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More and more, the greatest Hollywood productions have been utilizing 3-D animation resources as a foundation to ensure bigger box offices revenues, attracting a major audience into the theatres. Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical possibilities of such technologies, a great part of the North American movies still uses stereoscopy in a limited way: for example, seeking the impact of “throwing things” into the spectator’s face. Only few productions have perceived and used the filming technology to explore the tri-dimensionality as texture, giving the viewers a better immersion into the story, offering greater emotional involvement and identification with the narrative. “The invention of Hugo Cabret” (2011), from American director Martin Scorsese, is one of these few examples, renewing the film-making language through the insertion of visual elements and textures that have made the narrative more exciting and intriguing to the spectator. At the same time, the movie pays tribute to the Cinema and to one of the great inventors and pioneer in the global filmmaking, George Méliès. The proposed article investigates and analyses what stereoscopy added to – and how it improved – the referred movie’s language to construct a more complex narrative, thus turning the movie into a reference for future cinema productions.Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès, Martins Scorsese, stereoscopy.
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"A Invenção de Hugo Cabret" e a contribuição cinema tográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia
Claudio Yutaka Suetu
Universidade Anhembi Morumbi, Brasil
Ricardo Tsutomu Matsuzawa
Universidade Anhembi Morumbi, Brasil
Thais Saraiva Ramos
Universidade Anhembi Morumbi, Brasil
Abstract
More and more, the greatest Hollywood productions
have been utilizing 3-D animation resources as a
foundation to ensure bigger box offices revenues,
attracting a major audience into the theatres.
Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical
possibilities of such technologies, a great part of the
North American movies still uses stereoscopy in a
limited way: for example, seeking the impact of
“throwing things” into the spectator’s face. Only few
productions have perceived and used the filming
technology to explore the tri-dimensionality as texture,
giving the viewers a better immersion into the story,
offering greater emotional involvement and
identification with the narrative. “The invention of Hugo
Cabret” (2011), from American director Martin
Scorsese, is one of these few examples, renewing the
film-making language through the insertion of visual
elements and textures that have made the narrative
more exciting and intriguing to the spectator. At the
same time, the movie pays tribute to the Cinema and
to one of the great inventors and pioneer in the global
filmmaking, George Méliès. The proposed article
investigates and analyses what stereoscopy added to
– and how it improved – the referred movie’s language
to construct a more complex narrative, thus turning the
movie into a reference for future cinema productions.
Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès,
Martins Scorsese, stereoscopy.
Introdução
No final do século XIX, o Cinema surge em um
momento de extrema expansão tecnológica no campo
audiovisual, em uma época que seria reconhecida por
Walter Benjamin como a “Era da Reprodutibilidade
Técnica” da obra de arte. Cenas do cotidiano, como a
chegada do trem à estação ou a saída de operários de
uma fábrica, filmadas pelos irmãos Lumière, se
transformariam em objetos de espetáculo: a realidade
e a vida comum desdobravam-se diante dos olhos do
público. Com o passar dos anos e aprimoramento da
tecnologia, a arte da espetacularização ganha novos
contornos e elementos que apresentam um realismo
(ainda que fantasioso) nas telas e que acaba
influenciando a nossa própria noção de real nas
décadas seguintes. O lançamento de “Interpretação
dos sonhos”, em 1900, por Sigmund Freud ajudou a
desenhar, um mundo que está em expansão1, em que
a comunicação assume um papel importante e que
começa a entender melhor o consciente individual e
coletivo da sociedade. A análise de Freud possibilita,
por exemplo, uma relação mais ampla entre o cinema
e a experiência onírica, tão contida nos filmes de
fantasia. Experiências tais que Georges Méliès vai
transpor ao apresentar histórias que, até então,
apenas poderiam ser imaginadas (como no filme
“Viagem à Lua”).
Muito já foi dito e escrito sobre a importância do
autor/diretor Georges Méliès para a produção
audiovisual mundial. Méliès é tido por muitos como um
dos grandes pais do cinema, juntamente com os
irmãos Lumière, não apenas pelas contribuições que
fez registrando cenas do cotidiano, mas também pelo
uso da câmera de cinema como uma nova forma de
construir truques de mágica. E também serviu de
inspiração para o livro “A Invenção de Hugo Cabret”
que foi adaptado para o cinema e dirigido pelo norte-
americano Martin Scorsese. O filme é uma
homenagem à figura de Méliès e à produção do
chamado primeiro cinema2 em todas as camadas
possíveis de análise, seja na escolha do tema e
personagens, até o uso das tecnologias
estereoscópicas que foram aplicadas de uma forma
pioneira (se comparada a outras utilizações feitas até
então).
A proposta do artigo é analisar como
determinadas tecnologias podem operar certas
mudanças na linguagem audiovisual. Começaremos
com um pequeno panorama acerca das produções de
Georges Méliès que, apesar da tecnologia limitada,
tornou possível as primeiras experiências sistemáticas
de manipulação da película, até a chegada do filme de
Scorsese que, foi muito influenciado por essa forma de
produção. Partiremos do referencial teórico dos
autores como Antônio Costa, David Bordwell, entre
outros, para embasar a análise e discussão.
Georges Méliès e seus filmes fantásticos
As primeiras produções audiovisuais da História
trouxeram para o público uma nova percepção do
espaço urbano e, consequentemente, do mundo. O
cinema, ao transformar a vida pública em espetáculo,
agarra para si a autenticidade em reproduzir a
realidade e ganha um papel de promotor da releitura
histórica, simulador de situações que podem ser
tomadas como verdadeiras graças à confusão entre o
simulacro e o real. Segundo o autor Antônio Costa em
seu livro Compreender o cinema,
A ‘magia’ do cinema determinou formas de fruição espetaculares que recobriram os aspectos mais comuns da vida de cada dia, fundamentando-se no fascínio pelas técnicas de reprodução e de animação das imagens. (COSTA, 2003, 49).
Esses novos significados puderam ser
explorados por meio de uma lógica de máxima
extensão da magia tecnológica e os poderes da cena.
Mesmo que no começo a estética dos filmes se
assemelhassem às produções teatrais (a cena se
desenrola em um plano fixo, geral, que mostra todo o
cenário e os personagens se movimentam dentro
desse quadro), as produções do diretor francês
Georges Méliès já traziam um trabalho de perspectiva
que, aliado à interpretação dos atores, ajudava a
construir um senso de espaço maior que uma peça
teatral poderia fazer no palco.
Méliès fez carreira como mágico e ilusionista, foi
proprietário do Théâtre Robert-Houdin que manteve
aberto com suas apresentações e truques até que, em
1895, ficou fascinado por um outro tipo de
apresentação: a exibição de imagens reais em
movimento. Aos 34 anos de idade adquiriu uma
câmera de cinema e começou, como muitos outros na
mesma época, a registrar em película o que via.
Devido a um problema de funcionamento da câmera
em uma de suas produções, Méliès notou um "pulo"
em uma das imagens que havia captado e, por conta
desse erro, percebeu a vocação desse novo aparato
tecnológico para a criação de ilusão e da fantasia.
Durante 17 anos, chegou a produzir cerca de 500
filmes explorando e criando efeitos especiais à partir
das trucagens3 que fazia com a câmera, esses efeitos
equivalentes aos truques de magia que desenvolvera
anteriormente nos palcos do teatro o levaram a ser
conhecido como um dos maiores cineastas do mundo
e o pai dos efeitos especiais modernos. O filme mais
conhecido de sua carreira é "Viagem à Lua"4, de 1902
(Figura 01).
Figura 01 – O Homem chega a lua usando uma bala de canhão, tecnologia disponível em 1902 que foi reaproveitada por Méliès para tornar possível essa viagem insólita.
Nessa obra ele explora os sonhos e desejos da
humanidade e o esforço em criar uma missão de
exploração na Lua, para isso, produziu um cenário que
rompia com as barreiras visuais da imagem 2D e,
através da posição dos objetos, pinturas e outros
elementos de cena, imprimiu perspectiva e textura
dentro do filme apresentando as ações em camadas
(Figura 02), gerando uma outra atmosfera para a mise-
en-scène.
Figura 02 - Cenário do filme Viagem à Lua, em que os astrônomos observam a cidade e suas fábricas a pleno vapor. Tanto a fumaça quanto as casas foram produzidas com cenários de madeira e pinturas em perspectiva para criar a ilusão de profundidade.
Para o teórico David Bordwell, a construção
estilística de filmagem é considerada como um dos
pontos base da mise-en-scène:
A mise-en-scène cinematográfica usa um repertório rico de técnicas que se afinam com a análise poética. Não se trata de elaborar um árido tratado de poética do filme, e, sim, de aprofundar a experiência da recepção do filme para o cinéfilo interessado. (BORDWELL, 2008, 31)
A mise-en-scène, corresponde diretamente à
construção narrativa, mas para Bordwell, vai além dos
aspectos da filmagem, ela também se relaciona com
os resultados na tela, ou seja, a maneira como os
atores entram na composição do quadro e o modo
como a ação se desenrola no fluxo temporal
(BORDWELL, 2008). Méliès se aproveita do espaço
fílmico para construir um espaço de sonhos e
possibilidades, também nos mostra como a tecnologia,
aliada à criatividade pode nos levar a lugares que
antes não eram possíveis ou não explorados.
Alguns anos mais tarde, com a evolução das
tecnologias de efeitos especiais foi possível retomar os
efeitos mecânicos que Méliès havia iniciado, um dos
diretores que vai aproveitar a tecnologia 3D, aliada à
estereoscopia, para emular as camadas que Méliès
produziu em alguns de seus curtas é o diretor
americano Martin Scorsese.
Martin Scorsese
O diretor Martin Scorsese nasceu em Nova York
(1948), descendente de italianos, pensava em ser
padre mas escolheu estudar cinema na New York
University Film School. Traços que definem o seu
estilo: uma perspectiva católica em sua obra e um
conhecimento enciclopédico sobre o cinema. Na
universidade estudou a estética, a história e os
processos de produção cinematográficos e antes de
se estabelecer como um diretor dos mais importantes
de sua geração, trilhou uma carreira de formação em
diversos funções da confecção de um filme. Possui
uma filmografia consistente que transitou por diversos
gêneros: documentário, musical, comédia e filmes
sobre a máfia. Começa sua carreira nos anos de 1960,
participando do considerado American Art Film,
momento em que os cineastas se distanciavam do
classicismo/mainstream para dialogar com o
modernismo europeu. “Do mesmo modo que os
cineastas da Nouvelle Vague, esses diretores cinéfilos
produzem filmes pessoais e altamente
autoconscientes” (BORDWELL, THOMPSON, 2013,
723).
Scorsese surge como realizador em um
momento único de transição do cinema americano em
seu modo de concepção nas histórias a serem
contadas e mudanças dos sistemas de produção,
pouco antes do "boom" da ascensão dos blockbusters.
Mas em termos de transformação de linguagem
referente à evolução tecnológica em sua carreira, um
aspecto relevante seria a transição do sistema
analógico para o digital, em que destaca uma evolução
no efeitos especiais (permitindo um mundo mais
onírico e fantasioso em detrimento do realismo), o que
possibilita uma melhora técnica e a popularização da
estereoscopia. Segundo uma entrevista do cineasta
para o pesquisador Tirard, "os cineastas sentem que é
preciso renovar e fazer o que podem para descobrir
uma nova linguagem a partir desta gramática (o
cinema)” (TIRARD, 2006, 22).
O filme "A invenção de Hugo Cabret" é a sua
primeira experiência com a técnica da estereoscopia,
ou mercadologicamente classificado como "filme 3D",
em entrevista ao jornalista Pedro Caiado o diretor
afirma gostar muito da técnica e sua vontade de
experimentar as possibilidades formais desta
ferramenta:
Eu adoro o 3D. Fiquei muito animado, porque gosto de trabalhar com profundidade. A minha maior preocupação neste caso foi como usar o 3D na narrativa do filme. Como você utiliza a profundidade? Conheço pessoas que não conseguem ver profundidade, mas eu consigo, e sempre gostei. Enquanto converso com você agora, vejo outro prédio, algumas árvores e consigo perceber tudo isso em profundidade. Também gosto de movimento em profundidade. É a minha energia- e o que eu sinto. (CAIADO, 2012)
Embora a técnica estereoscópica seja
bastante antiga, somente a partir da tecnologia digital
é que ela se estabelece na produção cinematográfica.
Scorsese tem um novo momento em sua carreira que
o aproxima de Méliès, no desafio de criar uma nova
possibilidade formal, fugindo da espetacularização do
efeito para redefinir e construir possibilidades de
linguagem com a incorporação da técnica.
A estereoscopia e o Cinema
A origem semântica da palavra “estereoscopia”
vem da justaposição de duas raízes gregas: a palavra
“stereos” que significa “firme”, ou “sólido” e o termo
“skopeō”, relativo à visão, ao olhar. Desse modo,
estereoscopia é a forma de olhar aquilo que é sólido,
tridimensional, tal como é no mundo real. Nosso
sistema visual trabalha de forma estereoscópica, na
medida em que aquilo que o cérebro capta é, na
verdade, a junção de duas imagens, obtidas por cada
um dos olhos. O efeito disso, somado à percepção em
movimento, é a noção mais clara da profundidade.
Desde a Antiguidade houve certo interesse em
representar o mundo de forma cada vez mais fiel,
quando os gregos se aventuraram nos primeiros
estudos da perspectiva linear. Mas somente no
Renascimento, o escultor Filippo Brunelleschi define o
conceito de ponto de fuga, técnica fundamental para o
surgimento das primeiras pinturas em perspectiva
durante a Renascença. O primeiro experimento
usando essa técnica foi uma reprodução da fachada
da igreja San Giovanni di Firenze (Batistério de
Florença), em 1415. Para realizar essa tarefa,
Brunelleschi pintou a fachada do batistério em um
espelho, sobre a imagem refletida. Para conferir o
resultado, ele fez um pequeno furo no centro desse
espelho e colocou um segundo espelho na frente, para
ver a própria obra. Assim, teve a oportunidade de
comparar o resultado da pintura com a imagem real
(Figura 03).
Figura 03: Giovanni Brunneleschi conferindo a correspondência exata de sua pintura e a imagem real, por meio de um furo no centro da imagem.
Após a popularização do uso da perspectiva
entre os pintores renascentistas, havia ainda o desejo
de tornar as imagens ainda mais realistas. Muitas
pinturas pareciam “saltar da tela”, porém foi apenas
em 1832 que Sir Charles Wheatstone descreveu um
processo chamado stereopsis, que tratava da ilusão
de tridimensionalidade obtida por meio de imagens
captadas paralelamente e exibidas separadamente
para cada um dos olhos. Em 1840, Sir. David Brewster
criou o estereoscópio, aparelho que permitia ver
imagens como objetos sólidos (Figuras 04 e 05). Para
isso, o inventor usou duas imagens captadas por
câmeras paralelas e próximas. Ao olhar pelo aparelho
era possível enxergar com cada olho uma imagem
ligeiramente diferente da outra, criando o efeito de
profundidade similar àquele que temos no mundo real.
Figura 04: Modelo de estereoscópio criado por Sir David Brewster para a visualização em três dimensões.
Figura 05: Exemplo de imagem estereoscópica do século XIX.
A novidade virou uma febre, mas não durou
muito tempo. Há várias teorias que tentam explicar o
declínio da estereoscopia ainda no século XIX, como a
associação dela à pornografia, que causava cada vez
mais constrangimento para quem possuísse um
desses aparelhos. De acordo com Victa de Carvalho:
Ainda no século XIX, o estereoscópio conhece grande popularidade a partir da intensa disseminação de pornografia. A ilusão dos volumes e a sensação de presença provocada pela experiência estereoscópica teriam aberto caminho para um mercado clandestino de estereoscopias pornográficas. É preciso aqui enfatizar o caráter ilusionístico da técnica, já que em nenhum momento o observador poderia confundir a imagem com a realidade. Alguns autores especularam que a associação da estereoscopia à pornografia teria sido uma das principais causas de sua degeneração como prática de consumo (CARVALHO, 2006, p.10).
Desde o início do cinema os pioneiros e
inventores demonstravam interesse em aplicar o
conhecimento da estereoscopia às imagens em
movimento. William Friese-Greene, os irmãos Lumière,
Thomas Edison e Edwin Porter foram alguns dos que
empreenderam pesquisas nessa direção. Segundo
Stefhanie Piovezan, no início dos anos de 1920:
As incursões em 3D já possuíam elementos típicos do cinema, apesar de integrarem espetáculos com atrações diversas, como ocorria no período anterior. Exemplo disso foi o Teleview, nome dado ao programa de cerca de 85 minutos criado em janeiro de 1921 e composto por imagens estereoscópicas, um pequeno documentário e o filme M.A.R.S., que utilizava um processo também intitulado de Teleview para simular a terceira dimensão (PIOVEZAN, 2012).
Outras tecnologias continuaram a ser
exploradas dos anos de 1920 a 1940, mas é somente
na década seguinte que o cinema estereoscópico
alcança um grau elevado de popularidade no Reino
Unido, com o Telekinema (Figura 06) e nos Estados
Unidos, com o filme “Bwana Devil”, de 1952. Alguns
filmes foram produzidos, inspirados por esses
sucessos, mas essa fase dourada durou pouco. Os
altos custos envolvidos na produção e projeção de
filmes estereoscópicos, somados às diversas
mudanças no cinema norte-americano, como o
surgimento da TV e a crescente rejeição do cinema
por parte da geração dos babies boomers acabou
inviabilizando investimentos nessa área nos anos
seguintes.
Figura 06: Público utilizando óculos para projeção estereoscópica em Telekinema, Londres, em 1951.
Apenas em 1981 a estereoscopia entra em
pauta nos cinemas, novamente. Dessa vez com o
filme “Comin’at Ya!”, de Ferdinando Baldi, seguido de
“Sexta-Feira 13 – Parte III” (1982) e “Tubarão 3D”
(1983). Com a consolidação do IMAX, após os anos
de1970, surge a junção da estereoscopia e do cinema
imersivo, com uma tela mais ampla, permitindo novos
efeitos de profundidade.
É interessante notar que durante muitos anos o
principal uso da estereoscopia restringia-se a lançar
objetos e personagens na direção do espectador,
como uma forma de exibir o potencial da técnica.
Apenas após os anos 2000 é que os diretores e
demais realizadores voltam-se para o potencial da
profundidade de campo no filme estereoscópico.
Destacam-se nesse contexto, filmes e animações
como “Expresso Polar” (2005), “Coraline” (2009),
“Alice no País das Maravilhas” (2010) e a “Invenção de
Hugo Cabret” (2011), que vai explorar ainda mais
intensamente esse novo e ao mesmo tempo antigo
elemento narrativo que é a ilusão da realidade sólida
por meio da estereoscopia.
Análise de Hugo Cabret
O filme “A Invenção de Hugo Cabret” remete a
fragmentos de uma história real, a vida de Georges
Mèliès, através do olhar infantil. Esse é o mesmo olhar
que o cineasta coloca sobre os cenários e a
composição, nos aproximando desse universo de faz-
de-conta. O mundo do sonho e da fantasia é
constantemente entremeado por camadas de neve,
fumaça e poeira, criando uma dispersão suave na
iluminação. As imagens da cidade de Paris são como
miniaturas estilizadas, com um efeito similar ao das
lentes tilt-shift, que fazem imagens e objetos reais se
parecerem com brinquedos (Figuras 07 e 08).
Figura 07: imagem de Paris fotografada com uma lente tilt-shift.
Figura 08: Quadro do filme “A Invenção de Hugo Cabret” (2011)
Os cenários, lembram caixas de brinquedos, em
especial as ambientações dentro da estação de trem.
O efeito tridimensional dá essa impressão de “caixa”
que contém as personagens e os objetos. Scorsese
sabe representar muito bem a profundidade e faz uso
do potencial estereoscopia para acrescentar camadas
distantes do espectador. No filme, não se vê um objeto
“saltar” da tela, como é usual em produções que
utilizam essa técnica. O que notamos é o uso da
profundidade de campo seguindo o princípio
renascentista5 (Figuras 09 e 10).
Figura 09: pintura renascentista “Escola de Athenas”, de Raphael (1511).
Figura 10: casa do professor René Tabard, em “A Invenção de Hugo Cabret”. Este quadro mostra como o diretor trabalha o conceito de múltiplas camadas, preparadas para o universo tridimensional.
Podemos também fazer uma referência à
construção do espaço tridimensional no filme “Cidadão
Kane”, de Orson Welles, em 1940. Na época o Diretor
de Fotografia, Gregg Toland, experimentou o uso das
lentes pancromáticas, com o intuito de aproveitar o
máximo de foco possível na profundidade de campo
(Figura 11). Esse uso foi considerado inovador e o
filme é reconhecido até hoje por essa inovação no uso
de imagens em perspectiva. Do mesmo modo, cerca
de sessenta anos depois, Scorsese recupera esse
trabalho experimental com a profundidade de campo,
só que no ambiente estereoscópico. Ele arrisca abrir
mão do maior trunfo dos filmes “3D”, que é
aproximação de um elemento da cena em direção ao
público. Sua aposta é criar um universo mais imersivo,
envolvendo o público em uma espécie de “caixa de
imagens”.
Figura 11: cena do filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles (1940)
O uso da estereoscopia em alguns momentos
se afasta de uma tentativa realista e cria a
tridimensionalidade com uma "certa artificialidade"
que se aproxima a construção cenográfica de Méliès
em seus filmes, mas sem deixar de causar certa
sensação de imersão ao espectador. Méliès, em suas
produções, construía o cenário em camadas pensando
em uma forma melhor de movimentação dos atores
em cena, remetendo aos palcos do teatro e à quarta
parede, na qual o público fechava essa "caixa de
exibição". No filme "Hugo Cabret", o diretor escolhe
quando resgata filmes para citar internamente na
narrativa não aplicar a estereoscopia, uma opção que
talvez busque conservar e manter uma reverência ao
sagrado da obra original, apenas em trechos de filmes
Méliès . Scorsese, em suas referências e
reapropriações que fazem homenagem ao autor,
utiliza o efeito, talvez por se colocar como ele na
posição de ilusionista com as possibilidades de
atualizar a obra de um autor que tem como marca
autoral os efeitos de ilusão. Podemos perceber essa
reapropriação no momento em que Scorsese usa do
flashback para ilustrar a forma como Méliès produzia
seus filmes, como é o caso da cena do filme de 1903,
"O Reino das Fadas" (Figura 12).
Figura 12 - Momento da gravação do filme "O Reino das Fadas" segundo o filme "A Invenção de Hugo Cabret".
Se comparada a cena original da produção de
Méliès, podemos perceber não só a fidelidade de
detalhes e posições, mas também a quantidade de
camadas e sobreposições das informações visuais
(Figura 13).
Figura 13 - Cena do filme original de 1898.
Scorsese também utiliza a estereoscopia como
efeito tridimensional de volume, prática comum
utilizada pelos filmes atuais com o recurso "3D", mas
com uma apropriação mais estética e poética como
nos papeis que voam da caixa com desenhos e
croquis de Méliès. Desenhos bidimensionais flanam na
tela alguns com o efeito de movimento de um
taumatrópio. Na busca da aplicação de uma nova
forma de estereoscopia em sua obra que resgata e
apresenta uma história que tem como um dos
personagens o próprio cinema. O diretor em suas
cenas retoma técnicas do pré-cinema: flip-book, os
pequenos livros animados; um taumatrópio, o pequeno
disco de papelão preso a um filme, a lanterna mágica
e o stop-motion.
Conclusão
"A Invenção de Hugo Cabret" é uma obra
metalinguística que usa o próprio cinema para
apresentar os primeiros filmes e a evolução da
linguagem cinematográfica. A obra se passa em 1931
e marca a evolução das estratégias narrativas
clássicas, seja nas referências mostradas durante a
exibição6 do filme, nas homenagens prestadas a
Georges Méliès e menção aos Irmãos Lumière, ou nas
ações reproduzidas no contexto do filme.
Outras relações e menções são feitas no
decorrer da obra sempre referenciando o tempo e sua
passagem. O tempo fílmico se relaciona com as
engrenagens e as máquinas - presentes nas partes do
relógio, os trens que chegam à estação, o autômato e
a câmera de cinema - isso nos leva a perceber e a
lembrar da evolução do homem e a das cidades, das
tecnologias que antes eram produzidas de forma
artesanal e agora são recriadas por meio das
máquinas.
O ponto de vista de Hugo estende-se à própria
linguagem do filme: uma criança que mora em uma
estação de trem e tem como companhia as memórias
com o pai, as engrenagens, relógios e seu autômato
de estimação. Nesse sentido, a cidade toda é uma
grande máquina em perfeito movimento. A produção
da obra cinematográfica faz parte desse trabalho
maquinal, mas ao mesmo tempo não perde a sua
essência artesanal. O filme retrata a transição de um
cinema realizado pelos primeiros autores até o sistema
produtivo e industrial cinematográfico após o final da
era de Méliès. Scorsese busca de forma nostálgica
criar uma narrativa metalinguística com um final feliz
em que o pai dos efeitos especiais, redescoberto,
recebe aplausos em seu antigo teatro.
Scorsese arrisca-se e vai na contramão daquilo
que era consagrado até então nos filmes
estereoscópicos mainstream. Ao investir na
profundidade, aproxima-se da pintura renascentista,
referenciando Orson Welles e Gregg Toland. Seu
Hugo Cabret emaranha-se em camadas vívidas de
cores quentes e frias, traços bem marcados de
edifícios e uma cidade que se estende para além dos
planos convencionais do cinema. A Invenção de Hugo
Cabret é a caixa de surpresas tridimensional de
Scorsese, criada em homenagem ao velho vendedor
de brinquedos e mágico brincalhão, Georges Méliès.
Referências
Livros
BORDWELL, David. 2008. Figuras traçadas na luz - A encenação no cinema. Campinas: Editora Papirus.
BORDWELL, David and THOMPSON, Kristin. 2013. A arte do cinema - uma Introdução. Campinas: Editora Unicamp.
CARRINGER, Robert L. 1997. Cidadão Kane. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
COSTA, Antônio. 2003. Compreender o cinema. São Paulo: Editora Globo.
MASCARELLO, Fernando, org. 2006. História do cinema mundial 2006. Campinas: Editora Papirus.
SELZNICK, Brian. 2007. A invenção de Hugo Cabret. São Paulo: Edições SM.
TIRARD, Laurent. 2006. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Artigos em Revista
ADAMS, Gavin. 2003. “Um balanço bibliográfico e de fontes da estereoscopia”. In: Anais do Museu Paulista. V. 6/7: 207-225
EDGERTON, Samuel. 2006. “O espelho de Brunelleschi, a janela de Alberti e o ‘tubo’ de Galileu”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13: 151-79.
Texto em Linha
BENJAMIN, Walter. 1955. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Coleção de textos: http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf. Acedido em 11 de abril de 2015.
CAIADO, Pedro. 2012. Martin Scorsese fala de seu filme 'A invenção de Hugo Cabret'. Jornal Estado de São Paulo: http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,martin-scorsese-fala-de-seu-filme-a-invencao-de-hugo-cabret,835422. Acedido em 11 de abril de 2015.
FREUD, Sigmund. 1900. A interpretação dos sonhos. Universia Literatura: http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/A_interpretacao_dos_sonhos_de_sigmund_freud.pdf. Acedido em 11 de abril de 2015.
Tese/Dissertação
PIOVEZAN, Stefhanie. 2012. Aspectos históricos e implicações da utilização do efeito 3D no Cinema: o caso de A Invenção de Hugo Cabret. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Universidade Estadual Paulista – UNESP.
Conferência
CARVALHO, Victa de. 2006. “Pontos de vista: modernidade e visão estereoscópica”. Comunicação apresentada no IV Encontro Nacional de História da Mídia. 30 de maio a 02 de junho.
Filmografia
A invenção de Hugo Cabret. 2011. De Martin Scorsese. Estados Unidos. Paramount Pictures. DVD.
Cidadão Kane. 1941. De Orson Welles. Estados Unidos. Warner Home Vídeo. DVD.
Sessão Méliès – Quinze filmes de Georges Mèliès. 1997. De Georges Mèliès. França. Cult Classic. DVD.
1 Antônio Costa define os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX como Belle Époque (a Bela Época em francês), que segundo ele "foram igualmente anos de grande progresso científico, tecnológico e social, envolvendo inúmeras contradições que não tardaram a explodir" (COSTA, 2003, 46).
2 Segundo o autor Antônio Costa, esse primeiro cinema pode ser abordado do ponto de vista técnico-científico pois nos ajuda a compreender como essas projeções foram tomando forma e, além de mostrar a realidade da época também passaram a fazer parte dessa realidade ao se tornarem uma convenção social. Essas primeiras produções ainda tinham uma linguagem muito próxima da apresentada nos teatros, apenas com a evolução do meio uma linguagem foi propriamente construída.
3 As trucagens foram os efeitos especiais desenvolvidos por Georges Méliès e produzidos à partir da edição das cenas feitas na própria câmera.
4 O filme Viagem à Lua conta a história do presidente do Instituto de Astronomia que constrói um foguete e, junto com alguns companheiros, viaja para a lua. Durante sua viagem eles se deparam com os selenitas e na volta para a Terra traz um desses seres para a Terra.
5 O Princípio Renascentista se baseia na forma de representação da imagem através do domínio da perspectiva no ponto central, onde cria-se a ilusão do espaço tridimensional em uma superfície plana.
6 Durante a projeção do filme Hugo Cabret, são apresentadas cenas de filmes clássicos hollywoodianos, como Harold Lloyd, Chaplin, Griffith entre outros.
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