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UMA REFLEXÃO SOBRE A GREVE DE EISENSTEIN:
A MONTAGEM SOVIÉTICA COMO ESTRATÉGIA IDEOLÓGICA
Elen Linth Marques Dantas1
Resumo: Este artigo propõe uma discussão sobre o conteúdo ideológico contido na obra A
Greve (1945), de Sergei Eisenstein. Para tanto, este trabalho parte do entendimento das
principais influências que motivaram o cineasta russo, com foco sobre a sua trajetória do
teatro ao cinema e sobre a teorização de seu cinema intelectual, para a reflexão sobre a
dimensão política no seu processo de criação. O objetivo é apreender como a montagem de
atrações produzia o efeito ideológico a respeito da luta de classes e da aquisição de uma
consciência histórica dialética. Assim, a partir de uma análise do filme A Greve, busca-se
identificar como o cineasta russo utiliza a teoria da montagem para desconstruir a imagem do
herói individual idealizado em detrimento da consciência de classe.
Palavras-chave: cinema intelectual - montagem soviética - ideologia.
Sergei Mikhailovitch Eisenstein (1898-1948) foi um homem entusiasmado pelo
cinema, ligado a uma reflexão de esquerda socialista, com uma visão combativa e
revolucionária da arte. Pertenceu a uma geração de artistas que recebeu forte influência das
vanguardas europeias do início do século XX. Participou ativamente do processo inovador
que incidiu no desabrochar de um movimento cinematográfico novo, com forte contribuição
para a revolução das técnicas do cinema, que extrapolou os limites da União Soviética.
Teorizando, desenvolvendo e aperfeiçoando a técnica da montagem como base para somar a
um conhecimento da arte cinematográfica.
Neste sentido, o objetivo deste estudo é analisar através do filme A Greve (1945), de
Sergei Eisenstein, os principais conceitos cinematográficos da montagem soviética, buscando
compreender como tais conceitos esboçavam um conteúdo ideológico. Para que este objetivo
seja alcançado, esta pesquisa divide-se estruturalmente em três momentos:
1 Estudante do Curso de Cinema e Audiovisual. E-mail: cinema.elenlinth@gmail.com - (75) 9164-3313. Pesquisa orientada por Ana Paula Nunes e apresentada como trabalho final na disciplina Cinema I (Mundo), oferecida no semestre 2010.1.
Num primeiro momento, busca-se entender o caminho percorrido por Eisenstein.
Apresentando brevemente as principais correntes artísticas, filosóficas e psicológicas que
influenciaram as obras do cineasta, além de sua relação com o teatro de Emilevich
Meyerhold.
O segundo momento procura destacar as principais reflexões sobre o fazer cinema de
Eisenstein, destacando a montagem de atrações. Tendo como suporte teórico os estudos de
James Dudley Andrew, Robert Stam, Jacques Aumont, e Leandro Saraiva.
A terceira e última parte é uma análise de A Greve, centrado na discussão de algumas
sequências e cenas do filme. Neste momento, discute-se a relação dialética entre burgueses e
proletários e o conteúdo ideológico contido nessa obra.
O motivo pelo qual se optou por tal tema se dá, num primeiro instante, pela
curiosidade de como o cineasta russo conseguiu formar seu pensamento teórico e de como o
pôs em prática. Depois, ao assistir ao filme, percebe-se uma série de elementos para uma
análise a respeito da montagem e de como o mesmo a utiliza para fazer uma discussão
política, enfatizando o confronto e o conflito de uma sociedade desigual.
O cinema de Eisenstein sofreu reflexos das transformações no cenário político da
União Soviética e da atmosfera de controle e submissão ao Estado. Em que os cineastas não
podiam escolher os temas de seus filmes e seus projetos de trabalho eram submetidos à
apreciação do partido, seus roteiros eram analisados sob forte censura antes de liberados.
Sua filmografia é bastante conhecida, dentre as principais obras, destacam-se A greve
(1924), O Encouraçado Potemkin (1925), Outubro (1927), A linha geral (1929), Que viva
México! (1931) inacabado; Alexandre Nevski (1938); Ivã, O terrível (1944-1945) em duas
partes.
Segundo Leandro Saraiva (2008)2 em História do Cinema Mundial, Eisenstein
rompeu relações com sua família e seus estudos de engenharia para manter-se na organização
de espetáculos teatrais para os soldados do comumente conhecido Exército Vermelho (p.
109). Em 1920, abandonou o exército e ingressou na Academia Geral de Moscou onde se
juntou ao Teatro Operário Proletkult3 como desenhista, cenógrafo e logo, tornando-se diretor.
Depois de ganhar fama através do seu trabalho inovador na peça "O mexicano", Eisenstein
2 SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p. 109-141).
3 Prolekult é um neologismo proveniente da junção de cultura proletária. Foi um movimento literário surgido na Rússia em 1917. Entre seus criadores estão o teórico Alexander Bogdanov e o poeta Mikhail Gerasimov.
inscreveu-se na oficina de teatro de Emilevich Meyerhold, e colaborou com diversas
companhias de teatro vanguardistas, que compartilhavam entre si um desprezo pelas formas
tradicionais de arte e pela chamada "cultura elevada" em geral. Conforme Saraiva (2008) 4 em
História do cinema mundial, o movimento teatral de Meyerhold
dava prosseguimento à dissidência em relação ao realismo psicológico do Teatro de Arte de
Moscou, de Stanislavski (...) na década de 1910 desenvolveu um método novo de interpretação e,
no início dos anos 20, lançaria sua proposta de revolução teatral encenando espetáculos para um
público bem popular (...) o grotesco era mais que um estilo, era o princípio do método que em
1922 ele batizaria de ‘biomecânica’ (...) Apontava-se um caminho para a ‘teatralidade’,
reconhecida e exposta como linguagem, e não como mimese que oculta sua construção
(SARAIVA, 2008, p. 113-114).
A contribuição deste novo teatro para a causa revolucionária consistia numa destruição
da velha arte e na criação de uma nova e mais democrática. Os jovens artistas soviéticos
serviam-se das formas de cultura consideradas menos eruditas - o circo, o musical, os
desportos, as atuações de feira - para educar a imensa multidão de russos\ num "verdadeiro"
espírito comunista.
Portanto, a figura de Meyerhold aparece na história da arte soviética como expoente
do movimento futurista russo, cujos representantes, fascinados com o progresso científico, o
dinamismo e velocidade das transformações que viviam, passaram a defender uma arte
voltada ao futuro, a um novo ser humano, o defensor de um outro teatro.
Também sofreu influência de um conjunto de artistas da vanguarda, entre os quais se
destacam Mayakovsky, Malevich e Vladimir Tatlin. Eisenstein tomou parte na transformação
e reavaliação das grandes correntes artísticas da sua época (o futurismo e o simbolismo, por
exemplo), eles estavam envoltos por uma energia futurista, uma fascinação com as
transformações sociais. Foi ainda no teatro que nasceu a sua concepção de montagem de
atrações, “pois queria encontrar formas de expressão à altura da revolução em curso, capazes
de mobilizar pessoas”. (SARAIVA, 2008, p. 118).
Eisenstein participou também do movimento chamado “construtivismo”, que se trata
de um movimento das artes plásticas, do cinema e do teatro que ocorreu basicamente na
Rússia, com importante papel no apoio à Revolução Russa de 1917. Esse movimento defende
a arte funcional, que deve atender às necessidades do povo, pois para ele era justamente na
atividade do “construir” que estava o trabalho artístico.
4 SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p. 109-141).
O movimento construtivista russo foi caracterizado pela postura de negar a arte pura.
Pautando-se sobre um princípio utilitarista da arte, desenvolveu trabalhos utilizando recursos
naquela época, pouco convencionais, tais como a colagem, a fotomontagem, a tipografia, o
design de objetos utilitários: primavam pelo uso de cores primárias.
Além disso, conforme Saraiva (2008)5 em História do cinema mundial, a expressão
do lirismo não é o mais significativa na obra, destacando que a principal tarefa está
significativamente em como essa obra é feita. Para isso se faz necessário um artista-
engenheiro que possibilitará o conhecimento e a dominação da “fatura das experiências, a
ponto de poder calcular as reações dos espectadores” (p. 114-115).
James Dudley Andrew (2002)6 em As principais teorias do cinema: uma introdução,
aponta que, Eisenstein abomina o realismo, pois para ele arte não deveria imitar a vida, no
sentido da “réplica fiel da realidade”. O autor descreve que, o que mais chateava Eisenstein
nos filmes, era sua “ineficiência”, uma vez que, para o espectador, os eventos cotidianos não
eram diferenciados dos acontecimentos cinematográficos, pois a realidade era reproduzida
com uma enorme fidelidade.
A realidade para o cineasta deveria ser “material útil” nas mãos do diretor. Neste
sentido, os construtivistas mostravam tal realismo de várias maneiras, uma vez que, essa
forma levava
os vários aspectos do teatro para sua esfera, onde podiam ser recompostos de acordo com os
desejos formais do diretor. Os cenários não deveriam ser uma cortina de fundo do diálogo,
argumentavam os construtivistas, mas deveriam funcionar em igualdade de condições com o
diálogo, quase em diálogo com o diálogo. O mesmo com relação à iluminação, à perucaria, aos
figurinos e assim por diante, que deveriam coexistir em harmonia democrática, e não em uma
hierarquia feudal (ANDREW, 2002, p. 48-49).
Por negarem a “função de representação do mundo”, Eisenstein se aproxima desse
movimento e é bastante influenciado por essa visão de mundo, em que “os objetos
construtivistas não são orgânicos: eles são feitos de fragmentos justapostos, pedaços do
mundo que compõem um novo objeto”, como afirma Saraiva7 (2008, p. 115).
5 SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p. 109-141).
6 ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zarar Ed., 2002 (p. 46-71).
7 SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p. 109-141).
Outra grande influência em seu trabalho vem das teorias psicológicas nos anos 20,
pois Sergei tinha grande interesse pelos “processos de pensamento”, bem como pela
“significação dos estímulos individuais” nos espectadores. Mas é com o psicólogo Jean Piaget
que mais se estabelece relação entre seus pensamentos. James Dudley Andrew (2002) 8 em As
principais teorias do cinema: uma introdução aponta o egocentrismo, o símbolo do toque
primário, o raciocínio de montagem e o discurso interior como os elementos da relação entre
esses dois teóricos. O autor sugere ainda que, embora o cineasta não tenha incorporado o
vocabulário de Piaget, não se pode negar familiaridade em seus discursos (p. 56-57).
Andrew (2002) evidencia que a escolha das imagens, pelo espectador, solidifica sua
experiência anterior ao adquirir uma nova ideia. Eisenstein observa de muitas maneiras, que o
conhecimento adquirido pela visão é uma “atividade egocêntrica”. Toma como base para este
entendimento, as experiências de Piaget na observação de crianças entre dois e sete anos,
quando estas, “realizam o pensamento pré-operativo no qual suas representações não podem
ser diferenciadas delas mesmas”. Do mesmo modo, que Piaget expôs a prevalência do
símbolo do toque como “operação organizadora”, isto é, em que os símbolos se relacionam
com o caráter físico que simbolizam, este exemplifica com a história do parto de mulheres de
um povo da Filipina9 (p. 56).
O autor citado acima descreve ainda, outra relação entre Piaget e Eisenstein,
destacando uma descoberta do psicólogo quando percebe que as crianças medem o sentido,
olhando a alteração entre “dois estados terminais de um processo sem prestar qualquer
atenção aos estágios intermediários que os unem”. Andrew (2002) afirmar ainda, que este é
um dos motivos, pelos quais o russo é avesso ao plano geral, uma vez que, Eisenstein
preferia filmar fragmentos estáticos de um evento, energizando-os com um princípio dinâmico de
montagem. Para uma criança, pelo esquema de Piaget, e para uma plateia, pela teoria de
Eisenstein, é mais significativo mostrar três leões em rápida sucessão, todos estáticos, todos
ocupando uma posição diferente, mas juntos sugerindo uma excitação selvagem, do que mostrar
um leão realmente preparando-se para luta (ANDREW, 2002, p. 56).
8 ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zarar Ed., 2002 (p. 46-71).
9 Andrew (2002) cita que este povo dava “apoio espiritual às mulheres durante o parto mediante a abertura de todas as portas da aldeia” (p. 56).
Do mesmo modo que, para fazer o raciocínio de montagem, Eisenstein parte da
atenção aos “estágios terminais” de que fala Piaget. O russo compreende a disposição do
cinema, em manifestar a sintaxe do discurso interior, ou seja, “uma sintaxe de choques e
justaposição da imagem”. Para Piaget “as crianças operam num mundo de discurso interior
feito de uma colagem de imagens”. Neste sentido, existe uma relação do discurso interior
quando este confrontado com uma situação exterior, procedimento assinalado por diversos
aspectos que fazem referência ao fazer cinema de Eisenstein. Andrew (2002)10, em As
principais teorias do cinema: uma introdução, afirma que o discurso interior ocorre primeiro
no movimento consciente de uma sequência de imagens a outra sequência de imagens. Segundo,
ele é transdutivo a partir do momento em que a criança atribui causa aos elementos associados
visualmente pela justaposição. Finalmente, exibe um sincretismo básico que reúne numerosos
elementos num único evento (ANDREW, 2002, p. 56-57).
Portanto, embora Eisenstein não incorporasse a linguagem de Piaget, como citado
acima, a intenção do russo era que o cinema gerasse o discurso interior. No sentido, em que
tal discurso, fosse motivado pela montagem e levado a uma emoção significativa pela
justaposição da imagem.
Um aspecto particular da compreensão do cinema de Sergei Eisenstein, diz respeito ao
modo, de como o russo discordava da linearidade da linguagem narrativa. O americano David
Griffith é expoente de uma narrativa homogênea. Pois dá forma a regras de continuidade, que
conduzem os estilos de apreensão de planos, para que a utilização da montagem possa criar
um trabalho linear, coerente e homogêneo.
Contestando a esse estilo de narrativa clássica de Griffith, Eisenstein aparece para
discutir e subverter, e por que não, revolucionar essa gramática. Os conceitos idealizados pelo
cineasta russo indicam de modo metódico e teórico, recursos e alternativas para o ilusionismo
do cinema norte americano. Segundo Jacques Aumont e Michel Marie (2009)11 em
Dicionário teórico e crítico de cinema, Eisenstein procurava um cinema em que a montagem
passasse, de modo deliberativo violento, de uma atração a outra, ou seja, de um movimento forte e
espetacular, relativamente autônomo, a outro, em vez de procurar a fluidez e a continuidade 10 ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zarar Ed., 2002 (p. 46-71).
11 AUMONT, MARIE, Jacques, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 4ª. Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.
narrativa. Trata-se de colocar as premissas de um cinema discursivo e político, oposto ao cinema
narrativo burguês (AUMONT e MARIE, 2009, p.25)
Eisenstein sugere uma maneira de composição narrativa através da montagem. Seu
estilo de montagem, que mais tarde ficou conhecida como montagem intelectual, rompe
completamente com a finalidade ilusionista, a qual propõe o conflito-justaposicão de planos
significativos paralelos. Fundamenta-se, principalmente, na idéia de que “dois pedaços de
filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova
qualidade, que surge da justaposição”, afirma Eisenstein (2002, p. 14) em O sentido do
filme12.
O termo montagem de atrações, em sua definição corrente, o do music-hall ou do
circo, foi utilizado primeiramente no teatro e depois no cinema. Eisenstein toma nesta
ocasião, o teatro como instrumento de agitação política. Seria justamente isso que o arrastaria
à inquietação com essa mente do espectador e com as probabilidades artísticas de instituir um
resultado sobre o pensamento. Sergei visava através da montagem e da noção de atração as
ferramentas para chegar a essa sua finalidade.
A justaposição de planos conflitantes, isto é, planos que contenham elementos
organizados de forma radicalmente irregulares, acabariam por gerar um novo sentido no
espectador, ou seja, Eisenstein tinha a intenção de criar no plateia uma sensação não de
alienação, mas de trazê-la para dentro do filme como participante ativo. Em As principais
teorias do cinema, Andrew (2002) 13 alega que, “Eisenstein, ao obrigar o espectador a criar a
imagem, reunindo todas as relações entre atrações, dá ao espectador não a imagem completa,
mas a experiência de completar a imagem” (p. 69).
Desta forma, a organização de um conceito não é produzida a priori ou ajustada de
modo indiscutível, como incide no modelo griffitiniano. É revelada ao espectador, e é este
que irá atingir a ação síntese das informações e, a partir disso, atingir seu próprio
entendimento.
Desta forma, o interesse de Eisenstein era muito mais pela interpretação do conteúdo
relativo ao filme do que pelo aspecto material de tal conteúdo. No ponto de vista de Aumont
(2009)14 em A estética do filme, “o filme não tem como tarefa reproduzir o real sem intervir
12 EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de janeiro: Jorge Zahar. 2002
13 ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zarar Ed., 2002 (p. 46-71).
14 AUMONT, Jacques (org). A estética do filme. 7ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009 (p. 59-88).
sobre ele, mas, ao contrário, deve refletir esse real, atribuindo a ele, ao mesmo tempo, um
certo juízo ideológico” (p. 79). Ou como se vê em Stam (2009)15, “a montagem era, pois a
chave tanto para o domínio estético como ideológico”. O autor afirma ainda que, para
Eisenstein, o cinema era antes de tudo “transformador”, uma vez que, era pela “prática social”
e não pelo seu espetáculo de beleza, ao “submeter o espectador a um choque de consciência
com relação aos problemas cotidianos”, que ele teria sua “forma ideal” (p. 58).
A questão ideológica é entendida neste trabalho como uma reunião da percepção
intelectual e das crenças adequadas a uma transformação social. Eisenstein utiliza-se para a
verdade de seu discurso as “leis do materialismo dialético e do materialismo histórico”, de
acordo com Aumont (2009, p. 79)16. Do ponto de vista marxista, segundo Cabrera (2006) 17
em O cinema pensa, o cinema poderia ser visto como um “tipo de linguagem essencialmente
revolucionária ou pelo menos transgressora, subversiva, hipercrítica”. Para o autor, foi
exatamente dessa maneira que a sétima arte foi vista por Sergei Eisenstein (p. 263).
Também é possível fazer uma relação desse conteúdo ideológico da obra de Eisenstein
às várias metáforas presentes em seus trabalhos. Uma vez que, ao justapor duas imagens, que
visivelmente não teriam qualquer relação, pela capacidade metafórica é possível criar uma
relação entre as mesmas. Neste sentido, metáfora é “o resultado de uma operação altamente
pessoal, em parte arbitrária, e que resulta de uma verdadeira interpretação”, segundo Aumont
e Marie (2009)18 em o Dicionário teórico e crítico de cinema. Ainda, para os autores
mencionados a cima, a metáfora fílmica pode ser entendida através da transferência de um
componente relacionado ao filme por outro, obtendo uma mudança de significado (p. 185).
No caso de Eisenstein, sua intenção era que, antes do final do filme, o espectador
comece analisar a relação de poder estabelecida pelo capital em detrimento ao trabalho. Neste
sentido, pode-se dizer que Sergei lançou mão dos elementos da linguagem cinematográfica
para aplicar seu ponto de vista ideológico. Ponto de vista da classe operária e um sentido de
revolução.
15 STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. 3ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009 (p. 54-63).
16 AUMONT, Jacques (org). A estética do filme. 7ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009 (p. 59-88).
17 CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 (p. 261-286).
18 AUMONT, MARIE, Jacques, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 4ª. Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.
Levando em consideração que Eisenstein é um experimentador, buscava nas mais
diversas correntes, bem como nos teóricos, elementos para sua reflexão e visão de mundo. Foi
influenciado primeiramente pelo teatro, bebendo na fonte da arte e teorizando através da
psicologia e sociologia que obteve subsídios para criar sua primeira obra, A Greve (1924), que
aparece como uma inovação no cinema mundial.
A Greve (Stachka) estreou em fevereiro de 1925, foi filmado entre julho e outubro de 1924, e sua montagem concluída em dezembro do mesmo ano. Conta a história de um motim
de proletários contra os patrões burgueses, ricos aristocratas de uma fábrica em Moscou.
Nessa fábrica da Rússia Czarista, o dia-a-dia parece calmo, pois os operários
trabalham e a burguesia possui uma vida de privilégios. Contudo, essa paz não é verdadeira,
uma vez que, há uma agitação entre os operários, tal agitação é comunicada a direção por
pessoas de confiança. Logo a polícia é comunicada, que infiltra espiões na fábrica para
acompanhar a movimentação dos operários.
Apesar dos apelos à greve pelo comitê, a revolta estoura quando um dos empregados
da fábrica se suicida, por ter sido, falsamente, acusado de ter roubado umas das peças da
maquinaria. Fato que provoca uma agitação no interior da fábrica que culmina numa grande
greve daqueles trabalhadores. A partir daí os trabalhadores paralisam a fábrica e se
organizavam para discutir suas reivindicações. Durante este processo de reunião dos
operários, os patrões em união com a polícia tentam sabotar os trabalhadores com um
incêndio em um depósito de vinhos, pois certos que os operários iriam saqueá-lo, por estarem
passando fome. Todavia, o plano fracassou, pois os operários não aceitaram tais provocações.
Como o plano não deu certo, a polícia “infiltrou” um dos trabalhadores, por meio de ameaças,
no seio da luta grevista. No entanto, fracassado o intuito os grevistas foram massacrados num
confronto impiedoso pela polícia. Apesar da tentativa aqui, de relatar a sequência narrativa
deste filme, A Greve não conta propriamente uma história, mas mostra uma ideia – o quadro
geral de uma greve.
Este filme refletia já a afeição não só de Eisenstein em se centrar no povo e a verdade
é que neste filme não há um protagonista. Contudo, há vários que, em conjunto, lutam contra
um opressor poderoso, trabalhando o filme como um intenso ensino dos ideais socialistas da
época.
Em seu primeiro longa-metragem, os órgãos de crítica do Partido o receberam muito
bem. Pois o efeito que Eisenstein obteve neste filme foi enorme para um diretor que acabara
de sair do teatro, sem muita experiência com a arte cinematográfica. Contudo, é sem dúvida
nenhuma, que sua marca essencial foi à utilização da montagem, para explicitar o conflito
dialético entre a massa operária e a burguesia, representada pelos patrões. Uma evidente
valorização dos operários como protagonistas em substituição ao herói individual e burguês.
Os artistas jovens de vanguarda, após a revolução bolchevique, estavam vivendo um
processo de enorme experimentação de sua arte. O tradicional havia sido rechaçado por estes,
que clamavam pela liberdade das convenções estéticas de caráter burguês. O teatro foi um
espaço propício, para a substituição do herói burguês, por uma leitura em que a ação deveria
ser de massas e não individualizada, quebrando claramente com o modelo psicologista do
cinema burguês.
A discordância artística do teatro, e que Eisenstein não localizava no cinema, referia-
se ao controle e ao acesso sobre a emoção do espectador. Sobre a questão da influência sobre
o espectador, Aumont (2009)19, em seu livro A estética do filme, diz que, modo de falar de
Eisenstein sobre a atividade psíquica, embora tenha variado ao longo de sua carreira, leva em
consideração “a suposição de certa analogia entre os processos formais no filme e o
funcionamento do pensamento humano” (p. 85).
Eisenstein foi inserido no mundo de cinema pelo russo Kuleshov, que com suas
experimentações a respeito da montagem, já havia evidenciado que, a edição teria a
capacidade causar implicações de maior ímpeto sobre a audiência, do que a própria expressão
gestual dos atores em cena. Então Sergei, observou quem em A Greve, podia também
experimentar este princípio, como uma comprovação particular de que a arte cinematográfica
seria seu principal instrumento para a utilização para a sua montagem de atrações. Entre as
autoridades do partido comunista, tal empreitada de grande sucesso, aponta um resultado
ideológico de luta contra um estado burguês.
No bojo do julgamento a respeito da arte dita “tradicional”, o filme de Eisenstein se
apresentava na contramão do que era proposto por Griffith, pois os filmes produzidos pelo
norte-americano evidenciavam o herói individual e idealizado e a narrativa linear, o que
justamente, Eisenstein criticava e abandona no teatro.
O cineasta da montagem soviética não destacava as personagens de caráter
individualizado, ao contrário enfatizava tipos gerais como o gerente, o espião, o trabalhador.
Para Saraiva (2008)20 em História do Cinema Mundial, o cineasta optava pela escolha de
19 AUMONT, Jacques (org). A estética do filme. 7ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009 (p. 59-88).
20 SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008 (p. 109-141).
personagens sem “dramas pessoais” pra não gerar “identificação psicológica do espectador”
(p. 121).
A história de A Greve está dividida em seis partes, assinalando o rompimento de
linearidade (ruptura de uma leitura linear), e esse corte vai desempenhar uma função de
atração e transpor uma ideia de conflito para dá sentido a sua produção. Segundo Aumont
(2009)21, em A estética do filme, conflito é para Sergei, o “modo canônico de interação entre
duas unidades quaisquer do discurso fílmico”. Noção esta, que deriva do conceito de
“contradição” da filosofia marxista (p. 83).
Como afirmado anteriormente, o filme não enfatiza minúcias de detalhes ligados a
uma ação cronológica e raciocínio linear. Contudo, traz uma grande colagem, com sequências
e cenas de uma greve, em que os trabalhadores saem em motim e são perseguidos por
policiais, porém tais operários enfrentariam os infortúnios da paralisação através da
consciência de classes e da luta e reorganização política. Neste sentido, as ideias de tensão,
conflito, contraponto são essenciais na estética de Eisenstein, pois o cineasta influenciado
tanto por Hegel como por Marx, a luta dialética dos contrários anima não somente a vida social,
mas também os textos artísticos. Eisenstein estetiza a dialética hegeliana e marxista, ainda que, de
certa forma, temporalizando as justaposições fundamentalmente espaciais da colagem cubista
(STAM, 2009, 58-59).
O indicador mais presente do filme é o uso de metáforas visuais. Por exemplo, a
obesidade ressaltada do patrão capitalista em relação aos outros personagens; a analogia
estabelecida entre os espiões e os animais; as máquinas que param e os operários de braços
cruzados; a mítica cena em que o patrão esmaga o limão no espremedor enquanto que os
policiais, a cavalo, avançam sobre os operários revoltosos e suas famílias ou mesmo a clássica
seqüência fragmentada e intercalada entre a repressão ao movimento grevista e o matadouro
de animais são evidências inconfundíveis. O processo de montagem, estabelecido por uma
relação dialética, quer criar, ao mesmo tempo, um choque entre as imagens e produzir, como
resultado, uma arma poderosa para emocionar o espectador.
Contudo, ao fazer o uso de metáforas visuais, o cineasta quis antes de tudo, através do
raciocínio da montagem de atrações, causar um efeito ideológico sobre a luta de classes e a
obtenção de uma consciência histórica. Julio Cabrera (2006)22 em O cinema pensa: uma
21 AUMONT, Jacques (org). A estética do filme. 7ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009 (p. 59-88).
22 CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 (p. 261-286).
introdução à filosofia através dos filmes, fala de um “discurso político de tipo persuasivo-
transformador”, em que a linguagem cinematográfica é posta pelo cineasta no cinema político
a serviço de uma ideia, em prol de uma transformação, e não formulada como uma consideração
meramente objetiva e distanciada a respeito de um objeto do mundo. A impositividade da imagem
é utilizada não só em benefício de um sereno conhecimento do mundo, mas na busca da persuasão
(CABRERA, 2006, p. 269).
As metáforas foram estabelecidas através da sobreposição de imagens justapostas
umas às outras. E ao se utilizar desta ferramenta, Eisenstein convida o espectador a raciocinar,
pois a mensagem do filme não era puramente comunicada, mas construída ao longo do filme.
Neste sentido, A Greve apontava aos cineastas russos toda a capacidade da montagem e com
isso mostra-se, de uma vez por todas, o estilo não naturalista da obra de Sergei.
O filme exibe as imagens captadas em locais diferentes, mostrando que a montagem
era capaz de induzir, através da utilização da metáfora visual, a imaginação do espectador. As
relações psicológicas, instigadas com esta obra de Eisenstein, eram determinadas pelo
contraste produzido pela justaposição das imagens, em que o espectador era levado a
confrontar duas imagens. Um bom exemplo, desta questão, é a justaposição da imagem do
homem com a coruja, pois o cineasta obtinha pela generalização entre as imagens, a ideia de
um homem inescrupuloso e astuto.
Além da premissa construtivista de A Greve, outro fator que aparece no filme, é o
aspecto fragmentado, pois suas imagens são ligadas de uma maneira muito rápida do inicio ao
fim da obra. É possível, associar esta aparência fragmentada às premissas cubistas e, pela
velocidade e ritmo aos futuristas, ou seja, este filme marca as posturas de Eisenstein diante da
arte.
A associação com os socialistas é feita pelo clima da luta de classe e pelos conflitos e
contradições que aparecem na obra, pois existe em Sergei um compromisso com a dimensão
política e social, encarada em A Greve como a construção de uma nova sociedade. A
percepção do espectador era convidada a centrar seu olhar sobre a alienação do trabalho23,
sobre o poder das forças produtivas e do capital, bem como a relação de classes estabelecida
entre a burguesia e o proletariado.
Uma vez atraída a percepção do espectador através da montagem, o passo seguinte
seria fazer com que este, estabelecesse relações de pensamentos sobre os temas abordados,
23 Entendida aqui como a produção da atividade humana e do próprio trabalhador, transformada em algo alheio a sua própria existência.
puxando os operários a uma posição de participantes ativos da obra, ou seja, ele retirava o
espectador da zona de conforto e problematizava as questões com a ajuda da plateia. Pois a
imagem da fábrica nos mostra a dimensão da produção e do trabalho no mundo capitalista, é
como se Eisenstein objetivasse que o espectador internalizasse algo sobre a organização do
trabalho no mundo capitalista pré-revolucionário e apontasse, em oposição dialética, o
processo revolucionário. Eisenstein estabeleceu deste modo, um conteúdo ideológico, que
enfatiza aspectos aplicados às finalidades socialistas.
Portanto, Eisenstein associa ideologia e montagem. O cineasta soviético considerava
que na montagem se encerram as formas ideológicas e um filme novo não poderia prescindir
de uma forma nova de construção. Esta tese foi levada às últimas consequências pelo próprio
cineasta que acabou inaugurando um método de montagem para tratar os conflitos de forma
dialética e deixá-los explícitos em seus filmes.
O surgimento da vanguarda desse novo modelo cinematográfico contribuiu para
apresentar de forma autêntica a construção de uma prática artística consciente de seu papel
histórico de conscientização e transformação social.
O processo teórico de Eisenstein será sempre uma ferramenta no que se refere à ideias
mais radicais no cinema mundial. Uma vez que, sua teoria inaugura uma nova maneira de ver
o cinema, bem como, rompe com elementos conservadores. Por isso e por outras questões, o
trabalho do russo Eisenstein, seja nas obras cinematográficas, bem como na sua reflexão
teórica apurada ao longo de anos, influenciou e continuará influenciando uma enorme gama
de cineastas, escolas e pesquisas.
A Greve é, sem dúvida, um filme experimental em que um emaranhado de ideias
inovadoras são colocadas em prática lançando as bases para suas demais obras
cinematográficas.
Bibliografia
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AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995.
AUMONT, MARIE, Jacques, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. 4ª. Ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.
CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006 (p. 261-286).EISENSTEIN, Sergei. A Greve. 1924.
EISENSTEIN, Sergei. Montagem de Atrações. In: XAVIER, I. (Org.) A experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal: 2003.
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SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, Fernando (org). História do cinema mundial. 4ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2006 (p. 109-141).
STAM, Robert. Introdução a teoria do cinema. trad. Fernando Mascarello. Campinas, SP: Papirus, 2003.
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