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A representatividade de (trans)gênero nas mídias contemporâneas1
Tadeu Rodrigues Iuama2
João Gabriel Rodrigues de Oliveira3
Resumo: Autores como o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) e o psicólogo romeno Jacob Levy Moreno (1889-1974) apontam que as expressões artísticas são maneiras de compreender seus próprios autores. Nesse âmbito, o presente artigo visa demonstrar a representatividade de (trans)gêneros em mídias contemporâneas como forma dos autores exteriorizarem o interesse no debate sobre essa questão. Com essa pesquisa, busca-se observar se no corpus selecionado (o RPG Dungeons and Dragons e a história em quadrinhos Os Invisíveis) a maneira como se configura a representatividade de (trans)gênero. O artigo parte de uma revisão bibliográfica sobre o tema, seguida de uma interpretação da narrativa presente no corpus, aproveitando-se da observação dos autores que tanto os RPG quanto as HQ mostram-se mídias, que por não estarem cimentadas em um mainstream da indústria cultural, aptas a terem uma liberdade maior de expressão com o intuito de representar grupos sociais ora marginalizados pela mídia de massa, assumindo que é nas margens da cultura que ocorre a inovação, para que posteriormente esta se consolide rumo ao cerne da cultura, a tradição.
Palavras-chave: Comunicação; Narrativas; Representatividade de gênero; Histórias em quadrinhos; RPG
Introdução
Conforme MISKOLCI (2009), as duas principais linhas de estudos sobre
sexualidade e gênero na contemporaneidade são os estudos gays e lésbicos
(localizados principalmente no campo da sociologia), e a teoria queer4 (com um
viés mais interdisciplinar, englobando também áreas como a psicanálise e
literatura). A despeito de suas familiaridades e eventuais convergências, a
principal diferença entre estas linhas teóricas de pensamento é o estabelecimento
de um binarismo (masculino/feminino, heterossexual/homossexual), por parte dos
estudos gays e lésbicos, e um esforço teórico de desconstrução deste mesmo
binarismo por parte da teoria queer (MISKOLCI; SIMÕES, 2007).
1 Trabalho submetido ao GT 1 (Gênero, estudos culturais e mídia) do I SISGS (Simpósio Interdisciplinar sobre Sexualidade e Gênero de Sorocaba).2 Mestrando em Comunicação e Cultura/UNISO. Universidade de Sorocaba/SP. Bolsista PROSUP/CAPES. tadeu.rodrigues@edu.uniso.br 3 Graduando em Letras Português/Inglês pela UNIP. Universidade Paulista, Sorocaba/SP. jgabriel.oliveira@outlook.com 4 O termo queer tem como principal efeito semântico o de nomear o “estranho” ou “esquisito” na língua inglesa, além de já ter sido usado como termo depreciativo para designar homossexuais masculinos. Porém, a partir do final da década de 80, alguns teóricos começaram a utilizar este termo de maneira acadêmica para designar pessoas que não se sentiam confortáveis em uma designação de sexo/gênero estática. Também se tornou comum no meio ativista como um posicionamento identitário político-ideológico.
Embora a concepção do gênero como construção social derivado de uma
experiência cultural seja, de certa forma, tida como unânime nos estudos sobre
sexualidade e gênero, o mesmo não pode ser dito a respeito do sexo. Para muitos,
o sexo é tido como algo estático, fixo e imutável, pois sua materialidade estaria
inscrita dentro do campo da “natureza biológica” (ARÁN, 2006, p.50). Um dos
principais mecanismos que sustenta esta perspectiva é a ciência moderna,
principalmente a psiquiatria e a medicina, através da construção de discurso. O
procedimento médico da ultrassonografia, por exemplo, determina por qual
pronome um bebê será chamado (“ele” ou “ela”) concedendo-lhe um substantivo
correspondente (“menino” ou “menina”), por onde a partir desta definição, o
indivíduo terá sua experiência como ser humano pré-definida por sua inserção
(involuntária) em um mundo “masculino” ou “feminino”, repleto de símbolos e
discursos que reforçam estas concepções (ARÁN; PEIXOTO, 2007, p. 133/134).
Assim sendo, a partir das formulações de Judith Butler (1956), considerada
uma das precursoras da teoria queer, Arán e Peixoto afirmam que:
(...) a nomeação do sexo é um ato performativo de dominação e coerção que institui uma realidade social através da construção de uma percepção da corporeidade bastante específica. A partir dessa perspectiva pode-se entender que o gênero é uma “identidade tenuamente construída através do tempo” por meio de uma repetição incorporada através de gestos, movimentos e estilos (ARÁN; PEIXOTO, 2007, p. 134).
Márcia Arán também nos mostra que Foucault (1926), antes mesmo de
Butler, já havia problematizado esse raciocínio determinista do sexo,
demonstrando que “(...) sexo é o resultado complexo de uma experiência histórica
singular e não uma invariante passível de diversas manifestações” (ARÁN, 2006,
p. 51). A este aglomerado heterogêneo de práticas sociais, instituições e discursos
que se formam ao redor do sexo, principalmente a partir do século XVII, Foucault
denomina de “dispositivo da sexualidade” (MISKOLCI, 2009, p. 154-155).
Assim, esta naturalização e normatização contínua do sexo, que contempla a díade
heterossexual/homossexual ao passo de que prioriza a heterossexualidade como
compulsória, toma forma na ordem social contemporânea no que Michael Warner
(1958) denominou, de modo pioneiro, de heteronormatividade (MISKOLCI,
2009, p. 156).
A heteronormatividade na sociedade contemporânea pressupõe que o
modelo heterossexual de relacionamento seja o padrão, trabalhando como uma
nova versão do dispositivo da sexualidade de Foucault, com o objetivo primário
de formar todos para serem heterossexuais, e na impossibilidade deste, fazer com
que as relações homo orientadas sejam normatizadas e padronizadas a partir do
modelo heterossexual. (MISKOLCI, 2009, p. 157).
Neste artigo serão analisadas duas obras midiáticas que compreendem a
discussão sobre sexualidade e gênero, dentro de formatos tidos como periféricos
(ou de borda) dentro da indústria cultural. Primeiro será analisada a concepção e
(des)construção de gênero de alguns personagens da História em Quadrinhos
(daqui por diante somente HQ) “Os Invisíveis”, do autor Grant Morrison (1960).
Em seguida, será realizada uma análise do impacto e significado da escolha de
gênero e sexualidade durante o processo de criação de personagens do jogo de
interpretação (RPG) Dungeons and Dragons. Por fim serão dadas algumas
considerações finais sobre os temas apresentados, buscando harmonizar as
análises realizadas com os estudos referentes à cultura de borda e semiosfera.
Os Invisíveis
A obra completa de “Os Invisíveis” foi publicada de Setembro de 1994 a
Junho de 2000 (contabilizando cinquenta e nove [59] edições, divididas em três
[3] volumes e compiladas em 7 edições encadernadas) nos Estados Unidos da
América, pela editora DC Comics a partir do selo Vertigo, que é uma iniciativa
dentro da própria editora, segmentado para um público mais adulto, com histórias
carregadas de temas como erotismo, terror, violência e política, diferentemente
das costumeiras histórias clássicas de aventura e super-heróis. A autoria da obra é
de Grant Morrison, escritor escocês de história em quadrinhos, com diversos
trabalhos publicados, tanto independentes, quantos em grandes editoras como a
Marvel e DC.
A história é protagonizada por um grupo pertencente a uma célula de uma
sociedade secreta anarco-terrorista chamada Os Invisíveis, que visa libertar a
humanidade da opressão física e mental de seres extradimensionais disfarçados
ocupando cargos em instituições da sociedade humana, como igrejas, escolas,
hospitais e grandes corporações. A narrativa começa com Dane McGowan, um
jovem estudante com fortes tendências anarquistas sendo recrutado por esta célula
do grupo dos Invisíveis, que é formado por King Mob, Ragged Robin, Lord Fanny
e Boy (MORRISON, 2014a).
Para os fins do presente artigo, o interessante é o modo como estas
personagens (principalmente as femininas, de algum modo) subvertem as
concepções de gênero da sociedade contemporânea. A personagem de codinome
“Boy” é apresentada com sua identidade de gênero e orientação sexual
correspondente aos padrões esperados pela biologia de seu corpo e aceitos pela
heteronormatividade, ou seja, ela se vê e é vista socialmente como mulher, porém
seu próprio codinome5 não corresponde a esta expectativa. Isto faz com que o
protagonista Dane questione a escolha deste codinome, trazendo a discussão para
o campo semântico (MORRISON, 2014a, p. 138).
Outra personagem que traz aspectos da identidade queer é Ragged Robin.
Também apresentada sob uma identidade feminina correspondente às expectativas
geradas pelo seu sexo biológico, Ragged Robin incorpora em sua indumentária
muitos conceitos presentes na performance Drag Queen6. Pode-se notar
principalmente pela maquiagem utilizada pela personagem, característica
marcante na performance de várias Drag Queens em suas apresentações artísticas.
(MORRISON, 2014a, p. 118).
Mas a personagem onde pode-se averiguar melhor as diversas
características e conceitos pertencentes às identidades queer é a Lord Fanny. A
identidade desta personagem é bem fluída, ficando difícil situá-la dentro de um
padrão binário e heteronormativo. Sua origem dentro da narrativa está relacionada
a uma tradição familiar de feiticeiras xamãs de ascendência mexicana (embora na
ocasião de seu nascimento, estivesse morando no Rio de Janeiro, Brasil), onde os
segredos deste ofício são passados para cada mulher da família, de geração em
geração. Porém Lord Fanny (que fora nomeada Hilde Morales) nasceu com
genitais masculinos, sendo portanto, designado como menino (MORRISON,
5 Boy significa “menino” ou “garoto”, em língua inglesa.6 Conforme CHIDIAC e OLTRAMARI (2004, p. 471): “(Drag Queens) apesar de muitas vezes serem confundidas com travestis e transexuais, inscrevem-se em um mundo social marcado por diferenças destes grupos. Ser drag (queen) associa-se ao trabalho artístico, pois há a elaboração de uma personagem. A elaboração caricata e luxuosa de um corpo feminino é expressa através de artes performáticas como a dança, a dublagem e a encenação de pequenas peças.”
2014b, p. 121). Como Hilde só poderia ter acesso aos segredos do xamanismo
caso fosse mulher, sua avó a criou como menina a partir dos 7 anos, pouco antes
de sua mãe falecer (MORRISON, 2014b, p. 122-123).
Sua fluidez identitária pode ser vista em diversos momentos da narrativa,
variando em um espectro do transgênero e transexual à drag queen. Sua
característica transgênero é evidente na passagem que demonstra sua infância,
após ser adotada pela avó (MORRISON, 2014b, p. 123). Ali é possível verificar
que ela assume uma identidade feminina, passando a viver como menina por
tempo integral, enquanto criança. Porém em outra passagem da história, é possível
ver a personagem já adulta, em trajes reconhecidos como masculinos, com cabelo
curto e barba por fazer, em uma loja de produtos para o público trans comprando
próteses para utilizar sob o sutiã, e na sequência seguinte a personagem está se
montando para um show, uma performance artística tipicamente drag queen.
(MORRISON, 2014b, p. 112-115).
A questão da identidade aqui entra em voga, pois a personagem demonstra
preocupação em (re)conhecer a sua própria identidade, conforme visto em seu
diálogo com King Mob: “Divirta-se, solta a franga, amoreco. Bota essa
melancolia pra fora. Nem parece você.”, diz King Mob. Lord Fanny então
respondi: “Eu? E quando que eu já fui eu, querido?” (MORRISON, 2014b, p.
111).
Para MISKOLCI (2009, p. 175), teoria queer e identidade estão
intimamente ligadas, pois para ele “(...) a Teoria Queer mostra que identidades
são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações
sociais...”. Além disso, as identidades trans (travestis, transexuais e intesex)
possuem especial valor para a teoria queer por desafiarem a lógica dual e
dicotômica da sexualidade, pois a experiência trans evidencia sujeitos não-fixos
quanto a adequação destes mesmos sujeitos em uma sociedade heteronormativa,
caracterizando seu papel como crítico e confrontador diante desta normatividade.
Assim, MISKOLCI (2009, p. 175) afirma que:
A Teoria Queer busca romper as lógicas binárias que resultam no estabelecimento de hierarquias e subalternizações, mas não apela à crença humanista, ainda que bem intencionada, nem na “defesa” de sujeitos estigmatizados, pois isto congelaria lugares enunciatórios como subversivos e ignoraria o caráter
contingente da agência. A crítica da normalização aposta na multiplicação das diferenças que podem subverter os discursos totalizantes, hegemônicos ou autoritários.
Dungeons & Dragons
Assume-se que os RPG (Role-Playing Games, habitualmente traduzidos
como jogos de interpretação de personagens) surgiram em 1974, com a primeira
edição de Dungeons & Dragons. Inspirado na obra do escritor sul-africano J. R.
R. Tolkien (1892-1973), o jogo retrata um ambiente de fantasia medieval,
incluindo criaturas mitológicas como elfos, dragões e magos. Dentre as principais
características do RPG, podemos evidenciar a construção coletiva de uma
narrativa através do improviso, uma vez que no jogo não existe roteiro
préviamente acordado entre os jogadores para o rumo que as ações de seus
personagens irá tomar, sendo que, apesar de ter se adaptado a tecnologias
modernas como o uso de plataformas eletrônicas, o RPG mantem-se até hoje
como fortemente vinculado a tradição oral.
Atualmente em sua 5ª edição, o manual do jogo Dungeons & Dragons trás
o seguinte texto, no âmbito da sexualidade do personagem, no processo da criação
do personagem:
Você pode interpretar um personagem masculino ou feminino sem ganhar nenhum benefício ou penalidade especial. Pense sobre como seu personagem se conforma, ou não se conforma, com as amplas expactativas culturais sobre sexo, gênero e comportamento sexual. Por exemplo, um clérigo drow7 desafia as divisões tradicionais da sociedade drow, o que poderia ser uma razão para seu personagem abandonar aquela sociedade e vir à superfície. Você não precisa se confiner a noções binárias de sexo e gênero. A divindade élfica Corellon Larethian é frequentemente retratada como andrógena, por exemplo, e alguns elfos no multiverso são feitos à imagem de Corellon. Você também pode interpretar uma personagem feminina que se apresenta como homem, um homem que se sente aprisionado em um corpo feminino, ou uma anã barbada que odeia ser confundida com um homem. Da mesma maneira, a orientação sexual do seu personagem é de sua decisão (MEARLS; CRAWFORD, 2015, p. 33, traduzido livremente pelo autor).
Como pode-se notar, existe uma preocupação muito grande no texto do
jogo acerca de questões de sexualidade, identidade sexual e gênero. Importante
também é situar o leitor que a empresa que publica o jogo (Wizards of the Coast)
7 No cenário do jogo, os drow são uma variante de elfos que habitam complexos subterrâneos, cuja sociedade espera que apenas as mulheres desempenhem um papel clerical.
é uma holding da Hasbro, gigante mundial no mercado de brinquedos. Apesar de
“uma análise preliminar das 3 primeiras décadas (1974-2005) dos livros-
suplementos8 de RPG de lingua inglesa mostrarem que, quando o tópico não era
completamente silenciado, era encontrado com reações que variavam entre
caricatas ou extremamente implícitas” (STENROS; SIHVONEN, 2015, p. 1,
tradução livre do autor), existia uma tentativa mais tímida de debater questões de
sexualidade.
Livros como Vampiro: A Máscara (REIN-HAGEN, 1994) traziam uma
abordagem diferente de sexualidade, uma vez que no ambiente de jogo, os
personagens (vampiros), tinham toda uma estrutura de libido e sexualidade
construída em torno do prazer por ingerir sangue, em detrimento de identidades de
gênero. No Brasil, a tradução desse livro foi a primeira vez em que foi trazido ao
público de RPG personagens com identidade de gênero não-heteronormativa.
Com o intuito de observar a relação dos jogadores ao assunto, foi realizada
uma busca em mecanismos de pesquisa da internet (http://www.google.com)
contendo os termos transgender e d&d, retornando uma quantidade relevante de
conteúdo. Além de notícias sobre o texto supracitado incluso no manual de regras
do jogo e opiniões interdisciplinares sobre o tema, os próprios jogadores
fomentam discussões interessantes, como o tópico Need help with a transgender
player in my group9 (https://www.reddit.com/r/DnD/comments/3a4pkk/need_
help_with_a_transgender_player_in_my_group/), na qual a comunidade de
jogadores do jogo Dungeons & Dragons se mobiliza para auxiliar um jogador
cujo primeiro contato com uma pessoa transgênero se dá numa mesa de jogo.
Uma das postagens que mais chama a atenção na discussão são as orientações de
uma garota transgênero orientando o jogador sobre como tratar o jogador, além
das questões de regras específicas do jogo. Com essa liberdade de diálogo, algun
jogadores passam a interagir com a garota levantando dúvidas acerca de
interpretação de personagens de outras identidades de gênero.
Experiências de jogo têm sido feitas sobre questões como “desconstrução
de gêneros” (WIESLANDER, 2010, tradução livre do autor). No jogo citado por
8 Livro-suplemento (source book) é o termo utilizado habitualmente para os manuais com regras mais específicas de um determinado RPG, em contraponto aos módulos básicos (core book).9 Preciso de ajuda com um jogador/jogadora transgênero em meu grupo, em tradução livre do autor.
Emma Wieslander, os organizadores dividiram as pessoas por novos gêneros, não-
relacionados ao gênero biológico. No lugar disso, as pessoas eram divididas entre
pessoas diurnas e noturnas, e o jogo foi utilizado para politização do quão
simplório era hierarquizar o poder de acordo com essa divisão de gêneros
proposta. Um dos métodos utilizados para explorar as emoções desses novos
propostos foi a “ars amandi10” (WIESLANDER, 2010).
Isso mostra uma movimentação do jogo no sentido de potencializar o
conhecimento (e a experiência) de novos gêneros, utilizando-se da metáfora
fantasiosa do jogo. Como afirmou Emma Wieslander, “vocês podem mudar o
mundo para as pessoas deixando-as sair de estereótipos que elas podem nem estar
cientes de que fazem parte” (WIESLANDER, 2010, tradução livre do autor).
Considerações Finais
Com essas duas manifestações artísticas (o RPG e as HQs), procuramos
tecer um indicativo da tentativa dessas linguagens de abordar a representatividade
de gêneros.
Num primeiro momento, é necessário dar o aporte dado pela Psicologia. O
psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), aponta que:
[...] continuo afirmando que o nosso inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo constituem um indefinido, porque desconhecido, número de complexos ou de personalidades fragmentárias. Esta ideia explica muita coisa; explica, por exemplo, a razão de o poeta personificar e dar forma a seus conteúdos mentais. Quando se cria um personagem no palco, ou num poema, drama ou romance, normalmente se pensa que isso é apenas um produto da imaginação, mas aquele personagem, por um caminho secreto, fez-se a si mesmo. Qualquer escritor pode negar o caráter psicológico de suas criações, mas na verdade todos sabem da existência desse caráter. Esta é a razão de poder-se ler a psique de um escritor ao estudar-se as suas criações (JUNG, 1972, p. 101).
Em consoância, o psicólogo romeno Jacob Levy Moreno (1889-1974),
define que “o agente da improvisação, poeta, ator, músico, pintor, encontra seu
ponto de partida não fora mas dentro de si mesmo, no ‘estado’ de espontaneidade”
(MORENO, 1978, p. 86). Dessa forma, podemos assumir que ambos indicam que
10 Arte do amor, em tradução livre do autor. Um conjunto de técnicas desenvolvidas para simular sexo em jogos de interpretação que consiste em utilizar o contato físico entre braços e mãos, além de contato visual. A ferramenta foi particularmente indicada por ter neutralidade de gêneros.
as expressões artísticas tem sua origem na psiquê humana, e que é possível
compreender o criador a partir da criação. Se de um lado podemos apontar que
existe o interesse para as duas indústrias culturais apontadas (RPG e HQ) em
abarcar um novo segmento de mercado, por outro podemos ter um indicativo do
interesse dos artistas envolvidos nelas em levantar o debate da questão da
representatividade de (trans)gêneros.
Num outro patamar, propomos um diálogo acerca das mídias nas quais
essa representatividade se manifestou. O primeiro elemento desse diálogo vem por
parte de Jerusa Pires Ferreira, sobre a cultura das bordas. Em suas palavras:
Falo de cultura das bordas e não das margens, para não trazer a noção pejorativa ou mesmo reversora de marginal ou de alternativa. Com bordas quero enfatizar a exclusão do centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daqueles que detêm maior atualização e prestígio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive das periferias urbanas (FERREIRA, 1990, p. 173).
Em seguida, propomos um levantamento do conceito de semiosfera, que
“designa o espaço cultural habitado pelos signos. Fora dele, nem os processos de
comunicação, nem o desenvolvimento de códigos e de linguagens em diferentes
domínios da cultura seriam possíveis. Nesse sentido, semiosfera é o espaço de
encontro entre diferentes culturas” (MACHADO, 2006, p. 1).
Fechando as proposições iniciais desse diálogo, Homi K. Bhabha afirma
que “qualquer forma de emergência política deve se defrontar com o lugar
contingente de onde sua narrativa começa em relação às temporalidades de outras
histórias minoritárias marginais que estão em busca de sua individuação, de sua
vívida realização” (BHABHA, 1998, p. 348), pois “é vivendo na fronteira da
história e da língua, nos limites de raça e gênero, que estamos em posição de
traduzir as diferenças entre eles” (BHABHA, 1998, p. 238).
Os três autores supracitados têm uma posição similar de que as
manifestações culturais movimentam-se a partir dos limites de uma determinada
cultura rumo ao seu centro. Dessa forma, propõe-se a leitura de que é nas
manifestações culturais menos consolidadas que se compõe um terreno fértil para
os debates de novas características culturais, para que posteriormente desenvolva
o potencial de movimento rumo ao cerne de uma determinada cultura.
Nesse âmbito, tanto os jogos narrativos quanto as histórias em quadrinhos
constituem uma seara para a representatividade de (trans)gênero. Se as histórias
em quadrinhos já se consolidaram há anos como parte de uma indústria de
entretenimento, na perspectiva de expressão artística e ideológica sua aceitação
ainda engatinha. Os jogos narrativos (RPG), por sua vez, debruçam-se sobre a
discussão de serem ora manifestação artística, ora jogo (operando na esfera do
entretenimento), ora linguagem. Dessa forma, ambos constituem ainda parte das
bordas/espaços de encontro/fronteiras.
Mais do que representar, essas mídias buscam uma inclusão social. É
particularmente tocante para os autores a discussão no fórum reDDit citada nesse
artigo, onde alguns jogadores utilizam-se dessa plataforma (e da metáfora do
jogo) para esclarecem suas dúvidas enquanto seres sociais, que manifestam o
interesse em incluir um indivíduo ora marginalizado na atividade social que
constitui o jogo. Já nos quadrinhos, a ideia perene de desconstrução de aspectos
opressores da nossa realidade permeia toda a narrativa, e o local de fala da
personagem mencionada evidencia, e se comunica em muitas esferas, com isso.
A importância de se discutir o papel do gênero e sexualidade nas mídias
contemporâneas não é nem de longe puramente teórico. Seu efeito prático visa a
desconstrução do machismo, homofobia, lesbofobia, transfobia e todas as formas
de opressões sexuais, ao mesmo tempo que permite a construção de um discurso
amplificador sobre gênero, considerando os diversos exemplos de sexualidades e
identidades de gêneros vistos na sociedade, buscando compreender e representar
esta pluralidade através destas narrativas. Como afirma Judith Butler:
O gênero é o mecanismo pelo quais as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas ele poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são descontruídos e desnaturalizados (BUTLER, 2006, p.59 apud ARÁN; PEIXOTO, 2007, p. 135).
Assim, longe da intenção de esgotar totalmente o assunto, o intento deste
presente artigo é o de fomentar a curiosidade e (principalmente) gerar discussão, para que
então o leitor tenha a motivação necessária para procurar novas leituras e conhecimentos
sobre os temas aqui apresentados.
Referências
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