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"A Invenção de Hugo Cabret" e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia Claudio Yutaka Suetu Universidade Anhembi Morumbi, Brasil Ricardo Tsutomu Matsuzawa Universidade Anhembi Morumbi, Brasil Thais Saraiva Ramos Universidade Anhembi Morumbi, Brasil Abstract More and more, the greatest Hollywood productions have been utilizing 3-D animation resources as a foundation to ensure bigger box offices revenues, attracting a major audience into the theatres. Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical possibilities of such technologies, a great part of the North American movies still uses stereoscopy in a limited way: for example, seeking the impact of “throwing things” into the spectator’s face. Only few productions have perceived and used the filming technology to explore the tri-dimensionality as texture, giving the viewers a better immersion into the story, offering greater emotional involvement and identification with the narrative. “The invention of Hugo Cabret” (2011), from American director Martin Scorsese, is one of these few examples, renewing the film-making language through the insertion of visual elements and textures that have made the narrative more exciting and intriguing to the spectator. At the same time, the movie pays tribute to the Cinema and to one of the great inventors and pioneer in the global filmmaking, George Méliès. The proposed article investigates and analyses what stereoscopy added to – and how it improved – the referred movie’s language to construct a more complex narrative, thus turning the movie into a reference for future cinema productions. Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès, Martins Scorsese, stereoscopy. Introdução No final do século XIX, o Cinema surge em um momento de extrema expansão tecnológica no campo audiovisual, em uma época que seria reconhecida por Walter Benjamin como a “Era da Reprodutibilidade Técnica” da obra de arte. Cenas do cotidiano, como a chegada do trem à estação ou a saída de operários de uma fábrica, filmadas pelos irmãos Lumière, se transformariam em objetos de espetáculo: a realidade e a vida comum desdobravam-se diante dos olhos do público. Com o passar dos anos e aprimoramento da tecnologia, a arte da espetacularização ganha novos contornos e elementos que apresentam um realismo (ainda que fantasioso) nas telas e que acaba influenciando a nossa própria noção de real nas décadas seguintes. O lançamento de “Interpretação dos sonhos”, em 1900, por Sigmund Freud ajudou a

A invenção de Hugo Cabret e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia

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More and more, the greatest Hollywood productions have been utilizing 3-D animation resources as a foundation to ensure bigger box offices revenues, attracting a major audience into the theatres. Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical possibilities of such technologies, a great part of the North American movies still uses stereoscopy in a limited way: for example, seeking the impact of “throwing things” into the spectator’s face. Only few productions have perceived and used the filming technology to explore the tri-dimensionality as texture, giving the viewers a better immersion into the story, offering greater emotional involvement and identification with the narrative. “The invention of Hugo Cabret” (2011), from American director Martin Scorsese, is one of these few examples, renewing the film-making language through the insertion of visual elements and textures that have made the narrative more exciting and intriguing to the spectator. At the same time, the movie pays tribute to the Cinema and to one of the great inventors and pioneer in the global filmmaking, George Méliès. The proposed article investigates and analyses what stereoscopy added to – and how it improved – the referred movie’s language to construct a more complex narrative, thus turning the movie into a reference for future cinema productions.Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès, Martins Scorsese, stereoscopy.

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Page 1: A invenção de Hugo Cabret e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia

"A Invenção de Hugo Cabret" e a contribuição cinema tográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia

Claudio Yutaka Suetu

Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Ricardo Tsutomu Matsuzawa

Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Thais Saraiva Ramos

Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Abstract

More and more, the greatest Hollywood productions

have been utilizing 3-D animation resources as a

foundation to ensure bigger box offices revenues,

attracting a major audience into the theatres.

Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical

possibilities of such technologies, a great part of the

North American movies still uses stereoscopy in a

limited way: for example, seeking the impact of

“throwing things” into the spectator’s face. Only few

productions have perceived and used the filming

technology to explore the tri-dimensionality as texture,

giving the viewers a better immersion into the story,

offering greater emotional involvement and

identification with the narrative. “The invention of Hugo

Cabret” (2011), from American director Martin

Scorsese, is one of these few examples, renewing the

film-making language through the insertion of visual

elements and textures that have made the narrative

more exciting and intriguing to the spectator. At the

same time, the movie pays tribute to the Cinema and

to one of the great inventors and pioneer in the global

filmmaking, George Méliès. The proposed article

investigates and analyses what stereoscopy added to

– and how it improved – the referred movie’s language

to construct a more complex narrative, thus turning the

movie into a reference for future cinema productions.

Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès,

Martins Scorsese, stereoscopy.

Introdução

No final do século XIX, o Cinema surge em um

momento de extrema expansão tecnológica no campo

audiovisual, em uma época que seria reconhecida por

Walter Benjamin como a “Era da Reprodutibilidade

Técnica” da obra de arte. Cenas do cotidiano, como a

chegada do trem à estação ou a saída de operários de

uma fábrica, filmadas pelos irmãos Lumière, se

transformariam em objetos de espetáculo: a realidade

e a vida comum desdobravam-se diante dos olhos do

público. Com o passar dos anos e aprimoramento da

tecnologia, a arte da espetacularização ganha novos

contornos e elementos que apresentam um realismo

(ainda que fantasioso) nas telas e que acaba

influenciando a nossa própria noção de real nas

décadas seguintes. O lançamento de “Interpretação

dos sonhos”, em 1900, por Sigmund Freud ajudou a

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desenhar, um mundo que está em expansão1, em que

a comunicação assume um papel importante e que

começa a entender melhor o consciente individual e

coletivo da sociedade. A análise de Freud possibilita,

por exemplo, uma relação mais ampla entre o cinema

e a experiência onírica, tão contida nos filmes de

fantasia. Experiências tais que Georges Méliès vai

transpor ao apresentar histórias que, até então,

apenas poderiam ser imaginadas (como no filme

“Viagem à Lua”).

Muito já foi dito e escrito sobre a importância do

autor/diretor Georges Méliès para a produção

audiovisual mundial. Méliès é tido por muitos como um

dos grandes pais do cinema, juntamente com os

irmãos Lumière, não apenas pelas contribuições que

fez registrando cenas do cotidiano, mas também pelo

uso da câmera de cinema como uma nova forma de

construir truques de mágica. E também serviu de

inspiração para o livro “A Invenção de Hugo Cabret”

que foi adaptado para o cinema e dirigido pelo norte-

americano Martin Scorsese. O filme é uma

homenagem à figura de Méliès e à produção do

chamado primeiro cinema2 em todas as camadas

possíveis de análise, seja na escolha do tema e

personagens, até o uso das tecnologias

estereoscópicas que foram aplicadas de uma forma

pioneira (se comparada a outras utilizações feitas até

então).

A proposta do artigo é analisar como

determinadas tecnologias podem operar certas

mudanças na linguagem audiovisual. Começaremos

com um pequeno panorama acerca das produções de

Georges Méliès que, apesar da tecnologia limitada,

tornou possível as primeiras experiências sistemáticas

de manipulação da película, até a chegada do filme de

Scorsese que, foi muito influenciado por essa forma de

produção. Partiremos do referencial teórico dos

autores como Antônio Costa, David Bordwell, entre

outros, para embasar a análise e discussão.

Georges Méliès e seus filmes fantásticos

As primeiras produções audiovisuais da História

trouxeram para o público uma nova percepção do

espaço urbano e, consequentemente, do mundo. O

cinema, ao transformar a vida pública em espetáculo,

agarra para si a autenticidade em reproduzir a

realidade e ganha um papel de promotor da releitura

histórica, simulador de situações que podem ser

tomadas como verdadeiras graças à confusão entre o

simulacro e o real. Segundo o autor Antônio Costa em

seu livro Compreender o cinema,

A ‘magia’ do cinema determinou formas de fruição espetaculares que recobriram os aspectos mais comuns da vida de cada dia, fundamentando-se no fascínio pelas técnicas de reprodução e de animação das imagens. (COSTA, 2003, 49).

Esses novos significados puderam ser

explorados por meio de uma lógica de máxima

extensão da magia tecnológica e os poderes da cena.

Mesmo que no começo a estética dos filmes se

assemelhassem às produções teatrais (a cena se

desenrola em um plano fixo, geral, que mostra todo o

cenário e os personagens se movimentam dentro

desse quadro), as produções do diretor francês

Georges Méliès já traziam um trabalho de perspectiva

que, aliado à interpretação dos atores, ajudava a

construir um senso de espaço maior que uma peça

teatral poderia fazer no palco.

Méliès fez carreira como mágico e ilusionista, foi

proprietário do Théâtre Robert-Houdin que manteve

aberto com suas apresentações e truques até que, em

1895, ficou fascinado por um outro tipo de

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apresentação: a exibição de imagens reais em

movimento. Aos 34 anos de idade adquiriu uma

câmera de cinema e começou, como muitos outros na

mesma época, a registrar em película o que via.

Devido a um problema de funcionamento da câmera

em uma de suas produções, Méliès notou um "pulo"

em uma das imagens que havia captado e, por conta

desse erro, percebeu a vocação desse novo aparato

tecnológico para a criação de ilusão e da fantasia.

Durante 17 anos, chegou a produzir cerca de 500

filmes explorando e criando efeitos especiais à partir

das trucagens3 que fazia com a câmera, esses efeitos

equivalentes aos truques de magia que desenvolvera

anteriormente nos palcos do teatro o levaram a ser

conhecido como um dos maiores cineastas do mundo

e o pai dos efeitos especiais modernos. O filme mais

conhecido de sua carreira é "Viagem à Lua"4, de 1902

(Figura 01).

Figura 01 – O Homem chega a lua usando uma bala de canhão, tecnologia disponível em 1902 que foi reaproveitada por Méliès para tornar possível essa viagem insólita.

Nessa obra ele explora os sonhos e desejos da

humanidade e o esforço em criar uma missão de

exploração na Lua, para isso, produziu um cenário que

rompia com as barreiras visuais da imagem 2D e,

através da posição dos objetos, pinturas e outros

elementos de cena, imprimiu perspectiva e textura

dentro do filme apresentando as ações em camadas

(Figura 02), gerando uma outra atmosfera para a mise-

en-scène.

Figura 02 - Cenário do filme Viagem à Lua, em que os astrônomos observam a cidade e suas fábricas a pleno vapor. Tanto a fumaça quanto as casas foram produzidas com cenários de madeira e pinturas em perspectiva para criar a ilusão de profundidade.

Para o teórico David Bordwell, a construção

estilística de filmagem é considerada como um dos

pontos base da mise-en-scène:

A mise-en-scène cinematográfica usa um repertório rico de técnicas que se afinam com a análise poética. Não se trata de elaborar um árido tratado de poética do filme, e, sim, de aprofundar a experiência da recepção do filme para o cinéfilo interessado. (BORDWELL, 2008, 31)

A mise-en-scène, corresponde diretamente à

construção narrativa, mas para Bordwell, vai além dos

aspectos da filmagem, ela também se relaciona com

os resultados na tela, ou seja, a maneira como os

atores entram na composição do quadro e o modo

como a ação se desenrola no fluxo temporal

(BORDWELL, 2008). Méliès se aproveita do espaço

fílmico para construir um espaço de sonhos e

possibilidades, também nos mostra como a tecnologia,

aliada à criatividade pode nos levar a lugares que

antes não eram possíveis ou não explorados.

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Alguns anos mais tarde, com a evolução das

tecnologias de efeitos especiais foi possível retomar os

efeitos mecânicos que Méliès havia iniciado, um dos

diretores que vai aproveitar a tecnologia 3D, aliada à

estereoscopia, para emular as camadas que Méliès

produziu em alguns de seus curtas é o diretor

americano Martin Scorsese.

Martin Scorsese

O diretor Martin Scorsese nasceu em Nova York

(1948), descendente de italianos, pensava em ser

padre mas escolheu estudar cinema na New York

University Film School. Traços que definem o seu

estilo: uma perspectiva católica em sua obra e um

conhecimento enciclopédico sobre o cinema. Na

universidade estudou a estética, a história e os

processos de produção cinematográficos e antes de

se estabelecer como um diretor dos mais importantes

de sua geração, trilhou uma carreira de formação em

diversos funções da confecção de um filme. Possui

uma filmografia consistente que transitou por diversos

gêneros: documentário, musical, comédia e filmes

sobre a máfia. Começa sua carreira nos anos de 1960,

participando do considerado American Art Film,

momento em que os cineastas se distanciavam do

classicismo/mainstream para dialogar com o

modernismo europeu. “Do mesmo modo que os

cineastas da Nouvelle Vague, esses diretores cinéfilos

produzem filmes pessoais e altamente

autoconscientes” (BORDWELL, THOMPSON, 2013,

723).

Scorsese surge como realizador em um

momento único de transição do cinema americano em

seu modo de concepção nas histórias a serem

contadas e mudanças dos sistemas de produção,

pouco antes do "boom" da ascensão dos blockbusters.

Mas em termos de transformação de linguagem

referente à evolução tecnológica em sua carreira, um

aspecto relevante seria a transição do sistema

analógico para o digital, em que destaca uma evolução

no efeitos especiais (permitindo um mundo mais

onírico e fantasioso em detrimento do realismo), o que

possibilita uma melhora técnica e a popularização da

estereoscopia. Segundo uma entrevista do cineasta

para o pesquisador Tirard, "os cineastas sentem que é

preciso renovar e fazer o que podem para descobrir

uma nova linguagem a partir desta gramática (o

cinema)” (TIRARD, 2006, 22).

O filme "A invenção de Hugo Cabret" é a sua

primeira experiência com a técnica da estereoscopia,

ou mercadologicamente classificado como "filme 3D",

em entrevista ao jornalista Pedro Caiado o diretor

afirma gostar muito da técnica e sua vontade de

experimentar as possibilidades formais desta

ferramenta:

Eu adoro o 3D. Fiquei muito animado, porque gosto de trabalhar com profundidade. A minha maior preocupação neste caso foi como usar o 3D na narrativa do filme. Como você utiliza a profundidade? Conheço pessoas que não conseguem ver profundidade, mas eu consigo, e sempre gostei. Enquanto converso com você agora, vejo outro prédio, algumas árvores e consigo perceber tudo isso em profundidade. Também gosto de movimento em profundidade. É a minha energia- e o que eu sinto. (CAIADO, 2012)

Embora a técnica estereoscópica seja

bastante antiga, somente a partir da tecnologia digital

é que ela se estabelece na produção cinematográfica.

Scorsese tem um novo momento em sua carreira que

o aproxima de Méliès, no desafio de criar uma nova

possibilidade formal, fugindo da espetacularização do

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efeito para redefinir e construir possibilidades de

linguagem com a incorporação da técnica.

A estereoscopia e o Cinema

A origem semântica da palavra “estereoscopia”

vem da justaposição de duas raízes gregas: a palavra

“stereos” que significa “firme”, ou “sólido” e o termo

“skopeō”, relativo à visão, ao olhar. Desse modo,

estereoscopia é a forma de olhar aquilo que é sólido,

tridimensional, tal como é no mundo real. Nosso

sistema visual trabalha de forma estereoscópica, na

medida em que aquilo que o cérebro capta é, na

verdade, a junção de duas imagens, obtidas por cada

um dos olhos. O efeito disso, somado à percepção em

movimento, é a noção mais clara da profundidade.

Desde a Antiguidade houve certo interesse em

representar o mundo de forma cada vez mais fiel,

quando os gregos se aventuraram nos primeiros

estudos da perspectiva linear. Mas somente no

Renascimento, o escultor Filippo Brunelleschi define o

conceito de ponto de fuga, técnica fundamental para o

surgimento das primeiras pinturas em perspectiva

durante a Renascença. O primeiro experimento

usando essa técnica foi uma reprodução da fachada

da igreja San Giovanni di Firenze (Batistério de

Florença), em 1415. Para realizar essa tarefa,

Brunelleschi pintou a fachada do batistério em um

espelho, sobre a imagem refletida. Para conferir o

resultado, ele fez um pequeno furo no centro desse

espelho e colocou um segundo espelho na frente, para

ver a própria obra. Assim, teve a oportunidade de

comparar o resultado da pintura com a imagem real

(Figura 03).

Figura 03: Giovanni Brunneleschi conferindo a correspondência exata de sua pintura e a imagem real, por meio de um furo no centro da imagem.

Após a popularização do uso da perspectiva

entre os pintores renascentistas, havia ainda o desejo

de tornar as imagens ainda mais realistas. Muitas

pinturas pareciam “saltar da tela”, porém foi apenas

em 1832 que Sir Charles Wheatstone descreveu um

processo chamado stereopsis, que tratava da ilusão

de tridimensionalidade obtida por meio de imagens

captadas paralelamente e exibidas separadamente

para cada um dos olhos. Em 1840, Sir. David Brewster

criou o estereoscópio, aparelho que permitia ver

imagens como objetos sólidos (Figuras 04 e 05). Para

isso, o inventor usou duas imagens captadas por

câmeras paralelas e próximas. Ao olhar pelo aparelho

era possível enxergar com cada olho uma imagem

ligeiramente diferente da outra, criando o efeito de

profundidade similar àquele que temos no mundo real.

Figura 04: Modelo de estereoscópio criado por Sir David Brewster para a visualização em três dimensões.

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Figura 05: Exemplo de imagem estereoscópica do século XIX.

A novidade virou uma febre, mas não durou

muito tempo. Há várias teorias que tentam explicar o

declínio da estereoscopia ainda no século XIX, como a

associação dela à pornografia, que causava cada vez

mais constrangimento para quem possuísse um

desses aparelhos. De acordo com Victa de Carvalho:

Ainda no século XIX, o estereoscópio conhece grande popularidade a partir da intensa disseminação de pornografia. A ilusão dos volumes e a sensação de presença provocada pela experiência estereoscópica teriam aberto caminho para um mercado clandestino de estereoscopias pornográficas. É preciso aqui enfatizar o caráter ilusionístico da técnica, já que em nenhum momento o observador poderia confundir a imagem com a realidade. Alguns autores especularam que a associação da estereoscopia à pornografia teria sido uma das principais causas de sua degeneração como prática de consumo (CARVALHO, 2006, p.10).

Desde o início do cinema os pioneiros e

inventores demonstravam interesse em aplicar o

conhecimento da estereoscopia às imagens em

movimento. William Friese-Greene, os irmãos Lumière,

Thomas Edison e Edwin Porter foram alguns dos que

empreenderam pesquisas nessa direção. Segundo

Stefhanie Piovezan, no início dos anos de 1920:

As incursões em 3D já possuíam elementos típicos do cinema, apesar de integrarem espetáculos com atrações diversas, como ocorria no período anterior. Exemplo disso foi o Teleview, nome dado ao programa de cerca de 85 minutos criado em janeiro de 1921 e composto por imagens estereoscópicas, um pequeno documentário e o filme M.A.R.S., que utilizava um processo também intitulado de Teleview para simular a terceira dimensão (PIOVEZAN, 2012).

Outras tecnologias continuaram a ser

exploradas dos anos de 1920 a 1940, mas é somente

na década seguinte que o cinema estereoscópico

alcança um grau elevado de popularidade no Reino

Unido, com o Telekinema (Figura 06) e nos Estados

Unidos, com o filme “Bwana Devil”, de 1952. Alguns

filmes foram produzidos, inspirados por esses

sucessos, mas essa fase dourada durou pouco. Os

altos custos envolvidos na produção e projeção de

filmes estereoscópicos, somados às diversas

mudanças no cinema norte-americano, como o

surgimento da TV e a crescente rejeição do cinema

por parte da geração dos babies boomers acabou

inviabilizando investimentos nessa área nos anos

seguintes.

Figura 06: Público utilizando óculos para projeção estereoscópica em Telekinema, Londres, em 1951.

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Apenas em 1981 a estereoscopia entra em

pauta nos cinemas, novamente. Dessa vez com o

filme “Comin’at Ya!”, de Ferdinando Baldi, seguido de

“Sexta-Feira 13 – Parte III” (1982) e “Tubarão 3D”

(1983). Com a consolidação do IMAX, após os anos

de1970, surge a junção da estereoscopia e do cinema

imersivo, com uma tela mais ampla, permitindo novos

efeitos de profundidade.

É interessante notar que durante muitos anos o

principal uso da estereoscopia restringia-se a lançar

objetos e personagens na direção do espectador,

como uma forma de exibir o potencial da técnica.

Apenas após os anos 2000 é que os diretores e

demais realizadores voltam-se para o potencial da

profundidade de campo no filme estereoscópico.

Destacam-se nesse contexto, filmes e animações

como “Expresso Polar” (2005), “Coraline” (2009),

“Alice no País das Maravilhas” (2010) e a “Invenção de

Hugo Cabret” (2011), que vai explorar ainda mais

intensamente esse novo e ao mesmo tempo antigo

elemento narrativo que é a ilusão da realidade sólida

por meio da estereoscopia.

Análise de Hugo Cabret

O filme “A Invenção de Hugo Cabret” remete a

fragmentos de uma história real, a vida de Georges

Mèliès, através do olhar infantil. Esse é o mesmo olhar

que o cineasta coloca sobre os cenários e a

composição, nos aproximando desse universo de faz-

de-conta. O mundo do sonho e da fantasia é

constantemente entremeado por camadas de neve,

fumaça e poeira, criando uma dispersão suave na

iluminação. As imagens da cidade de Paris são como

miniaturas estilizadas, com um efeito similar ao das

lentes tilt-shift, que fazem imagens e objetos reais se

parecerem com brinquedos (Figuras 07 e 08).

Figura 07: imagem de Paris fotografada com uma lente tilt-shift.

Figura 08: Quadro do filme “A Invenção de Hugo Cabret” (2011)

Os cenários, lembram caixas de brinquedos, em

especial as ambientações dentro da estação de trem.

O efeito tridimensional dá essa impressão de “caixa”

que contém as personagens e os objetos. Scorsese

sabe representar muito bem a profundidade e faz uso

do potencial estereoscopia para acrescentar camadas

distantes do espectador. No filme, não se vê um objeto

“saltar” da tela, como é usual em produções que

utilizam essa técnica. O que notamos é o uso da

profundidade de campo seguindo o princípio

renascentista5 (Figuras 09 e 10).

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Figura 09: pintura renascentista “Escola de Athenas”, de Raphael (1511).

Figura 10: casa do professor René Tabard, em “A Invenção de Hugo Cabret”. Este quadro mostra como o diretor trabalha o conceito de múltiplas camadas, preparadas para o universo tridimensional.

Podemos também fazer uma referência à

construção do espaço tridimensional no filme “Cidadão

Kane”, de Orson Welles, em 1940. Na época o Diretor

de Fotografia, Gregg Toland, experimentou o uso das

lentes pancromáticas, com o intuito de aproveitar o

máximo de foco possível na profundidade de campo

(Figura 11). Esse uso foi considerado inovador e o

filme é reconhecido até hoje por essa inovação no uso

de imagens em perspectiva. Do mesmo modo, cerca

de sessenta anos depois, Scorsese recupera esse

trabalho experimental com a profundidade de campo,

só que no ambiente estereoscópico. Ele arrisca abrir

mão do maior trunfo dos filmes “3D”, que é

aproximação de um elemento da cena em direção ao

público. Sua aposta é criar um universo mais imersivo,

envolvendo o público em uma espécie de “caixa de

imagens”.

Figura 11: cena do filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles (1940)

O uso da estereoscopia em alguns momentos

se afasta de uma tentativa realista e cria a

tridimensionalidade com uma "certa artificialidade"

que se aproxima a construção cenográfica de Méliès

em seus filmes, mas sem deixar de causar certa

sensação de imersão ao espectador. Méliès, em suas

produções, construía o cenário em camadas pensando

em uma forma melhor de movimentação dos atores

em cena, remetendo aos palcos do teatro e à quarta

parede, na qual o público fechava essa "caixa de

exibição". No filme "Hugo Cabret", o diretor escolhe

quando resgata filmes para citar internamente na

narrativa não aplicar a estereoscopia, uma opção que

talvez busque conservar e manter uma reverência ao

sagrado da obra original, apenas em trechos de filmes

Méliès . Scorsese, em suas referências e

reapropriações que fazem homenagem ao autor,

utiliza o efeito, talvez por se colocar como ele na

posição de ilusionista com as possibilidades de

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atualizar a obra de um autor que tem como marca

autoral os efeitos de ilusão. Podemos perceber essa

reapropriação no momento em que Scorsese usa do

flashback para ilustrar a forma como Méliès produzia

seus filmes, como é o caso da cena do filme de 1903,

"O Reino das Fadas" (Figura 12).

Figura 12 - Momento da gravação do filme "O Reino das Fadas" segundo o filme "A Invenção de Hugo Cabret".

Se comparada a cena original da produção de

Méliès, podemos perceber não só a fidelidade de

detalhes e posições, mas também a quantidade de

camadas e sobreposições das informações visuais

(Figura 13).

Figura 13 - Cena do filme original de 1898.

Scorsese também utiliza a estereoscopia como

efeito tridimensional de volume, prática comum

utilizada pelos filmes atuais com o recurso "3D", mas

com uma apropriação mais estética e poética como

nos papeis que voam da caixa com desenhos e

croquis de Méliès. Desenhos bidimensionais flanam na

tela alguns com o efeito de movimento de um

taumatrópio. Na busca da aplicação de uma nova

forma de estereoscopia em sua obra que resgata e

apresenta uma história que tem como um dos

personagens o próprio cinema. O diretor em suas

cenas retoma técnicas do pré-cinema: flip-book, os

pequenos livros animados; um taumatrópio, o pequeno

disco de papelão preso a um filme, a lanterna mágica

e o stop-motion.

Conclusão

"A Invenção de Hugo Cabret" é uma obra

metalinguística que usa o próprio cinema para

apresentar os primeiros filmes e a evolução da

linguagem cinematográfica. A obra se passa em 1931

e marca a evolução das estratégias narrativas

clássicas, seja nas referências mostradas durante a

exibição6 do filme, nas homenagens prestadas a

Georges Méliès e menção aos Irmãos Lumière, ou nas

ações reproduzidas no contexto do filme.

Outras relações e menções são feitas no

decorrer da obra sempre referenciando o tempo e sua

passagem. O tempo fílmico se relaciona com as

engrenagens e as máquinas - presentes nas partes do

relógio, os trens que chegam à estação, o autômato e

a câmera de cinema - isso nos leva a perceber e a

lembrar da evolução do homem e a das cidades, das

tecnologias que antes eram produzidas de forma

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artesanal e agora são recriadas por meio das

máquinas.

O ponto de vista de Hugo estende-se à própria

linguagem do filme: uma criança que mora em uma

estação de trem e tem como companhia as memórias

com o pai, as engrenagens, relógios e seu autômato

de estimação. Nesse sentido, a cidade toda é uma

grande máquina em perfeito movimento. A produção

da obra cinematográfica faz parte desse trabalho

maquinal, mas ao mesmo tempo não perde a sua

essência artesanal. O filme retrata a transição de um

cinema realizado pelos primeiros autores até o sistema

produtivo e industrial cinematográfico após o final da

era de Méliès. Scorsese busca de forma nostálgica

criar uma narrativa metalinguística com um final feliz

em que o pai dos efeitos especiais, redescoberto,

recebe aplausos em seu antigo teatro.

Scorsese arrisca-se e vai na contramão daquilo

que era consagrado até então nos filmes

estereoscópicos mainstream. Ao investir na

profundidade, aproxima-se da pintura renascentista,

referenciando Orson Welles e Gregg Toland. Seu

Hugo Cabret emaranha-se em camadas vívidas de

cores quentes e frias, traços bem marcados de

edifícios e uma cidade que se estende para além dos

planos convencionais do cinema. A Invenção de Hugo

Cabret é a caixa de surpresas tridimensional de

Scorsese, criada em homenagem ao velho vendedor

de brinquedos e mágico brincalhão, Georges Méliès.

Referências

Livros

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Artigos em Revista

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EDGERTON, Samuel. 2006. “O espelho de Brunelleschi, a janela de Alberti e o ‘tubo’ de Galileu”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13: 151-79.

Texto em Linha

BENJAMIN, Walter. 1955. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Coleção de textos: http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf. Acedido em 11 de abril de 2015.

CAIADO, Pedro. 2012. Martin Scorsese fala de seu filme 'A invenção de Hugo Cabret'. Jornal Estado de São Paulo: http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,martin-scorsese-fala-de-seu-filme-a-invencao-de-hugo-cabret,835422. Acedido em 11 de abril de 2015.

FREUD, Sigmund. 1900. A interpretação dos sonhos. Universia Literatura: http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/A_interpretacao_dos_sonhos_de_sigmund_freud.pdf. Acedido em 11 de abril de 2015.

Tese/Dissertação

PIOVEZAN, Stefhanie. 2012. Aspectos históricos e implicações da utilização do efeito 3D no Cinema: o caso de A Invenção de Hugo Cabret. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Universidade Estadual Paulista – UNESP.

Conferência

CARVALHO, Victa de. 2006. “Pontos de vista: modernidade e visão estereoscópica”. Comunicação apresentada no IV Encontro Nacional de História da Mídia. 30 de maio a 02 de junho.

Page 11: A invenção de Hugo Cabret e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia

Filmografia

A invenção de Hugo Cabret. 2011. De Martin Scorsese. Estados Unidos. Paramount Pictures. DVD.

Cidadão Kane. 1941. De Orson Welles. Estados Unidos. Warner Home Vídeo. DVD.

Sessão Méliès – Quinze filmes de Georges Mèliès. 1997. De Georges Mèliès. França. Cult Classic. DVD.

1 Antônio Costa define os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX como Belle Époque (a Bela Época em francês), que segundo ele "foram igualmente anos de grande progresso científico, tecnológico e social, envolvendo inúmeras contradições que não tardaram a explodir" (COSTA, 2003, 46).

2 Segundo o autor Antônio Costa, esse primeiro cinema pode ser abordado do ponto de vista técnico-científico pois nos ajuda a compreender como essas projeções foram tomando forma e, além de mostrar a realidade da época também passaram a fazer parte dessa realidade ao se tornarem uma convenção social. Essas primeiras produções ainda tinham uma linguagem muito próxima da apresentada nos teatros, apenas com a evolução do meio uma linguagem foi propriamente construída.

3 As trucagens foram os efeitos especiais desenvolvidos por Georges Méliès e produzidos à partir da edição das cenas feitas na própria câmera.

4 O filme Viagem à Lua conta a história do presidente do Instituto de Astronomia que constrói um foguete e, junto com alguns companheiros, viaja para a lua. Durante sua viagem eles se deparam com os selenitas e na volta para a Terra traz um desses seres para a Terra.

5 O Princípio Renascentista se baseia na forma de representação da imagem através do domínio da perspectiva no ponto central, onde cria-se a ilusão do espaço tridimensional em uma superfície plana.

6 Durante a projeção do filme Hugo Cabret, são apresentadas cenas de filmes clássicos hollywoodianos, como Harold Lloyd, Chaplin, Griffith entre outros.