A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

Preview:

Citation preview

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 1/6

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 2/6

comum ou mesmo para a obtenção de consenso em matéria substantiva (o que seriairrealista), exige uma considerável disseminação de uma atitude, digamos, de fair play,de um consenso básico sobre normas elementares, que se materializa nos fundamentaisprincípios universais de tolerância, presunção de inocência, liberdade de expressão, deorganização etc. E a materialização deste conjunto de atitudes impõe certas exigênciasao contexto onde se movem as pessoas – como bem sabemos nós brasileiros, quetentamos a duras penas implementar este conjunto de procedimentos políticos de

inspiração universalista num ambiente de desigualdades que são sobretudo meramenteeconômicas.

Pois bem: a idéia de que acontecimentos como os de 11 de setembro em Nova York e Washington possam se repetir de tempos em tempos lança uma sombra que meparece incontornável sobre os padrões esperáveis da coexistência entre estranhos nomundo moderno. Se ao sair de casa para o trabalho num dia corriqueiro, em tempos depaz, sob plena vigência de instituições políticas democráticas, somos vítimas potenciaisnão de um crime isolado, mas de um morticínio em massa que pode alcançar milhares,não há tolerância ou   fair play que resista por muito tempo. A paranóia coletiva quetenderá a se apossar das pessoas que simplesmente desejam que seus filhos vivamconstituirá um trunfo eleitoral formidável nas mãos dos demagogos que se dispuserem

a vocalizar “soluções simples” violentas, intolerantes, sectárias, belicosas, racistas etc. Omedo coletivo pode certamente ser um cimento político poderoso. Mas não produziráuma democracia.

Mas que cenário absurdo é esse, o de um colapso da democracia? Alguém podeimaginar os americanos rasgando a constituição de seus founding fathers e correndoatrás de algum general golpista? Certamente que não. Mas a intolerância pode vicejarsob variados aparatos institucionais, e os próprios EUA já experimentaram, sobcondições talvez menos dramáticas, suas épocas de autoritarismo intolerante, como orápido mas traumático surto anticomunista vivido nos anos 50 sob a onda macartista,ou a longa vigência (quase um século) de legislação racialmente segregacionista noterritório de vários estados confederados da Guerra Civil. Em termos mais abstratos,Robert Dahl já nos demonstrou há quase meio século que um aparato institucional nãopode – por si só – impedir a tirania.

Mas, alguém dirá, morticínios em massa nunca deixaram de se fazer presentessobre a face da Terra. Para mencionar apenas as últimas décadas, o que dizer dasatrocidades cometidas na extinta Iugoslávia, em Angola, em Ruanda e Burundi, naLibéria e na Somália, contra curdos no Iraque e chechenos (e russos) na Rússia? Porque algo tão disseminado como a destruição em larga escala pode parecer tãoalarmante quando se dá em Nova York, e inconseqüente – ainda que deplorável –quando se dá na periferia do sistema internacional? A resposta pode parecer cínica –mas não é: estas coisas simplesmente não podem ser possíveis no centro do sistema,sem que o próprio sistema desmorone (e com ele a escala de valores em que se assenta).Qualquer que seja nossa orientação ideológica, o que pensamos diante de problemas

públicos são invariavelmente recomendações político-institucionais. Revolucionáriosou conservadores, pensamos numa estratégia que resulte na implementação de umordenamento político específico que organize pacificamente a coexistência das pessoas. Afinal, é para isso que uma ordem política presumivelmente serve, não? Para que aspessoas não se matem em massa. Assim, imaginamos que, se as pessoas que habitamcerto território se acertarem politicamente, os principais conflitos encontrarem umasolução de compromisso, regras básicas obtiverem adesão mais ou menos consensual,então tudo estará bem, e, apesar das pequenas e inevitáveis tragédias dos destinosindividuais, uma população poderá viver orgulhosamente sua história, e enfrentar emrelativa paz as vicissitudes de sua existência sobre a Terra. Mas se se tornacontinuadamente possível que uma população, mesmo sob plena vigência rotineira desuas instituições políticas, em período de paz e prosperidade econômica, se veja

confrontada com o assassinato em larga escala – então essas instituições se vêemdramaticamente ameaçadas em sua funcionalidade, e o próprio sistema de valoressobre o qual elas se apóiam encontra-se em xeque.

2

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 3/6

Da validez desta tese decorre uma série extensa de implicações, que passo aenumerar.

1.

Partindo de um ponto de vista que preze a democracia como um valor, é muitodifícil exagerar a gravidade do momento por que estamos passando, e a imensaimportância política, para a humanidade, das decisões que estão sendo tomadas nestes

dias. É absolutamente míope quem quer acreditar que este é um assunto que dizrespeito apenas aos americanos e a seus inimigos diretos. Independentemente daopinião que se tenha sobre a política externa americana (sobretudo a parcialidade nomínimo irresponsável de sua política para o Oriente Médio), a ameaça que uma “maré vazante” de valores democráticos nos Estados Unidos representa para a democracia emtodo o resto do planeta não deve ser subestimada, e nos deve advertir contra qualquertentação de uma euforia sadicamente revanchista contra a potência hegemônica domomento.

2.

Para a sobrevivência da democracia, será muito importante uma vitória cabalsobre o terrorismo. E uma vitória de tal magnitude que chegue mesmo a inviabilizar a

execução de ações de largo alcance como esta última. No que toca ao problema de comolidar com a atual situação, há três cenários teoricamente concebíveis.

O primeiro, já superado pelos fatos e praticamente inimaginável em se tratandode uma potência, envolveria certa abdicação à busca desta vitória, e poderia ser descritocomo a “tática do avestruz”: investigações conduzidas em um âmbito estritamentedoméstico, encaminhamento de protestos protocolares à apreciação das NaçõesUnidas, polidas solicitações de extradição encaminhadas pelos procedimentosrotineiros, sem brandir ameaças militares ou diplomáticas. Civilizada que seja (parece-me ser o único cenário em que se observam estritamente os ditames do direitointernacional), é patente que esta opção nos conduziria a assistir a uma escalada doterror. Talvez lenta, mas firme (nem que seja pela mera lógica de emulação que ações

terroristas ensejam), e sem perspectivas de regressão. A democracia, ainda que não  vivesse o risco de um colapso súbito, definharia certamente, à medida que seincrustasse o medo na rotina das pessoas.

O segundo cenário, ainda preocupantemente possível, é seguramente o pior detodos, e acho que poderíamos chamá-lo de “tática brucutu”: confiando em suasuperioridade bélica, obcecados por uma satisfação rápida ao clamor interno eprocurando capitalizar a crise para cristalizar uma hegemonia militar unilateral dealcance global, os EUA resolvem absurdamente acreditar que poderão desarticular oterrorismo pelo medo e partem resoluta e irrefletidamente para o ataque, de maneiramaciça, indiscriminada e pouco criteriosa, atacando países, bombardeando cidades, virando rapidamente o jogo no que se refere às baixas civis, e transformando todo oepisódio numa questão estritamente militar. Esta me parece ser de fato a armadilhaque o terror preparou para o governo americano. Se morderem a isca e produzirem aimpressão (bastará a impressão) de que travam uma guerra particular contra o Islã, osEstados Unidos estarão produzindo uma grave desestabilização de todos os governosde países muçulmanos, associada a um brutal fortalecimento do sentimento anti-ocidental e do fundamentalismo islâmico no Oriente Médio. A probabilidade de novasações terroristas (de renovada brutalidade, e não apenas nos EUA) crescerá vertiginosamente, e quase todos os países do mundo passarão, num segundo momento,a experimentar graves incertezas político-institucionais. Seria esperável uma reversãorelativamente abrupta da “onda” democrática em curso nas últimas décadas, com ocolapso de vários processos recentes de democratização, e um sensível“endurecimento” político em democracias mais consolidadas (que se resumem basicamente à União Européia, à insignificante Suíça e aos países anglo-saxões).

O terceiro é um cenário intermediário. Infelizmente, tampouco envolve garantiade sucesso, mas, diferentemente dos dois primeiros, não resulta irremediavelmente em

3

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 4/6

fracasso – e constitui, portanto, o único caminho que vale a pena tentar trilhar. Eledifere da tática do avestruz ao supor um comportamento muito mais agressivo dogoverno americano. E se distingue da tática brucutu por conferir prioridade a açõesdiplomáticas e de inteligência, a cujas conveniências se subordinaria o recursoocasional ao tacape militar. Neste cenário, os EUA, sabendo que precisam agir, mastendo também aprendido amargamente que têm uma retaguarda exposta na segurançados seus 280 milhões de habitantes, partem para uma agressiva ofensiva diplomática

contra o terrorismo, de caráter precipuamente internacional, visando a desmantelarseu apoio logístico e congelar suas movimentações financeiras, de maneira ainviabilizar sua operação em redes internacionais de longo alcance. Isto tomará anos, erequererá – além de estreita colaboração com vários governos estrangeiros,tradicionais aliados ou não, em matérias eventualmente sensíveis, como inteligência,informações sigilosas, investigações policiais etc. – também a disposição de atuar(clandestina ou ostensivamente, conforme as circunstâncias) em território alheio, depaíses que se mostrem não-cooperativos com o esforço internacional de repressão àsredes terroristas. Para tanto, os EUA e seus aliados mais próximos deverão estarpreparados para fazer concessões, mas também para eventualmente impor  acolaboração estrangeira por intermédio de um variado repertório de instrumentos, que vão desde o congelamento de ativos sob jurisdição americana até ameaças militares.Este cenário ainda admite, embora talvez não requeira, uma ampla mobilização militarprévia, com o propósito de respaldar a agressividade que se fará necessária no campodiplomático. Devemos nos lembrar de que falar em diplomacia, neste contexto, nãoquer dizer apenas acordos de cavalheiros em luvas de pelica, mas talvez sobretudo amão dura de uma potência que sabe que pode impor danos a seus rivais mesmo semação militar, e não hesitará em fazê-lo se assim parecer ditar o cumprimento de seusobjetivos. Um último atributo do “melhor” cenário: mesmo que tudo corra da melhormaneira possível e as redes de apoio a ações terroristas se vejam ao fim e ao cabodesmanteladas e sem condições de operar (o que de maneira nenhuma é certo), pareceinevitável que – antes que se alcance este ponto – o mundo tenha de atravessar umatemporária intensificação da magnitude e da freqüência de atentados terroristas contra variados pontos do globo. Ou seja: todos os cenários que consigo imaginar indicam umaumento das atividades terroristas no planeta a curto prazo – principalmente noOcidente.

3.

Não é difícil constatar que mesmo o cenário intermediário, o único promissor,não é muito “santo” no que toca à estrita observância dos princípios básicos do direitointernacional. E aqui cabe buscar um paralelo com a Guerra do Golfo. No caso dainvasão do Kuwait pelo Iraque em 1990, foi bastante fácil para os EUA invocarem umaflagrante violação do direito internacional, e portanto agirem o tempo todo amparadosem mandato das Nações Unidas. Agora, a situação me parece um tanto diferente:atacados em seu território, por criminosos estrangeiros, mas que desferiram o ataquede dentro do território americano, os EUA se arrogam o direito de ir em busca dasconexões internacionais dos agressores, onde quer que se encontrem, numcompreensível afã de “cortar o mal pela raiz”. Compreensível, mas ilegal, segundo meparece. Não sou especialista em direito internacional, mas receio que somente a “táticado avestruz” acima aludida permitiria aos EUA manterem-se estritamente no plano dalegalidade. A conclusão que me permito extrair é que a mudança de escala inauguradanas ações terroristas pelo presente episódio nos coloca face a face com um aspectoparticularmente brutal e complexo da globalização: o seu aspecto militar, implicado emalgo que poderíamos descrever como a globalização da segurança.

Temos um problema novo e explosivo aqui. Se o raciocínio aqui seguido fazsentido, então seria altamente desejável que a ONU mostrasse a necessária agilidade econseguisse produzir algum enquadramento normativo sobre o comportamento a ser

adotado pela comunidade internacional em casos futuros da ações análogas – quecertamente virão. Caso contrário, os EUA estarão (como já estão), livremente, abrindoprecedentes, “firmando jurisprudência” nesta matéria nova, que é a reação a atos

4

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 5/6

criminosos privados (e não atos de guerra) que todavia parecem requerer açãoagressiva – eventualmente em larga escala – fora das fronteiras nacionais.

4.

Se a segurança de todos os povos do mundo é, agora mais que nunca, umassunto global, então este episódio explicita dramaticamente um grau sem precedentesde interdependência política entre todos os povos do planeta. Fundamentalmente, a

mensagem que os atentados de Nova York e Washington transmitem para o mundohoje, e que se projeta intensificada para o futuro, é que nenhuma população civil estáem segurança na face da Terra enquanto prosperar – em algum ponto do globo – ocaldo de cultura que engendra o terrorismo.

Torna-se inadmissível, portanto, não apenas sob um ponto de vista estritamentehumanitário, mas agora também sob o ponto de vista da segurança da população dequalquer potência hegemônica, a perpetuação – em qualquer parte do mundo – deconflitos que se arrastem por gerações, gerando rancores que tornem plausível acoordenação em escala ampla de atos extremos como ações terroristas suicidas. Deagora em diante, sob a vigência de quadros como esses, torna-se flagrantementearriscada para uma potência hegemônica até mesmo uma política de não-

envolvimento, pois um interessado particularmente decidido pode tornar-lheimpossível não se envolver.

5.

Se (numa conjectura improvável) tudo sair da melhor maneira possível, e oterrorismo se vir efetivamente neutralizado, a democracia que resultará imediatamentedesse embate contra o terror já estará bastante distante de alguns de nossos melhoressonhos, e ainda mais próxima do que hoje de algumas contra-utopias de tipoorwelliano: vigilância policial onipresente, padronização e disciplinamento crescente derotinas variadas em nossas vidas, bisbilhotice estatal generalizada da vida do cidadão,expansão da importância dos serviços secretos nos orçamentos dos estados. Mas nempor isso podemos fazer pouco caso do processo que agora começa a se desenrolar em

reação aos atentados deste mês nos EUA. Pois, se ele der errado, temo que nossageração (como a que a antecedeu em um século) terá a oportunidade de presenciar umacruel reversão de expectativas sobre o padrão histórico esperado de evolução dasinstituições políticas em nossa época.

Só poderemos voltar a esperar a realização de algo mais próximo à democraciacom que todos sonhamos quando olharmos em volta e, por todo o planeta, sóencontrarmos democracias. Seja à maneira ocidental ou qualquer outra, de inspiraçãoislâmica, judaica ou num “consenso sobreposto” que abarque tudo e todos,precisaremos fazer com que – no mundo inteiro – os conflitos se mantenhamcircunscritos a marcos institucionais consensualmente acatados, e a princípios detolerância, presunção de inocência, liberdades diversas etc. etc. etc.

Minha única esperança de que esta não seja uma expectativaenlouquecidamente irrealista é que (se estiver correto o argumento de Abram DeSwaan)1 o próprio welfare state somente se viabilizou – ainda que aos trancos e  barrancos, e por enquanto apenas no plano doméstico de alguns poucos estadosnacionais tomados isoladamente – quando a pobreza dos pobres passou a produzirproblemas dos quais os ricos não conseguiam mais se proteger individualmente, e aimposição coletiva de uma proteção material mínima se viabilizou. Talvez – quemsabe? – algo análogo possa se dar no mais fundamental e árduo plano constitucional da vida política, no encaminhamento de soluções institucionais para conflitos periféricosmundo afora, sob o patrocínio de potências que já não conseguem mais se proteger dosefeitos desses conflitos no interior de suas próprias fronteiras.

Façam suas apostas: quantos séculos serão necessários?

1 De Swaan, A.. In Care of the State: Health Care, Education and Welfare in Europeand the USA in the Modern Era (Cambridge: Polity Press, 1988).

5

8/8/2019 A Velha Democracia e o Novo Terrorismo

http://slidepdf.com/reader/full/a-velha-democracia-e-o-novo-terrorismo 6/6

(Belo Horizonte, 16 a 23 de setembro de 2001.)

6