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73Via Teológica | Igor Pohl Baumann, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 73 - 93
A UNIVERSALIDADE DA LAMENTAÇÃO
The Univerality of Mourning
Igor Pohl Baumann.1
Resumo
Este artigo pretende mostrar que a lamentação, presente nos
textos bíblicos, é um fenômeno universal, comum à religiosidade
humana. A experiência da lamentação é universal; sua expressão
é particular, tal como vemos na literatura bíblica. A finalidade da
lamentação, através da expressão da dor e perdas sofridas – seja
por meio de liturgias ou orações pessoais – é dar um sentido e
esperança aos sofredores.
Palavras-chaves: Teologia; Lamentação; Lamento; Experiência
Religiosa; Oração.
Abstract
This article intends to show that lamentation, found in
biblical texts is a universal phenomenon common to human
religiosity. The experience of mourning is universal; its expression
is particular, as we see in biblical literature. The purpose of
mourning, through the expression of pain and losses - either
through personal prayers or liturgies-one is to give meaning and
hope to sufferers.
1 Igor Pohl Baumann. Mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Bacharel em Teologia pela FTBP. É professor da FTBP. Pastor da área de educação cristã da Primeira Igreja Batista de Curitiba, diretor e professor do Centro de Formação Ministerial de sua igreja (CFM). E-mail: igorbaumann@yahoo.com.br.
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Keywords: Theology; Lamentation; Weeping; Religious
Experience; Prayer.
INTRODUÇÃO
A lamentação é um fenômeno universal. É uma experiência
religiosa que existe desde o mundo antigo até os dias atuais. Esse
fenômeno não está restrito apenas ao antigo Israel, pois vai além
dos limites da religião de Israel, literatura hebraica e influências
israelitas. O antigo Israel faz parte de um ambiente maior na qual
a lamentação se apresenta. Em outras palavras, o mundo antigo
antes de Israel já testemunha a presença de lamentações em seu
modo de ser.
As maneiras como se apresentam os lamentos são
diferentes de uma cultura para outra. Suas variantes dependem
dos símbolos, dos mitos, dos textos e rituais que perfazem cada
cultura. No entanto, essa diversidade de expressar o lamento
possui pontos comuns. Ou seja, há um núcleo básico que permite
ao pesquisador verificar e analisar tal experiência a partir de
várias perspectivas (fenomenológica, psicológica, antropológica,
sociológica, filológica, teológica, etc.).
Vejamos como a lamentação é um fenômeno universal
começando pela sua localização nos estudos acadêmicos, sua
presença nos documentos religiosos, como uma experiência
religiosa comum entre os seres humanos que sofrem e, por
fim, verificando sua expressão em outros tipos específicos de
lamento que não da literatura bíblica em si para atestar sua
presença universal.
Com isso, nosso objetivo é demonstrar que o lamento
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bíblico é uma forma particular da religião de Israel, mas anterior
e inerente a isso, é uma experiência comum aos seres humanos.
Certamente, o diferencial da lamentação bíblica de uma não-
bíblica é o caráter teológico da mesma (BAUMANN, 2011).
1 A LAMENTAÇÃO NA PESQUISA CIENTÍFICA
O tema da lamentação é de interesse dos pesquisadores
tanto no campo das religiões quanto da Teologia. Ele tem ocupado
espaço nos estudos do mundo antigo, da religião de Israel e nos
estudos teológicos do Antigo Testamento.
Foi a pesquisa da crítica da forma que possibilitou maiores
avanços e contribuições para que a pesquisa da lamentação tivesse
tal reconhecimento.
Ao longo da história da pesquisa da lamentação (que nos
estudos bíblicos está bastante vinculada à pesquisa dos salmos),
podemos verificar progressos no campo da interpretação.
Coetzee sugere seis períodos como base2, mas o estudo da
lamentação se desenvolveu a partir da classificação “salmos de
lamentação” amplamente difundida pelo trabalho de Hermann
Günkel (1862-1932), reconhecido como o pai da crítica da
forma, a Gattungforschung.
Portanto, grande parte da literatura que visa ao estudo da
lamentação e/ou do lamento em si concentra-se a partir do exame
2 Os períodos sugeridos por Coetzee são: primeiro século d.C., patrística, igreja medieval, hermenêutica da reforma protestante, pós-reforma (séculos XVII a XIX) e o século XX, que foi a época em que a base da pesquisa dos salmos de lamentação mais se desenvolveu. A lamentação começa a ser estudada, a partir do século XX, como um gênero literário devido à perspectiva da crítica das formas. Consulte: COETZEE, J.H. A Survey of Research on the Psalms of Lamentation.Old Testament Essays. Pretoria: OTSSA, n.5, p.151-155, 1992.
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acurado do gênero literário dos salmos bíblicos, dentre os quais
encontramos o de lamentação.
Não obstante, sabemos que a poesia hebraica testemunha
de lamentações em outros livros bíblicos além dos salmos. Os
livros proféticos possuem textos de lamentação, alguns até mesmo
coletâneas bastante significativas no corpo geral dos documentos.
Reconhecemos, porém, que a crítica da forma não é a única
perspectiva de leitura da lamentação. É correto afirmar que ela
abriu caminhos para outros pesquisadores e novas abordagens de
aprofundamento na análise da lamentação. Claus Westermann
(1909-2002) discorda da classificação pormenorizada de Günkel
para os salmos e sugere uma mais simples: louvor e lamento apenas
(WESTERMANN, 1981, p.15-35). Westermann considera os
salmos bíblicos não só na perspectiva literária, mas da perspectiva
da experiência religiosa (comum à humanidade).
Cada período identificado por Coetzee contribuiu para o
avanço da pesquisa da lamentação, de nosso interesse. É certo
que com Günkel ela expandiu-se, porém, posteriormente,
surgiram outros estudos: Mowinckel com as interpretações
cúlticas dos salmos; estudos mais amplos no âmbito teológico,
como os de Westermann; e estudos mais específicos na área
histórico-crítica, como os de Gerstenberger. Estes e outros são
igualmente importantes na pesquisa dos salmos de lamentação
e, concomitantemente, no da linguagem de lamentação que
perpassa os documentos bíblicos.
Seguindo Coetzee (1992, p.167,168), podemos direcionar
algumas possíveis tendências na pesquisa da linguagem de
lamentação: a) os exegetas não podem desprezar as formas de
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lamentação da atualidade, pois elas são restritas a cada cultura e
idiossincrasia; b) nenhuma abordagem exegética usada no passado
ou no presente pode depreciar outro tipo de abordagem no
auxílio da linguagem do texto sagrado cristão e estudos no campo
fenomenológico; c) a diversidade de perspectivas de pesquisa da
lamentação deve ser respeitada, pois todas elas possuem seus
méritos e contribuições, podendo uma ser aperfeiçoada à luz
da contribuição da outra; d) a aplicabilidade hermenêutica das
lamentações dependem da situação de vida do leitor ou ouvinte;
e) o excesso de ênfases nas tendências de interpretação específica
deve levar os estudiosos a retificarem suas ações no pensamento
exegético; f) o conhecimento da história de Israel, do ambiente
social, cultural e religioso do pano de fundo do Antigo Oriente
Médio, da arqueologia do mundo antigo, da língua hebraica, do
ugarítico, das perspectivas exegéticas antigas e modernas, princípios
hermenêuticos e perspectivas teológicas são indispensáveis para o
crescimento das pesquisas dos salmos de lamentação; g) realizar o
exame mais detalhado nos pontos de estagnação da pesquisa para
tornar mais efetivo e relevante o uso dos salmos de lamentação
(não apenas os do saltério) na experiência religiosa da igreja e das
comunidades de fé, de um modo geral.
As várias situações de sofrimento no mundo, por exemplo,
no sul da África e do chamado Terceiro Mundo, têm requerido
novas perspectivas na pesquisa da lamentação devido às
circunstâncias de constantes lamentos e dores na conjuntura da
história atual. Uma dessas novas perspectivas é a da fenomenologia
religiosa aplicada às lamentações. Ela procura verificar através
dos documentos bíblicos a “experiência” não só teológica, mas
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a manifestação religiosa da qual deriva e dá sentido à prática tão
antiga e universal que é a lamentação.
Portanto, lamentar se torna uma forma de expressão do
fenômeno religioso em torno do antigo Oriente Próximo, do
antigo Israel, mas também de outras culturas que a utilizam como
recurso sócio, religioso, cultural e literário.
2 A LAMENTAÇÃO EM DOCUMENTOS RELIGIOSOS
A humanidade produziu textos e documentos que registram
suas percepções religiosas, sua narrativa de origem e suas práticas
rituais; e assim o fez através de sua capacidade de comunicação
escrita. Temos acesso às práticas de lamentação ou à referência
ao fenômeno em si através de textos que o mundo antigo nos
legou. A lamentação faz parte da constituição da cosmovisão e
práticas religiosas dos povos que se fizeram conhecer por meio de
sua literatura, literatura sagrada.
Os textos religiosos foram escritos primariamente com
a intenção de ser organizado e organizador das relações com o
sagrado (ROSENSTOCK-HUESSY, 2002, p.40). Os textos de
lamentação tornam perceptível essa relação com o sagrado em
momentos de perda e sofrimento.
A linguagem religiosa pretende, através de símbolos,
estabelecer a relação com o sagrado. Os símbolos são “eternos em
sua mensagem e ilimitados em seu conteúdo” (ALVES, 1991, p.22).
As religiões “empregam essas imagens simbólicas e as utilizam
para se exprimir justamente porque o ser humano busca nelas, e
por meio delas, a representação da totalidade da vida e o sentido
da própria existência e do universo” (GOMES; COLONHEZI;
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2005, p.227,228). A religião e seus símbolos fornecem caminhos
para que os seres humanos se relacionem com seu mundo interior
e exterior (ALVES, 1991, p.24).
É a partir da linguagem religiosa que se estrutura a linguagem
religiosa de escrita, documentando as memórias religiosas dos
grupos afins.
A linguagem religiosa escrita reorganiza e propaga a
estrutura simbólica e subjetiva de determinado grupo religioso
e impede o surgimento de maus entendidos advindos de
lógicas contrárias aos seus sistemas religiosos e teológicos. Os
documentos sagrados de um povo são escritos para impedir a
elucubração dialógica que descaracterizaria os componentes
essenciais que definem tal grupo.
É na linguagem escrita que os componentes dos grupos
são vinculados entre si, e ela se torna um veículo promotor de
uma religião (PINTO, 2002, p.81-98). A literatura religiosa torna
perceptível, no momento necessário (geralmente num ritual
cúltico), a individualização e distinção do outro; e em outro
momento, a identidade coletiva. A linguagem apresentada nos
documentos religiosos aponta para o ideal de uma religião bem
como a sua teologia, isto é, seus modos de pensar sobre Deus e as
relações de Deus com o universo (BAUMANN, 2010).
Os documentos sagrados de um grupo é que proporcionam
uma observação do universo simbólico próprio de sua religião.
A literatura religiosa é uma das formas de comunicação que
pretende influenciar o outro e seu “[...] objetivo é sempre o
convencimento dos ouvintes ou leitores a adotarem uma atitude
ou comportamento ideal, de acordo com certos padrões religiosos
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já estabelecidos ou, ao contrário, como ocorre na profecia bíblica,
novos [padrões e comportamentos]” (MALANGA, 2005, p.31).
Em vários segmentos religiosos na história da humanidade,
atesta-se a presença de documentos religiosos. Onde são, por
vezes, registrados a partir de tradições orais com a finalidade
de responder às tensões externas ao meio e definir a identidade
religiosa-cultural do grupo. O antigo Oriente Próximo testemunha
essa produção literária de feitio religioso. O povo de Israel,
sobremaneira, contribuiu com esta perspectiva construindo um
cânon religioso, a saber, o Antigo Testamento.
As tradições religiosas (por vezes milenares) que produziram
literatura (em sua maioria sacra) foram oralmente transmitidas e
registradas para delimitar a identidade e status quo de determinada
sociedade (GRESCHAT, 2005, p.49-57). Para o antigo Israel, a
produção da Bíblia Hebraica, isto é, o seu conjunto oficial de
textos sagrados, consistiu num longo período e passou por diversas
etapas até a definição de um cânon oficial.
Para Alter, a “evidência dos textos sugere que o impulso
literário no Israel antigo eram inextricáveis, de modo que para
entender o segundo é preciso levar plenamente em conta o
primeiro” (ALTER; KERMODE, 1997, p.29). Em outras palavras,
o fenômeno literário em Israel está intimamente relacionado com
sua religião. Por conseguinte, os textos sagrados do antigo Israel
testemunham sobremaneira a presença de lamentações.
Segundo Rainer, podemos localizar o início desta intensa
atividade editorial em Israel durante o período da monarquia e,
principalmente, do exílio: épocas de tensões e ressignificações na
compreensão da realidade para Israel (RAINER, 2003). Na época
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do exílio, por exemplo, instaurou-se em Israel a necessidade de
ressignificação de seu universo religioso devido à conjuntura
política, econômica e social de Israel.
Dessa forma, os textos da Bíblia Hebraica interpretam e
descrevem os eventos passados à luz de sua cosmovisão [presente]
e, nesse contexto, os “artefatos que refletem este contexto”
(SMITH, 2006, p.36). A literatura sagrada de Israel é uma
narrativa interpretada e “suplementada” ao longo dos anos que
retrata a memória religiosa do povo. É por meio da narrativa que
Israel constrói sua compreensão da realidade: de Deus, de si, do
indivíduo e do mundo (SMITH, 2006, p.190-203). Desse ponto
é que se depreende sua teologia e a teologia das lamentações
(WESTERMANN, 1974).
Portanto, a Bíblia Hebraica é a fonte da qual nos
aproximamos das lamentações de Israel do antigo Oriente. A
linguagem de lamentação, portanto, pode ser acessada através da
verificação e análise das fontes na qual esse tipo de linguagem se
manifesta, isto é, na Bíblia Hebraica.
Ou seja, é a partir da análise dos textos de lamentações
neste conjunto literário sagrado da religião de Israel que
analisamos as lamentações e, significativamente, podemos
analisar os lamentos do saltério e aqueles fora do saltério,
embutidos nos livros proféticos. E assim, na busca de outras
expressões do fenômeno da lamentação, podemos encontrar nos
documentos de um povo, cultura ou religião, as peculiaridades
que depreendem tal fenômeno.
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3 O FENÔMENO DA LAMENTAÇÃO
A prática da lamentação é uma experiência internacional
ligada às tradições do antigo Oriente Próximo, anterior e além de
Israel. Mas essa experiência perpassa toda e qualquer cultura, pois
está vinculada à experiência religiosa do ser humano.
O Israel que encontramos nas páginas da literatura
canônica estava imbuído num universo maior que si mesmo. O
Israel corporativo foi influenciado pelas culturas que encontrou
no contexto geográfico e cultural em que se estabeleceu. Somente
assim, eles puderam, mais tarde, influenciar outros com sua
prática e literatura de lamentação.
O pressuposto de que a lamentação é um fenômeno
universal pode ser devidamente localizado entre as ciências
humanas e das religiões porque: envolve a existência humana e
suas relações, incluindo sua relação com o sagrado; e, demonstra
que o sofrimento é universal, para além das diferenças culturais,
suas expressões são particulares.
O sofrimento humano possuí dimensões individuais e
sociais. É resultado de diversos fatores como perdas, fracassos,
doenças, morte, violências, medos, conflitos inter e intrapessoais.
Em outras palavras, o sofrimento é parte integrante da vida
(GERSTENBERGER, 2007, p.7-16). A lamentação se faz parte
necessária da vida, da mesma forma. Significativamente, o
lamento é a linguagem do sofredor.
Os sofredores ao longo da história, especialmente a história
das religiões, recorriam à prática da lamentação para dar voz ao
seu sofrimento; recorriam aos lamentos em diversos contextos
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para fazer algo quando não havia mais nada o que fazer. Através da
lamentação, expressavam em liturgias, textos e canções as questões
profundas e complexas da existência humana; e, ao cantar suas
injustiças, expunham suas emoções dolorosas e perplexidades. Os
cultos e liturgias incluíam o espaço para o sofredor, não apenas
para os felizes e abastados. Com a liturgia de lamentação, o
sofredor não poderia acomodar-se diante da dor de suas perdas,
ele precisava passar por elas.
A prática da lamentação levava (leva) o ser humano a uma
experiência de superação do caos estabelecido em suas relações.
Ela fornece ao que se sente vitimado a oportunidade de atestar
sua finitude e falta de sentido e se dirigir em direção ao que lhe
dá segurança e sentido (CROATTO, 2010, p.41-46).
Considerando isso, a prática da lamentação constitui na
interioridade humana o desejo (inato) de organização de seu
universo e a possibilidade de esperança de salvação (CROATTO,
2010, p.46-48). Naturalmente, estamos considerando como
pressuposto básico o ser humano como ser inerentemente
religioso, isto é, como homo religiosus (homem religioso) (ELIADE,
2008, p.170). Portanto, a lamentação pode ser uma experiência
(hierofania) deste ser humano religioso com o mysterium (mistério,
divindade, Deus) por causa da vivência inevitável do sofrimento.
Como toda experiência religiosa, ela é constituída de: um
universo simbólico peculiar ao lamentador e à coletividade no
qual o individuo está incluso; e da possibilidade de relação com
o sagrado para que a pessoa liberte-se da dor ao experimentar
transcendência. Daí a importância da prática da lamentação estar
voltada para o sagrado, que é o que acontece visivelmente na
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tradição judaico-cristã.
Por isso, em uma dentre várias formas de lamentação, o
sofredor ou suplicante realiza em um ato de contestação contra
sua divindade, originada a partir do desconforto na relação de
um “eu/nós” com o “Tu”. Na maioria das vezes, esse tipo de
lamentação não exige reverência, nem qualquer pomposidade
litúrgica.
Os lamentos do livro de Jeremias, por exemplo, são
como desabafos perplexos de quem se sente humilhado pela
própria divindade. Peterson (2007, p.210) parafraseia Buber
exemplificando essa relação conturbada que existe na experiência
religiosa da lamentação:
Ele, a quem e por meio de quem a palavra é falada, é uma pessoa no pleno sentido da palavra. Antes da palavra ser proferida por ela na linguagem humana, ela lhe é falada em outra linguagem, da qual é traduzida para a humana, para ele esta palavra é dirigida como ocorre de pessoa a pessoa. Com o propósito de falar ao homem, Deus deve tornar-se uma pessoa, mas para falar a ele, Deus deve torná-lo uma pessoa também... De todos os profetas israelitas, somente Jeremias ousou notar esta corajosa e devota vida de conversação do totalmente inferior para com o absolutamente superior – em tal medida que o homem aqui se torna uma pessoa. Todo relacionamento de fé israelita é dialogal; onde o diálogo atinge a sua mais pura forma. O homem pode falar e é autorizado a tal; se apenas ele falar verdadeiramente com Deus, não há nada que o homem não possa dizer a Ele
(BUBER, 1949, p.164,165).
A lamentação, como fenômeno humano-religioso que é, dá
inteligibilidade ao caos existencial que o ser humano não pode
e nem consegue viver, proporcionando através de sua prática
a possibilidade de reestruturação da vida. Do ponto de vista
fenomenológico, a lamentação retrata o universo do sofredor e
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suas convicções religiosas.
Toda lamentação tem um “eu/nós” (implícito ou explícito)
que sofre algum infortúnio causado por outrem (inimigos ou algo
semelhante a isso como expressões simbólicas). Quem sofre é
porque perdeu algo e encontra-se sem esperanças de restituições
imediatas e equivalentes ao dano ocorrido. Para tanto, o lamento
é o choro mais profundo da alma que procura sair da tragédia
rumo à transformação. Ele dá o tom da interioridade nas palavras
e das ações de quem tem fé mesmo sem esperanças evidentes
ao seu redor. É uma experiência que preenche a lacuna entre as
hesitações humanas de crer e descrer diante as desgraças da vida.
Quem chora, lamenta para além de suas angústias e pode
se tornar simpático em relação às feridas alheias. A prática
da lamentação expande o universo interior do sofredor para
além de si mesmo, tornando-o solidário às experiências dos
solitários sofredores.
O lamento de um encontra eco na experiência de outros.
Embora a lamentação seja, muitas vezes, de linguagem estritamente
pessoal, ela tem identificação com o choro de outros que choram.
Portanto, é algo voltado para o individuo em si, mas encontra sua
expressão também no coletivo.
Em suma, lamenta quem sofre. Isso faz com que a
experiência do lamento seja universal. A presença de lamentações
na literatura do mundo antigo é prova de que desde épocas remotas
aguardava-se a salvação de seus “deuses” por causa do sofrimento,
ora causado pela própria degeneração da humanidade, ora
causado por inimigos da vida e deturpadores do amor.
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Todavia, a lamentação atesta através da riqueza poética do
individuo e de sua sociedade que é possível interagir com Deus
mesmo quando não há nada o que fazer e nem dizer. Em outras
palavras, a lamentação é o choro que atraí Deus, rememora a
consciência da presença viva dele e expressa o clamor da alma sem
formalidades mesmo na escuridão mais sombria das dificuldades
da vida. Aqui, neste momento, adentramos na teologia. O lamento
é a possibilidade do sofredor permanecer fiel a Deus diante dos
vários infortúnios da vida.
A lamentação presente na sociedade e literatura do Oriente
Médio, especialmente nas páginas das Escrituras hebraicas e
cristãs, é história e literatura, mas também o veredito de que a
humanidade chora suas dores; chora diante de Deus, aguardando
a intervenção salvadora do Senhor.
A lamentação permite que o ser humano veja o mundo
através das lágrimas, para então, ser possível “ver coisas que se
vêem com os olhos secos” (WOLTERSTORFF, 2007, p.30).
4 O LAMENTO: EXPRESSÃO ENTRE CULTURAS
A lamentação, fundamentalmente, surge a partir de um
senso de perda. A linguagem na qual se expressa, isto é, o seu
discurso, é particular. Normalmente, as expressões de lamento
estão associadas às canções e à poesia. Elas são produto da alma de
quem sofre. Cada qual em sua intensidade própria. O sofrimento
humano perpassa as épocas, culturas e tradições. Principalmente,
em culturas onde a violência e a exploração espreitam a vida.
Os lamentos na tradição cultural do antigo Oriente e do
Israel bíblico eram encontrados em forma de poesia, envolviam
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o culto e a comunidade e chegam a nós através de seus textos
sagrados.
Contudo, além da literatura sagradas dos judeus, o mundo
greco-romano também atesta a presença de lamentações em seus
textos e em sua mitologia. Os pesquisadores da literatura grega
encontram e analisam os lamentos da Ilíada (PERKEEL, In:
SUTER, 2008, 93-117): lamentos que falam de várias temáticas,
como morte e assassinato, miséria e dor, etc. Suter identifica
outras expressões de lamento que são registradas nesta cultura,
especificamente àquelas identificadas com a época micênica
(SUTER, 2008, 258-280).
A diferença que reside entre estes lamentos gregos e os salmos
hebraicos é que estes são escritos para servir de funções artísticas
somente ou para temática referente às boas e más escolhas da vida;
enquanto aqueles além de retratar a situação vivencial de uma
comunidade, também possui seus aspectos rituais e litúrgicos.
Não obstante, os lamentos hebraicos nascem da experiência que
passa da tradição oral para a escrita; os lamentos gregos nascem
em forma de literatura.
Em outras palavras, a lamentação bíblica, ainda que um
fenômeno universal, atesta a possibilidade de se fazer teologia
e entender como os antigos hebreus se relacionavam com Deus
(BAUMANN, 2011). O que não é possível com as lamentações
extra-bíblicas – apesar de elas atestarem o mesmo fenômeno.
A literatura moderna também incluiu textos de lamentação
e poesia de sofrimento. São textos que relatam determinadas
situações culturais e locais. Podemos encontrar nos poemas de
T.S. Eliot lamentos que descrevem desolações sociais e individuais.
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Através de seus personagens, Eliot expressa dramas poéticos em
forma de lamentação. Um de seus poemas é considerado um
grande lamento, com título em inglês “The Waste Land” (Terra
Desolada), datado de 1922. Nesse poema, percebem-se claramente
algumas temáticas semelhantes aos lamentos dos profetas bíblicos,
como: personificação da cidade, personificação da natureza, morte
e sepultura e imagens peculiares do seu tempo: fogo, afogamento,
trovões e cenas apocalípticas (RION, 2006). Essas imagens, diga-
se de passagem, são bem comuns para o homoreligiosus (homem
religioso).
Antes de Eliot, Dostoiévski escreveu um livro que pode ser
considerado um lamento: “Crime e Castigo”, publicado em 1866
na Rússia. Nessa obra, ele lamenta a maldade humana representada
pela soberba de Svidrigailov e Lujin (DOSTOIÉVSKI, 2002). É
notório o lamento que o escritor transparece por uma sociedade
injusta. Retrata a solidão humana de forma desesperadora,
semelhante ao sofrimento dos salmistas. Ainda que sob a ideologia
do existencialismo e com conexões religiosas, Dostoiéviski enfoca
predominantemente o tema da salvação por meio do sofrimento.
Alguns anos mais tarde, em “Os Irmãos Karamazov” (1879), ele
escreve que “as lamentações só se acalmam roendo e dilacerando
o coração. Uma dor assim não quer consolações, alimenta-se da
idéia de ser inextinguível. As lamentações são apenas a necessidade
de irritar cada vez mais a ferida” (DOSTOIÉVISKI, 2001, p.59).
Atualmente, Lee tem se dedicado neste tipo de pesquisa da
lamentação utilizando como ponto de partida de seus pressupostos
os lamentos bíblicos. Ela entende que a literatura bíblica não
deve ficar restrita somente às especulações acadêmicas, mas deve
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responder às questões relativas à vida humana. Lee entende
que o lamento bíblico, essencialmente voltado para Deus, é
um recurso elementar para as pessoas na contemporaneidade;
para aqueles que anseiam dar voz ao seu sofrer, autoafirmar-se e
encontrar esperança em meio às dificuldades sociais e individuais
pertinentes à sua cultura3.
Lee entende que esse tipo de cultura – identificada pelo
sociólogo polonês Bauman como modernidade líquida – é
permeada de perdas. Ela tem registrado o surgimento de lamentos
em sociedades mais violentas e onde a desigualdade social impera.
A pesquisadora acredita que as culturas contemporâneas onde a
perda é aguda, o lamento é necessário para dar voz e visibilidade
aos que sofrem. Por isso, acredita que os lamentos bíblicos podem
cumprir essa tarefa. Como consequências disso, as comunidades
religiosas de tradição judaico-cristãs devem dar continuidade
à prática humana de lamentação, tornando possível a conexão
entre o lamento particular dos tempos bíblicos e o universal,
comum aos seres humanos (LEE, 2010, p.21-72).
Portanto, o senso de perda é universal, a expressão dessa
perda – especialmente, aquela voltada para Deus – é particular. As
expressões de lamento ganham espaço, por exemplo, nas culturas
do antigo Oriente Médio; no antigo e moderno Israel; no sul da
África, no contexto da AIDS; ao norte da África o problema com
a malária; na população do Iraque afligida por guerras; nos países
onde imperam a pobreza e a desigualdade socioeconômica, como
3 Consulte as obras de Lee sobre o assunto: LEE, Nancy. Lyrics of Lament: From Tragedy to Transformation. Minneapolis: Fortress Press, 2010; e, LEE, Nancy. The Singers of Lamentations: Cities Under Siege From Ur to Jerusalem to Sarajevo. Leiden: Brill, 2002.
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alguns da América-Latina, entre os indígenas Xerentes no Brasil,
etc. Essas culturas expressam seus lamentos de seus hinos, canções,
poesias e orações e com isso têm dado voz ao seu sofrimento e
caminhado em direção à esperança e dignidade.
Lee também se dedica em encontrar na contemporaneidade
quem são os poetas e cantores que dão voz aos que sofrem, e as
novas formas que se apresentam os cânticos de lamentação. Por
exemplo, para a autora, a cerimônia chamada “dança do sol”,
realizada por tribos indígenas norte-americanas, é um ritual de
lamentação, respeitando toda diversidade e singularidade de
expressões religiosas dessa cultura. Esse exemplo, na argumentação
da autora, nos mostra a diversidade cultural das expressões
humanas para dar voz à sua dor (LEE, 2010, p.66,67).
O trabalho de Lee é o que nos parece ser o que mais
contextualiza o modelo bíblico da lamentação em face às
injustiças atuais4.
CONSIDERAÇÕES
A prática universal da lamentação está presente em
várias culturas. Sua linguagem é particular, como podemos ver
nas páginas da Bíblia. A lamentação bíblica encontra ecos nas
lamentações de hoje e nos serve de modelo para encontrar
paralelos significativos entre aqueles que sofrem.
O palco, intrinsicamente religioso do antigo Israel, torna-se
paradigmático para identificação desta universalidade do lamento
4 Consulte especialmente o capítulo dois, “Features of Traditional Lament Across Cultures” e o oito “From Tragedy to Transformation” do livro: LEE, Nancy. Lyrics of Lament: From Tragedy to Transformation. Minneapolis: Fortress Press, 2010, p.49-72; 197-208.
91Via Teológica | Igor Pohl Baumann, Vol. 13, n.26, dez.2012, p. 73 - 93
e do universo simbólico da linguagem de lamentação. Isso nos
dará legitimidade para uma aproximação do fenômeno na exegese
bíblica.
Quando partimos das lamentações bíblicas (específicas)
para a experiência universal do lamento (geral) e entendemos
a experiência religiosa; e, depois, voltamos à leitura dos textos
bíblicos, enriquecemos nossa capacidade de interpretação e
aplicação da mensagem bíblica aos que sofrem.
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