120,00
Fonte: Bolsa Família no Recife, IE/UFRJ-ENCE/IBGE, Apoio FINEP/PROSARE, 2007
A figura revela que o maior impacto do PBF é reduzir a porcentagem de pessoas sem
nenhuma fonte de renda. A inexistência do Bolsa-Família faria com que cerca de 27 mil
famílias não tivessem qualquer fonte de renda para prover seu sustento, valor que se reduz
para cerca de 4 mil famílias, se considerada a renda somada ao benefício. À medida que
consideramos faixas maiores de renda, a distância entre ambas as linhas diminui, indicando
que o impacto do programa se dá com maior intensidade na cauda da distribuição de renda.
Os dados fornecidos pelo Survey permitem fazer ainda novas análises da situação de
pobreza dessas populações, e como o bolsa-família efetivamente tem combatido a pobreza,
como pode ser observado na tabela 5. Essa tabela revela que o hiato dos médio das famílias,
medida da distância média que essas famílias se encontram vis-à-vis a linha de pobreza, é de
R$ 79,27 e de R$ 59,15 se consideradas as rendas das famílias beneficiárias antes do BF e das
não beneficiárias, respectivamente, para a linha de R$ 120,00. Isso significa que o valor do
benefício básico é compatível com a distância média que esses se encontram da linha de
69
pobreza, mas o valor destinado aos jovens e a existência, na família, de membros não cobertos
faz com que o efeito per capita do benefício seja bem menor que o suficiente. Após
recebimento dos benefícios, o valor do hiato se reduz em apenas R$ 17,00.
Tabela 5
Fonte: Bolsa Família no Recife, IE/UFRJ-ENCE/IBGE, Apoio FINEP/PROSARE, 2007
Os índices percentuais descritos em P0, P1 e P2, sob a nomenclatura de propoção dos
pobres representam a medida de pobreza de acordo com a métrica de Foster-Greer-Thorbecke.
Esse índice pode ser genericamente descrito pela fórmula a seguir, onde N é o total da
população, H é o número de pobres, z é a linha de pobreza estabelecida, yi é a renda da i-
ésima pessoa.
O parâmetro de sensitividade a mede progressivamente a sensibilidade do índice à
mudanças na distribuição de renda. Para a=0, o índice P0 se torna H/N e fornece a proporção
de pobres. Temos ainda P1 como medida de intensidade da pobreza, que revela o hiato médio
da pobreza sobre o total da população considerada, e ainda P2 como medida mais sensível à
variações nos extremos.
70
A intensidade da pobreza P1 para as famílias não beneficiárias é de 37,77%. A
intensidade da pobreza para as famílias efetivamente beneficiadas passa de 52,71% para
38,52%. Isso significa que as transferências do PBF efetivamente aproximaram ambos os
gruos. Já quanto à linha de indigência, o cenário é diferente: para as famílias não assistidas a
intensidade é 26,26% e a intensidade para as famílias efetivamente beneficiadas passa se
38,21% para 19,61% com o programa. Significa que a intensidade da pobreza seria maior no
grupo que compõe os beneficiários, mas que, com o benefício, o quadro se reverte, e seu
valor se torna menor do que o daqueles beneficiários.
A severidade da pobreza, P2, é mais sensível às transferências de rendas feitas aos
mais pobres. Para o grupo não beneficiário, seu valor é de 30,21%, enquanto para as famílias
efetivamente beneficiadas a severidade passa de 43,02% para 25,74% com o recebimento do
benefício. Já quanto a severidade analisada pela linha de indigência, temos índice de 22,82%
para os não assistidos, com transformação de 33,12% para 11,30% com as transferências do
programa.
Na diminuição da severidade da pobreza, portanto, os resultados observados são os
mais relevantes, em particular em relação à linha de indigência. Isso porque, embora sejam
valores pequenos, em média R$ 19,25 per capita, e portanto não sejam suficientes para
remover as famílias da condição de pobres, eles podem fornecer alívio à intensidade da
pobreza, medida em sua dimensão monetária.
Esses resultados, portanto, esclarecem quais foram os efeitos do Programa Bolsa-
Família no alívio à pobreza compreendida por sua dimensão monetária, e revelam os efeitos
da focalização no tangente à exclusão de uma parcela do público-alvo ao acesso ao benefício.
Entretanto a pesquisa foi capaz de revelar também aspectos da vida dessa população em
relação ao acesso à bens e serviços, em uma perspectiva de Bem-Estar ampliada. Esse será o
alvo de análise da próxima seção.
71
III.4. Bolsa-Família no Recife e as dimensões não monetárias de Bem-Estar
O Survey pode captar diversas dimensões não-monetárias do bem-estar dessas
populações, o que pode ser de vital importância para compreender em que medida o foco em
políticas de transferência de renda, em particular com a focalização praticada, deixa de suprir
as necessidades dos pobres da sociedade brasileira.
Foi avaliada a condição de moradia dos habitantes do Recife que se revelaram aptos a
integrar o CadÚnico. A maior parte das famílias, cerca de 95%, habitava domicílios
permanentes, ou seja, destinados para moradia. O material predominante das paredes era
alvenaria em 94% dos domicílios e em cerca de 90% dos casos o piso era de cimento ou de
“azulejos de cerâmica”. Isso revela que, via de regra, os domicílios onde residiam as famílias
eram construídos de materiais duráveis.
O mesmo quadro positivo não se revela quando se analisa as condições de
saneamento. Cerca de 23% das famílias não dispõe de banheiro no domicílio. Daqueles com
banheiros, pouco mais de 1/3 possuía ligação com a rede coletora de esgoto. A fossa
rudimentar era o método de escoamento utilizado por 37% das famílias, 6% despejavam o
esgoto em vala e 9% realizavam o esgotamento diretamente em rio, lago ou mar. A
precariedade de métodos sanitários é reflexo da ausência de investimento público no setor de
infra-estrutura urbana nas duas últimas décadas como pode ser observado no capítulo 2.
Quando solicitadas a responderem sobre a existência de problemas em suas moradias, foi
relatado elevado índice de respostas afirmativas, em particular no tocante à falta de espaço, à
existência de goteiras e à violência urbana, com mais de 60% em cada um destes itens.
A violência é uma dimensão extremamente presente na vida dessas populações. Mais
da metade das famílias, 56%, revelaram já ter presenciado civis portando armas de fogo nas
ruas, e 61,5% declararam já ter presenciado pessoas consumindo drogas ilícitas publicamente.
Mais da metade, 52% das famílias declararam ter grades e mecanismos de proteção em suas
residências, e 7,3% das famílias já tiveram algum de seus membros assassinados. A situação
de violência alarmante na cidade do recife é fonte de importante deterioração do Bem-Estar
dos pobres e reflexos da insuficiência na prestação da segurança pública de forma ampla.
72
No acesso à escolaridade, a pesquisa aponta que na faixa da escolaridade obrigatória,
de 7 a 16 anos, 3% das crianças não estão na escola. Predomina o ensino público, seja
municipal (56%) ou estadual (36%). Uma parcela reduzida (5%) está matriculada em escolas
particulares. Já na faixa do pré-escolar, 4 a 6 anos, a taxa de não-cobertura é bem maior,
ultrapassando 20% das crianças. Na faixa de 0 a 3 anos, por sua vez, menos de 10% das
crianças têm acesso a uma creche pública e igual percentual freqüenta creches privadas. A
maioria, 80%, não freqüenta creches, o que representa um elemento que dificulta o ingresso e
permanência das mulheres no mercado de trabalho e, portanto, contribui negativamente para o
alívio da pobreza das famílias.
No quesito saúde é marcante a atuação do SUS e da saúde pública de forma geral.
Embora apenas 11% da população tenha alegado que enfrentou problemas graves de saúde,
desse total, 90% foram atendidos, de alguma forma, pela rede pública, sendo que 55% dos
tratamentos foram realizados em hospitais públicos. Dos 10% restantes, metade não
freqüentou qualquer tipo de instituição de saúde, e a outra metade recorreu à saúde privada.
Dos 17% da população que declararam necessitar de medicamentos ou de cuidados especiais,
71% alegaram ter acesso gratuito, seja sempre, ou as vezes, pelo SUS. Apenas 15% alegaram
só ter acesso ao tratamento de saúde quando pagam. A maior parte da população, 58%, por
outro lado, não tem acesso à medicina preventiva, e não realizou nenhum tipo de exame ou
controle de saúde nos 6 meses que antecederam a pesquisa.
Uma dimensão importante da saúde observada em Recife se deu pela atenção
particular que a prefeitura deste município deu para a ampliação da cobertura dos Programas
PSF, e PACS. A cobertura desses programas pode ser observada na figura 13. Ela revela que
46% das famílias entrevistadas tiveram acesso ao PSF e 35% das famílias tiveram acesso ao
PACS. O programa de controle das condições de saúde cobriu 16,6% da população e o
programa de saúde bucal cobriu 10%. Outros programas públicos geridos no âmbito
municipal, entretanto, não chegaram a obter 10% de cobertura na população pobre estudada.
Tal informação revela o baixo grau de comunicabilidade entre o programa Bolsa-
Família as demais políticas sociais. A rede de proteção social, portanto, apresenta, via de
regra baixa cobertura, e a matrícula no CadÚnico não é garantia de que o cidadão irá circular
em outros programas da rede, como deveria ser a boa prática assistencial. Isso revela, mais
uma vez que as políticas públicas de cunho discricionário, focalizadas, e não vinculadas a
direitos, tendem a apresentar patamares insuficientes de cobertura.
73
Figura 13
0,4%
0,7%
0,7%
1,3%
1,5%
2,1%
2,1%
2,9%
3,3%
4,1%
6,9%
8,2%
10,2%
16,6%
35,0%
46,8%
Cestas Básicas
Restaurante Popular
Projetos de Economia Popular e Solidária
Brasil Alfabetizado
Prevenção da Violência Contra a Mulher
Plantec
Suplementação Alimentar para Crianças e Nutrizes
Academia da Cidade
Hipovitaminose A
EJA
Bolsa Escola Municipal
Escola Aberta
Programa Saúde Bucal
Controle de Condições de Saúde
PACS
PSF
Percentual de famílias que participam com freqüência dos seguintes Programas Sociais - Recife - 2007
Fonte: Bolsa Família no Recife, IE/UFRJ-ENCE/IBGE, Apoio FINEP/PROSARE, 2007.
O mercado de trabalho é uma dimensão de extrema vulnerabilidade dessas populações.
Somente 28% da população acima dos 5 anos de idade possui trabalho, como pode ser
observado na tabela 6. Na faixa etária dos 25 aos 59 anos, que se espera a maior taxa de
ocupação, apenas 46,4% da população é ocupada. Do total da população ocupada apenas 23%
são trabalhadores com carteira assinada, mesma proporção de trabalhadores que contribuem
para o Instituto de Previdência. Os trabalhadores sem carteira assinada compõe 22% do total
de ocupados, e os autônomos / trabalhadores por conta própria se constituem de 42% do total
de empregados. A remuneração media do trabalho é inferior ao salário mínimo, cerca de R$
244.
74
Tabela 6
Fonte: Bolsa Família no Recife, IE/UFRJ-ENCE/IBGE, Apoio FINEP/PROSARE, 2007.
Em 57,7% das famílias pesquisadas nenhum membro jamais contribuiu para o INSS e
em 33,9% delas houve contribuição que foi, no entanto, suspensa, de modo que as famílias
protegidas por estarem contribuindo para o Seguro Social é de apenas 7,4%. Apesar disso,
89,7% das famílias consideram muito importante contribuir para o INSS. As principais razões
alegadas para a não contribuição, portanto, são a falta de dinheiro, em 54% das respostas e
não estar trabalhando em 34% das respostas). Isso significa que a existência, em algum grau,
de mínimos não contributivos dados pelo BPC-LOAS não altera a percepção das populações
de que a contribuição é fundamental para garantir o Bem-Estar familiar.
Cabe observar ainda uma informação relevante sobre o perfil etário da população
estudada. As populações idosas, acima de 60 anos, se constituíam de apenas 4,1% do total
estudado. Adultos de 25 a 59 anos compõem 38,7% da população, crianças de 0 a 4 10%, de 5
a 15 somam 30% da população e de 16 aos 24 somam-se 16,7% do total analisado. As
informações do perfil etário revelam que a pobreza na sociedade brasileira não é um
fenômeno ligado à terceira idade. Isso acontece devido aos mecanismos de proteção social
instituídos pela Seguridade Social. A baixa incidência de idosos significa que a proteção à
terceira idade garantida pela união entre aposentadorias contributivas e assistência por meio
do BPC/LOAS efetivamente removeu essas populações da pobreza, visto que e configuram-se
como direitos sociais, deixando déficits de cobertura bem inferiores, e cujo valor estão
75
vinculados ao salário mínimo, portanto superior ao valor do PBF, e suficiente para que seus
beneficiários cruzem a linha da pobreza.
As informações do mercado de trabalho indicam elevada correlação entre precarização
do mercado de trabalho, seja devido ao desemprego ou devido ao subemprego, de caráter
informal, e a pobreza. Isto porque trabalhadores do mercado formal têm garantidos não
apenas o salário mínimo, como também uma série de direitos garantidos pelo INSS como
seguro-desemprego e auxilio-acidente. Isso corrobora a idéia, desenvolvida na seção 2.2. de
que o grande mecanismo de redução da pobreza nos últimos anos tem sido o crescimento
econômico, com conseqüente expansão do mercado de trabalho, em particular o mercado de
trabalho formal.
Permanecem na pobreza, nesse contexto, aqueles indivíduos desempregados, ou
aqueles incapazes de participar do mercado formal de trabalho, portanto de incluir-se nos
programas de transferência de renda ou aqueles incapazes de incluir-se em um dos casos
previstos de assistência. Esses indivíduos encontrarão alívio nas políticas de transferência de
renda focalizadas caso consigam se tornar beneficiários, em um sistema com cobertura ainda
insuficiente, mas este alívio não será suficiente, por si só, para que o indivíduo supere a
pobreza.
76
CONCLUSÃO
As falhas de mercado justificam a atuação do Estado através de políticas públicas, em
particular por meio de políticas sociais. Estas podem ser desenhadas de modo a elevar a
eficiência do sistema econômico e simultaneamente solucionar problemas de justiça social. O
desenho dessas políticas está associado, necessariamente, à interpretação por parte dos Policy-
Makers da medida em que estas falhas de mercado ocorrem da avaliação acerca do impacto
das externalidades positivas da intervenção Estatal e do grau de redistribuição da riqueza
desejado pela sociedade.
A universalização como princípio norteador do desenho de políticas públicas aparece,
no continente europeu, no contexto do Estado de Bem-Estar social, trazendo a idéia da
proteção social por meio da prevenção da pobreza e de suas conseqüências negativas para o
conjunto da sociedade. É, portanto uma visão de que é necessária uma ampla intervenção
estatal garantindo a provisão de bens e serviços, bem como a concessão de direitos sociais de
maneira desvinculada do caráter contributivo nas áreas da previdência e da assistência social,
que viriam a integrar, de forma conjunta e interdependente, a Seguridade Social.
A partir dos finais da década de 70 e na década de 80, em um contexto de estagnação
econômica e aceleração do processo inflacionário, ganha força a idéia de que a intervenção
governamental e, por conseqüência, a substituição dos mecanismos de mercado por
mecanismos de provisão pública gera ineficiências sistêmicas. Ocorrem pressões para a
contenção dos gastos públicos, para a privatização econômica e para o fortalecimento dos
mercados.
Nesse contexto, aumentam os mecanismos de controle e de elegibilidade dos
programas promovidos pelo Estado, na direção contraria ao princípio da universalização caro
ao Estado de Bem-Estar. Aumenta, portanto, a focalização no conjunto dos programas do
sistema de proteção social, o que representa o crescimento da percepção de que os problemas
sociais são localizados e marginais se considerados em comparação com a economia de
mercado em sua integralidade, dado mercados supostamente eficientes. Ganham força, em
relação às políticas de transferência de renda in natura, ou seja, na forma de prestação de
77
serviços públicos, as políticas de transferência de renda na sua forma monetária, que incitam
soluções aos problemas sociais de maneira individualizada e via mercados.
Na America latina e, em particular no Brasil, esse contexto representou a crise do
Estado desenvolvimentista. Ocorreu ao longo da década de 80 a transição do regime militar
para a democracia, com pressões para que esse processo levasse à introdução de políticas
sociais que viessem a zelar pelas populações pobres, que até então desprovida de qualquer
tipo de proteção por parte do Estado. Essas pressões levaram à adoção do princípio da
universalização e do estabelecimento da Seguridade Social na Constituição Federal de 1988,
unificando a saúde, a previdência e a assistência social. Representou, portanto, avanço em
relação às políticas sociais anteriores, visto que as políticas previdenciárias possuíam caráter
exclusivamente contributivo e não eram providas sistematicamente e na escala desejada para
aqueles que dela necessitavam.
A despeito da formalização da Seguridade no contexto da CF/88, o ambiente
econômico e político nacional apontavam para um conjunto de reformas neoliberais. O foco
da política macroeconômica era o controle da inflação e estabilização do balanço de
pagamentos, o que implicou, no tocante ao planejamento das despesas governamentais, a
prática de austeridade fiscal, o que significou a prática de elevados superávits, portanto de
congelamentos ou cortes nos gastos públicos, com impactos na concessão dos direitos sociais.
A década seguinte veio a representar uma alteração nesse quadro, com a estabilização
monetária e da situação externa, retomada do crescimento econômico, e, por conseqüência,
melhoria na situação fiscal do governo. A partir do início da década houve expansão gradual
dos gastos e das receitas do governo federal. A expansão dos gastos não se deu de forma
uniforme, e, como pode ser observado, ocorreu mais incisivamente nas funções da
previdência e da assistência social, indo ao encontro da tendência mundial de valorização de
transferências na forma monetária sob a forma de bens e serviços, mais especificamente de
maneira focalizada.
O caráter universal da Seguridade Social supõe-se ser mantido pela existência dos
regimes não-contributivos de aposentadoria rural e da existência dos benefícios assistenciais
do BPC para famílias de baixa renda com idosos ou deficientes, além dos benefícios de cunho
contributivo para aqueles que participam ou participaram do mercado formal de trabalho.
78
Famílias que entram nessas categorias, portanto, gozam de direito à uma renda mínima,
vinculada ao salário mínimo, em expansão, e portanto obtém proteção contra a pobreza.
Cabe observar que essa estrutura exclui um grande contingente de pessoas que,
incapazes de acessar o mercado de trabalho formal, e na ausência de qualquer outra forma de
proteção social em sua dimensão monetária, o que é agravado por níveis precários de provisão
de serviços públicos, permanecem em situação de pobreza. Para lidar com esse problema o
Governo Federal incentiva iniciativas locais na criação de programas de transferência de
renda focalizados até que, por fim, regulamenta o Programa Bolsa-Família, que viria a
unificá-los. O Programa vem associado à idéia de garantia de uma renda mínima que
permitiria aos cidadãos a superação da condição de pobreza.
Apesar de ter cumprido a meta de cobertura de 12 milhões de benefícios, proposta na
ocasião de sua criação, em 2003, o Programa Bolsa-Família não atinge uma parcela
significativa do público-alvo. Em 2008 dados da PNAD revelam que 48% dos pobres,
considerados de acordo com a linha de corte do Programa Bolsa-Família, permanecem sem
nenhum tipo de transferência de renda do governo. Isso significa que há fortes ineficiências
horizontais que faz com que essas populações permaneçam excluídas do benefício, portanto,
excluídas de qualquer alívio a pobreza, havendo, portanto, déficit na cobertura do programa.
Informações da PNAD revelam ainda que o valor do benefício é insuficiente para
garantir que as famílias beneficiárias superem a condição de pobreza, e que, apesar da
redução expressiva do número de pobres observada no período, isso se deve à melhorias no
mercado de trabalho, posto que apenas 2% das pessoas são removidas da pobreza por meio do
recebimento de transferências assistenciais.
O Survey realizado em Recife em famílias cadastradas no CadÚnico, portanto aptas a
receber o benefício do Bolsa-Família, revela um quadro análogo. Um total de 12.420 famílias,
10% do universo observado satisfazem o critério de elegibilidade e estão inscritas no
CadÚnico, entretanto não recebem o benefício por circunstâncias alheias ao seu controle. De
igual maneira, 19.518 famílias recebem o benefício embora encontrem-se, na prática, acima
da linha de elegibilidade estabelecida pelo Ministério do Desenvolvimento Social. A análise
dessa população revela, entretanto, que as ineficiências verticais são menos problemáticas,
posto que essas famílias compartilham importantes características com aquelas na faixa de
79
elegibilidade como inserção precária no mercado de trabalho. O déficit na cobertura é uma
característica inerente à estrutura dessa modalidade de benefício, na medida em que não se
configuram como um direito e estão sujeitas as restrições orçamentárias bem como às
ineficiências dos mecanismos de controle.
A principal contribuição dessa modalidade de benefício foi, portanto, não a solução
das vulnerabilidades que inserem as pessoas na pobreza, ou a instrumentalização para que a
pessoa tome medidas suficientes para a solução dessa situação, mas somente fornecer um
alívio da severidade da pobreza, principalmente se considerada a linha de pobreza extrema. O
principal determinante observado para que essas populações se encontrem na condição de
pobres é a incapacidade de se inserir no mercado de trabalho formal, o que condiz com a
afirmativa de que é o crescimento econômico o maior responsável pela redução da pobreza
recente.
O patamar de acesso dessas populações a outras formas de serviços públicos como
infra-estrutura urbana e segurança pública se revela ainda insuficiente, assim como é
insuficiente o acesso dessas populações a outros programas focalizados do governo, de cunho
fragmentado e de baixa cobertura. A avaliação da cobertura revela um quadro distinto quando
analisados a prestação de serviços reconhecidos como de prestação universal como saúde e
educação, posto que mesmo essas populações pobres declararam ter acesso a esses bens.
A monografia aponta, portanto, para uma necessidade de pensar o sistema de proteção
social levando-se em conta a prática de políticas que efetivamente contribuam para a redução
das desigualdades sociais e representem alívio permanente da situação de pobreza. Isso se dá
por meio de uma política macroeconômica de estimulo ao crescimento e seus impactos
positivos no mercado de trabalho bem como, no campo das políticas sociais, na ampliação dos
serviços e das transferências universais, em particular aqueles que se constituam como
direitos, pois passam a representar desta maneira, patamares comuns aos quais todos
individuos têm acesso e abaixo dos quais é impossível cair, representando uma segurança
frente às oscilações do mercado e interrompendo, por meio da prevenção, o ciclo de
reprodução da pobreza.
80
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