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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
2011
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito do Estado, área de concentração Direito Tributário, sob a orientação do Professor Emérito Paulo de Barros Carvalho.
SÃO PAULO
2011
3
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
4
Dedico este trabalho aos meus pais,
Holanda e Eliane, por tornarem este sonho possível,
e ao meu querido avô Zuzu (em memória) pelo incentivo e exemplo de amor à vida.
5
Agradecimentos
À minha família: minha mãe, Eliane, meu pai, Holanda, minha irmã, Daniela, e
meu irmão, Neto, pela confiança e amor incondicional.
Ao meu marido e amigo, Maikel, pelo amor, compreensão e paciência.
Ao meu avô José Holanda da Silva (Zuzu) pelo exemplo de amor à vida e vontade
de ser “grande”.
Ao Professor Paulo de Barros Carvalho, mestre e orientador, pela confiança no
meu trabalho e pelo incentivo acadêmico renovado dia após dia. Atribuo ao meu mestre a
minha paixão pelo direito tributário, pelo rigor científico e pela leveza dos seus ensinamentos
que a mim são muito caros.
Ao Professor Rodrigo Dalla Pria, pela generosidade e apoio durante toda esta
caminhada acadêmica que se iniciou ainda no curso de especialização em direito tributário na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP/Cogeae.
Ao querido amigo, Mantovanni Colares, pela sinceridade, incentivo e pelo tempo
que dispôs para as correções e orientações.
6
As Imunidades Tributárias e a Livre Concorrência
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
RESUMO: Trata-se de delimitar os campos jurídico-normativos próprios do sistema tributário
e do sistema econômico, com o objetivo principal de estudar a decisiva interdependência entre
os referidos sistemas a partir da identificação de alguns dos elementos que tornam possível este
entrelaçamento sistêmico. Delimitadas as premissas epistemologias que orientam este estudo,
define-se a abrangência semântica das imunidades tributárias, especialmente as imunidades
recíprocas e os efeitos da concessão desses incentivos perante a o princípio constitucional da
livre concorrência.
Palavras-chave: Imunidades tributárias – Livre concorrência – Sistema jurídico – Sistema
Econômico – Intervenção do Estado no domínio econômico – práticas fiscais exonerativas.
7
Tax immunities and Free Trading
Flávia Lorena Peixoto Holanda Brumatti
ABSTRACT: This paper aims to delimitate the legal-normative range fitting to the tax system
and the economic system in order to investigate the critical interdependence between these
systems by identifying some of the elements that make possible this systemic entanglement.
Delimited the epistemologies assumptions that guide this study, we define the semantic scope
of tax immunities, especially the reciprocal immunity, and the grant of such incentives before
the constitutional principle of free competition.
Key words: Tax immunities – Free trading – Legal system – Economic System – State
intervention in the economic domain - Tax practices exonerated.
8
Sumário
Introdução .............................................................................................................................. 10
PRIMEIRA PARTE: UM CONCEITO DE SISTEMA E A INTERAÇÃO ENTRE O SISTEMA JURÍDICO E O SISTEMA ECONÔMICO
Capítulo I – Para um conceito de sistema: pressupostos teóricos ...................................... 22
1.1. Como pensar um sistema? ................................................................................................. 22
1.2. O sistema: delimitação do conceito ................................................................................... 29
Capítulo II – O Sistema Jurídico ......................................................................................... 34
2.1. Sistema Jurídico: o direito ................................................................................................. 34
2.2. O fechamento operativo do Sistema Jurídico .................................................................... 35
2.2.1. A linguagem jurídica ...................................................................................................... 36
2.2.2. Estrutura sintática das normas jurídicas ......................................................................... 39
2.3. A abertura semântico-pragmática do Sistema Jurídico ..................................................... 43
2.4. Sistema Jurídico Tributário: processo de diferenciação funcional .................................... 46
2.5. Sistema Jurídico Econômico: a ordem econômica constitucional ..................................... 49
2.6. Anotações sobre uma interação entre os subsistemas jurídicos: tributário e econômico .. 58
SEGUNDA PARTE: AS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS E O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA
Capítulo III – Competência Tributária: aptidão para instituir e exonerar tributos ....... 68
3.1. Sobre o conceito de competência ...................................................................................... 68
3.1.1. As normas indiretas da ação ........................................................................................... 76
9
3.1.1.1. A ontologia das normas ............................................................................................... 76
3.1.1.2. As normas jurídicas ônticas ......................................................................................... 79
3.2. Competência Tributária e a Constituição Federal de 1988................................................ 84
Capítulo IV – As Imunidades Tributárias do Art. 150, VI, da Carta Magna de 1988 .... 94
4.1. A definição do conceito de imunidade tributária............................................................... 94
4.2. As Imunidades tributárias do Art. 150, VI da CF/88 ...................................................... 107
4.2.1. A Imunidade Recíproca ................................................................................................ 107
4.2.1.1. A Imunidade Recíproca e os casos de repercussão geral em Recurso Extraordinário no
Supremo Tribunal Federal ...................................................................................................... 113
4.2.1.1.1. Imunidade Recíproca – IPTU – imóvel de propriedade de ente público explorado
economicamente por concessionária – empresa privada ........................................................ 114
4.2.1.1.2. Imunidade Recíproca – Sociedade de Economia Mista – prestação de serviço de
saúde ....................................................................................................................................... 118
4.2.1.1.3. Imunidade Recíproca – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – serviços em
regime de concorrência ........................................................................................................... 125
4.2.2. Imunidade dos tempos de qualquer culto. .................................................................... 131
4.2.3. Imunidade dos partidos políticos e das instituições educacionais ou assistenciais ...... 133
4.2.2. Imunidade dos livros, periódicos e do papel destinado à sua impressão ...................... 136
Capítulo V – Análise do princípio da livre concorrência e da tributação ....................... 139
5.1. As normas jurídicas econômicas ..................................................................................... 139
5.2. O princípio da livre concorrência e a Lei nº 8.884/94 ..................................................... 144
5.2.1. CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica: algumas anotações ........... 147
5.3. O princípio da livre concorrência e o art. 146-A da Constituição Federal de 1988 ........ 149
TERCEIRA PARTE: CONCLUSÕES ............................................................................... 154
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 175
10
Introdução
Selecionar um tema desta magnitude como objeto de estudo requer um
esforço teórico preciso e imensamente cauteloso, uma vez que a ausência de rigor no trato de
cada termo da equação imunidades tributárias e livre concorrência pode gerar complicações
epistemológicas ainda maiores.
A preferência pela análise do direito e dos inúmeros vínculos existentes
entre suas estruturas sistêmicas, é uma tentativa de retorno a uma questão ontológica, que
posiciona o sistema jurídico tributário de um lado e o sistema jurídico econômico do outro.
Contexto que fomenta tensões tão antigas quanto contemporâneas, na medida em que os
efeitos jurídicos e econômicos se entrelaçam simultaneamente no compasso evolutivo1 do
sistema social, compondo, sob diversos aspectos, o cerne do sistema jurídico autopoiético,
cujo instrumento que se pretende estabilizador dessas relações é o direito positivo.
Neste ponto introdutório, destacarmos que a terminologia “sistema social
auto-reprodutivo ou autopoiético”, adotada por Niklas Luhmann, teve inspiração nas ciências
biológicas, especificamente no modelo biológico desenvolvido por Maturana e Varela. O
termo autopoiesis, por sua vez, obteve repercussão no campo da sociologia somente quando
1 “A evolução dos sistemas é o resultado de um processo de variação, seleção e estabilização. Evidentemente, esse não é um processo linear, nem uniformemente distribuído e ativado em todos os sistemas e nem causal e imanente aos sistemas. Evolução que não quer dizer progresso e também não está coligada a nenhuma conotação valorativa. Evolução é simplesmente acréscimo da complexidade, multiplicação do número de alternativas de escolha e possibilidades de ação.” Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 88.
11
Niklas Luhmann o inseriu como premissa epistemológica para o estudo da sociedade
enquanto um sistema comunicacional operativamente fechado.
Celso F. Campilongo Luhmann assevera que:
“O neologismo, tão esotérico quanto as ideias de Luhmann, transporta para os sistemas sociais o conceito de autopoiesis desenvolvido por Maturana e Varela para o exame dos sistemas biológicos. Esses sistemas seriam auto-referencias, isto é, organizados e reproduzidos por meio de circulação interna de elementos inerentes ao próprio sistema. Maturana e Varela, a partir de um livro publicado em 1973, no Chile (De maquinas y seres vivos), desenvolvem a tese de que os sistemas celulares possuem, internamente, todos os elementos necessários para o desempenho de suas funções fundamentais, inclusive auto-reprodução. Lidam, portanto, com um conceito de sistema fechado, auto-referencial, ou, conforme a terminologia depois consagrada, um sistema autopoiético.”2
Evidente que “a concepção luhmanniana de autopoiesis afasta-se do modelo
biológico de Maturana, na medida em que nela se distinguem os sistemas constituintes de
sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas não constituintes de sentido (orgânicos e
neurofisiológicos)” 3. Ou seja, há uma diferença de paradigmas entre as teorias de Maturana e
Varela e de Luhmann, isso por que as ciências biológicas lidam com objetos orgânicos,
neurológicos, fisiológicos, dentre outros, enquanto as ciências sociais estruturam seus estudos
a partir de objetos constituintes de sentido – psíquicos e sociais.
2 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. 2ª Ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.73 3 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 61.
12
Obviamente que a sociologia, antes mesmo da adoção desta terminologia
tão consagrada, já tinha a consciência da auto-referencialidade e da auto-reprodução do
sistema social, entretanto, foi Niklas Luhmann que, em feliz e arrojada pesquisa, conseguiu
oferecer à sociologia um termo completo, capaz de registrar a identidade do sistema social a
partir da ideia de autopoiesis, ideia de auto-referência, fechamento e auto-reprodução. Pois foi
exatamente a noção de organização e reprodução através de meios de circulação interna de
elementos inerentes ao próprio sistema, que trouxe que despertou a conexão entre sistema
social e autopoiesis para a pesquisa luhmanniana.
Ainda que desprovidos, nesta fase preliminar, de uma delimitação específica
para o conceito de sistema social, antecipamos a contundente assertiva de que a sociedade é
um sistema comunicacional4 em constante evolução. Comunicação que toma a consistência
intersubjetiva de mecanismo de transmissão de mensagens, cujo conteúdo reflete, a cada
tempo, expectativas evolutivas que se renovam.
Ao tomarmos a sociedade como um sistema de comunicação inserido no
trânsito progressivo dos eventos sociais, teremos sempre à vista um conjunto de novos fatos
relevantes para os perfis parciais de cada subsistema, todos verificados a partir do elevado
número de relações consolidadas e do destaque para as inúmeras possibilidades de ação
viabilizadas pelo aumento das complexidades inerentes ao macrossistema social.
Neste contexto, o termo “complexidade” não deve ser entendido como
dificuldade, empecilho ou qualquer outro modo de manifestação que obstaculize o mecanismo 4 Conceito que será definido no próximo ponto deste trabalho.
13
evolutivo, mas como o simples resultado do aumento de possibilidades, de expectativas, de
necessidades ocasionadas pelo crescimento do sistema social (fatos e relações).
Deste modo, a cada contexto histórico estaticamente demarcado, é possível
visualizarmos diversas situações novas inaugurando diferentes necessidades; circunstâncias
essas que exigem novos mecanismos de harmonização das relações intra-sistêmicas e
intersubsistêmicas5, assumindo a função de reduzir as complexidades e administrar a
contingência do mundo, tudo por intermédio do mais alto grau de diferenciação comunicativa.
A contingência assume um importante papel na teoria do conhecimento
científico de Luhmann. Trata-se de uma expressão da lógica formal utilizada para demonstrar
a existência de um universo fático de absoluta diversidade, onde o futuro é imprevisível e
incontrolável, e que a qualquer tempo as possibilidades poderão se tornar impossibilidades ou
vice-versa. Portanto, a contingência destaca um universo do possível, em que são admitidas e
variáveis as verdades e as falsidades, o “sim” e o “não”. 6
5 Leia-se: relações entre os diversos subsistemas sociais. 6 Cf. ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica proposición y norma, Buenos Aires, Astrea, 1991. “Hay uma infinidad de fórmulas que resultan verdaderas para algunas combinaciones, y falsas para otras: son las fórmulas contingentes. Para decirlo com mayor rigor, uma fórmula es contingente si sólo si resulta verdadera por lo menos em uno de sus casos posibles u falsa por lo menos em outro. (...) Toda fórmula que no sea tautológica (siempre verdadera) ni contraditória (siempre falsa) es contingente.” p. 71/73.
Cf. DE GIORGI, Raffaele. Ciencia del Derecho e la Legitimación.1ª Ed. México: Universidad Iberoamericana.1998. “No contigente es la norma que surge por necesidad interna de determinadas premisas, las cuales, provistas del carácter de verdad, no son falsificables: entonces la norma no es variable; queda fuera de los procesos de decisión y adquiere así una validez que surge de la identificación del proceso cognoscitivo com el proceso productivo de la norma misma”(grifos originais).[...] en el plano formal la contingencia se define através de la negación de imposibilidad y la negación de la necesidad. Contingente es por lo tanto todo lo que és posible, pero no necesário. Pero sólo a partir de Kant (y en um plano sociológico: sólo a partir de la transición a la sociedad burguesa) los conceptos modales se gereneralizan em modo relacional y, precisamente, em referencia al poder del conocimiento”. p. 11/12.
14
Sob esse ângulo, a comunicação segue o mesmo compasso evolutivo. Ou
seja, na medida em que a sociedade evolui, novos meios e técnicas de comunicação se fazem
imprescindíveis para viabilizar a continuidade do fenômeno de transmissão e recepção de
mensagens, ou mesmo, a interatividade entre dos partícipes-institucionais do sistema social.
Logo, é pela comunicação que se torna possível situar o processo histórico
no tempo, para que, de um ponto de vista estático, possamos apresentar as estruturas criadas e
transformadas para prestar serviços à humanidade e às necessidades de um ambiente
complexo em ininterrupta reprodução, a saber, elementos concretos de desenvolvimento do
entorno social, aparelhamento do ente estatal para sofisticação das funções públicas, a
intervenção no domínio econômico para o alcance do bem-estar da sociedade, etc.
Vale assinalar que a sociedade moderna é formada por um conjunto plural
de esquemas comunicativos autônomos. Sistema social complexo que consegue desenvolver
meios capazes de permitir vínculos de aprendizado e reciprocidade de influências entre as
inúmeras estruturas esquemáticas chamadas subsistemas.
Sobre o tema, Marcelo Neves inicia a descrição de seus pressupostos
teóricos afirmando que é imprescindível que haja vínculos estruturais que possibilitem a
interinfluência entre os diversos âmbitos autônomos da comunicação. Relações pontuais e
momentâneas no plano das operações do sistema que construam os mecanismos chamados de
acoplamentos operativos7.
7 Cf. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes. 2009. p. 34.
15
Para o presente estudo, conferimos relevância aos subsistemas jurídicos –
tributário e econômico – enquanto duas das esferas tidas como subsistemas parciais
autônomos; verdadeiras classes comunicativas, onde cada uma opera com um código binário8
específico, unidade formal seletora de influências para as transformações estruturais do
sistema. Ou seja, separadamente, os subsistemas realizam suas próprias aprendizagens e
constroem procedimentos com aptidão para instigar reciprocamente os demais sistemas, numa
espécie de numa independência e interdependência mútua.
Ora, independência e interdependência mútua? Como isso é possível? Os
“paradoxos” são uma prática usual da epistemologia luhmanniana. Acontece que colocamos o
termo entre aspas exatamente para destacar que, se observado do ponto de vista da teoria dos
sistemas, não há que se falar em paradoxo9.
A teoria dos sistemas trabalha com um conceito abstrato de sistema social,
sistema esse que se encontra repleto de subsistemas autônomos e diferentes entre si. Neste
formato, as diferenças são estabelecidas a partir da existência de um código binário único para
cada subsistema, ou seja, códigos com características específicas que garantem o fechamento
operativo pela diferença.
8 A binariedade é uma característica dos códigos que compõem os sistemas, que são as unidades elementares de cada esfera, uma vez que estabelecem um critério único para seleção e redução de complexidades, ou, analogamente, um critério de inclusão de classes ou de pertinencialidade a determinado subsistemas. O sistema jurídico tem como código binário direito/não – direito que garante o fechamento operativo por meio dessa diferença. Portanto, se a comunicação não se formalizar neste código, não pertencerá ao sistema jurídico. Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 77. 9 Paradoxo: palavra que vem do latim paradoxon; derivado do grego parádoxos, que significa “conceito que é ou parece contrário ao comum”. Cf. CUNHA, Antonio Geraldo Da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007.
16
No entanto, mesmo autônomo-independentes, os arquétipos comunicativos
do sistema social precisam realizar vínculos entre si (contatos), a fim de recepcionar
internamente as mudanças do entorno. Para isso precisam elaborar mecanismos internos que
garantam a efetiva continuidade da comunicação, e é nesse sentido que cogitamos a real
possibilidade de interdependência cognoscitiva e independência operativa dos sistemas
parciais.10
Por certo, partindo de um viés didático, o sistema jurídico, especialmente o
tributário, em que pese o seu fechamento sintático, apresenta uma abertura semântico-
pragmática que assimila as diversas determinações do ambiente e as insere no sistema sempre
que seus próprios critérios atribuem-lhes forma11.
Por essa razão é que o sistema jurídico tributário, conjunto normativo
instituído como principal forma de custeio da sociedade, exerce seu poder interventivo
perante o domínio econômico, uma vez que seus elementos são capazes de prescrever a
demarcação de limitações à atuação do Estado, tais como: a necessidade de atentar para o
princípio da livre concorrência, para a neutralidade concorrencial do Estado e para a própria
igualdade tributária.
Como insiste em afirmar Alfredo Augusto Becker:
10 A separação entre os subsistemas não pode ser parcial; com isso não queremos dizer que não haja relações inter-sistêmicas: essas são fundamentais para a autopoiese dos subsistemas, como já vimos. Entretanto, a autonomia dos subsistemas requer que a auto-reprodução de seus elementos siga os critérios ditados pelo próprio sistema e não por outros. Cf. CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin. 2005. p. 248. 11 Cf. TOMÉ. Fabiana Del Padre. Sistema autopoiético do direito e as implicações em relação à segurança jurídica. Revista de Direito Tributário nº 104. p. 86/94.
17
“a principal finalidade de muitos tributos (que continuarão a surgir em volume e variedade sempre maiores pela progressiva transfiguração dos tributos de finalismo clássico ou tradicional) não será a de um instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento e intervenção estatal no meio social e na economia privada. Na construção de cada tributo não mais será ignorado o finalismo extrafiscal, nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão, agora de um modo consciente e desejado (...).” 12
Assim, dispondo de uma estrutura de valores jurídicos positivados, o
sistema jurídico tributário, ao regular as condutas intersubjetivas, consegue intervir na
espontaneidade dos fatos sociais, econômicos, políticos, e dos demais, constituindo realidade
juridicamente regulada.
As normas tributárias, unidades elementares do sistema jurídico tributário,
são instrumentos hipotético-condicionais de natureza prescritiva que atuam como arsenal
interventivo do Estado na economia, ajustando o funcionamento do sistema jurídico
econômico a partir do respeito às garantias fundamentais dos contribuintes e aos efetivos
limites da tributação nas linhas de atuação estatal.
Isso por que as normas jurídicas não são instituídas para confirmar
fenômenos sócio-econômicos, mas para modificar o curso natural dos fatos, impondo uma
imperatividade artificial às condutas intersubjetivas, prevendo a estrutura e a direção dos
12 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª edição. São Paulo: Noeses. 2007. p. 623/624.
18
comportamentos, disciplinando-os para construção de uma ordem econômica e social
estabilizada que atenda ao bem comum13.
Neste curso, o Estado, no exercício de seus três poderes: executivo,
legislativo e judiciário e munido de competência para aplicar normas jurídicas indutoras de
comportamentos, pode atuar desestimulando ou incentivando a ocorrência de fatos sociais, a
partir da incidência de regras jurídicas que façam as vezes de comandos diretos ou indiretos
de determinadas condutas. Existe, portanto, a força estatal apta a proporcionar o ajuste das
relações sociais a partir da criação e condução de normas jurídicas disciplinadoras.
Com isso, de uma perspectiva funcional do direito, o que se observa é uma
acentuada e contínua intersecção entre os subsistemas sociais. No específico caso dos
subsistemas jurídicos: tributário e concorrencial/econômico, a situação não é diferente.
O direito tributário é o instrumento legitimador de políticas fiscais, é o
instrumento normativo à disposição do Estado para a intervenção no domínio econômico e
concretização de direitos sociais. Nessa esteira, é através das formas de tributação que é
possível evitar distorções econômicas (concorrenciais), tendo em vista que qualquer atividade
fiscal afeta direta ou indiretamente as relações econômicas, bem como todas as demais
relações sociais, tais como impactos financeiros em orçamentos de entes tributantes e na
própria coletividade de cidadãos que têm serviços públicos custeados pela tributação, etc.
13 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª edição. São Paulo: Noeses. 2007. p. 626/627.
19
A interferência da tributação na economia é inevitável. Independente da
função extrafiscal, parafiscal ou predominantemente fiscal, a instituição de tributos mais
onerosos para um determinado setor da economia e menos onerosos para outro, consecução
de práticas de oneração e exoneração tributária pelo Estado, tanto pode conviver
tranquilamente no ordenamento jurídico posto, como pode acarretar desequilíbrios
concorrenciais gravosos ao mercado e ao sistema social como um todo.
Destarte, a política fiscal caminha na dinâmica dos acontecimentos sociais,
evoluindo e redefinindo complexidades para atender aos interesses dos indivíduos em
constante mudança. É a ação do Estado que impulsiona o aperfeiçoamento das regras jurídicas
e otimiza o ajuste de interesses públicos e privados.
Por essa configuração, utilizando-nos das palavras de Alfredo Augusto
Becker, o direito tributário tem natureza instrumental e seu “objetivo próprio” (razão de
existir) é ser instrumento a serviço de uma política. Esta (a política) é que tem os seus
próprios e específicos objetivos econômico-sociais14. Logo, o sistema jurídico constroi suas
próprias regras, que aplicadas, atingem os mais diversos subsistemas sociais, sensibilizando-
os.
Firmes nestas premissas, a proposta deste estudo é identificar os pontos de
contato entre os sistemas jurídicos: tributário e econômico-concorrencial, perquirindo a
interinfluência das normas constitucionais tributárias promocionais, chamadas de imunidades
14 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª edição. São Paulo: Noeses.2007. p. 632.
20
tributárias, especialmente no que se refere à imunidade recíproca, e seus respectivos efeitos
sobre a livre-concorrência.
O sistema tributário15, pela evolução funcional de seus mecanismos, passou
a ser o mais importante meio de intervenção do Estado na economia e na sociedade, e não por
outro motivo, analisar o impacto da administração tributária sobre a prática da livre
concorrência contextualiza, em absoluto, é a finalidade deste estudo.
Para colocarmos em prática esses objetivos, dividiremos este trabalho em
duas partes. Inicialmente, adotando alguns dos elementos da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann, percorreremos as noções de sistema, oferecendo uma definição que servirá de
estalão para o estudo da sociedade como um sistema social. Em seguida, passaremos pelos
conceitos de sistema jurídico tributário e sistema jurídico econômico, bem como por todos os
elementos que entendemos imprescindíveis para a identificação dos acoplamentos estruturais
entre ambos os sistemas.
Diante desse corpo conceptual, trataremos de mergulhar no instituto
denominado imunidade tributária, especialmente a imunidade recíproca, a chamada prática
constitucional exonerativa fiscal que incentiva a economia através da não tributação de
determinados fatos. Nesse momento, dispostos os referidos meandros, cuidaremos de
estabelecer as influências das imunidades tributárias na manutenção da livre-concorrência.
15 Leia-se: o conjunto de instrumentos normativos em matéria de tributação.
21
Para encerrar, pretenderemos nos ocupar das estruturas que viabilizam os
vínculos entre o sistema jurídico tributário, neste caso representado pela figura das
imunidades tributárias do art. 150, VI, “a” da Constituição Federal de 1988, e em particular as
matérias que dizem respeito à tributação em relação aos aspectos disciplinados pelo direito
econômico quando posto à prova o princípio da livre concorrência.
Por fim, de posse desse conjunto de referências paradigmáticas, supomos
que será possível verificar os enlaces sistêmicos pretendidos, detalhando as principais
implicações e repercussões-problema inerentes ao enfoque relacional entre tributação e livre
concorrência.
22
PRIMEIRA PARTE: UM CONCEITO DE SISTEMA E A INTERAÇÃO ENTRE O
SISTEMA JURÍDICO TRIBUTÁRIO E O SISTEMA ECONÔMICO
Capítulo I – Para um conceito de Sistema: pressupostos teóricos
1.1. Como pensar um sistema?16
Esta é a primeira e grande indagação que nos vem à mente no momento em
que optamos por iniciar os estudos a partir do conceito de sistema. Tendo em vista que o
termo é tão vago quanto ambíguo, seja do ponto de vista denotativo como conotativo,
respectivamente, consideramos prudente não correr o risco da omissão no que se refere ao
mecanismo intelectivo de enquadramento do conteúdo semântico à forma do sistema.
Dessarte, essa abordagem, que de certa maneira revelará o engatinhar inicial para se atingir
passos largos nas conceituações, parece-nos frutífera, na medida em que buscará apresentar
que tipo de abstração é possível realizar para se começar a compreender a ideia de sistema.
16 A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann exclui de sua abordagem a discussão acerca dos aspectos psicológicos e antropológicos, uma vez que opta em estabelecer como premissa epistemológica: a sociedade como um sistema que se apresenta de modo concreto enquanto um universo de comunicações habituais. Portanto, não se preocupa com a indagação que inaugura o primeiro capítulo do nosso trabalho - “como pensar um sistema?”.
“Se trata de ver qué problema de la sociedad se resuelve mediante el proceso de diferenciación de normas específicamente jurídicas y de un sistema jurídico determinado. Por eso quedan excluidas, por sobre todo, las preguntas psicológicas y antropológicas. Aunque eso no necesariamente significa que haya que rechazarlas por erróneas. El problema consiste en que los seres humanos se manifestan como individuos y que es difícil controlar afirmaciones acerca del hombre, de la conciencia, de la persona. (...) entendemos la sociedad como un sistema unitario que aunque se puede observar empíricamente, ya que se presenta de modo concreto en las comunicaciones habituales.” Cf. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. (Das Recht der Gesellschaft). Traducción Javier Nafarrate Torres. México: Universidad Iberoamericana, 2002. p. 85
23
Bom, conforme suso antecipado, supomos que o tratamento do sistema deve
ficar atento à delimitação sintática, à especificação do contorno formal, ou seja, este estudo
deverá se preocupar em estabelecer dentro de qual moldura sistêmica será possível inserir
qualquer conteúdo semântico. Mas, para se aferir tais resultados, uma segunda indagação
insiste em nos instigar, a saber, como é possível alcançar a delimitação sintático-formal do
sistema? Numa palavra, a resposta seria: intuição.
A intuição que, para a fenomenologia de Edmund Husserl, é o princípio dos
princípios, uma vez que “toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do
conhecimento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” deve ser simplesmente
tomado tal como se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá “17. Nesse
sentido, o que caracteriza a intuição é a própria visão de essência, que costuma designar
aquilo que se encontra no “ser” do indivíduo, o que ele “é”, posto em ideia. Assim, a intuição
pode ser convertida em visão de essência (ideação).18
Ora, indo no encalço do raciocínio, o que é apreendido intuitivamente é a
essência de modo originário, a forma como o sujeito apreende a parcela da coisa com a qual
tem proximidade, pois esse contato pode repercutir vários dos lados de um específico
referente, sem jamais conseguir cogitar intuitivamente a sua totalidade 19.
17 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 69. (grifos originais) 18 Cf. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 35. (grifos originais) 19 Tema que será mais bem esclarecido no decorrer dos estudos.
24
Lados que são as possibilidades ou as circunstâncias empíricas das mais
variáveis; essas que quando observadas representam somente uma das faces das inúmeras
faces cogitáveis. Cumpre salientar que cada ser intuitivo somente é capaz de absorver uma
parcela do ambiente que o envolve, uma vez que a inteireza das dimensões do universo jamais
poderão ser codificadas e catalogadas em todas as perspectivas possíveis, por quem quer que
seja, aonde quer que esteja, sob nenhuma hipótese.
E quando nos referimos à totalidade, mencionamos o aspecto da
impossibilidade do absoluto, uma vez que toda manifestação lingüístico-comunicacional é
produto de atos de valoração subjetivos e, portanto, resultado da atividade ininterrupta da
consciência
O mais instigante ao tratarmos do fenômeno individual e intuitivo é perceber
que a recepção natural de mensagens pela mente humana é uma verdadeira fonte de
legitimação do conhecimento20, i. e, trata-se de uma forma consciente de lidar com a
existência (fatos) ou com as essências (eidos).
Admitamos, portanto, que o relevante fica a cargo da consciência21, que por
seu próprio repertório poderá ou não construir um correspondente cognitivo para as
20 Conhecimento interpretado como todo material apreendido pela sensibilidade, emoção e intelecção com sentido. 21 A consciência e a comunicação são tratadas como sistemas distintos que se acoplam estruturalmente através da linguagem. Observemos que Luhmann destaca a importância do sistema psíquico sem se ater a ele, de modo a considerá-lo, tão somente, uma entidade capaz de irritar e estimular a comunicação. Esse tema, de absoluta relevância, será detalhado nas laudas que seguem. Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p.134.
25
manifestações que se materializam na mente, em parâmetros singulares de percepção
intuitiva.
Não por outro motivo, Edmund Hursserl afirma que:
“A essência pura pode exemplificar-se intuitivamente em dados de experiência, tais como percepção, recordação etc., mas igualmente também em meros dados da imaginação. Por conseguinte, para apreender intuitivamente uma essência ela mesma e de modo originário, podemos partir das intuições empíricas correspondentes, mas igualmente também de intuições não-empíricas, que não apreendem um existente ou, melhor ainda, de intuições meramente imaginárias.” 22
Bom, e onde entra o conceito de sistema em toda esta apreensão intuitiva?
O sistema é uma construção intelectiva, o mais alto grau de sofisticação do
pensamento humano. Sistema é um conceito que não se concretiza como um dado empírico,
pois o que há no universo da existência (fatos) é um conjunto desarticulado de
dados/mensagens que necessitam de organização23 para terem sentido. O que implica dizer
que para assimilar cognitivamente o mundo é preciso colocá-lo em ordem, essa que exclui a
possibilidade do caos – de um mundo incompreensível. Pois, se houvesse caos, ou se fosse
concebida a possibilidade de desordem e imprevisibilidade das relações do mundo, seria
impossível articular um plano racional da realidade, seja ela socioeconômica, sociopolítica,
22 HURSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 38. 23 Niklas Luhmann tomou muito cuidado ao usar o termo organização, pois considerava que, em sociologia, a expressão costuma ser utilizada para designar um fenômeno social muito específico, ou seja, distingue a organização do sistema autopoiético das estruturas dos sistemas. Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p.130.
26
sociojurídica. E é precisamente nesse contexto que Lourival Vilanova deposita nas relações de
causalidade a possibilidade de ordenação objetiva no curso dos fatos econômicos, políticos e
jurídicos.
É a construção de uma ordem, inicialmente intuitiva, capaz de articular a
ideia de um sistema, que viabiliza o mapeamento da realidade, o fornecimento de mecanismos
de intervenção nos planos racionalmente dispostos e a elaboração de uma arquitetura de
relações compatíveis com a concretização de um sistema sociocultural.24 Mas, realizar essa
estrutura requer um esforço intelectivo, ou seja, fugir do caos e planejar um universo em
ordem requer uma ação, ou em termos dinâmicos25, um procedimento intuitivo formador do
nosso conceito.
Destarte, para criar uma estrutura ordenada, Vilém Flusser26 sugere que
primeiramente sejam analisadas e catalogadas as aparências, numa espécie de esquema geral,
cuja finalidade precípua seria a criação de um sistema de referência universal. Complexo
sistêmico capaz de permitir a identificação – fixação – das aparências circundantes no
ambiente (estruturas estáticas) e articular as inevitáveis relações existentes entre elas
(estruturas dinâmicas).
Dessa maneira, o primeiro esforço seria fixar aparências, catalogando-as, e,
em seguida, realizar um segundo esforço: concatenar as relações em coordenação numa tarefa
típica de hierarquização do mundo. Somente assim, por um processo de pura disposição ou 24 Cf. Causalidade e Relação no Direito. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000. p. 51. 25 ROBLES, Gregorio. Teoría del derecho. 2ª Edição. Madrid: Thomson Civitas 2008. p. 261e ss. 26 Cf. Língua e realidade. 3ª edição. São Paulo: 2007.
27
codificação, seria possível transformar o caos em cosmos. Cosmos, cuja estrutura é a língua;
essência que forma e governa o pensamento humano.
Deve-se observar, portanto, que é pelo mecanismo intuitivo (sensibilidade,
emoção e intelecção) que se realizará a fixação e catalogação das aparências parciais do
ambiente/mundo e que se construirá abstratamente uma categoria provida de altíssima
sofisticação – verdadeiras construções intelectivas elaboradas a partir da coleta de elementos
empíricos – e que chamaremos de sistema.
Assim, cogitado o sistema, seguiremos na consecução do processo de
concretização do pensamento até alcançar a elaboração e verbalização por intermédio de atos
de fala. Faz parte, certamente, deste procedimento de percepção, interpretação,
compreensão/construção e verbalização, a ideia de circularidade que supõe o mecanismo de
aferição da realidade (dado e texto), e na efetiva sistematização em categorias abstratas, ou
mesmo, da propriedade de as categorias abstratas garantirem, sempre que possível, uma
construção cognitiva sistêmica verbalizável.
Bom, é nesta faixa cognitiva de compreensão do conceito de sistema, a partir
da coleta empírica de dados e necessária ordenação em categorias, que poderemos vislumbrar
a sociedade como um sistema, e todas as demais categorias existentes insertas como
subsistemas sociais, separados estruturalmente em virtude de funções e linguagens distintas.
Muito embora as diferenças sejam inúmeras, é o dado da comunicação que confere a
aderência necessária às relações recíprocas entre os sistemas e a ordem interna.
28
Argumentos esses que permitem a afirmação de que o sistema social
verbalizado em texto é resultado da interpretação, e é a partir da manifestação do sistema por
ato de fala que se torna possível identificar as diferenças linguísticas, instrumentais e
contextuais (códigos binários, formais, etc.) capazes de subdividir a sociedade em diversos
planos ordenados e autônomos.
Como sugere Vilém Flusser, “a ciência é a tentativa de catalogar e
classificar aparências, e a cada página do catálogo e a cada classe de aparências corresponde
uma ciência especializada” 27. Isso por que a visualização das diferenças e a subdivisão em
planos ordenados e autônomos ficam a cargo de uma atitude científica, que através de um
método coleta parcelas do universo contínuo a fim de, pela descontinuidade, catalogar as
aparências e compor relações de coordenação capazes de hierarquizar o mundo circundante.
A separação das ciências é o resultado inevitável da atitude científica de
identificação das diferenças e eleição dos objetos de estudo. Cada ciência se dedica a um
objeto, ou pelo menos a uma das perspectivas desse objeto, e sobre ele deposita todas as
expectativas cognoscitivas, com o propósito de atender à necessidade de desvendar as suas
complexidades e formar juízos de valor acerca do referido objeto.
Logo, o argumento de que a separação das ciências tem configuração
didática procede, uma vez que a palavra didática é substantivo feminino que significa a
própria ciência ou arte de ensinar28, ou mesmo um conjunto organizado de instruções. É a
27 FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3ª edição. São Paulo: 2007. p. 35. 28 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007. p. 263.
29
organização das ciências pela diferença que faz com que seja imprescindível uma autonomia
didática, cuja finalidade única é a viabilização das pesquisas. Somente dessa forma é possível
definir os elementos pertencentes à ciência social, à jurídica, à econômica, à biológica, às
ciências exatas, etc.
Salientamos, contudo, que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann não se
detém à questão: “Como pensar o sistema?”. Não se preocupa com as entidades intuitivas de
elaboração dos atos de fala, ou ainda, com o procedimento de passagem do status de não-
comunicação para comunicação. Em verdade, pela corrente teórica luhmanniana, falar em
sistema é fazer referência à efetiva comunicação, sem a necessidade de atentar para os
mecanismos cognitivos de apreensão intelectiva do sistema. Ainda assim, em que pese o corte
metodológico da corrente alemã, entendemos por oportuna a demarcação simbólica do
sistema psíquico, uma vez que o consideramos um partícipe importante na estimulação e
concretização dos conceitos propostos.
1.2. O Sistema: delimitação do conceito
O sistema tal como ensaiamos anteriormente é uma estrutura de
elevadíssima abstração29. Trata-se de uma construção intelectiva que elege uma das
perspectivas do ambiente, cujo resultado seria a identificação e reunião de elementos que se 29 “Abstração: do latim abstratio–onis, significa: considerar isoladamente, apartar, alhear.” Cf. CUNHA, Antonio Geraldo Da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007. p. 06.
30
encontram interligados por um código universal: a comunicação (operação genuinamente
social) 30. A sociologia de Niklas Luhmann chama este conjunto de elementos – em que o
critério de inclusão é o fato comunicacional – de sistema social. Sistema que em nada se
confunde com a inesgotável dimensão do ambiente, tendo em vista tratar-se, tão somente, de
uma das dimensões daquilo que tomamos como mundo/realidade.
No compasso destes nexos, Edmund Husserl enfatiza que:
“(...) a forma espacial de uma coisa física só pode ser dada, por princípio, em meros perfis unilaterais; de que toda qualidade física nos enreda nas infinidades da experiência, mesmo fazendo abstração dessa inadequação, que se mantém constante apesar de todo o ganho e qualquer que seja o avanço que se faça em intuições contínuas; e que de toda multiplicidade empírica, por mais abrangente que seja, ainda deixa em aberto determinações mais precisas e novas das coisas, e assim in infinitum.”31 (destacamos)
Do exposto, é possível verificar a existência de pelo menos dois pontos
decisivos capazes de oferecer a definição de sistema social pela negativa, melhor dizendo,
pontos que deverão ser excluídos quando da compreensão do modelo conceptual ao qual nos
filiamos, quais seriam: i) o sistema social não é o ambiente/meio e ii) O sistema social não é o
homem, nem com ele se confunde.
“Toda teoria está baseada, então, em um preceito sobre a diferença: o ponto de partida deve derivar da disparidade entre sistema e meio, caso se queira conservar a razão social da Teoria dos Sistemas.
30 “A comunicação é uma operação genuinamente social (e a única, enquanto tal), porque pressupõe o concurso de um grande número de sistemas de consciência, mas que, exatamente por isso, como unidade, não pode ser atribuída a nenhuma consciência isolada.”Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 91. 31 HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 2ª Ed. São Paulo: ideias & letras, 2006. p. 36.
31
Quando se escolhe outra diferença inicial, obtém-se então como resultado outro corpo teórico. Assim, a Teoria dos Sistemas não começa sua fundamentação com uma unidade, ou com uma cosmologia que represente essa unidade, ou ainda com a categoria do ser, mas sim com a diferença.” 32
Ora, isso implica dizer que o ambiente é, indubitavelmente, mais complexo
que o sistema, com dimensões infinitamente mais amplas, e que o homem é um elemento
atuante no sistema33, não um dado comunicacional, mas deve ser tratado como um agente
viabilizador da comunicação. Por esta razão Tácio Lacerda Gama afirma que o sistema é um
conjunto formado por elementos que se relacionam segundo certos padrões de
racionalidade34, pois é o homem que viabiliza sua formação.
Trabalhar com este conceito de sistema exige uma intensa atividade
operativa de abstração, realizando um corte tipicamente metodológico no
entorno/ambiente/realidade a fim de realizar o enquadramento da porção de expectativas
comunicacionais em um sistema que chamamos de sociedade. Entretanto, para realizar esta
operação de enquadramento, o primeiro grande passo é identificar a diferença35, ou seja,
32 LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 81. 33 “Luhmann coloca o homem como ambiente da sociedade.”Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 68. 34 Cf. Competência Tributária. São Paulo: Noeses. 2008. p. 120. 35 “Pode-se dizer que, do ponto de vista da análise da forma, o sistema é uma diferença que se produz constantemente, a partir de um único tipo de operação. A operação realiza o fato de reproduzir a diferença sistema/meio, na medida em que produz comunicação somente mediante comunicação.” Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 91.
32
perceber analiticamente quais os elementos linguísticos que seriam capazes de diferençar a
estrutura do sistema social do arquétipo do ambiente36.
“É evidente que não se pode iniciar um processo de linguagem sem ao menos ter em conta que existe algo exterior que deve ser designado como realidade; contudo, para o processo posterior da comunicação, a diferença contida na própria estrutura da linguagem é decisiva. Tal diferença está intimamente ligada ao problema da referência, ou seja, àquilo sobre o qual se pretende falar.”
Observando o ambiente como um continuum heterogêneo37 desordenado que
reúne uma infinidade de dados e fatos complexos, pensar em sistema é visualizar neste todo
estruturas que se entrelaçam por ao menos um aspecto comum, aspecto que Niklas Luhmann
identificou como a comunicação. Portanto, do ponto de vista sociológico, a sociedade seria
um macrossistema comunicacional. E sistema seria um conceito abstrato universal
caracterizado pela reunião de diversos elementos em torno de um critério comum capaz de
formar uma ordem compreensível e articulável.
36 “LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 82. (grifo nosso). 37 Termo trazido por Heinrich RICKERT em sua obra Ciencia cultural y ciencia natural, Madri, 1922. p. 32 e ss.
Seguindo na consecução do raciocínio, trago uma passagem da obra Fundamentos Jurídicos da Incidência de Paulo de Barros Carvalho que analogamente descreve com excelência o processo abstrato de construção de sistema, vejamos: “Para isolar o direito, farei um primeiro corte no continuum heterogêneo a que alude Rickert, como a realidade que recobre todo o espaço da vida social, provocando o aparecimento do descontinuum homogêneo, onde se demoram as entidades e as relações jurídicas, bem como o tecido do saber científico que as tem por objeto, admitindo-se, desde logo que a ciência integra a experiência dela participando com forte intensidade.” P. 04. 7ª edição, Editora Saraiva. Ou seja, quando analisando o ambiente como um continuum heterogêneo (uma realidade continuada com múltiplos e diversos aspectos) tomamos a iniciativa de construir um sistema, realizamos um corte, ato capaz de eleger um objeto de análise, uma vez que identificamos ao menos um critério suficiente para provocar um descontinuum homogêneo, ou seja, criar uma realidade parcial demarcada e isolada abstratamente (sociedade), com uma estrutura comum (comunicação).
33
Uma vez visualizado o conceito de sistema e observado do ponto de vista
externo, i. e, na direção: ambiente sistema, no item seguinte propomos a análise do
processo de diferenciação a partir de uma perspectiva interna, sugerindo a identificação da
dinâmica de construção dos subsistemas sociais, orientada pelo seguinte percurso: sistema
social (sociedade) subsistemas sociais (jurídico, econômico, etc.). Desta feita, passemos ao
estudo das estruturas internas do sistema.
34
Capítulo II – O Sistema Jurídico38
2.1. Sistema Jurídico: o direito
O sistema jurídico é um subsistema social. E enquanto subsistema assume
todos os perfis conceptuais adrede descritos no que concerne à noção de sistema, inclusive, o
aspecto comunicacional, o fechamento operativo-sintático e o mecanismo autônomo e
ininterrupto de autopoiesis.
O subsistema jurídico é instrumento de equilíbrio do sistema social, pois
como assevera Lourival Vilanova, o direito é um dos sistemas, interiormente compondo-se de
relações, e exteriormente funcionando como sistemas relacionador do sistema social em seu
todo. Um dos subsistemas que interliga os demais subsistemas do sistema social global é o
subsistema do direito39.
Assim, os elementos cuidadosamente eleitos como caracterizadores da ideia
de sistema (aspecto comunicacional, o fechamento operativo-sintático e o mecanismo
autônomo e ininterrupto de autopoiesis) passam a ser critérios exigidos para inclusão dos
38 Tomamos a sociologia de Niklas Luhmann como paradigma-descritivo do conceito de sistema aplicado neste trabalho, entretanto, muito embora a teoria dos sistemas seja o alicerce preponderante de nossas considerações, ressaltamos que alguns dos pontos que serão apresentados não seguirão os padrões teóricos advogados pela linha sociológica luhmanniana. Mesmo assim, compreendemos que esta opção de análise interna do sistema jurídico não implica um discurso contraditório, mas absolutamente complementar. 39 Causalidade e relação no Direito. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 66.
35
subsistemas na classe40 (conjunto41) do macrossistema social, surgindo, portanto, uma relação
lógica de pertinência42.
2.2. O fechamento operativo do Sistema Jurídico
Admitir o fechamento operativo do sistema jurídico é aderir à noção
complexa de análise do sistema enquanto articulador e produtor de suas próprias
necessidades, ratificando o paradoxo da autonomia interna versus dependência inter-
sistêmica (caracterizada pela necessidade de contextualização frente às transformações do
próprio sistema social e do ambiente/meio).
Do ponto de vista interno43 ao sistema jurídico, algumas entidades hão de ser
consideradas a fim de destacar o grau de diferenciação do direito diante dos demais
40 “Classe é construção linguístico-intelectiva; é entidade lógica; é conjunto; é domínio. É conceito de extensão ou aplicabilidade que surge a partir do estudo dos predicados que compõem os enunciados lógico-proposicionais. Noutras palavras, classe é elaboração de pensamento que busca reunir um ou mais termos capazes de serem aplicados a um conceito, ou que tenham os atributos atinentes ao conceito determinado. Por esta forma, classe é conotação, é nome geral que coleciona um número indefinido de coisas, cujos elementos sejam susceptíveis à aplicação”. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008: item 2.6, Capítulo II, Primeira Parte. 41 “Os conjuntos são coleções de objetos. Os objetos que formam os conjuntos são chamados de elementos. Para indicar que um objeto é elemento de um conjunto será usado o símbolo ϵ, portanto se “F” representa o conjunto dos filósofos e “s” denota Sócrates, temos que s ϵ F. Desformalizando: Sócrates é filósofo. Como representar o conjunto dos estudantes de filosofia da UFSC? Descrição: {x | x é um estudante de filosofia da UFSC}. A descrição é usada para os casos em que há muitos elementos. Enumeração: {Paulo, Pedro, Maria, Antônio}. A enumeração é usada nos casos em que é possível listar os elementos ou prever a sua continuidade. Há uma relação muito estreita entre ter certa propriedade e pertencer a certo conjunto. Entretanto não se exige as propriedades sejam comuns, de modo que um conjunto pode ser composto por diversos objetos de naturezas diferentes, pois o que vai importar é o critério adotado para realizar a coleção e construir um conjunto dela”. Cf. MORTARI, Cezar. Introdução à lógica. São Paulo: UNESP, 2001: Capítulo IV. 42 A pertinência informa relações entre elementos e classes. Nesta perspectiva, todo “y” que satisfizer as características sugeridas por uma classe será pertencente a ela, ou seja, sempre que os atributos de “y” forem aplicados ao conceito da classe, haverá uma relação de pertinência. 43 “O advogado, no exercício de sua função, coloca-se sempre no interior de um ordenamento dado, e os fatos e relações da vida ele os vê sub specie normae. (...) A funçao jurisdicional como funçao cognoscente da Ciência
36
subsistemas, e ainda, os níveis operativos que garantem o fechamento sintático do sistema
jurídico. E é a delimitação conceptual de tais entidades que trataremos de demonstrar nos
pontos que seguem.
2.2.1. A linguagem jurídica
O termo linguagem, aqui disposto, deve ser entendido genericamente como
instrumento da comunicação, ou seja, como qualquer palavra que designa o conjunto de
línguas44 – idiomas – formas de manifestação: gestual, falada, escrita ou em quaisquer atos
que impliquem significação. Esta definição é inspirada nas teses nominalistas que se
utilizavam de termos genéricos somente para denominar e não para encontrar essências. A
linguagem, a que nos referimos, é o instrumento da comunicação; é toda manifestação capaz
de realizar acoplamentos entre as estruturas sistêmicas; é mensagem com sentido.
do Direito tomam do dado-de-fato (coisa do mundo, conduta, relação social) e regressam logo ao sistema para verificar se o dado-de-fato foi previsto normativamente. Se não o foi, nem por norma expressa, nem por norma que o próprio ordenamento contém implicitamente, ou diz quem deve preencher o vazio normativo, então o dado-de-fato não existe juridicamente. Será uma questão de Política do Direito a de fazer regra nova para contemplar o fato juridicamente inexistente, trazendo-o para dentro do ordenamento jurídico”. Cf. VILANOVA, Lourival. “Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento” in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. p. 463. (grifos originais). 44 Quando lidamos com o conceito de língua, trazemos à baila a ideia de idioma. A preocupação com a língua é cabível na medida em que lidamos com exigências formais que regulamentam uma determinada ordem, e para garantir o conhecimento, a comunicação e regulamentação de um ordenamento jurídico nacional, será preciso dispor de textos jurídicos também no idioma nacional, salvo disposições legais em contrário. Deste modo, em se tratando da realidade jurídica brasileira, os textos jurídicos deverão estar, necessariamente, no idioma pátrio: o português.
37
A semiótica é ciência que estuda os signos e os fenômenos da representação
- atos ou palavras45. Signo46 é entidade relacional que interliga um objeto ao seu significado,
e desse modo elabora significações. Analisada sob esta perspectiva, a linguagem é um
conjunto de signos, que verbalizados ou vertidos em palavras, implicam significação e
viabilizam a comunicação. Na medida em que se discorre sobre os conceitos de
comunicação, linguagem e interpretação; passa-se a questionar acerca da função pragmática
desempenhada por estas noções, ou seja, de que maneira elas interferem, descrevem,
constituem ou criam a realidade.
As discussões ao redor deste tema são intermináveis, todavia, a proposta é
apresentar um breve perfil pragmático da linguagem frente à realidade. Esta realidade que se
apresenta como dimensão linguística, aquela captada pelo homem através de seus
mecanismos redutores de complexidades. Tanto sim que a linguagem cria uma realidade;
realidade que é a perspectiva parcial de mundo apreendida por cada indivíduo. A ideia é
demonstrar que o real ingressa no sistema comunicacional enquanto um dado linguístico, já
que a transmissão de informações ou a emissão de relatos acerca de um evento somente pode
ser feita por linguagem e é por ela que se podem constituir as versões dos acontecimentos.
Partindo do princípio de que linguagem jurídica (texto) é a estrutura sintática
prevista pelo ordenamento - necessária moldura formal - que reúne critérios competentes para
45 ARAÚJO, Clarice Von Oertzen de. “Fato e evento tributário – uma análise semiótica”. Curso de especialização em direito tributário, coord. Eurico Marcos Diniz de Santi. Rio de Janeiro: Forense. 2007. p. 335. 46 “Estudar signo, em suma, quer dizer procurar um nível extremamente simples, quase abstrato do sentido. Seja na situação de comunicação, seja na de significação, é fácil encontrar esta célula fundamental: um objeto de duas faces, ou antes, uma relação que liga um significante a um significado”. Cf. VOLLI, Ugo. Manual de semiótica. Tradução de Silvia Debetto C. Reis. Rio de Janeiro: Edições Loyola. 2007. p. 27.
38
construir um ordenamento jurídico válido; e que a realidade jurídica é o resultado da
articulação de tais enunciados, pode-se afirmar que a linguagem jurídica é forma de
constituição da realidade jurídica. Assim, a linguagem é o instrumento do direito, quiçá, o
próprio direito como um sistema de comunicação.
Na consecução do raciocínio, é possível afirmar que toda forma de
manifestação humana implica linguagem, que verbalizada em palavras, formam enunciados
com sentido. Portanto, os textos jurídicos (conjunto de palavras) devem se mostrar escritos,
uma vez que é requisito essencial à legitimidade das construções linguísticas, i. é, um dos
critérios de inclusão na classe do ordenamento jurídico. E a pergunta que nos vem à mente é:
e por que as palavras alcançam tamanha importância, por que direito como texto? Ora,
parafraseando Vilém Flusser, as palavras são apreendidas e compreendidas como símbolos,
isto é, como tendo significado; e como os dados “brutos” alcançam o intelecto
propriamente dito em forma de palavras, podemos ainda dizer que a realidade consiste de
palavras.47
Com estes prolegômenos linguísticos, pretendemos consolidar os aspectos
conceptuais que justificarão nossa posição quanto à relação direta entre o tipo de linguagem e
o fechamento operativo do sistema jurídico. O que ingressa no universo do direito tem
natureza jurídica porque assume a forma exigida pelo próprio universo jurídico; o direito
prescrevendo direito, do direito ditando as regras e os critérios de inclusão na grande classe
que tomamos a iniciativa de chamar de ordenamento jurídico. Neste contexto, a forma
47 FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 3ª edição. São Paulo: Annablume, 2007. p. 40.
39
estabelecida é aquela que se mostra em linguagem competente, ingressando no sistema a
partir de um procedimento legítimo. Desta feita, o fechamento operativo do sistema jurídico,
nos termos linguísticos do plano sintático, se dá pelo fato de existir uma estrutura exclusiva
para o sistema jurídico. Então qual seria ela?
2.2.2. Estrutura sintática das normas jurídicas
Isolado o ordenamento jurídico – os textos jurídicos – percebemos que há
uma estrutura lógica que se formaliza a cada construção intelectiva, ou seja, sempre que
observados os enunciados jurídicos, cogitamos a existência de um esquema formal composto
por três elementos: 1) Hipótese fática, 2) implicação (modal deôntico: dever-ser) e, 3)
Consequência jurídica. Esquema sintático que denominamos de norma jurídica, em termos
kelsenianos.
Ilustração 01: Hipótese fática (H) Consequência jurídica (C)
Desse modo, se isolarmos as unidades elementares do ordenamento jurídico
teremos um conjunto de normas jurídicas, que estarão sempre dispostas em construções
lógico-formais predominantemente homogêneas, muito embora sejam absolutamente
heterogêneas em termos semânticos e pragmáticos.
40
Quando lidamos com a sintaxe das normas, realizamos um estudo lógico,
ou seja, elaboramos fórmulas fixas e sintaticamente homogêneas, compostas por variáveis
(categoremas)48 e constantes (sincategoremas)49 capazes de representar o nosso objeto.
Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, afirma que a norma funciona
como um esquema de interpretação.50 Norma jurídica que deve ser entendida como uma
construção hermenêutica realizada pelos órgãos credenciados pelo sistema (direito posto),
para prescrever comandos, permissões e atribuições de poder ou competência. Por outro lado,
as proposições jurídicas seriam juízos descritivos hipotéticos que tratam de cogitar o sentido,
as condições e os pressupostos da ordem jurídica.
A Ciência do Direito, para Kelsen, constroi proposições jurídicas, cuja
função descritiva busca aferir valores de verdade ou falsidade. Enquanto que as normas
jurídicas seriam o resultado da atividade interpretativa dos sujeitos competentes e aptos para
aplicar o direito. E nesta perspectiva, os valores almejados pela prescritividade normativa
seriam de validade ou invalidade.
O direito, para Kelsen, é um sistema de normas que procura regular
condutas empregando o verbo “dever-ser”, no seu sentido amplo, para que possa alcançar
obrigações, permissões e proibições. Observou, portanto, a norma jurídica como o resultado
de atos de vontade dos órgãos competentes, e o direito como um conjunto de normas
jurídicas.
48 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas do sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses. 2007. p.286 49 VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas do sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses. 2007. p.286 50 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 04.
41
A concepção homogênea, pelo exposto, compreende o ordenamento como
um sistema de normas jurídicas, cuja estrutura lógico-formal obedece ao perfil sintático de
uma hipótese implicando uma consequência (H C), cujo elemento de conexão é um modal
deôntico51 - um “dever-ser”. Desta feita, haveria homogeneidade sintática no plano da
estrutura formal da norma jurídica.
51 Entendemos que o dever-ser é entidade sintática, cuja expressão carece de significado per se. Tal como as unidades relacionais se apresentam, o dever-ser é unidade lógico-jurídica que pode ser vista sob a égide de duas perspectivas: neutra e deôntica. O dever-ser neutro é aquele que rege uma relação interproposicional, portanto, aquele que realiza o vínculo entre a proposição hipótese (antecedente) e a proposição-tese (consequente) da norma, enunciado por ato volitivo de autoridade competente. Neutralidade que se deve ao atributo de ser peça meramente relacional - necessária condição/conexão posta pelo fenômeno da implicação. É o fenômeno implicacional que provoca a causalidade jurídica, enquanto inequívoco elo concreto entre as causas fáticas e os efeitos jurídicos. Assim, é possível usar esta assertiva para corroborar com toda a tese de que a incidência51 se opera sobre os fatos da realidade (subsunção – inclusão de classes) e implica numa consequência jurídica, onde serão ponentes deveres e direitos aos sujeitos. Assim, a imputação se opera como etapa final do processo de incidência jurídica, sendo capaz de concretizar as relações jurídicas previstas nos consequentes abstratos das normas gerais e hipotéticas elaboradas a partir da leitura, interpretação e compreensão dos textos positivados. O dever-ser neutro vincula termos proposicionais sem jamais se mostrar modalizado. E esta negativa se consolida por conferir ao símbolo “modalizado” o caráter operacional, orientado pela Lógica deôntica, de impor os vetores proibido (V), permitido (P) e obrigatório (O) às condutas intersubjetivas. Assim, esta modalização não é cabível ao dever-ser de natureza neutra.
Na esteira classificatória, o dever-ser deôntico não segue a consecução do raciocínio adrede exposto em termos de fenômeno implicacional, pois não é o responsável pela implicação – competência exclusiva do dever-ser neutro, mas estabelece um vínculo que agora acontecerá entre pessoas e terá como efeito imediato a imposição de um dever jurídico para o sujeito S’ e de um direito subjetivo para o sujeito S’’. Por esta forma, tal relação jurídica somente será percebida na proposição-tese da norma (consequente) e, assim, será chamada de intraproposicional.
GEORGES KALINOWSKI traz, em sua obra Introduction a la logique juridique(1965), o termo “functor” para designar a entidade relacional lógico-jurídica chamada de dever-ser. (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008: item 2.7., Capítulo II, Primeira parte). Mas, antes seguir com a designação proposta pelo autor supramencionado, interessante é realizar um breve estudo acerca das acepções originais do termo “functor”. Pelo exposto, o termo “Functor” se apresenta, originariamente, da seguinte forma: “In category theory, a branch of mathematics, a functor is a special type of mapping between categories. Functors can be thought of as homomorphisms between categories, or morphisms in the category of small categories. Functors were first considered in algebraic topology, where algebraic objects (like the fundamental group) are associated to topological spaces, and algebraic homomorphisms are associated to continuous maps. Nowadays, functors are used throughout modern mathematics to relate various categories. The word "functor" was borrowed by mathematicians from the philosopher Rudolf Carnap [Mac Lane, p. 30]. Carnap used the term "functor" to stand in relation to functions analogously as predicates stand in relation to properties. [See Carnap, The Logical Syntax of Language, p.13-14, 1937, Routledge & Kegan Paul.] For Carnap then, unlike modern category theory's use of the term, a functor is a linguistic item. For category theorists, a functor is a particular kind of function. Verbalizando as inferências construídas a partir da compreensão do texto citado, é possível discorrer acerca de alguns pontos inteiramente relevantes. JOHANN PETER G. L. DIRICHLET introduziu, no campo da matemática, a moderna definição “formal” do conceito de
42
Convém registrar que a postura positivista pretendeu construir uma teoria
pura do direito, uma ciência jurídica autônoma capaz de se diferençar das demais ciências. E
Kelsen, para viabilizar esta pureza, realizou um corte metodológico que isolou o direito do
mundo externo, a partir da identificação de uma forma sintática propriamente jurídica.
Entretanto, o corte sintático de tal concepção não negou a existência do conteúdo semântico
dos enunciados prescritivos, apenas o desconsiderou no instante em que se propôs a construir
uma teoria pura.
Os valores atribuídos ao sistema normativo seriam o resultado do processo
interpretativo, e, portanto, uma perspectiva que não interessaria à parte da teoria que buscou
identificar a forma pura do direito. Vista por este enfoque, é possível se chegar à conclusão
de que a teoria do direito, para os positivistas, teria como objeto de preocupação a teoria da
norma jurídica, como unidade sintática elementar do ordenamento.
função. Função que passou a ser tratada pelo professor alemão como um caso especial de relação (relação aqui definida como o conjunto de pares ordenados, onde cada elemento pertence a um dos conjuntos relacionados). Assim, na álgebra, o conceito de functor assumiu a face de elemento relacional, i. é, de ponte formal que tem preservada sua estrutura (homomorfismo – homomorphisms - R. SCHREIBER, Logik des Rechts, chama de isomorfismo – estruturas formais de mesma composição) a fim de unir categorias. Transpondo o conceito matemático para a filosofia, RUDOLF CARNAP utilizou o termo functor para denominar o ente relacional que há entre predicados ou entre propriedades. Assim, functor foi adotado, pela seara filosófica, como um item linguístico, uma forma especial de função, cuja natureza é meramente estrutural.
Desta maneira, retornando às acepções de GEORGES KALINOWSKI, é absolutamente pertinente a analogia feita do termo functor à lógica jurídica. Pois, se o dever-ser é o ente que relaciona as proposições da forma normativa, ele poderá ser chamado, sem demasiada restrição, de functor. Nesta perspectiva, ao observar a forma normativa e a posição ocupada pelos functores – dever-ser, GEORGES KALINOWSKI identificou como functor deôntico aquele ente que integra a relação intraproposicional/ ( S’ R S’’). E, ainda seguindo o raciocínio adrede destacado, assumindo a postura propriamente matemática de iniciar a resolução das equações pelas operações internas às formulas e seguir pelos termos marginais até alcançar o resultado correto, inferiu-se que: se o dever-ser modalizado da proposição-tese é chamado de functor deôntico¸ então o dever-ser neutro, enquanto relação da relação, será chamado de functor-de-functor. Com toda esta exposição, concluímos que o dever-ser é qualificação jurídica para uma função relacional – functor. E, nesta medida, assume um papel estrutural inafastável para análise lógica da forma sintático-normativa. E, em sendo qualificação, é entidade que apresenta carga valorativa tanto enquanto functor-de-functor como enquanto functor deôntico.
43
2.3. Abertura semântico-pragmática do Sistema Jurídico
O sistema jurídico enquanto subsistema social está inserido num contexto
complexo e ininterrupto de fatos. Fatos sociais que exigem regulação e inclusão num
contexto capaz de orientar as condutas intersubjetivas. Dentro de uma sociedade em
desenvolvimento gradual, diversos valores devem ser mobilizados e contemplados por
previsões normativas, aptas a viabilizar a harmonização do convívio social e oferecer os
meios suficientemente válidos para solucionar os eventuais conflitos e sanar as expectativas
frustradas pelo litígio.
Sobre isso, convém ressaltar que quando o sistema jurídico assume para si a
função de elaborar um repertório geral e abstrato de hipóteses fáticas capazes de implicar
consequências jurídicas, está incluindo o quantum do ambiente/meio na sua forma própria e
exclusiva, i. e, conectando as referências externas a partir de operações internas52.
Significa dizer que o direito passa a regular, a partir de uma estrutura formal
homogênea, a heterogeneidade dos fatos sociais através de atos que seguem específicos
procedimentos e definidas competências.
Entretanto, ao disciplinar as condutas intersubjetivas, o sistema jurídico não
traz para dentro de si fatos econômicos, sociais, político, ou toda heterogeneidade do
52 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad. 2002. p. 78.
44
ambiente; dentro do sistema jurídico só há fatos jurídicos, e os fatos em jurídicos se
transformam quando relatados em linguagem jurídica competente, positivada.
Portanto, vislumbra-se uma abertura semântica e pragmática do sistema
jurídico à realidade, desde que encontre respaldo no padrão formal do ordenamento jurídico –
frame of reference – para o fechamento operativo do sistema.
Na linha de consecução desse raciocínio, Cristiano Carvalho assegura que o
quantum de abertura cognitiva do sistema normativo ao ambiente é que dará a medida de
sua capacidade homoestática, i. e, quanto mais o sistema normativo for capaz de perceber as
expectativas do meio social, melhor será capaz de adaptar-se a ele53. Dessa forma, teremos o
sistema social sensibilizando o sistema jurídico e este criando mecanismos internos capazes
de construir programas que atendam às necessidades do universo contínuo e cambiável - o
meio.
Como observa Lourival Vilanova, as novas situações (sociais) encontram
solução normativa dentro dos quadros gerais do ordenamento: regras legisladas, os
regulamentos editados, as decisões judiciais vão, cada uma em sua esfera própria, criando
um direito novo, sem quebra dos lineamentos e contornos do ordenamento jurídico total.54
O ordenamento jurídico e todas as entidades que o compõe – leis, decisões
judiciais, jurisprudências – se assenta num substrato social e se volta para ele a fim de dar
53 Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin. 2005. p. 245. 54 VILANOVA, Lourival. “Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento” in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003.
45
forma às relações e oferecer segurança aos entes atuantes no quadro de possibilidades
crescentes vivenciadas na tábua das evoluções sociais.
É o direito atuando na mudança social, num método empírico-dialético de
influência recíproca entre a experiência e a normatização. As transformações dos estratos
sociais e a ruptura do equilíbrio transitório provocam sensibilizações no sistema jurídico,
repercutindo mediatamente no comportamento judicial. Dessa forma, é a interação
semântico-pragmática do sistema jurídico que instiga o desenvolvimento, concretizando o
processo universal de mobilização dos fatores econômicos, tecnológicos, dentre outros, a
partir de manifestações normativas de previsão, planejamento e regulamentação.
Sendo assim, o direito que se transforma repõe a quantia de normatividade
exigida pelo ambiente no processo de desenvolvimento. Estrutura reformativa, característica
do sistema jurídico, que também fica nas mãos dos órgãos com poderes para criar o direito
(órgãos competentes), desempenhando a função completante de decidir os casos conflitantes
que surgem com base no repertório que dispõe.
Nesta perspectiva, trazemos a posição de Haroldo Valladão55 que se mostra
coerente ao advogar que (...) a interposição dos juízes e tribunais para exercer aquela função
completante, de posição do direito novo e de ser órgão por meio do qual as modificações
sociais e econômicas encontram a forma jurídica adequada. É um aspecto em que se dá a
forma jurídica ao processo de desenvolvimento.
55 Novas dimensões do direito. Justiça social, desenvolvimento, integração. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1970. p. 286.
46
A obrigação de o direito solver os litígios jurídicos através de seus órgãos
jurisdicionais é o que caracteriza o princípio do non liquet56 e promove a natureza fechada e
auto-reprodutiva do sistema jurídico.
2.4. Sistema Jurídico Tributário: processo de diferenciação funcional
Se o conceito de sistema social é construído a partir da ideia de diferença, ou
melhor, em razão da eleição de uma diferença (fato de ser comunicação) frente ao ambiente –
o entorno, a mesma inferência poderá ser feita quando de dentro do sistema social
observarmos os diversos subsistemas, dentre eles o jurídico. E aí a primeira pergunta que
surge é: quais diferenças se revelam suficientes para diferençar os subsistemas jurídicos?
Falar em processo de diferenciação é vislumbrar um modelo para a
construção dos subsistemas, é observar a arquitetura de interação intra-sistêmica ou de
interação mútua entre os subsistemas – relações intersubsistêmicas, ou seja, as estruturas, os
processos, a auto-regulação, a seletividade, as funções, etc.57
A grande marca da sociedade moderna é a inequívoca necessidade de
atribuir papeis especializados, é a identificação funcional caracterizando e diferençando
56 Tomamos a completeza do ordenamento como a expressão do universo normativo: dentro dele haverá sempre uma solução, dada por uma proposição normativa geral, ou por uma proposição normativa individual, que no caso litigioso, é a decisão judicial. (...) O ato de decisão corta as alternativas e faz opções. As decisões partem do poder, é função da política e a política, para se consolidar, logo engendra o direito. A decisão é axiológica, importa uma tomada de decisão. Cf. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. P. 492 e 493. 57 LUHMANN, Niklas. The Economy as Social System. Columbia University Press. New York, 1982.
47
sistemas, reduzindo complexidades. Circunstância histórica que supera os processos de
diferenciação vivenciados ao longo da sociedade tradicional (segmentário, geográfico e
estratificado).
Nesse contexto da modernidade, os mecanismos da sociedade diferenciada
elegem o aspecto funcional como efetivo meio capaz de propagar o desenvolvimento e
garantir as implicações recíprocas intra-sistêmicas. Função capaz de diferenciar os
subsistemas entre si, construindo universos operativamente fechados, auto-reprodutivos com
amarras reacionárias. Subsistemas com estruturas fechadas que estabelecem diferenças não só
através das funções e dos códigos binários, mas também dos meios, programas e operações
diferenciadas.
O viés funcional do sistema jurídico, por exemplo, reside na observância dos
limites das normas jurídicas estabelecidos pelo conjunto estrutural do ordenamento jurídico,
na dinâmica de aplicação normativa e consequente indução de políticas públicas de
intervenção Estatal no domínio econômico e social.
Os subsistemas jurídicos (tributário e econômico) atuam de forma autônoma,
porém interligados pela origem sistêmica unitária que o os perseguem, o fato de ser sistema
jurídico.
Nesta monta, o sistema tributário exerce suas funções com o fim de
promover a transformação e desenvolvimento através do exercício da fiscalidade e da
extrafiscalidade. A primeira, fiscalidade, está relacionada à função primária de tributo, qual
seja, instrumento de arrecadação de recursos financeiros para o Estado, que, por sua vez, é
48
uma função que não deve ser considerada com exclusividade. Isso porque toda norma jurídica
tributária tem o condão de interferir no comportamento intersubjetivo de uma forma ampla,
logo a função fiscal do tributo opera como um objetivo preponderante na norma que institui o
tributo, não como um objetivo exclusivo.
O mesmo se diga em relação à função extrafiscal do tributo, que exerce a
finalidade de direcionar o comportamento humano, através de normas que atuam intervindo
no domínio econômico, em que o interesse arrecadatório (fiscal) exerce função secundária
perante os interesses de transformação.
Sendo assim, as funções são exercidas de modo preponderante, motivo pelo
qual um tributo deve ser analisado sem a insistência de exclusividade de funções, fiscais e
extrafiscais. Como dá conta Diego Bomfim58, “(...) não existem, propriamente, tributos fiscais
ou extrafiscais, mas tributos com função preponderantemente fiscal ou extrafiscal, já que não
há tributo que ostente apenas um viés de fiscalidade ou extrafiscalidade”.
No mesmo sentido assevera Alfredo Augusto Becker59:
Neste ponto germinal da metamorphose jurídica dos tributos, a transfiguração que ocorre é, em síntese, a seguinte: na construção jurídica de todos e de cada tributo, nunca mais estará ausente o finalismo extrafiscal, nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão sempre agora de um modo consciente e desejado – na construção jurídica de cada tributo; apenas haverá maior ou menor prevalência neste ou naquele sentido, a fim de melhor estabelecer o equilíbrio econômico-social do orçamento cíclico.
58 Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 69. 59 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª Edição. São Paulo: Noeses. 2007. p. 632.
49
Por esta concepção, a fiscalidade e a extrafiscalidade dos tributos são funções
que percorrem caminhos que se cruzam em determinados instantes da trajetória, ou seja,
interseccionam-se. Com isso, resta demonstrado que o exercício da competência tributária,
levando em conta a identificação funcional predominante dos tributos, terá como resultado a
frutífera percepção das influências das normas tributárias sob as normas concorrenciais.
Por esse modelo de estudo, no qual é preciso perceber as influências entre os
chamados subsistemas jurídicos – tributário e econômico –, o enfoque pragmático alia-se à
sintática das normas, para juntos alcançar os pontos de acoplamento entre os sistemas
jurídicos. Fala-se aqui em considerar além do fechamento operativo/estrutural, a abertura
semântica e pragmática dos sistemas que traça os contornos de uma interação contínua e
transformadora capaz de induzir ou promover condutas intersubjetivas em favor da mudança
e do desenvolvimento social, em função das atuais necessidades do Estado.
2.5. Sistema Jurídico Econômico: a ordem econômica constitucional
“Ainda que se oponha à ordem jurídica a ordem econômica, a última expressão é usada para referir uma parcela da ordem jurídica. Esta, então – tomada como sistema de princípios e regras jurídicas – compreenderia uma ordem pública, uma ordem privada, uma ordem econômica, uma ordem social.” 60
Neste item estabeleceremos um corte conceptual, recortaremos a
abrangência semântica do termo “ordem econômica” para direcionar as atenções somente 60 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988. 9a Edição. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 51
50
para os meandros de seu caráter jurídico. Ou seja, na presente etapa, percorreremos o
conceito de “ordem econômica” enquanto um conjunto de normas jurídicas que regulam a
ação econômica, fazendo anotações atinentes à ordem jurídica da economia disciplina na
Constituição Federal de 1988. Isso porque não compete a nós juristas a missão de estudar a
ordem econômica enquanto um conjunto de fatores econômicos materiais, de mecanismos e
estratégias mercadológicas, tão somente por nos falar linguagem para tanto.
A ordem econômica regulada pelo repertório jurídico-positivo, a ordem
econômica enquanto subsistema jurídico é a porção sobre a qual pretendemos nos debruçar.
A ordem econômica enquanto realidade do mundo do ser normatizada, conduzida à
linguagem do universo prescritivo, à linguagem do direito.
Eros Roberto Grau, tratando da ordem econômica, conceitua como “o
conjunto de normas que define, institucionalmente, um determinado modo de produção
econômica. Assim, ordem econômica, parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser), não é
senão o conjunto de normas que institucionaliza uma determinada ordem econômica (mundo
do ser).” 61
A partir da regulação constitucional da ordem econômica, o direito passa ter
linguagem competente – regras e preceitos – para instrumentalizar políticas públicas,
promovendo intervenções62 positivas ou negativas do Estado no entorno a fim de aprimorar e
61 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988. 9a Edição. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 63 62 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988. 9a Edição. São Paulo: Malheiros. 2004. “(…) Intervir é atuar em área de outrem: atuação, do Estado, no domino econômico, área de titularidade do setor privado, é intervenção. Atuação do Estado além da esfera do publico – isto é, na esfera do
51
preservar os artefatos sistêmicos da ordem econômica normatizada, a partir de um conjunto
de princípios ordenador do sistema econômico. O direito, nesse contexto, enquadra-se como
o legitimador das relações de produção, como o sistema que define a forma e o dever ser
econômico juridicamente institucionalizado.
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 no bojo de seu art. 170, caput
e incisos, traz os seguintes enunciados prescritivos, in verbis:
Art. 170. CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. (destacamos)
privado – é intervenção. De resto, toda atuação estatal pode ser descrita como um ato de intervenção na ordem social.” p. 65.
52
Os enunciados atribuídos pela Carta Magna à ordem econômica preconizam
a introdução dos princípios e valores que devem orientar a produção normativa indutoras de
efeitos econômicos e até mesmo aquelas de natureza jurídica voltada aos fatos econômicos.
Pela leitura atenta do caput do art. 170, logo se percebe que a ordem econômica deve
prestigiar, ao menos, dois paradigmas: o trabalho humano e a livre iniciativa. De modo que
para viabilizá-los, a ordem econômica não pode se afastar de princípios (valores), como: a
soberania, a propriedade privada e sua função social, a livre concorrência, o meio ambiente,
o direito do consumidor, a redução de desigualdades, dentre outros.
É sabido que o núcleo de um sistema econômico volta-se para os conceitos
de propriedade privada e liberdade contratual, estes que em si regulados já seria suficientes
para promover limites à ordem econômica material. Ora, mas a Carta Magna preferiu ir mais
além, ao impor uma gama de valores que devem orientar a constituição de fatos que
intervenham, ainda que mediatamente, na economia.
Os princípios enunciados no art. 170 da CF/88 são limites ao poder de
legislar, ao livre poder de contratar, à atuação e intervenção do Estado na economia,
inclusive, são limites ao poder de instituir e exonerar tributos – poder de tributar. Dessa
assertiva surge a necessidade de definir quais os limites à intervenção do Estado no domínio
econômico, até onde é possível o Estado intervir sem dirigir a economia, se é que existe essa
possibilidade.
O domínio econômico, neste contexto, é o fluxo de atos percebidos no
mundo do ser, um conjunto de relações sociais vinculadas às atividades econômicas em
53
sentido estrito, ou seja, que estão diretamente relacionadas à produção, circulação de bens e
prestação de serviços voltados para o mercado.63 Trata-se do universo de condutas
intersubjetivas regulado pela ordem econômica constitucional. O domínio econômico, em
sendo um conjunto de relações sociais, pode ser definido como um estrato de linguagem
descritiva de relato fático que se refira à captação de lucros e produção de riquezas, sem,
portanto, a normatividade prescritiva que encampa a linguagem da ordem econômica.64
Por todo o exposto, pode-se concluir que o termo domínio econômico
refere-se à parcela do mundo do ser – relações sociais relacionadas à produção, circulação de
bens e prestação de serviços voltados para o mercado – regulado pelas normas jurídicas que
compõem a ordem econômica.
Contudo, ainda que estejamos a falar em intervenção do Estado e domínio
econômico é certo que nenhuma linguagem prescritiva do sistema jurídico implica imediata
transformação ou alteração no mundo do ser – descritivo. Isso porque os sistemas operam de
uma forma autônoma, com códigos, funções e programas distintos, de modo que as
realidades dos sistemas – jurídico e econômico – não se confundem entre si, sequer
interferem uma nas outras.
O direito, para processar a realidade econômica e exercer seu poder
regulatório, necessita produzir linguagem prescritiva que se adeque à realidade descrita,
normas dirigidas à regulação pelo Estado do domínio econômico. Além dessa ação normativa
63 GAMA, Tácio Lacerda. Contribuição de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Quartier Latin,2003. p. 230. 64 GAMA, Tácio Lacerda. Contribuição de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Quartier Latin,2003. p.231.
54
do Estado, deve-se considerar que o ente público pode atuar como um agente econômico,
produzindo, circulando bens e prestando serviços para o mercado – participando efetivamente
no setor da atividade econômica.
A participação do Estado na economia e seus limites de atuação estão
previstos no art. 173 da Constituição Federal de 1988, dispondo o que segue, in verbis:
Art. 173. CF/88. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários
III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;
IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;
V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.
§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.
§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.
55
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Pelos termos do art. 173 da CF/88, o Estado poderá sim participar da
atividade econômica desde que obedeça algumas regras. A primeira delas refere-se à
exigência de que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida
quando necessária à segurança nacional ou ao interesse coletivo, circunstâncias que deverão
estar devidamente qualificadas e previstas em lei. É também a lei que deverá definir o
estatuto jurídico das empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias,
para preservação dos princípios da ordem econômica, descritos no art. 170 da Carta Magna
de 1988.
A Constituição Federal de 1988, em face da evidente situação privilegiada
do Estado, seja em termos econômico-financeiros como políticos, cuidou de deixar
expressamente determinada a proteção ao princípio da livre-concorrência ao determinar que
as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios
fiscais não extensivos às do setor privado. Ou seja, ao ingressar no domínio econômico
exercendo uma função participativa, o Estado não pode gozar de prerrogativas ou benefícios
fiscais que lhes sejam exclusivos, isso porque o Estado passa a explorar a atividade
econômica sob o regime de direito privado, devendo ser reprimido por lei todo e qualquer ato
56
de abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da
concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Dessa forma, o Estado poderá exercer dois tipos de ação: (i) participativa e
(ii) normativa. A atividade participativa situa o Estado na posição de agente econômico,
inserido no regime de direito privado e obedecendo regras que reprimem o abuso do poder
econômico.
A atividade normativa, por sua vez, prevista no art. 174 da CF/88, está
vinculada à construção de normas jurídicas que possibilitem a fiscalização e a viabilização da
atividade econômica. Viabilização que neste caso significa condições de desenvolvimento,
crescimento e estímulos àqueles que exercem alguma atividade econômica. Nesse contexto, o
Estado regulador atua planejando o desenvolvimento de determinado setor da economia,
verdadeiro instrumento de racionalização.
Art. 174. CF/88. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
§ 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
§ 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.
Adotando a classificação de Eros Roberto Grau, enquanto regulador
legislativo, o Estado pode exercer sua atividade normativa sobre o domínio econômico por
direção ou por indução. “Quando o faz por direção, o Estado exerce pressão sobre a
57
economia, estabelecendo mecanismos e normas de comportamento compulsório para os
sujeitos da atividade econômica em sentido estrito.” 65 O termo direção é atribuído às normas
de intervenção que expressam comandos imperativos que exigem o cumprimento imediato
por todos os agentes econômicos, sob pena de sanção. São normas que exigem um tipo de
comportamento, normas cogentes.
Noutra monta, “Quando o faz, por indução, o Estado manipula os
instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis que regem o
funcionamento dos mercados.” 66 A intervenção sobre o domínio econômico por indução é
aquela que opera estímulos positivos ou negativos para que os agentes econômicos
empreendam determinadas condutas mediante a utilização de normas jurídicas
promocionais.67
As normas indutoras de conduta, diferentemente das normas de direção, são
normas que instituem estímulos (positivo) ou desestímulos (negativo) à realização de
determinados comportamentos. O Estado atua como regulador legislativo seduzindo o agente
econômico a praticar ou a não praticar determinada conduta. E é exatamente neste contexto
de normas promocionais indutoras de comportamento que vamos trabalhar a ideia de
tributação como instrumento de intervenção.
65 GRAU, Eros Roberto. Ordem econômica na Constituição de 1988. 9ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 133. 66 GRAU, Eros Roberto. Ordem econômica na Constituição de 1988. 9ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 133. 67 BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 99.
58
2.6. Anotações sobre a interação entre os subsistemas jurídicos: tributário e econômico
Surgem das linhas adrede escritas as ideias entusiasmadas de
desenvolvimento, mudança social, transformação, previsão normativa de dados-de-fato, o
poder da mudança pelo direito, sempre analisando perspectivas extra e intra-jurídicas.
Visualizando o crescente aumento das complexidades do ambiente e as necessárias
sensibilizações refletidas no sistema jurídico.
Pois muito bem, é exatamente nesta atmosfera de abrangência semântico-
pragmática do sistema jurídico e dos demais sistemas, observada a partir do processo
dialético de mudanças e institucionalizações, que ousaremos defender a interação entre o
direito e a economia, propondo como técnica a inclusão do quantum econômico na forma
(linguagem) jurídica.
No caminho da consecução dos objetivos epistemológicos deste estudo,
consideramos pertinente enunciar a posição de Lourival Vilanova68 quanto ao que acabamos
de expor, com a finalidade de destacar com clareza a inequívoca relação entre o direito e a
estabilidade, entre o direito e as alterações sociais, vejamos:
“O social é um processo dialético de estabilização e mobilidade, de consolidação em estruturas e modificações nas relações dos fatores integrantes das estruturas. Os momentos de estática e dinâmica coexistem num equilíbrio lábil, sempre a romper-se lentamente, imperceptivelmente, ou abruptamente, com violência e consciência de
68 Cf. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. p. 492/493.
59
mudança. O direito tanto sofre a mudança, a passagem de subdesenvolvimento para o desenvolvimento, como por sua vez opera como fator, detendo ou promovendo a mudança. Faz as vezes de forma, de receptáculo dos fins novos, dos novos projetos que a sociedade adota, das novas atitudes e valorações. E, sabe-se, que a forma jurídica, como toda forma, se não faz os fatos ou matérias de fato, modela-os, dá-lhes os contorno, imprime-lhes sentidos e finalidades. A forma eleva a mera relação factual de permuta entre coisas a uma relação jurídica, um tipo de negócio jurídico (...)”69 (destacamos)
É o sistema jurídico atuando como poder, como controlador das relações,
inclusive no processo de desenvolvimento econômico, ou seja, é o direito agindo como
instrumento dos fatores econômicos (propriedade, contrato, lucros, preços, etc.), protegendo70
os negócios, reprimindo os abusos e assegurando as condutas através do viés de
previsibilidade próprio do direito frente ao universo mutante dos fatos.
É a forma jurídica do desenvolvimento que torna as mudanças realizáveis;
que constroi, no interior do sistema positivo, um consolidado conjunto de normas que
disciplinam o funcionamento da economia, que oferece estabilidade e segurança para o
contexto social, uma vez que toda matéria direta ou indiretamente interfere na economia (lato
e stricto sensu). Portanto, o acoplamento estrutural entre o direito e a economia se dá através
da forma jurídica, i. e, pela linguagem do direito, num trajeto que envolve condutas
recíprocas e alcança a mobilidade dos subsistemas sociais.
69 Cf. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. in Escritos Jurídicos e Filosóficos. Volume 02. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. p. 477. (destacamos) 70 O sistema jurídico cria meios para proteger a propriedade e punir o abuso deste direito.
60
Noutros termos, ao prescrever o comportamento social, conduzindo as
condutas intersubjetivas pelo caminho da “justiça”, o direito aperfeiçoa os elementos do
entorno revestindo-lhes de uma forma propriamente jurídica capaz de causar efeitos de
transformação, ainda que mediata. Ocorre que, do ponto de vista interno ao sistema jurídico,
diversos subsistemas coexistem e se diferenciam pela função exercida em seus domínios,
numa compatibilidade gerada pela lei71 (norma) e numa incompatibilidade por efeitos
divergentes entre os interesses de seus respectivos subgrupos jurídicos.
A lei é o instrumento sintático de inserção de dados-de-fato dentro do
sistema jurídico, o texto positivo. As normas jurídicas são o conteúdo construído a partir da
análise desses enunciados prescritivos. Não é por outro motivo que Lourival Vilanova insiste
em afirmar que onde há sistema há relações e elementos, que se articulam segundo leis72.
A compatibilidade repercute o aspecto sintático-semântico do princípio
includente da legalidade, vez que os elementos, em razão da lei (norma), passam a ser
classificados como jurídicos ou não jurídicos, incluídos na classe do sistema do direito. Por
esta razão, arriscamo-nos, inclusive, a afirmar que o princípio da legalidade é o critério de
inclusão que autoriza a pertinencialidade de um dado ao sistema jurídico, pois como afirma
Lourival Vilanova:
“Sem norma, um fato não adquire qualificação de fato jurídico. E sem fato jurídico, efeito (eficácia) nenhum advém. De onde depreende que os fatos jurídicos são internos a cada sistema. não há fato jurídico fora do sistema normativo. É o sistema que decide que fatos
71 Lei (sintática) – texto jurídico positivo – veículo introdutor de normas. Norma (semântica e pragmática) – reconstrução do texto jurídico a partir do processo hermenêutico: leitura – interpretação – compreensão. 72 Cf. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses. 2008. p. 250.
61
são jurídicos (juridicização do fáctico), e que fatos deixam de ser jurídicos (desjuridicização do fáctico).” 73 (destacamos)
Noutro dizer, uma conduta intersubjetiva somente será qualificada como
jurídica quando os seus aspectos/elementos estiverem devidamente previstos na forma de
hipótese normativa veiculada por lei. Assim, “a abertura por onde entram os fatos são as
hipóteses fácticas; e suas conseqüências em fatos se transformam pela realização dos
efeitos.” 74
A lei (em sentido amplo) é a estrutura sintática que insere um conjunto de
textos jurídicos no interior do sistema. A lei é o suporte físico para a construção das normas –
entidades significativas, cuja configuração estrutural é hipotético-condicional (hipótese fática
consequência jurídica), que detêm mensagens prescritivas capazes de regular as condutas
intersubjetivas e qualificá-las como jurídicas.
Não é por outro motivo que Hans Kelsen afirma:
O que transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato por intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como um esquema de interpretação. Por outras palavras: o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico) é o
73 Cf. Causalidade e relação no Direito. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 53. 74 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 55.
62
resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa.75
O princípio da legalidade está expressamente disposto no art. 5º, inciso II
da Constituição Federal de 1988, prescrevendo que “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer algo se não em virtude de lei”, ou seja, ninguém será compelido a praticar ações
diversas daquelas prescritas pelos representantes legislativos76.
Apegando-se às referidas disposições, Paulo de Barros Carvalho ensina que,
verbis, “Por força do princípio da legalidade (CF, art. 5º, II), a ponência de normas jurídicas
inaugurais no sistema há de ser feita, exclusivamente, por intermédio de lei, compreendido
este vocábulo no seu sentido lato. Em qualquer segmento da conduta social, regulada pelo
direito, é a lei o instrumento introdutor dos preceitos jurídicos que criam direitos e deveres
correlatos.” 77
Destarte, se as condutas intersubjetivas deonticamente modalizadas devem
estar hipoteticamente descritas em normas gerais e abstratas inseridas no ordenamento por
meio de lei, então as consequências jurídicas também devem estar devidamente prescritas no
conjunto normativo do direito posto, disciplinando a multiplicidade heterogênea das relações
sociais.
Nesta esteira, temos o princípio da legalidade como o valor diretor do
sistema jurídico, enraizando-se como o limite do repertório jurídico, a fim de manter
75 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 4. 76 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: linguagem e método. São Paulo: Noeses, 2008. p. 282. 77 Cf. Curso de Direito Tributário. 22a Edição. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 266.
63
formalizada a exclusiva prescritividade deôntica pertinente à linguagem do direito positivo. É
também pela lei 78que o sistema jurídico consegue interferir nos demais sistemas sociais,
inclusive no econômico.
Isso não quer dizer que tomamos uma postura positivista-legalista, muito
pelo contrário. Ao considerarmos a lei um critério sintático de inclusão de linguagem na
forma jurídica, estamos identificando a forma como um texto ingressa no sistema jurídico.
Estamos, ainda, identificando como surge o instrumento vetorial indutor de condutas, pois é a
partir do texto de lei que serão construídas as normas jurídicas, unidades elementares do
sistema jurídico, cuja função é disciplinar o comportamento do homem social.
A fim de esclarecer um pouco mais esse percurso de construção do direito,
levamos em conta a estrutura trilateral de Edmund Husserl, em que se têm: suporte físico,
significado e significação. No universo do sistema jurídico, o suporte físico seria o texto de
lei, o significado estaria nas condutas dos sujeitos e a significação seria o vasto repertório que
o jurista extrai, compondo juízos lógicos, a partir do contato sensorial com o suporte físico, e
com referência ao quadro dos fatos e das condutas juridicamente relevantes 79. Partindo
dessa construção husserliana, Paulo de Barros Carvalho80 defende que o texto escrito, na
78 “Em geral concordamos com as leis, ou por causa da autoridade do estado, que a impõe, ou por causa da justiça de seu conteúdo. De qualquer forma, concordemos ou não, devemos obedecê-la, sob pena de arcarmos com a respectiva sanção. A este caráter da norma jurídica, que lhe permite atribuir qualidade e efeitos às coisas e comportamentos, que lhe dá a virtude de imputar efeitos próprios seus (jurídicos) às coisas que recaem sob seu poder, dá-se o nome de atributividade.” Cf. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 28. (grifamos) 79 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O absurdo da interpretação econômica do fato gerador – Direito e sua autonomia – O paradoxo da interdisciplinariedade. 80 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. O absurdo da interpretação econômica do fato gerador – Direito e sua autonomia – O paradoxo da interdisciplinariedade.
64
singela expressão de seus símbolos, não pode ser mais do que a porta de entrada para o
processo de apreensão da vontade da lei.
O Estado se manifesta através do direito, e é por meio dele que consegue
conduzir os comportamentos intersubjetivos da direção dos ditames prescritivos dispostos na
ordem jurídica vigente. Nesta medida, é o direito o único sistema que ostenta como
instrumento operativo a coercitividade, capaz de aplicar sanções àqueles que descumprirem
seus mandamentos. O Estado (lato sensu), enquanto revestido do poder executivo, legislativo
e judiciário, atua direcionando os atos econômicos, na medida em que os disciplina na forma
de linguagem jurídica81.
Cumpre-nos observar que o sistema jurídico (sistema comunicacional) é
capaz de emitir atos jurídicos de fala com interferência mediata no entorno econômico, sem,
no entanto, emitir atos econômicos, uma vez que somente o sistema econômico detém
instrumentos hábeis para tanto. E assim, a interferência do Estado na economia dá-se através
da regulamentação dos atos econômicos82 pelas normas jurídicas, devidamente positivadas,
que prescrevem matérias de conteúdo econômico, de modo a limitar a liberdade econômica e
seccionar o universo de relações juridicamente possíveis.
As estruturas normativas, portanto, são veiculadas por meio de lei, são o
resultado da manifestação de vontade dos representantes do atual Estado de Direito, e por isso 81 “(...) a ordem jurídica é a única com aparato coercitivo, o que confere às suas emissões um poder de persuasão infinitamente superior a qualquer outro sistema. Destarte, como o direito acarreta sanções ao descumprimento de seus mandamentos, acaba restando um grau de liberdade muito restrito aos destinatários normativos, dentre eles, os agentes econômicos.” Cf. CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 265. 82 CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 260.
65
ocupam a posição de reguladoras das condutas sociais, enquanto voz com função de
direcionar os comportamentos dos demais subsistemas da sociedade. Isso significa que,
através das normas jurídicas, o Estado regula os subsistemas sociais, inclusive o econômico.
O sistema jurídico intervêm no sistema econômico a partir de contínuos
estímulos inter-sistêmicos induzidos por normas jurídicas. O sistema econômico, por sua vez,
reage processando as regras e aplicando-as de acordo com seus próprios critérios. Sendo
assim, é inegável que a liberdade econômica fica limitada pela ordem normativa do Estado de
Direito, a ordem econômica constitucional, assim como toda e qualquer manifestação social
regulada normativamente.
Existem diversas formas de estímulo inter-sistêmico que, de modo geral,
partem do sistema jurídico tributário e econômico: concessão de benefícios fiscais,
imposições tributárias, leis anti-truste, controle de preços e juros, etc. Ao recepcionar esses
estímulos, o sistema econômico pode reagir positiva ou negativamente às regras jurídicas
imperativas, acatando ou recusando-se a obedecê-las, respectivamente.
Mas, para que a ordem econômica possa alcançar uma boa sinergia
sistêmica, é necessário que os valores jurídicos positivados para a economia sejam validados e
processados pelos atos econômicos, pois é pelo poder coercitivo da ordem jurídica que a
economia pode garantir o alcance da livre concorrência, da divisão de trabalho, da
neutralidade concorrencial estatal, da igualdade tributária, etc.
Com isso, não se quer dizer que a economia caminha nos passos do direito,
muito pelo contrário, o domínio econômico é autônomo e se articula com seus próprios
66
critérios, o que o torna auto-regulável (perspectiva endógena). Nesse contexto, o direito
(sistema jurídico) ingressa como instrumento interventivo do Estado na regulação, inibição
(intervenção negativa) ou no estímulo de fatos econômicos (intervenção positiva),
descontinuando a ordem espontânea desses fatos. Essa atividade de regulação, inibição e
estímulo de comportamentos é operada pelas normas promocionais indutoras de
comportamentos.
Nesse contexto, as normas tributárias não são diferentes, também agem
como indutoras de condutas83, instituindo os tributos, dentro dos limites constitucionais,
verdadeiros instrumentos de intervenção estatal no domínio econômico. É o texto
constitucional quem estabelece, de forma programada, o modo como a tributação deve agir
enquanto instrumento de intervenção do Estado na economia, definindo as competências, as
hipóteses de incidência e os regimes jurídicos de cada tributo.
Desse modo, a utilização dos tributos como forma de intervenção do estado
no domínio econômico-social se estabelece dentro de todas as limitações constitucionais
reputadas à tributação fiscal, não havendo de se argumentar pela flexibilização de uma ou de
outra limitação garantida pela Constituição sob pretexto de efetivação de um valor
83 Cf. BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. “A tributação, no entanto, só se manifesta mediante a intervenção por indução, nunca por direção. É que o contribuinte não pode ser obrigado, mesmo por lei, a praticar o fato gerador (fato jurídico tributário) de determinado tributo, sob pena de ofensa ao princípio do não confisco, bem como de quebra da fenomenologia tributária, toda ela baseada na possibilidade de o sujeito passivo optar pela não realização de atos que atraiam a incidência da norma tributária.” p. 102.
67
extrafiscal.84 Isso porque os limites da competência tributária estão rigidamente previstos na
Carta Magna de 1988, não restando margem para o desrespeito ao regime tributário posto.
Sendo assim, considerando a Constituição Federal o fundamento de
validade do sistema jurídico, instituidor dos limites e fundamentos dos subsistemas jurídicos –
tributário e econômico – devemos determinar quais limites a tributação impõe ao princípio da
livre-concorrência e vice-versa.
84 Cf. BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 103.
68
SEGUNDA PARTE: AS IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS E O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA
Capítulo III – Competência Tributária: aptidão para instituir e exonerar tributos
“A tributação é atividade exercida pela criação de normas. Os fatos políticos, econômicos, religiosos, éticos, dentre outros, interessam à Ciência do Direito se – na medida em que – forem traduzidos para a linguagem das normas que dão forma ao Sistema Tributário Nacional. Por isso, o conjunto que regula direta ou indiretamente a instituição, arrecadação e fiscalização de tributos não é outra coisa senão normas.”85
3.1. Sobre o conceito de competência
O Sistema jurídico é formado por um conjunto de normas jurídicas
prescritivas. A natureza jurídica das normas se deve à necessária obediência aos critérios de
pertinencialidade dispostos no próprio sistema jurídico. Isso implica a assertiva de que os
critérios jurídicos de pertinencialidade, do ponto de vista semântico-pragmático, também são
normas jurídicas, unidades elementares do sistema capazes de fazer surgir novas normas no
universo do direito posto.
As normas jurídicas de competência são entidades que dispõem sobre
pressupostos para realização da ação86 jurídica, critérios de pertinencialidade, que determinam
85 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária. São Paulo: Noeses. 2009. XXVI. 86 “La acción en sentido proprio posee los dos elementos, el externo y el interno. El movimiento o conjunto de movimientos que la caracterizan constituye un entramado físico y psíquico, externo e interno. Ahora bien, la
69
que específico sujeito pode, mediante a realização de um procedimento adequado, inserir
nova norma jurídica para disciplinar coercitivamente a conduta humana na sociedade87.
O Sistema jurídico, em sua completude, pretende-se detentor de normas
jurídicas que possam ser fundamento de validade de outras novas normas jurídicas,
estabelecendo como e de que forma deve se dá esse cíclico mecanismo de criação normativa.
Hans Kelsen, com o intuito de encerrar especulações sobre qual norma teria
inaugurado o sistema jurídico, realizando um corte metodológico, reduziu a amplitude
semântica do processo inesgotável de fundamentação das normas a fim de alcançar o
fundamento de validade de todo o sistema jurídico, que chamou de norma hipotética
fundamental. Por essa corrente normativista, as normas jurídicas estão dispostas de uma
forma escalonada, na qual cada uma ocupa seu específico espaço hierárquico.
A norma hipotética fundamental ingressa no estudo do direito como um
axioma, um paradigma impecável que identifica o fundamento de validade do sistema jurídico
como uma norma pressuposta. Ou seja, um axioma para garantir a homogeneidade e
uniformidade deste objeto de estudo88. Essa posição kelseniana se instaura a partir de uma
construção exclusivamente intra-sistêmica, que isola o estudo do direito de qualquer tipo de
acción no es un mero fenómeno físico-psíquico. Es su significado. Esto se demuestra sin grave dificultad desde el momento en que un mismo complejo de movimientos puede tener diversos significados. O dicho de otra forma: un mismo conjunto de movimientos puede constituir distintas acciones.” Cf. ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 2ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. Pág. 255. 87 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária. São Paulo: Noeses. 2009. XXVII. 88 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
70
relação sintática com elementos extra-jurídicos, sejam eles econômicos, políticos, éticos,
dentre outros, pertencentes aos demais subsistemas sociais.
Neste ponto, a noção normativista de construção do direito é acolhida pela
nossa convicção de fechamento operativo do sistema jurídico, cujo conjunto de elementos
(normas jurídicas) é exclusivo do direito, e não mantém qualquer relação de validade com
recursos extra-sistêmicos. Isso não significa que adotamos o normativismo kelseniano
firmado pela Teoria Pura como o nosso princípio metodológico fundamental. Do ponto de
vista sintático, pensamos o direito como um sistema operativamente fechado, contudo,
admitimos a existência uma abertura semântico-pragmática que autoriza a incursão no
universo da cultura, dos valores, dos elementos que não são rigorosamente identificados como
jurídicos. Essa noção de inter-relação sistêmica não foi abandonada por Kelsen, entretanto o
autor defende sua posição perante sua Teoria Pura nos seguintes termos: “Quando a Teoria
Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face dessas disciplinas, fá-lo não
por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar o
sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que
lhe são impostos pela natureza do seu objeto.” 89
As normas jurídicas são um esquema de interpretação, motivo pelo qual
situa a posição cognoscente do cientista do direito na direção dos instrumentos prescritivos
que conferem juridicidade aos fatos e atos praticados pelo homem social. O Sistema jurídico –
leia-se: o direito –, é uma ordem que regula coercitivamente o comportamento humano,
89. Cf. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág. 2.
71
regulação essa que poderá acontecer de uma forma positiva ou negativa, tal como defende
Hans Kelsen:
A conduta humana é regulada positivamente por um ordenamento positivo, desde logo, quando a um indivíduo é prescrita a realização ou omissão de um determinado ato. (...) quando a um indivíduo é conferido, pelo ordenamento normativo, o poder ou a competência para produzir, através de uma determinada atuação, determinadas conseqüências pelo mesmo ordenamento normadas, especialmente – se o ordenamento regula sua própria criação – para produzir normas ou para intervir na produção de normas. O caso é ainda o mesmo quando o ordenamento jurídico, estatuindo atos de coerção atribui a um indivíduo o poder ou competência para estabelecer esses atos coercitivos sob as condições estatuídas pelo mesmo ordenamento jurídico.90 (destacamos)
Destarte, se as normas jurídicas prescrevem condutas humanas em seu
sentido amplo, então as normas jurídicas também regulam a sua própria criação, pois a
competência ou o poder para intervir na produção de normas jurídicas concretiza-se através da
conduta humana. É a chamada auto-referencialidade do sistema, ou seja, a capacidade que o
sistema jurídico tem de falar sobre si mesmo, através de normas que prescrevem a produção
de outras normas jurídicas91 – as chamadas normas de competência.
O direito positivo é um sistema capaz de regular a sua própria criação. Ou
seja, as unidades elementares do sistema jurídico – normas jurídicas – impõem o
procedimento necessário para criação de outras normas. Dessa forma as normas de
90 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág. 16/17. 91“Uma ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação de toda e qualquer norma que pertence a este sistema ser determinada por uma outra norma do sistema.” Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág. 260.
72
competência devem ser encaradas como vetores de conduta, em razão da inequívoca função
direcional que desempenha sobre a criação das demais normas jurídicas.
Nessa linha, convém abrir parênteses para tecermos considerações acerca da
classificação das normas em: normas de conduta e normas de competência, defendida por
Norberto Bobbio. Para esse autor, as normas de conduta ou comportamento seriam aquelas
que regulam os comportamentos intersubjetivos em seu sentido amplo. Enquanto as normas
de estrutura (competência) seriam aquelas que indicam a forma de regulação desses
comportamentos, numa espécie de prescrição de procedimentos para criação normativa92.
Nesse caso, Norberto Bobbio diferençou as normas que regulam
comportamentos daquelas que criam outras normas. Logo, por essa corrente, o conceito de
normas de competência inevitavelmente subsume-se ao de norma de estrutura, ainda que não
concordemos com essa assertiva. A contradição dessa classificação reside justamente no fato
de que ao exerce o seu poder, um órgão – possuidor de aptidão para criar novas normas
conforme previsão em normas de competência – acaba por realizar uma conduta. Sendo
assim, as normas de competência também seriam normas de comportamento. Daí a sempre
reiterada afirmação de que o direito é um conjunto de normas jurídicas que regulam as
condutas intersubjetivas.
92 “Existem normas de comportamento ao lado de normas de estrutura. As normas de estrutura podem também ser consideradas como as normas para a produção jurídica: quer dizer, como as normas que regulam os procedimentos de regulação jurídica. Elas não regulam o comportamento, mas o modo de regular o comportamento, ou, mais exatamente, o comportamento que elas regulam é o de produzir regras.” Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. Pág. 45.
73
O caráter auto-referencial do sistema jurídico – auto-regulação/autopoiesis –
não implica uma classificação cujo critério seja “regular comportamento/não – regular
comportamento”. Todas as normas do sistema jurídico regulam comportamento. Se assim o
é, então não há que se falar em normas que não regulam comportamentos intersubjetivos.
Gregorio Robles, ao se deparar com a possibilidade de classificação das
normas jurídicas, defende que no sistema jurídico há dois tipos de normas: as normas indiretas
da ação e as normas diretas da ação. Pela perspectiva da Teoria Comunicacional do Direito,
numa atitude atenta à funcionalidade comunicativa das entidades linguístico-prescritivas
denominadas normas jurídicas, não se admitem normas que não orientem a ação, muito pelo
contrário, todas as normas são construídas para orientar a ação humana, só que umas de modo
indireto, outras orientam diretamente os comportamentos. Dessa forma, adotamos essa
corrente para tratar das normas de competência, pelos motivos que seguem.
O conceito de ação é intrínseco ao conceito de sistema jurídico. Tudo no
direito leva à ação humana. Toda regra jurídica se põe em função da ação humana. A ação é
um elemento onipresente93, conexo a todas as entidades comuns de um sistema cultural, vez
que lida com os movimentos físico-psíquicos da pessoa humana, o verdadeiro objeto de
regulação das normas jurídicas.
Isso implicar dizer que a idéia de ação vai além da formatação genérica do
exercício de uma atividade, além do mero ato concreto. A ação é o significado de um
conjunto de movimentos interiores (atos de consciência) e exteriores (manifestações
93 ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 2ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. p. 251.
74
concretas), um entrelaçar de atos e movimentos, que juntos oferecem suporte ao labor
hermenêutico de construção de um significado94. É o produto de um processo mental que
acompanha os estágios intra-psíquicos (forma e conteúdo de consciência95) e que se
concretiza com um ato de fala, suporte físico externo, que apresenta a ação como o resultado
concreto de um processo interpretativo.
Sendo assim, toda ação (significado) é construída a partir da conjunção de
pelo menos três elementos: procedimento, conteúdo e forma. O procedimento reflete os
mecanismos para realização de um ato, o conjunto de requisitos convencionais que
formalizam um tipo de movimento característico de determinada ação. O conteúdo, por sua
vez, é o objeto, o significado que concilia a manifestação físico-psíquica às condições de
espaço e tempo, identificando pelo tipo de movimento o significado da manifestação. Por fim,
a forma é o espectro sintático, o ato em sua configuração lógica, a verbalização formal do
objeto reconhecido, a ação em sentido estático, o resultado pronto e acabado da expressão
linguística de um conjunto de movimentos artificiais.
94 “La acción en sentido proprio posee los dos elementos, el externo y el interno. El movimiento o conjunto de movimientos que la caracterizan constituye un entramado físico y psíquico, externo e interno. Ahora bien, la acción no es un mero fenómeno físico-psíquico. Es su significado. Esto se demuestra sin grave dificultad desde el momento en que un mismo complejo de movimientos puede tener diversos significados. O dicho de otra forma: un mismo conjunto de movimientos puede constituir distintas acciones.”Cf. ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 2ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. Pág. 255.
95 “Como unidade dos processos psíquicos, que governam a intelecção pelo homem do mundo objetivo e território imanente a suas subjetividades, a consciência é forma superior e exclusiva à espécie humana... Agora tudo isso se faz mediante formas, produzidas por atos que, por sua vez, têm um conteúdo. São três faces diferentes: o ato de consciência, o resultado do ato (que é a forma) e o conteúdo do ato (que é o seu objeto). Uma coisa é exercer o ato de pensar que gera a forma ‘pensamento’ e se dá num determinado instante; outra é o conteúdo desse pensamento (seu objeto), que pode ocupar-se de qualquer situação da vida, inclusive dele mesmo, ‘pensamento’... O ato de consciência produz a forma de consciência, dotada de conteúdo (objeto).” Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e método. São Paulo: Noeses. 2008. Pág. 10.
75
Nesses termos, reconhecendo-se a ação como um significado e o sistema
jurídico como uma classe de normas jurídicas que orientam a ação, pode-se afirmar, segundo
as lúdicas lições de Gregorio Robles, que as normas não descrevem, nem explicam, nem
oferecem predicados à ação, as normas simplesmente orientam direta ou indiretamente a ação
humana, numa atitude competente revestida de natureza prescritiva.
As normas jurídicas, nesse formato, são construções de sentido obtidas a
partir do contato do intérprete com o repertório do direito positivo, o resultado de uma
ininterrupta associação de idéias e noções, ou seja, um juízo de valor, uma proposição96.
Trata-se, substancialmente, do sentido que emerge da leitura do texto e que ocupa o nosso
espírito.
As normas são o substrato do processo hermenêutico de criação da realidade
jurídica, o significado que constitui o rito de elaboração do sistema e que se destina a regular
as ações humanas. O termo norma abriga, em sua abrangência semância, a noção de conteúdo
construído a partir do texto. Norma não é texto posto, nem processo de interpretação dos
textos, norma é o produto da atividade hermenêutica que pertence exclusivamente ao campo
das significações.
Se atinarmos para o conceito de ação e o relacionarmos com conceito de
norma, poderemos perceber que ambos se referem a proposições de linguagem, entidades
repletas de significado, todavia, são conceitos que não se confudem, pois ocupam planos
96 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. Pág. 8.
76
distintos. Ação é objeto regulado. Norma é instrumento regulador. Relação de
interdependência recíproca.
Logo, sem ação não há norma, sem normas não há direito, sem ação não há
direito97. Todo sistema de normas adquire seu sentido em conexão com as ações que regula98.
Uma ação será considerada jurídica sempre que houver uma norma jurídica que a regule, sem
norma uma ação não ingressa no sistema jurídico, reside numa região não-jurídica, portanto,
fora dos limites sistêmicos do direito.
3.1.1. As normas indiretas da ação
3.1.1.1. A ontologia das normas jurídicas
Sempre que existir o homem, haverá onticidade.
Partindo do sentido etimológico do prefixo “ont-o”, palavra que deriva do
grego ón óntos que significa ser, ente, indivíduo99, pode-se dizer que o estudo da onticidade
das normas jurídicas advém da mesma base linguístico-epistemológica, pois se trata de um
conceito inserto na atmosfera do mundo do ser, humano, que concilia a referência do homem
no centro do universo à ação como elemento central do direito. Paulo de Barros Carvalho,
97 ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 3ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. Pág. 273. (traduzimos) 98 ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 3ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. Pág. 271. (traduzimos)
99 CUNHA, Antônio Geraldo Da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007.
77
nesse sentido, assevera que o ser humano é o centro a partir do qual os objetos do mundo são
considerados. (...) o núcleo que integra todas as tentativas de localização dos objetos100.
O direito, por esta perspectiva antropocêntrica, surge como objeto criado
pelo homem e impregnado de onticidade, convenção que intervém no entorno circunstante
para implantar valores. O direito é, enquanto convenção, um conjunto de caracteres reais,
existentes no tempo e no espaço, desprovidos de neutralidade axiológica. Isso porque o ato
gnosiológico de compreensão do direito encontra-se impregnado de valores, valiosos, positiva
ou negativamente, e que regem a experiência fenomenológica do dado cultural101.
A ação humana, assim como o direito e todos os demais elementos
artificiais que o circunda, é resultado de um processo de criação que atravessa séculos de
cultura e que denota a linguagem dos valores de gerações, o emblema convencional de
sucessivos atos realizados para viabilizar o convívio social.
Gregorio Robles, ao delimitar os meandros de sua Teoria Comunicacional
do Direito, acrescenta que “el carácter convencional del Derecho indica que es producto de
la voluntad de los hombres, que tiene un origen artificial y que, por consiguiente, no deriva
de la naturaleza de las cosas”102.
100 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Linguagem e método. São Paulo: Noeses. 2008. p. 16.
101 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 15ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2003. p.137.
102 ROBLES, Gregorio. Las reglas Del Derecho y Las Reglas de los Juegos. Facultad de Derecho de Palma de Mallorca. Madrid, 1982. p. 36.
78
Nessa configuração, definir um conceito de Direito, produto da vontade do
homem, supõe a determinação de uma classe de elementos existenciais prévios, regras que
necessariamente aparecem como proposições ônticas ou técnicas e que compõem o
denominado âmbito ôntico-prático103 das convenções.
A convenção, por ser um dado cultural complexo, pode ser observada sob
dois aspectos, o estático e o dinâmico. O aspecto estático refere-se à convenção pronta e
acabada, à linguagem que revela o resultado do processo fático de criação (aspecto dinâmico)
deste objeto convencional, que se mostra inteiramente independente do seu mecanismo de
criação. Depreende-se disso que se o produto da dinamicidade do processo de criação do
direito é linguagem jurídica, então, a convenção é linguagem com forma (sintaxe) e conteúdo
(semântica), regida pela ontologia da decisão, ato de vontade humana.
A decisão, por sua vez, mostra-se como o momento último do processo
criador da convenção, ato livre que supõe um universo ilimitado de possibilidades, ato
decisório de criação do ser convencional, razão pela qual recebe o predicado “ôntica”.
Observada tal sinuosidade, a decisão ôntica é construção pré-sistêmica que reúne os
elementos especiais necessários à realização da ação, portanto, é ato de consciência que atua
catalogando e elegendo os elementos indispensáveis à concretização da ação humana.
Gregorio Robles, dessa forma, afirma que:
103 Cf. ROBLES, Gregorio. Comunicación, Lenguaje y Derecho. Real Academia de Ciencias Morales y Políticas. Madrid. 2009. “La heterogeneidad de elementos que componen un ámbito óntico-práctico se tiene que reflejar necesariamente en el texto o textos que lo expresan.” p.60.
79
La decisión óntica crea la convención, la cual es en lo esencial el establecimiento de los elementos necesarios para la toma de decisiones intrasistemáticas. Una decisión es intrasistemática cuando afecta a una acción que tiene lugar en el espacio y en el tiempo establecidos por la convención y cuando el sujeto, la competencia de éste y el procedimiento utilizado en la acción corresponden a lo establecido convencionalmente. En la medida en que la acción es el resultado de una decisión puede decirse que nos encontramos ante una decisión intrasistemática cuando ésta da lugar a una acción que se inserta en el ámbito óntico establecido convencionalmente con carácter de necesidad.104
Infere-se do exposto que a atitude ôntica é necessária a toda e qualquer
manifestação humana, pois é ato decisório que consiste em identificar os critérios semântico-
contextuais mínimos para o reconhecimento de uma ação com sentido. Sendo assim, segundo
os ensinamentos do Professor Gregorio Robles, os pressupostos semânticos mínimos que
demarcam a ação humana são: as coordenadas de espaço e tempo, os sujeitos e as
competências. Verdadeiras condições da ação.
Estabelecidas tais premissas, passemos à análise das normas ônticas.
3.1.1.2. As normas jurídicas ônticas
Na linha de consecução do raciocínio, fazendo-se um paralelo com os
conceitos adrede dispostos, as normas jurídicas ônticas, entidades elementares do sistema
jurídico, são aquelas que exercem a mesma função das decisões ônticas, na medida em que
são postas no ordenamento jurídico para prescrever os pressupostos da ação. Do ponto de
104 ROBLES, Gregorio. Las reglas Del Derecho y Las Reglas de los Juegos. Facultad de Derecho de Palma de Mallorca. Madrid, 1982. Pág. 41. (destacamos)
80
vista intra-sistêmico, as normas ônticas são entidades do sistema que se dirigem às condições
mínimas da ação.
As regras ônticas possuem um caráter vetorial105, não apresentando qualquer
relação com uma realidade prévia, vez que antes da referida onticidade não há nada. As regras
ônticas são resultado de um ato de decisão que cria uma realidade convencional, motivo pelo
qual jamais estarão sujeitas aos valores: verdadeiro ou falso. Estas regras ônticas não se
confundem com as definições ou denominações, pois definir ou denominar são atos que
apresentam caráter referencial e que, portanto, têm ligação com uma realidade preexistente.
As definições não criam uma realidade, apenas delimitam aquela que já existe, ao contrário do
que fazem as normas de natureza ôntica.
Sobre o assunto, Gregorio Robles esclarece que:
(…) esto no significa que el algo creado convencionalmente no tenga relación con una realidad física. (…). Para que un individuo pueda ser sujeto de la acción del ámbito óntico-práctico es necesario que exista físicamente como tal individuo, pero la capacidad para realizar la acción y el ámbito de su competencia no son elementos que ya existan ahí, en la realidad natural, sino que son creados convencionalmente por medio de las reglas ônticas.106
105 ROBLES, Gregorio. Las reglas Del Derecho y Las Reglas de los Juegos. Facultad de Derecho de Palma de Mallorca. Madrid, 1982. p. 137.
106 ROBLES, Gregorio. Las reglas Del Derecho y Las Reglas de los Juegos. Facultad de Derecho de Palma de Mallorca. Madrid, 1982. p. 138.
81
Destarte, as normas jurídicas que têm como função a determinação das
condições “a priori” da ação: espaço, tempo, sujeitos e competências, são regidas pelo nexo
verbal “ser” 107 em sentido diretivo/prescritivo e denominadas de normas jurídicas ônticas.
Numa breve análise dos referidos pressupostos da ação, tem-se:
(i) espaço e tempo
Nada na onticidade do universo cultural escapa às coordenadas de espaço e
tempo. Tudo surge com prazo para deixar de existir. O mesmo se pode dizer a respeito das
normas jurídicas e instituições do direito que vão se transformando ao longo do aumento das
complexidades e da evolução social até serem excluídas do sistema.
Neste necessário percurso vital – nascimento, desenvolvimento e morte – o
direito milita construindo e desconstruindo os seus limites espaciais e temporais, no
ininterrupto caminho regulador do interesse comum da sociedade. O direito, neste ritmo
evolutivo, desconstitui o tempo natural, criando seu próprio tempo, lapso temporal apto a
delimitar o período de vida e de morte do sistema jurídico e de todos os seus elementos,
entidades e instituições.
As normas ônticas temporais108, segundo as lições de Gregorio Robles, são
aquelas que inauguram a existência de um ordenamento, determinam quando um conjunto
107 Verbo “ser” encontra-se em sentido convencional, diretivo, prescritivo, não natural/físico. O direito por ser um objeto da cultura ocupa um plano artificial, trata-se de um subsistema social criado pelo homem para a ele servir como instrumento de viabilização da harmonia social. Em nenhuma instância o direito toca a realidade natural, vez que o direito cria sua própria realidade, é metalinguagem, uma dimensão linguística prescritiva convencional.
82
normativo entra em vigor, destacam o lapso temporal no qual devem perdurar determinadas
situações jurídicas concretas, suprimem ou derrogam temporalmente outras normas e, por fim,
especificam prazos, especialmente aqueles que demarcam a decadência e a prescrição de
direitos109.
O marco temporal, desta feita, especifica a vigência, validade e eficácia das
demais normas, condicionando, inclusive, a situação jurídica das pessoas (maior ou menor
idade, por exemplo). Logo, as normas destinadas a identificar os elementos temporais de um
ordenamento jurídico, situam as ações nos limites do tempo do direito, sem interferir
diretamente na sua evolução, daí porque insistir no termo normas “indiretas”.
(iii) os sujeitos titulares dos direitos
As normas ônticas funcionam como seletoras diretivas, vetores que
direcionam suas expressões linguísticas para a demarcação dos sujeitos das ações e
identificação dos verdadeiros destinatários das normas jurídicas diretas (as normas técnicas e
deônticas, aquelas que estabelecem procedimentos e obrigações, permissões e proibições,
respectivamente).
As normas ônticas subjetivas elegem os sujeitos que assumem a posição de
destinatários das normas jurídicas diretas perante o ordenamento jurídico, qualificando
108 “En fin, nadie puede poner en duda que, al igual que el espacio, el tiempo constituye un marco dentro del cual todo lo jurídico se desarrolla y, por tanto, ha de afectar necesariamente a aspectos muy variados.” Cf. ROBLES, Gregorio. Comunicación, Lenguaje y Derecho. Real Academia de Ciencias Morales y Políticas. Madrid. 2009. Pág. 64.
109 ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 3ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. p. 229.
83
juridicamente os sujeitos de direito e de deveres. Dentre as quais, podemos citar aquelas que
determinam quem são as pessoas físicas, as jurídicas, os cidadãos natos, os naturalizados, os
estrangeiros, os órgãos da administração pública direta ou indireta, etc.110
E, finalmente, (iv) as competências.
As normas ônticas de competência são aquelas que definem os sujeitos que
podem desempenhar um conjunto de ações juridicamente possíveis, ou seja, prescrevem os
poderes, o conteúdo e a forma do seu exercício, delimitando as ações potenciais dos sujeitos.
Competência, portanto, é a capacidade de realizar uma ação, é a atribuição
de um poder convencional. Termo poder que se refere tanto à prática de atos decisórios intra-
sistêmicos por autoridades quanto à capacidade de assumir a titularidade de direitos
subjetivos, concretizando competências. A competência é uma autorização, disposta no
sistema jurídico-normativo, concedida a determinados sujeitos para que possam criar outras
normas através de procedimentos específicos.
Enunciados os pressupostos necessários à realização da ação humana, logo
se percebe que as normas jurídicas ônticas trabalham na construção dos alicerces do objeto
regulado pelo direito, atuam elaborando a realidade artificial na qual uma ação poderá se
concretizar e ser qualificada como jurídica.
As normas jurídicas de competência, por tudo quando exposto, ocupam o
universo estrutural ôntico do sistema jurídico, pois são normas jurídicas ônticas que não 110 ROBLES, Gregorio. Teoría Del Derecho. 3ª edición. Volumen I. Thomson Civitas: España. Pág. 230.
84
prescrevem procedimentos, nem obrigações, permissões ou proibições, muito pelo contrário,
são entidades linguísticas prescritivas anteriores à ação e que exercem a função de vetor das
manifestações intersubjetivas juridicamente reguladas. As normas de competência devem ser
consideradas normas indiretas da ação, na medida em que são construídas para orientar a
criação da outras normas jurídicas.
Sendo assim, identificando as normas de competência como normas ônticas
que orientam indiretamente as ações humana, passemos à análise das normas de competência
inseridas no universo jurídico da Constituição da República Federativa o Brasil de 1988.
3.2. Competência tributária e a Constituição Federal de 1988
No Brasil, a competência tributária é um tema exaustivamente tratado pela
Constituição Federal de 1988, ao definir os meandros do poder de tributar, o modo de
produção das normas tributárias e quem é competente para editá-las. Daí porque o Professor
Roque Antonio Carrazza insistir na afirmação: A Constituição é a carta das competências.111
A assertiva é contundente e repercute para além das finalidades retóricas,
alertando os distraídos de que todo e qualquer assunto referente às competências tributárias112
111 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 14ª edição. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 32. 112 “A repartição do poder tributário caracteriza o princípio da competência tributária. Esta se exerce ordinariamente através de lei.” Cf. BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. p. 30.
85
está contido no texto da Carta Magna, não restando margem para que lei infraconstitucional
tente alterar, adicionar ou subtrair as disposições esgotadamente disciplinadas, vez que é a
Constituição Federal quem assume a supremacia normativa do ordenamento jurídico
brasileiro113.
A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen foi responsável pela dignificação
da ciência do direito, pois trouxe uma perspectiva estrutural para o sistema do direito positivo,
apresentando-o como um conjunto de normas jurídicas escalonadas, ou seja, um organismo
lógico onde as normas superiores oferecem suporte de validade às normas de natureza
inferior.
De fato, o que logo se pode notar é que a tese kelseniana apresentou a
hierarquização do mundo jurídico, catalogando as normas, processando-as e formalizando-as
em arquétipos com características exclusivas da ordem jurídica. E foi no tracejar desta
hierarquia que conseguiu situar a Constituição no topo do poder normativo, enquanto
fundamento de validade de todo o sistema.
Resulta daí a situação de a Constituição ser a detentora do absoluto domínio
legitimador, distribuindo competências e veiculando normas e valores capazes de demarcar o
percurso do legislador infraconstitucional. Noutros termos, a Constituição reúne os conteúdos
113 “A Constituição Federal é, como se sabe, a norma fundamental do nosso sistema jurídico. Ocupa, dentro da chamada pirâmide jurídica, posição de inconteste supremacia, tanto que dá fundamento de validade a todas as manifestações normativas não só do Estado, como das pessoas, físicas ou jurídicas, que se encontram sob sua tutela”. Cf. CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 35.
86
prescritivos mais importantes do sistema, aqueles que, em hipótese alguma, poderão deixar de
ser observados e cumpridos.
Em matéria tributária, o panorama não é diferente. Os entes políticos
detentores de competências para criar tributos devem seguir o rígido perfil constitucional
desenhado pelo legislador constituinte, a fim de garantir a harmonia e congruência da
tributação. Diante disso, a primeira pergunta que surge é: Que rígido perfil seria este? Bom, a
resposta é razoavelmente simples. A Constituição Federal de 1988, além de esgotar o tema
das competências, traz em seu conjunto de textos todos os elementos essenciais à composição
da norma jurídica instituidora dos tributos, quais sejam: as hipóteses de incidência, os sujeitos
(passivo e ativo), as bases de cálculo e as alíquotas114.
Portanto, ao demarcar a regra matriz de incidência dos tributos, a
Constituição Federal de 1988 prescreve verdadeiras regras que talham a liberdade do
legislador ordinário no exercitar das habilitações para tributar, impondo-lhe limites materiais
e formais intransponíveis. Não por outro motivo, Paulo de Barros Carvalho115 afirma que “o
estudo da competência tributária é um momento anterior à existência do tributo, situando-se
no plano constitucional.”
Na linha de consecução desse raciocínio, Tácio Lacerda Gama afirma que a
competência tributária nada mais é que “(...) a aptidão, juridicamente modalizada como
permitida ou obrigatória, que alguém detém, em face de outrem, para alterar o sistema do
114 Cf. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 38. 115 Cf. Curso de Direito Tributário. 22ª edição. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 268.
87
direito positivo, mediante a introdução de novas normas jurídicas que, direta ou
indiretamente, disponham sobre a instituição, arrecadação e fiscalização de tributos.” 116
As normas de competência tributária, dessa forma, definem o conteúdo
semântico mínimo de cada tributo, que deve ser obrigatoriamente respeitado pelos sujeitos
(pessoas políticas) aptos a exercer o poder de tributar117. Logo, a aptidão para criar tributos
(poder para estabelecer e aplicar normas) permeia a chamada competência material, enquanto
os procedimentos específicos para essa criação (quem e como deve ser instituído o tributo)
são delineados por uma competência formal 118, daí os limites materiais e formais ao exercício
do poder de tributar.
Sendo assim, o legislador infraconstitucional não pode transitar livremente
em matérias que envolvam normas de competência, pois o conteúdo e o alcance das normas
tributárias de competência são matérias exclusivas da Constituição Federal. O que as pessoas
políticas podem fazer, sim, é utilizar, em toda latitude, as competências tributárias que
receberam da Constituição Federal 119.
Levando em consideração a inescusável orientação do princípio da
legalidade tributária (art. 5º II, e art. 150, I), delineado na Carta Magna, é possível inferir que
a competência tributária, exaustivamente prevista no texto constitucional, somente poderá ser
exercida mediante lei, i. e, exclusivamente por meio de lei – limite formal para o exercício da
116 Cf. Competência Tributária. São Paulo: Noeses. 2009. p. 218. 117 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 39. 118 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 39. 119 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 42.
88
competência. O que implica dizer que a lei poderá sim instituir a tributação, majorar ou
minorar a carga tributária, oferecer isenções e/ou benefícios fiscais, desde que atente para a
delimitação das competências, para os valores prestigiados pelo texto constitucional e
cumpra-os em sua inteireza120.
Por isso, valendo-nos das palavras de Roque Antonio Carrazza,
“destacamos que, o legislador, ao exercitar quaisquer das competências tributárias
reservadas à sua pessoa política, deverá ser fiel à regra-matriz do tributo, pré-traçada na
Carta Magna.” 121Isso porque o fundamento de validade das normas de competência está
situado no texto da Constituição, nessa onde se encontra o conjunto semântico mínimo para
criação in abstracto dos tributos em consonância plena com os direitos e garantias
fundamentais do contribuinte.
Dentre esses direitos e garantias fundamentais do contribuinte, instituídos
como proteção contra excessos dos órgãos da administração pública direta – Fazenda Pública,
encontram-se: a igualdade tributária, a estrita legalidade, a reserva de competência
tributária122, a neutralidade concorrencial do Estado, a proporcionalidade, razoabilidade, a
livre-concorrência, o não-confisco, dentre outros123.
120 “Salientamos que é o exercício, por meio de lei, da competência tributária, que cria in abstracto o tributo. De fato, somente após a Edição da lei que desenha a norma jurídica tributária, em todos os seus elementos essenciais (hipótese de incidência, sujeito ativo, sujeito passivo, base de cálculo e alíquota), podemos falar que a exação encontra-se instituída. É, pois, a norma infraconstitucional – obviamente quando em comparado com o Diploma Supremo – que obriga seu destinatário a adotar o comportamento de levar dinheiros aos cofres públicos”. Cf. CARRAZZA. Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 46. 121 Cf. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 44. 122 “As normas constitucionais que discriminam competências tributárias encerram duplo comando; a saber: a) habilitam a pessoa política contemplada – e somente ela – a criar tributo; e, b) proíbem as demais de fazê-lo. Daí
89
Nesta esteira, a multiplicidade de valores deve convergir para um cenário de
segurança jurídica para o contribuinte – sujeito passivo de obrigações tributárias. Ou seja, ao
considerar que o ordenamento jurídico é um sistema, a interpretação sistêmica deve construir
resultados semânticos compatíveis, consistentes e igualitários.
Dentre os valores acima dispostos, os princípios da ordem tributária e da
ordem econômica, juridicamente disciplinados, misturaram-se ou, ao menos, agregaram-se na
composição dos limites à atuação do legislador e da própria Administração Pública. Isso
significa que a ordem jurídica tributária atua com princípios como a essencialidade,
seletividade, a proporcionalidade, a capacidade contributiva, enquanto a ordem jurídica
econômica apresenta outros fatores, como: a proteção à livre-concorrência (liberdade de
iniciativa), função social da propriedade, neutralidade concorrencial do Estado, dentre outros.
Contexto jurídico esse inteiramente previsto e disciplinado na Constituição Federal de 1988.
O legislador para exercer as competências constitucionais de tributar deve
atentar com rigidez para as regras e princípios da tributação, sem olvidar os demais princípios
prestigiados pela Constituição Federal de 1988. Isso significa que prestigiar os princípios da
tributação não implica o afastamento dos princípios que regem a ordem econômica
falarmos em princípio da reserva de competências tributárias. (...) A reserva de competência tributária importa, a contrario sensu, interdição, que resguarda a eficácia de sua singularidade. Ao mesmo tempo em que afirma a aptidão daquela pessoa política, para criar aquele determinado tributo, nega a das demais, para fazerem o mesmo, ou seja, para instituírem.” Cf. CARRAZZA. Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 47.
“Em caso de não aproveitamento da faculdade legislativa, a pessoa competente está impedida de transferi-la a qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da competência tributária (…)”. Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22ª edição. São Paulo: Saraiva. 2010. p. 268.
123 Cf. CARRAZZA. Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 44.
90
constitucional, pois os textos constitucionais não devem ser tratados como capítulos estanques
de realidades distintas.
O ordenamento jurídico é uma realidade jurídica e qualquer manifestação
normativa só tem competência para induzir efeitos jurídicos. Logo, as normas jurídicas
tributárias são naturalmente um fator de indução de efeitos jurídicos no entorno social,
especialmente no ambiente econômico. O exercício da competência tributária, seja para
instituir ou exonerar tributos, deve atentar para a harmônica relação entre as ordens
constitucionalmente disciplinadas, sob pena de prescrever mandamentos inconstitucionais.
Ora, então que parâmetros devem ser usados para interpretar as implicações
recíprocas dos dois universos juridicamente disciplinados (tributação e economia) sem se
afastar da constitucionalidade? Seria possível exercer competência tributária atentando ainda
que mediatamente para os princípios da ordem econômica? A resposta imediata seria não.
Ainda que se trate de um sistema jurídico constitucional, devem ser encarados como
subsistemas jurídicos, com características e valores distintos, o tributário e o econômico.
A convivência harmônica dos subsistemas jurídicos consiste no respeito às
regras constitucionais, no exercício das competências materiais e formais em conformidade
com os ditames previstos na Carta Magna. A ordem jurídica é um todo que se pretende
harmônico, razão pela qual os subsistemas devem interagir viabilizando o funcionamento um
dos outros.
Logo, o subsistema tributário, assim como o subsistema econômico, é
autopoiético, opera com código binário próprio, exercem funções diferentes, ainda que devam
91
convergir para a funcionalidade do macro-sistema jurídico. Essa afirmativa não implica dizer
que os subsistemas são estanques ou fechados, significa apenas que em termos sintáticos cada
subsistema apresenta categorias exclusivas e inconfundíveis. Entretanto, semântica e
pragmaticamente os subsistemas interagem, noutros termos, induzem efeitos entre si.
É de Luís Eduardo Schoueri a lição de que norma tributária que contraria os
preceitos desenhados pela ordem econômica constitucional surge com suspeita de
inconstitucionalidade124. Nesse sentido, patrocinando o princípio da igualdade, Schoueri
leciona que, in verbis:
“(...) diferentes situações tributárias devem ter por base uma proporcionalidade, de modo que quanto mais diversa a situação, tanto mais aceitável e exigido tratamento tributário diferenciado. Consequentemente, reconhecido na norma tributária seu efeito indutor sobre a economia, há de se avaliar também sob o prisma a norma tributária, já que a má escolha do legislador poderá implicar, mais uma vez, desrespeito à igualdade.
(...)
Pois é essa a coerência que exigirá que o legislador tributário, a quem é facultado utilizar-se da norma tributária para a correção de falhas de mercado (intervenção negativa) ou para busca de objetivos prestigiados pela Ordem Econômica (intervenção positiva), não seja, ele mesmo causador das falhas que pretende reparar. Não faria sentido, por exemplo, que o próprio Estado contribuísse para o aumento das desigualdades regionais ou setoriais, se justamente se espera dele uma atuação positiva, n sentido de reduzir aquelas desigualdades.
(...)
Não seria aceitável que houvesse, no ordenamento jurídico, normas tributárias que utilizassem como critério discriminador fatores que induzissem a prática da livre concorrência e, ao mesmo tempo, o próprio legislador tratasse de desestimular aquela, retirando a igualdade de condições competitivas, mediante caras tributárias
124 “Tributação e indução econômica: os efeitos econômicos de um tributo como critério para sua constitucionalidade” in Princípios e Limites da Tributação 2: Os Princípios da Ordem Econômica e a Tributação. Coordenação Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. Pág. 157.
92
díspares, inviabilizando a própria concorrência que deveria prestigiar.”
Por essa proposta, as normas tributárias induzem um comportamento
econômico de modo que serão constitucionais quando construídas, editadas ou modificadas
em consonância com os princípios das ordens tributária e econômica constitucionais,
devendo, portanto, preservar os interesses do sistema constitucional, intervindo positivamente
no entorno social a fim de equilibrar as desigualdades. Contudo, essa conclusão não é tão
óbvia. As regras da tributação permeiam a realidade jurídica de um sistema tributário
constitucional.
Dessa forma, o rol de garantias suso transcrito e o tracejar das competências
no texto constitucional, além de oferecerem previsibilidade quanto a eventuais atos
harmônicos dos poderes executivo legislativo e judiciário, devem inaugurar um universo de
segurança jurídica para os contribuintes que não poderão ser tributados por fatos que sequer
estão regulados por normas jurídicas constitucionais, sequer a tributação poderá contribuir
com o aumento das desigualdades.
Ou seja, um fato que não se enquadra na classe dos juridicamente
tributáveis, pela simples ausência de linguagem competente que lhe confira juridicidade, não
assume natureza jurídica e, portanto, jamais será “fato gerador” 125 de obrigação tributária.
125 Leia-se: fato jurídico tributário.
93
Pela orientação perfilhada por Paulo de Barros Carvalho126, destarte, se “a
competência legislativa é a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas para expedir
regras jurídicas, inovando o ordenamento positivo”, então “a competência tributária, em
síntese, é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as
pessoas políticas, consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas
jurídicas sobre tributos” 127.
126 Atenção: Paulo de Barros Carvalho toma competência tributária como poder legiferante em seu sentido amplo, pois considera que todos nós, em algum momento, assumimos o papel de legislador. 127 Cf. Curso de Direito Tributário. 22ª edição. São Paulo: Saraiva. 2010. Pág. 266/267
94
Capítulo IV – As Imunidades Tributárias do art. 150, VI da Carta Magna de 1988
4.1. A definição do conceito de imunidade tributária
Sacha Calmon Navarro Coêlho128, ao tratar da matéria - sob o título “Teoria
da Exoneração Tributária”, elegeu uma classificação para melhor compreender o fenômeno
exonerativo no Direito Tributário. Segundo o Autor, “as alterações legislativas que podem
ocorrer nas hipóteses das normas de tributação, subtraindo ou acrescentando fatos,
determinam tipos específicos de exoneração tributária, e as alterações legislativas que se dão
nas consequências dessas mesmas normas acarretam mutações no perfil do dever jurídico” 129.
Fundado neste enunciado, Sacha Calmon entende que as leis tributárias que
introduzem alterações na hipótese de incidência130 das normas jurídicas, afetando a
materialidade, o tempo ou o espaço das respectivas hipóteses fáticas, provocam mudanças
qualitativas nas normas de tributação. Ou seja, as alterações qualitativas impedem a
incidência da norma tributária, pois identificam critérios fáticos que impedem a tributação,
situação na qual sequer se poderia falar em dever jurídico tributário.
Por outro lado, as alterações legislativas que interferem no consequente na
norma tributária – base de cálculo e alíquota – devem ser consideradas quantitativas, uma vez
128 Cf. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 3ª edição. São Paulo: Dialética. 2003. 129 Cf. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 3ª edição. São Paulo: Dialética. 2003. p. 199/200. 130 Cf. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 78.
95
que afetam o quantum de obrigação principal, fazendo incidir a norma tributária com
alterações que redimensionam o dever jurídico de pagar tributo.
Logo se percebe que a ideia de tipos de exoneração e alterações legislativas
está ligada à estrutura da norma (critério classificatório) e ao fenômeno de incidência. Por esta
razão, Sacha Calmon, ao classificar as exonerações, divide-as, primeiramente, em dois
grupos: (I) as exonerações internas à estrutura da norma e (II) as exonerações externas à
estrutura da norma, da forma que segue no gráfico131:
Imunidades Exonerações Exonerações nas hipóteses Internas (qualitativas) Isenções Reduções diretas de base de cálculo e de alíquotas. Exonerações nas conseqüências (quantitativas) Deduções tributárias de despesas presumidas e concessão de créditos presumidos. Exonerações Remissões Externas Devolução de tributos pagos legitimamente
Dentre as exonerações internas encontram-se as exonerações nas hipóteses
de incidência, denominadas: qualitativas, nas quais podemos visualizar as Imunidades
131 Cf. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 3ª edição. São Paulo: Dialética. 2003. p. 201.
96
Tributárias. Sacha Calmon observa que “o dispositivo constitucional que põe a imunidade
atua na hipótese de incidência, excluindo de certos fatos ou aspectos destes a virtude
jurígena” 132. Logo, as imunidades tributárias seriam o resultado de alterações legislativas
qualitativas, introduzidas por leis constitucionais, que afetam a hipótese de incidência das
normas tributárias impedindo a tributação de determinados fatos e seus aspectos, numa
espécie de redução da abrangência da hipótese de incidência, delimitação negativa do fato
jurídico.
Ora, partindo das lições de Geraldo Ataliba acerca da hipótese de incidência
tributária, podemos perceber a incongruência que impregna o conceito de imunidade
discorrido por Sacha Calmo Navarro Coêlho. Para Geraldo Ataliba:
“A hipótese de incidência é a descrição legislativa (necessariamente hipotética) de um fato a cuja ocorrência in concreto a lei atribui a força jurídica de determinar o nascimento da obrigação tributária. Pois esta categoria ou protótipo se apresenta sob vários aspectos cuja reunião lhe dá identidade. Tais aspectos não vêm necessariamente arrolados de forma explícita e integrada na lei. Pode haver – e tal é o caso mais raro – uma lei que enumere e especifique a todos, mas normalmente os aspectos integrativos da hipótese de incidência estão esparsos na lei, ou em diversas leis, sendo que muitos são implícitos no sistema jurídico.”133
Percebe-se, do exposto, que a hipótese de incidência é uma descrição
legislativa de um fato, com todos seus aspectos determinados, ainda que implicitamente, fato
132 Cf. Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária. 3ª edição. São Paulo: Dialética. 2003. p. 205. 133 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 78.
97
esse que em ocorrendo determinará o surgimento de uma obrigação de pagar tributo. Se assim
o é, então as competências para tributar estariam plenamente determinadas na Carta Magna,
as entidades tributantes seriam competentes para instituir tributos através da criação de
normas jurídicas tributárias (hipótese de incidência consequente normativo), e somente
após essa delimitação do quadro de competências é que as normas imunizantes ingressariam
no sistema jurídico para reduzir a abrangência das hipóteses de incidência – do universo de
fatos hipotéticos sujeitos à tributação.
Por essa concepção, estabelece-se o fato jurídico através de lei
infraconstitucional, para só então delimitá-lo negativamente através de lei constitucional,
circunstância que nos parece logicamente incongruente. Ou seja, estabelecida a hipótese de
incidência por lei, outra lei teria o poder de retirar a virtude jurígena de alguns desses fatos
hipotéticos passíveis de tributação, circunstância que também nos parece logicamente
incongruente.
Além disso, pelas lições de Sacha Calmon Navarro Coêlho, percebemos que
existe, por parte do jurista, certo reducionismo quando da inserção das imunidades e das
isenções na classe das exonerações qualitativas. Isso por que simplificação dos conceitos não
auxilia na diferenciação dos institutos jurídicos, não aprofunda o estudo das espécies de
benefícios fiscais, sequer aponta um universo sólido onde cada espécie de exoneração possa
transitar livremente, sem que sejam confundidas umas com as outras.
Pela classificação do referido Autor, as imunidades e as isenções são
definidas como exonerações qualitativas – introduzidas por alterações legislativas que
98
ocorrem nas hipóteses das normas de tributação, e o único elemento que as difere uma da
outra é o tipo de veículo introdutor de normas jurídicas modificativas no sistema tributário. A
primeira, lei constitucional. A segunda, lei infraconstitucional. Ora, se as imunidades e as
isenções tributárias são técnicas legislativas destinadas a delimitar negativamente o fato
jurídico tributável, evitando a tributação pela interferência na hipótese de incidência da norma
tributária, então as operações imunes ou isentas não provocariam quaisquer efeitos no plano
da tributação.
Daí por que entendemos que as imunidades tributárias não atuam no âmbito
da incidência tributária, muito pelo contrário, as normas imunizantes atuam em momento
logicamente anterior, quando da delimitação das competências, ou melhor, das
incompetências para tributar. As imunidades são normas exclusivamente constitucionais que
atuam na competência tributária, impedindo a criação de leis que instituem tributos sobre
fatos qualificados como imunes. Estamos aludindo, nesta hipótese, à inexistência de lei
tributária para as hipóteses destacadas na CF/88 como imunes.
Hugo de Brito Machado134, por sua vez, inclui a temática das imunidades
tributárias no capítulo de competência tributária de seu Curso de Direito Tributário.
Entendendo por imunidades tributárias “o obstáculo decorrente de regra da Constituição à
incidência da regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade
impede que a lei defina como hipótese de incidência tributária aquilo que é imune. É
134 Cf. Curso de Direito Tributário. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros.
99
limitação de competência tributária” 135. Lendo a primeira afirmação “o obstáculo decorrente
de regra da Constituição à incidência da regra jurídica de tributação”, temos a impressão de
que o Autor sugere o conceito de imunidade como restrição à incidência da norma tributária
constituída, na linha do que pretende afirmar Sacha Calmon Navarro Coêlho, contudo essa
impressão é ligeira e falsa.
Hugo de Brito Machado é categórico ao afirmar que as imunidades são
limitações à competência tributária, no sentido de que são normas jurídicas constitucionais
que impedem o legislador de definir hipóteses de incidência de regra de tributação sobre
determinados fatos e seus aspectos. Por essa perspectiva, as normas imunizantes separam uma
parte da realidade circunstante e afasta do alcance da tributação. Dessa forma, as imunidades
tributárias são normas jurídicas constitucionais que atuam antes do exercício da competência
para instituir tributos, demarcando o poder de tributar.
Roque Antônio Carrazza, na linha de raciocínio traçada por Hugo de Brito
Machado, afirma que as imunidades tributárias são “normas constitucionais que, direta ou
indiretamente, tratam do assunto fixam, por assim dizer, a incompetência das entidades
tributantes para onerar, com exações, certas pessoas, seja em função de sua natureza jurídica,
seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações.” 136 Neste sentido, as
imunidades tributárias atuariam no plano da competência tributária, como uma espécie de
norma de demarcação de incompetência das pessoas políticas – União, Estados e Municípios
– para tributar, in abstracto, determinados fatos, pessoas e situações. 135 Cf. Curso de Direito Tributário. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros. p. 296. 136 Cf. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª Edição. São Paulo:Malheiros. 2005. p. 676
100
Perceba que ao longo deste item falamos sempre em limitação ao poder de
instituir tributos, não impostos. Isso por que, não obstante o art. 150, VI, da Constituição
Federal de 1988 afirme que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios instituir impostos sobre (...), a verdade é que para atender às finalidades traçadas
pelas normas imunizantes – preservação dos valores sociais pela defesa da impossibilidade de
tributação recíproca, dos cultos e crenças, da leitura e da formação de partidos políticos,
entidades sindicais, instituições de ensino e assistência social sem fins lucrativos – não faria
qualquer sentido limitar as imunidades somente à classe dos impostos. A doutrina137 vem
concordando que a interpretação do termo impostos do art. 150, VI, da Carta Magna de 1988
deve ser ampla, haja vista que nenhum tributo poderia ficar fora do alcance das normas
imunizantes.
Paulo de Barros Carvalho, ainda sobre o assunto, expõe que “a proposição
afirmativa de que a imunidade é instituto que só se refere aos impostos carece de consistência
veritativa. Traduz exarcebada extensão de uma particularidade constitucional que pode ser
facilmente enunciada mediante a ponderação de outros fatores, também extraídos da
disciplina do Texto Superior.” 138 E completa, “Não sobeja repetir que, mesmo em termos
literais, a Constituição brasileira abriga regras de competência da natureza daquelas que se
conhecem pelo nome de imunidades tributárias, e que trazem alusão explícita às taxas e à
contribuição de melhoria, o que basta para exibir a falsidade da proposição descritiva.” 139
137 Hugo de Brito Machado, Roque Antonio Carrazza, Paulo de Barros Carvalho, dentre outros. 138 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 231 139 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 231
101
Misabel Derzi140 prefere afirmar que “as imunidades não passam de regras
expressas da Constituição (ou implicitamente necessária), que estabelece a não-competência
das pessoas políticas da Federação para tributarem certos fatos ou situações, de forma
amplamente determinada, delimitando negativamente, por meio de redução parcial, a norma
de atribuição de poder tributário.” E acrescenta, que “a imunidade é, portanto, regra de
exceção, somente inteligível se conjugada à outra, que concede o poder tributário, limitando-
lhe a extensão, de forma lógica e não sucessiva no tempo”.141
As imunidades tributárias afastam fatos, pessoas e situações – definidos pelo
texto Constitucional – do poder de tributar das entidades tributantes. Em se tratando de regras
constitucionais que definem a incompetência para instituir tributos, as imunidades tributárias
prescrevem verdadeiras regras que talham a liberdade do legislador ordinário no exercitar das
habilitações para tributar, impondo-lhe limites materiais e formais intransponíveis ao poder de
tributar, como uma espécie de regra negativa de competência 142.
As imunidades tributárias não atuam no âmbito da incidência tributária,
muito pelo contrário, as normas imunizantes atuam em momento anterior, quando da
delimitação de competências, ou melhor, de incompetências para tributar.
Para José Souto Maior Borges, “ao proceder à repartição do poder
impositivo, pelo mecanismo da competência tributária, a Constituição Federal coloca fora do
140 Cf. notas à obra: Limitações ao poder de tributar de Aliomar Baleeiro. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. 1997. p. 16 141 Cf. notas à obra: Limitações ao poder de tributar de Aliomar Baleeiro. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Forense. 1997. p. 14. 142 Cf. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007. p.219.
102
campo tributável reservado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e Municípios certos
bens, pessoas e serviços, obstando, assim - com o limitar âmbito de incidência da tributação –
o exercício das atividades legislativas do ente tributante” 143.
Neste quadro, a imunidade é uma limitação ao poder de tributar, ou como
continua afirmando José Souto Maior Borges “a imunidade é um princípio constitucional de
exclusão de competência” 144. Contudo, quando o Autor identifica as normas imunizantes
como um “limitar o âmbito de incidência da tributação”, revela sua tendência em configurar
as imunidades tributárias também como hipóteses de não-incidência constitucionalmente
qualificada, pois compreende o fenômeno da não-incidência como efeito da regra de exclusão
de competência tributária.
A imunidade tributária é um princípio de reserva constitucional – matéria
sob reserva constitucional, ao contrário das isenções tributárias que seriam uma matéria
reservada à lei infraconstitucional.
Do exposto, José Souto Maior Borges define:
“A regra jurídica da imunidade insere-se no plano das regras de competência ou mais precisamente das regras negativas de competência. O setor social abrangido pela imunidade está fora do âmbito da tributação. Previamente excluído, como vimos, não poderá ser objeto de exploração pelos entes públicos. A imunidade reduz a extensão do próprio poder de tributar, uma vez que, através dela, certos fatos ou pessoas são subtraídos do campo reservado ao exercício da competência tributária.” 145
143 Cf. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 217. 144 Cf. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 217. 145 Cf. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 219.
103
Paulo de Barros Carvalho, em seu Curso de Direito Tributário, defende que
o tema das imunidades tributárias não alcançou uma elaboração teórica adequada, tendo em
vista as inúmeras incoerências praticadas pela doutrina ao descrever o referido instituto das
imunidades. Por esta razão, o Autor, ao invés de trabalhar diretamente a definição de
imunidades, preferiu “submeter as cláusulas do conceito habitual ao teste de congruência
lógica, perguntando do cabimento semântico de cada afirmação, à luz de seus desdobramentos
sistêmicos”.146
Paulo de Barros Carvalho, em sua avaliação crítica, elege as três premissas
mais adotadas pela doutrina e em seguida expõe os motivos de incongruência. As premissas
são: a) A imunidade é uma limitação constitucional às competências tributárias; b)
Imunidade como exclusão ou supressão do poder de tributar; c) Imunidade como providência
constitucional que impede a incidência tributária - hipótese de não-incidência
constitucionalmente qualificada;
Paulo de Barros Carvalho, no que se refere à premissa de que a imunidade é
uma limitação constitucional às competências tributárias, inicia sua avaliação crítica
afirmando que não existe cronologia que justifique a outorga de prerrogativas de inovar a
ordem jurídica, pelo exercício de competências tributárias definidas pelo legislador para em
seguida ser mutilada ou limitada pela regra da imunidade147.
146 Cf. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 221 147 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 221
104
Segundo o autor, as imunidades tributárias, em termos sintáticos, não são
normas que surgem no sistema em etapa posterior para limitar as competências tributárias já
dispostas, mas são normas que firmam a hipótese de imunidade como um desenho
constitucional da parcela de competência adjudicada às entidades tributantes.
As imunidades seriam normas de competência dirigidas ao legislador
ordinário, que compõem o tracejo emblemático da distribuição constitucional das
competências tributárias. Obviamente, que uma regra que poda uma competência que se
pretendia mais ampla, está limitando-a, e limitar, neste contexto, significa colaborar com o
desenho do quadro de competências impondo dispositivos vedatórios ou proibitivos.
Quanto à premissa da imunidade como exclusão ou supressão do poder de
tributar, Paulo de Barros Carvalho demonstra que as imunidades não excluem nem suprimem
competências tributárias, pois estas são o resultado de uma conjugação de normas
constitucionais das quais fazem parte as imunidades tributárias. Isso se justifica por que as
imunidades são as próprias regras de competência, são normas que prescrevem o rol de
competências constitucionais, portanto, não faria sentido afirmar que as imunidades suprimem
o poder de tributar, haja vista que são elas, as normas imunizantes, algumas das regras que
estabelecem o próprio poder de tributar e o seu respectivo alcance.
O poder de tributar é definido por um quadro de competências
constitucionais. Dentre as regras que compõem este quadro de competências, encontram-se as
imunidades tributárias. Logo, a Constituição Federal de 1988 ao definir o poder de tributar,
levou em consideração o conjunto de normas de competência, verdadeiras regras que
105
definem, ampliando e talhando, liberdade do legislador ordinário no exercitar das habilitações
para tributar, impondo-lhe limites materiais e formais intransponíveis.
As normas de competência tributária definem o conteúdo semântico mínimo
de cada tributo, que deve ser obrigatoriamente respeitado pelos sujeitos (pessoas políticas)
aptos a exercer o poder de tributar148.
Sendo assim, a aptidão para criar tributos (o poder para estabelecer e aplicar
normas) permeia a chamada competência material, enquanto os procedimentos específicos
para essa criação (quem e como deve ser instituído o tributo) são delineados por uma
competência formal 149, daí os limites materiais e formais ao exercício do poder de tributar.
Não por outro motivo, as imunidades tributárias fazem parte do conjunto de competências
materiais, pois são elas que estabelecem o alcance e os limites ao poder de tributar, sem que
isso signifique a exclusão ou supressão de competência tributária.
No tocante à premissa de vislumbrar a imunidade como providência
constitucional que impede a incidência tributária - hipótese de não-incidência
constitucionalmente qualificada, Paulo de Barros Carvalho é categórico, “não temos por que
aludir às imunidades como barreiras, embaraços ou obstâncias à incidência dos tributos, como
se tem copiosamente difundido” 150. As imunidades tributárias definem os campos de
competência das entidades tributantes, e não a possibilidade de incidência da norma tributária
148 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 39. 149 CARRAZZA, Roque Antonio. Reflexões sobre a obrigação tributária. São Paulo: Noeses. 2011. p. 39. 150 Cf. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 226.
106
já criada pela entidade tributante (competente para instituir e revogar tributos) numa
sucessividade lógica151.
Isso nos parece razoável, afinal, como falar em providência constitucional
que impede a incidência tributária, se as imunidades tributárias lidam com regras que
estabelecem o alcance e limites do poder de tributar, dessa forma, sequer poderíamos falar em
hipótese de não incidência constitucionalmente qualificada, tendo em vista tratar-se de uma
etapa logicamente posterior à definição das competências.
Exposta a avaliação crítica acerca das três principais premissas, Paulo de
Barros Carvalho posiciona-se no sentido de que as imunidades são normas constitucionais que
atuam no campo da competência tributária, operando no sentido de impedir as pessoas
políticas de produzir leis que veiculem a instituição ou criação de tributos sobre específicos
fatos considerados imunes. São normas de natureza constitucional que atuam proibindo
expressamente as pessoas políticas de emitir regras jurídicas instituidoras de tributos.
Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, a imunidade é:
“(...) classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”.152
151 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 226. 152 Cf. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 232.
107
Consoante o autor, as imunidades tributárias são somente aquelas que estão
explicitadas na Carta de 1988, daí por que serem uma classe finita e determinável, pois se não
estiverem expressas, não podem ser qualificadas como normas imunizantes. “Tão somente
aquelas que irromperem do próprio texto da Lei Fundamental, entretanto, guardarão a
fisionomia jurídica de normas de imunidade.”153 Isto nos faz sentir que a proibição que tolhe
o legislador ordinário de emitir regras jurídicas instituidoras de tributos deve ser sempre
expressa, sob pena de não produzir efeitos em razão da implicitude.
4.2. As Imunidades tributárias do art. 150, VI da CF/88
4.2.1. A Imunidade Recíproca
Art. 150. CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
A imunidade tributária definida na alínea “a” do inciso VI do art. 150 da
CF/88 é a chamada imunidade recíproca. Analisando a etimologia do termo recíproco tem-se:
153 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 235.
108
origem do latim reciprocus que significa “troca ou permuta, ou que se permuta entre duas
pessoas ou dois grupos” 154.
Paulo de Barros Carvalho defende que a imunidade recíproca “é uma
decorrência pronta e imediata do postulado da isonomia dos entes constitucionais, sustentado
pela estrutura federativa do Estado brasileiro e pela autonomia dos Municípios.” 155, ou seja, a
verdadeira expressão do princípio federativo156, imutável por meio de emenda à Constituição
(art. 60, § 4º da CF/88). A respeito, Mizabel Derzi leciona que “no Estado do tipo federal, a
isonomia entre as ordens jurídicas que nele coexistem é corolário lógico e necessário da
descentralização dinâmica (jurídico-política).” 157 E prossegue suas lições afirmando que
“sendo corolário de uma relativa descentralização político-jurídica do Estado federal, que se
assenta na isonomia das ordens jurídico-estatais que nele convivem, a imunidade recíproca
não precisa estar expressamente prevista na Carta Constitucional. Aliás, a evolução da teoria
154 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 3ª edição. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007. p. 668. 155 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 238. 156 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. “A imunidade recíproca assenta-se basicamente no princípio federal. Esse princípio, consagrado desde a primeira Constituição republicana brasileira, informa o Estado, no qual tanto as descentralizações político-jurídicas regionais e locais (Estados e Municípios) como a Federação (União) têm natureza estatal.” p. 121.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27ª edição. São Paulo: Malheiros. 2006. “Assim, a regra da imunidade está protegida contra possível emenda constitucional, por força do disposto no art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) a forma federativa do Estado’. (...) em razão do princípio federativo a imunidade recíproca abrange, seguramente, também os demais tributos. É que o tributo, como expressão que é da soberania estatal, não pode ser exigido de quem a tal soberania não se submete, porque é parte integrante do Estado, que da mesma é titular. Qualquer emenda que porventura autorizar a União a cobrar qualquer tributo do Estados, ou dos Municípios, ou autorizar qualquer destes a cobrar qualquer tributo da União, ou de qualquer outro Estado, ou Município, é inconstitucional.” p. 298. 157 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 122.
109
da imunidade recíproca dependeu, em suas linhas básicas, a evolução da teoria do Estado
federal.” 158
É de se notar que não faria qualquer sentido o texto constitucional, por um
conjunto de normas, estabelecer a igualdade jurídica entre os entes políticos tributantes e por
outras normas autorizar a tributação do patrimônio, a renda e dos serviços dos entes entre si.
A imunidade recíproca é um instituto constitucional posto no sistema jurídico para promover
incentivos à prestação dos serviços públicos, impedindo que a tributação afete o alcance das
finalidades essenciais do estado, interferindo na própria autonomia dos estados. “Não é dado a
uma pessoa política, por meio de impostos, criar embaraços ou anular a ação de outra.”159
“A imunidade recíproca se justifica ainda pelo fato de que as pessoas
estatais não estão sujeitas ao dever de solidariedade no pagamento dos impostos (art. 3º, I),
uma vez que todos os seus bens, patrimônio, rendas e serviços estão exclusivamente voltados
ao interesse público. E são, nesse sentido, instrumentos de governo que devem ser protegidos
para servir, exatamente, aos interesses superiores da coletividade.” 160
Em seu art. 150, VI, a Constituição Federal de 1988 dispõe que a União, os
Estados e os Municípios não poderão cobrar tributos sobre patrimônio, renda ou serviços uns
158 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 122. 159 CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª edição. São Paulo: Malheiros. 2005. p. 692. 160 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 135.
110
dos outros, ou seja, estão protegidos pela imunidade o patrimônio, a renda e os serviços das
entidades políticas integrantes da Federação e suas autarquias e fundações161.
No entanto, há limites à proteção das entidades políticas pela imunidade, tal
como prevêem os parágrafos 2º e 3º do art. 151, VI, da Carta de 1988, quais sejam:
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
§ 3º - As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
A imunidade recíproca será extensiva ao patrimônio, à renda e aos serviços
das autarquias e fundações das entidades políticas integrantes da Federação somente se
estiverem vinculados às finalidades essenciais do exercício do poder público ou às delas
decorrentes. E mais, se o patrimônio, a renda e os serviços estiverem relacionados à
exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos
privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, não
se aplica a imunidade recíproca prevista no art. 151, VI, “a” da CF/88, nem exonera o
promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
161 Cf. § 2º do inciso VI do art. 151 da CF/88.
111
Logo, existem pelo menos duas hipóteses previstas na Carta de 1988 em que
não se aplica a proteção da imunidade recíproca à tributação do patrimônio, da renda ou dos
serviços dos entes públicos – União, Estados e Municípios, quais sejam: (i) quando o
patrimônio, a renda e os serviços estiverem relacionados à exploração de atividades
econômicas regidas por regras aplicadas às empresas privadas, e (ii) quando houver
contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.
“A imunidade recíproca, caracterizada por impedir a autofagia do Estado
por meio da tributação de suas próprias riquezas, prestigia o princípio federalista, sendo
extensiva às autarquias e fundações públicas, no que se refere às suas finalidades essenciais,
não podendo, no entanto, ser aplicada quando o Estado, sob regime de direito privado, explora
atividade econômica ou empreende atividades em que haja contraprestação ou pagamento de
preços ou tarifas” 162.
Para Hugo de Brito Machado163, aplicar a imunidade tributária ao
patrimônio, à renda e aos serviços de entidades públicas que desempenham atividade
econômica sob o mesmo regime aplicado às empresas privadas, significaria estabelecer um
desequilíbrio concorrencial entre as empresas públicas e as empresas privadas, evidenciando
uma violação frontal ao princípio da livre iniciativa, dentre outros. O fato de uma empresa
pública exercer atividade empresarial sob o regime de direito privado já configura a
descaracterizada atuação do poder público em cumprimento às finalidades essenciais do
Estado. 162 BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 229 163 Cf. Curso de Direito Tributário. 27ª edição. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 297.
112
A exploração de atividade econômica com fins lucrativos pelos entes
públicos situa-os em par de igualdades com as empresas privadas que desenvolvem a mesma
atividade, por isso que também se explica o motivo pelo qual se excluem da imunidade
recíproca as empresas públicas organizadas em regime de direito privado164. Assim como
dispõe o art. 173, § 2º, da Carta de 1988, in verbis: “As empresas públicas e as sociedades de
economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.”
Segundo Misabel Derzi, na linha do que propõe Hugo de Brito Machado, “a
imunidade não beneficiará atividades, rendas ou bens estranhos às tarefas essenciais das
pessoas estatais e de suas autarquias, que tenham caráter especulativo ou voltadas ao
desempenho econômico lucrativo, em respeito ao princípio da livre concorrência entre as
empresas públicas e privadas e à tributação segundo o princípio da capacidade
contributiva.”165
Mizabel Derzi justifica afirmando que:
“Garantia adicional da liberdade e da democracia, o Estado federal se compenetrou da igualdade, da necessidade de redução das grandes disparidades regionais e das metas intervencionistas que caracterizam o federalismo integrativo e cooperativo, trazendo limitações à imunidade recíproca: ela não se estende a particulares, nem deve beneficiá-los, de modo que são tributáveis as remunerações de serviços públicos, sem distinção de cargo ou função e a renda dos títulos da dívida pública; igualmente, se excluem da imunidade recíproca os serviços públicos concedidos e a atividade
164 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 125. 165 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 128/129.
113
empresarial do Estado, na qual ele persegue o lucro e se submete às regras do Direito Privado, despindo-se do seu poder de império.” 166
Outro assunto que instiga discussões diz respeito à aplicação da imunidade
recíproca no caso dos impostos em que o encargo econômico é suportado por terceiros, tais
como o ICMS e o IPI. Ou seja, nas situações em que os entes públicos, como adquirentes de
mercadorias e produtos industrializados, suportam economicamente o IPI ou ICMS incidente
na operação. Em sua obra, Direito Tributário Brasileiro, Aliomar Baleeiro defende que: “Não
há, pois, razão nem cabimento para invocar-se imunidade recíproca nas operações de
entidades públicas, cuja tributação deverá ser suportada por particulares. Se o órgão oficial
vende, por exemplo, alimentos de uma produção ou adquiridos de terceiros, para melhoria das
condições de vida de servidores públicos ou do povo em geral, nada justifica benefício
adicional da isenção de imposto pago por todos os habitantes.” 167
Não por outra razão, são assuntos intensamente debatidos nos tribunais
superiores, especialmente no Supremo Tribunal Federal, conforme anotações que seguem.
4.2.1.1. A Imunidade Recíproca e os casos de repercussão geral no Supremo Tribunal
Federal
166 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 125. 167 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense. 1970. p. 232.
114
4.2.1.1.1. Imunidade Recíproca – IPTU – imóvel de propriedade de ente público
explorado por concessionária – empresa privada.
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. IPTU. IMÓVEL DE PROPRIEDADE DE ENTE PÚBLICO. CONCESSÃO DE USO. EMPRESA PRIVADA EXPLORADORA DE ATIVIDADE ECONÔMICA COM FINS LUCRATIVOS. CONTRIBUINTE DO IMPOSTO. QUALIFICAÇÃO. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Repercussão geral em Recurso Extraordinário 601.720 Rio de Janeiro. DJe nº 122. Divulgação 27/06/2011. Publicação. 28/06/2011. Ementário nº 2552-1. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski.
O caso em referência trata de Recurso Extraordinário interposto pelo
Município do Rio de Janeiro em face de acórdão que entendeu que a imunidade recíproca
alcança imóvel de propriedade da União Federal cedido à empresa privada que desenvolve
atividade econômica com fins lucrativos. No caso em epígrafe, a União Federal cedeu a título
oneroso o uso do imóvel à empresa privada que realiza a atividade de comercialização de
veículos automotores.
O Município do Rio de Janeiro defende em Recurso Extraordinário que a
imunidade recíproca, disposta no art. 150, VI da Carta de 1988, se propõe a proteger da
tributação o patrimônio, a renda e os serviços dos entes públicos que desempenham suas
finalidades essenciais – de interesse público. Logo, quando uma empresa privada explora suas
atividades econômicas com fins lucrativos no imóvel cedido pela entidade de direito público,
115
a imunidade recíproca não se aplicaria, haja vista que os imóveis não estariam sendo
utilizados para destinação pública, mas privada, visando lucro.
O acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que deu
origem ao Recurso Extraordinário em referência, posicionou-se no sentido de que a
concessionária – empresa privada – não exerce nenhum direito de posse, uso e gozo sobre o
imóvel do ente público, circunstância que impediria a sua inclusão no pólo passivo da
obrigação tributária de pagar IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano.
Nesse julgamento, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, baseado no art.
34 do Código Tributário Nacional, entendeu que a empresa privada não poderia ser
qualificada como contribuinte do IPTU, por não ter domínio ou posse do bem, portanto, o
Município do Rio de janeiro estaria impossibilitado de proceder à cobrança do tributo.
O Recurso Extraordinário foi admitido na origem e à matéria em discussão
reconhecida a repercussão geral pelo cumprimento dos requisitos do § 1º, do art. 534-A do
CPC. Será reconhecido o status da repercussão geral sempre que a matéria trouxer discussões
relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassando o interesse
subjetivo da causa. Ou seja, desde que se trate de questão constitucional que ultrapasse o
interesse das partes que atuam no feito, com repercussões de cunho econômico-social. No
caso em questão, a discussão é de natureza tributária, razão pela qual os reflexos nas finanças
do ente tributante são inevitáveis e absolutamente relevantes do ponto de vista econômico-
social, uma vez que alcançam toda a coletividade.
116
Analisando o caso concreto a partir da observância dos argumentos
colacionados pelas partes e dos fundamentos do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Rio de janeiro, percebemos que o centro da discussão é a aplicação de imunidade recíproca ao
patrimônio de ente público cedido à empresa privada para exploração de atividade econômica,
com fins lucrativos, desvinculada de qualquer finalidade pública essencial e regida por
normas aplicáveis aos empreendimentos privados.
Ora, o art. 150. VI, “a”, § 3º da Constituição Federal de 1988 não aplica o
instituto da imunidade recíproca “ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com
exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos
privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário
(...)”. Isso significa que o imóvel, pertencente ao ente público, utilizado por empresa privada
revendedora de veículos automotores com fins lucrativos, não poderia estar sujeito à
imunidade recíproca, pois violaria a liberdade de iniciativa, provocando discrepâncias no
funcionamento da ordem econômica e a consequente inviabilidade da prática da livre
concorrência.
Como será mais bem explorado adiante, o conjunto de normas gerais da
atividade econômica deve ser aplicado com a finalidade precípua de reprimir o abuso do
poder econômico, a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento
arbitrário dos lucros. E a livre concorrência significa a garantia de que as atividades
econômicas serão exercidas de modo que as habilidades de cada um determinem o seu êxito
117
ou o seu insucesso, não podendo o Estado, em princípio, favorecer ou desfavorecer
artificialmente este ou aquele agente econômico168.
“Em outras palavras, o direito à livre concorrência é assegurado por uma
norma, com estrutura de mandamento de otimização, segundo a qual o Estado deve garantir a
todos, na medida do que for factual e juridicamente possível, o livre exercício de atividade
econômica, sem criar ou permitir interferências indevidas que prejudiquem a livre competição
dos cidadãos.” 169
Sendo assim, aplicar a imunidade recíproca a este patrimônio – imóvel de
ente público explorado por empresa privada revendedora de veículos automotores –
representaria uma afronta à livre iniciativa, um desequilíbrio concorrencial extremamente
nocivo ao bom funcionamento das regras de mercado, uma violação às normas gerais da
atividade econômica, ou seja, um ato inconstitucional. Por essa razão, utilizando-nos das
palavras de Mizabel Derzi, concluímos que “a imunidade recíproca não beneficia particulares,
terceiros que tenham direitos reais em bens das entidades públicas”.170
168 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402. 169 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402. 170 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 128.
118
4.2.1.1.2. Imunidade recíproca – Sociedade de Economia Mista – entidades que prestam
serviços de saúde.
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. ENTIDADES QUE PRESTAM SERVIÇOS DE SAÚDE. HOSPITAIS. ALEGADA AUSÊNCIA DE INTUITO DE EXPLORAÇÃO ECONÔMICA. VINCULAÇÃO AO MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONFIGURAÇÃO COMO ENTIDADE DE INTERESSE PÚBLICO. ART. 150, VI, A, CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Repercussão geral em Recurso Extraordinário 580.262-7 Rio Grande do Sul. DJe nº 206. Divulgação 30/10/2008. Publicação. 31/10/2008. Ementário nº 2339-9. Relator: Ministro Joaquim Barbosa.
O caso em referência trata de Recurso Extraordinário interposto pelo
Hospital Nossa Senhora da Conceição S/A em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul que considerou não ser imune à tributação por impostos estaduais sociedade de
economia mista que atua na área de prestação de serviços de saúde.
A particularidade do caso reside na composição societária do grupo
hospitalar, pois, segundo consta dos autos, a participação privada no quadro societário é
irrisória, o que configuraria a entidade como uma extensão do poder público. E apontam
ainda, que a partir de 2003 o grupo passou a atender exclusivamente pacientes do SUS –
Sistema Único de Saúde, de modo que a receita passou a ser proveniente de repasses públicos.
O grupo hospitalar recorrente invoca que a função social desempenhada e a
inexistência de exploração econômica da atividade caracterizam-no como entidade paraestatal
de interesse público, razão pela qual deveria se beneficiar da proteção constitucional da
imunidade tributária recíproca.
119
O Ministro Joaquim Barbosa, em sua manifestação acerca da repercussão
geral em Recurso Extraordinário 580.264-7, afirma que, neste caso concreto, “está em jogo,
de um lado, a proteção conferida pela Constituição à autonomia dos entes federados, quando
executam indiretamente ações que asseguram o direito fundamental à saúde, em quadro
aparentemente marcado pela utilização atípica da forma societária da sociedade de economia
mista.” E acrescenta que “em posição antípoda estão a necessidade de preservação da livre
iniciativa e da concorrência, a proibição de extensão de vantagens à iniciativa pública no
campo da exploração exclusivamente econômica e de mercado e o risco de utilização de um
benefício próprio do Estado para entidades mais próximas do setor privado.”
Neste ponto é relevante destacar que as sociedades de economia mista, pela
definição exposta por Hely Lopes Meirelles, são pessoas jurídicas de Direito Privado, com
participação do poder público e de particulares no seu capital e na sua administração, para
realização de atividade econômica ou serviço público outorgado pelo Estado. São sociedades
mercantis, admitem lucro, regem-se pelas normas de direito privado, integram a
Administração indireta do Estado e atuam como instrumento de descentralização dos serviços
públicos. 171
As sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de direito privado
criadas com o objetivo de trazer melhorias à prestação do serviço público ou à exploração de
atividade econômica, a partir de um modelo privado de empresa, com a captação de capital
privado e participação privada na administração da empresa. Trata-se de uma parceria entre o
171 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª edição. São Paulo: Malheiros. 2010. p. 393.
120
interesse público e a estrutura privada de empresa, que pode visar renda ou lucro. Às
sociedades de economia mista, apesar de contar com a participação ativa do Estado e do
particular no seu capital e na sua direção, são aplicadas as normas de empreendimentos
privados.172
Como admite Hely Lopes Meirelles, “pode o Estado subscrever parte do
capital de uma sociedade sem lhe atribuir o caráter de empresa governamental. O que define a
sociedade de economia mista é a participação ativa do Poder Público na vida e realização da
empresa. Não importa seja o Estado sócio majoritário ou minoritário; o que importa é que se
lhe reserve, por lei ou convenção, o poder de atuar nos negócios sociais.” 173
Tanto é assim que Decreto-lei 200/67 conceitua a sociedade de economia
mista como, in verbis, “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada
por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas
ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração
Indireta” (art. 5º, III) 174.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, ao estabelecer as normas
gerais aplicáveis às atividades econômicas, em seu art. 173, § 2º, dispõe expressamente que
“as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios
fiscais não extensivos às do setor privado.” Isso por que, dentre os princípios constitucionais
172 Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª edição. São Paulo: Malheiros. 2010. p. 393/394. 173 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª edição. São Paulo: Malheiros. 2010. p. 394. 174 Grifos não originais.
121
da ordem econômica, encontram-se: o da livre iniciativa e o da liberdade de concorrência. E
ainda no texto constitucional, o art. 150, VI, § 3º, veda expressamente a aplicação da
imunidade recíproca ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de
atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados.
Na consecução deste raciocínio é que Misabel Derzi advoga que:
“Via de regra, as atividades econômicas industriais, comerciais ou financeiras sem monopólio, mesmo exercidas pelo Estado, mas voltadas ao lucro ou à especulação, evidenciam organização empresarial e estão, por norma constitucional expressa, excluídas da imunidade, no art. 150, VI, § 3º; Manifestam presença de capacidade econômica, pela natureza de suas atividades e de seus fins.” 175
Ora, as alegações suscitadas pelo Grupo Hospitalar recorrente tentam
descaracterizá-lo enquanto sociedade de economia mista, a fim de constituí-lo como empresa
pública que desempenha as finalidades essenciais sem explorar economicamente a atividade
de prestação de serviços hospitalares. Contudo, conforme adrede descrito, as sociedades de
economia mista são empresas regidas pelas normas de direito privado, com participação ativa
do Estado, ainda que se trate de uma participação majoritária na sociedade, em termos de
capital, direção e interesse público.
Logo, quando as sociedades de economia mista desenvolvem uma atividade
econômica elas precisam obedecer às normas constitucionais de livre iniciativa e livre
concorrência, sujeitando-se às normas aplicáveis aos empreendimentos privados e ao regime
175 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª edição atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 2010. p. 132.
122
tributário que lhes é comum. Ainda que as referidas sociedades tenham participação do
Estado, elas não gozam de privilégios ou prerrogativas inerentes aos entes públicos, pois para
garantir a competitividade no mercado, qualquer tipo de benefício somente será concedido por
intermédio de lei específica.
Entretanto, no que se refere à aplicação da imunidade recíproca, quando as
sociedades de economia mista desempenham uma atividade econômica regidas por normas de
direito privado, não serão protegidas por esse instituto, haja vista a expressa proibição
constitucional à possibilidade de as referidas sociedades alcançarem privilégios fiscais não
extensivos às do setor privado.
Sob outra perspectiva, Roque Antonio Carrazza compreende que “as
empresas públicas e as sociedades de economia mista, quando delegatárias de serviços
públicos ou de atos de polícia, em seu favor incide o disposto no § 2º do art. 150, VI da
CF/88, sem as ressalvas do § 3º desse mesmo dispositivo, razão pela qual são tão imunes aos
impostos quanto às próprias pessoas políticas, a elas se aplicando, destarte, o princípio da
imunidade recíproca, sendo irrelevante para o desfrute da imunidade em pauta, que a
delegatária cobre preço, tarifa ou taxa do usuário.” 176 Preço ou tarifa que será estabelecida
por lei, com a finalidade de cobrar o valor adequado para equilibrar o custo da atuação estatal
frente ao valor desembolsado pelo usuário, pois os serviços públicos destinam-se a promover
o bem comum.
176 Curso de Direito Constitucional Tributário. 21º Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 694/699
123
O autor compreende que o exercício de serviços públicos de forma
exclusiva por empresas públicas e sociedades de economia mista é capaz de caracterizá-lo
como serviço de ente público que deve ser alcançado pela proteção constitucional da
imunidade recíproca. Pois, a circunstância de serem revestidas da natureza de empresa pública
ou sociedade de economia mista não lhes retira a condição de pessoas administrativas, que
agem em nome do Estado, para consecução do bem comum.
Isso não significa uma violação ao art. 173, § 2º, que dispõe expressamente
que “as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de
privilégios fiscais não extensivos às do setor privado. A situação em pauta versa sobre um
caso concreto distinto. Trata-se de empresa pública ou sociedade de economia mista que
exerce serviço público, exploram atividade em prol do bem comum, com o intuito de alcançar
as finalidades essenciais do Estado. Nessas circunstâncias, as pessoas jurídicas em referência
não se vestem de empresas privadas, mas de entidades políticas prepostas à atividade
administrativa.
Por esta razão, a regra constitucional que lhes alcança não é aquela prevista
no § 3º do art. 150, VI da CF/88, mas o § 2º que afirma a extensão da imunidade recíproca às
autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao
patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas
decorrentes. Assim, por titularizar interesses públicos, as pessoas administrativas delegatárias
de serviços públicos quando desempenharem típicas funções típicas, devem ser alcançadas
pelo benefício constitucional da imunidade recíproca.
124
Contudo, o reflexo da extensão das imunidades recíprocas nos domínios da
concorrência e da livre-iniciativa é o que mais preocupa neste universo de alcance de
benefícios, uma vez que estar-se-ia oferecendo às empresas públicas e sociedades de
economia mista o desfrute de privilégios fiscais não aplicáveis a todo o setor privado. Pois, é
inequívoco que o privilégio fiscal teria o condão de desonerar as atividades econômicas
desenvolvidas pelo Estado em relação às mesmas atividades desenvolvidas pelas empresas
privadas não alcançadas por tais privilégios, o que representaria a decretação de um universo
de concorrência desleal.
Ao tratar do assunto, Roque Antônio Carrazza justifica que:
“Os particulares só ingressam no capo reservado aos serviços públicos ou aos atos de polícia quando contratados pelo Estado, segundo as fórmulas de concessão e permissão. Não migram, por força da concessão ou permissão, para as hostes do direito privado. O que estamos querendo significar é que, do mesmo modo, em que há um campo reservado à livre iniciativa (art. 170 da CF), há m outro reservado à atuação estatal (art. 175 da CF)” 177.
Da justificativa descrita pelo autor, entendemos que quando as empresas
públicas ou sociedades de economia mista são, por lei, delegatárias de serviços públicos ou de
poder de polícia, elas não ofereceriam risco à livre concorrência ou à livre iniciativa, pois
exercem o papel de entidades públicas, fazendo as vezes de autarquias, ainda que com elas
não se confundam.
177 Curso de Direito Constitucional Tributário. 21º Edição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 701.
125
4.2.1.1.3. Imunidade recíproca – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – Serviços
sob o Regime de Concorrência
TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇOS PÚBLICOS. ICMS. INCIDÊNCIA. TRANSPORTE DE BENS E MERCADORIAS SOB O REGIME DE CONCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.
Repercussão geral em Recurso Extraordinário 627.051 Pernambuco. DJe nº 115. Divulgação 15/06/2011. Publicação. 16/06/2011. Ementário nº 2545-1. Relator: Ministro Dias Tofoli.
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RECÍPROCA. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE DISTINGUE ENTRE SERVIÇOS SUJEITOS AO MONOPÓLIO E SERVIÇOS PRESTADOS EM REGIME DE CONCORRÊNCIA PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. ART. 150, VI, A E §§ 2º E 3º DA CONSTITUIÇÃO. PROCESSO CIVIL. PROPOSTA ENCAMINHADA PELA EXISTÊNCIA DO REQUISITO DE REPERCUSSÃO GERAL DA MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
Repercussão geral em Recurso Extraordinário 601.392 Paraná. DJe nº 228. Divulgação 03/12/2009. Publicação. 04/12/2009. Ementário nº 2385-6. Relator: Ministro Joaquim Barbosa.
O primeiro Recurso Extraordinário interposto pela Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região que
entendeu, com base no at. 173, II, da CF/88, pela não aplicação da imunidade tributária à
empresa pública federal – pessoa jurídica de direito privado – no que se refere à incidência de
ICMS sobre as operações de transporte de mercadorias/encomendas.
126
O segundo Recurso Extraordinário interposto pela Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos – ECT em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região
que entendeu pela incidência de ISS – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza –
relativamente às atividades postais de natureza privada e realizadas em regime de
concorrência com as demais empresas do setor. A Recorrente, ECT, que a exerce serviços
próprios da União e correlatos, de modo permanente e sem fins lucrativos, logo a imunidade
deveria alcançar todas as atividades postais realizadas pela empresa.
A norma constitucional que disciplina estes fatos in concreto dispõe que a
imunidade recíproca não deve ser aplicada à exploração de atividades econômicas regidas
pelas normas que regem os empreendimentos privados ou quando haja contraprestação ou
pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. Invertendo a ordem da afirmativa temos que as
pessoas políticas serão imunes quando exercerem atividades econômicas não regidas por
normas de direito privado e sem contraprestação ou pagamento de preços e tarifas pelo
usuário do serviço.
O serviço postal é de interesse geral da coletividade, pois é de interesse de
todos que cada município da Federação seja alcançado pelo serviço de entrega e envio de
cartas, documentos, e todos os demais objetos previstos em lei, com a maior eficiência
possível. Por esta razão, o fornecimento do serviço postal não pode ser mera faculdade do
Poder Público. Tanto é assim que a Constituição Federal de 1988 em seu art. 21, X, dispõe
que o serviço postal é de monopólio estatal, in verbis, “Compete à União manter o serviço
127
postal e o correio aéreo nacional”. Portanto, nessa linha, o serviço postal seria um serviço
público inerente ao modelo federativo preconizado na Carta de 1988.
Os serviços considerados tipicamente postais, em regime de monopólio pela
União, estão dispostos no art. 9º da Lei nº 6.538/78, quais sejam:
Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais: I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal; II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada: III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal. § 1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal; a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal; b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal. § 2º - Não se incluem no regime de monopólio: a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial; b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento.
Entretanto, como observa o Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na
ACO 756-Agr, nem todos os serviços realizados pela Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos são considerados serviços postais, exercidos pela União em regime de monopólio,
tais como o “Banco postal”, “dinheiro fácil”, “importa fácil”, etc., que ao contrário disso, são
serviços privados, lucrativos, exercidos, em alguns casos, em regime de concorrência.
128
A preocupação do Ministro Ricardo Lewandowski é aplicar a imunidade
recíproca aos serviços exercidos pelas empresas privadas terceirizadas contratadas pelos
Correios para explorar serviços não postais. Isso por que a circunstância de a empresa pública
executar serviços que não são púbicos, sequer postais, exige uma ponderação quanto aos
serviços protegidos pela imunidade recíproca.
O regime de concorrência é modalidade de licitação obrigatória em
contratos de elevado valor, especialmente em contratações de obras, serviços e compras; que
admite a participação de quaisquer interessados que satisfaçam as condições do edital,
empresas públicas, privadas, sociedades de economia mista, dentre outros. São serviços que
não estão sob o regime de monopólio da União, de modo que podem ser exercidos por
quaisquer empresas privadas ou públicas.
Significa dizer que os serviços tipicamente postais são exercidos sob regime
de monopólio da União, motivo pelo qual são abrangidos pela proteção da imunidade
tributária recíproca. Entretanto, as contratações em regime de concorrência põem as empresas,
que satisfazem as condições do edital de licitação, em situação de igualdade, pois todas estão
explorando atividades econômicas com fins lucrativos e são regidas pelas normas aplicáveis
aos empreendimentos privados.
Aplicar a imunidade tributária aos serviços que não são tipicamente postais,
que podem ser explorados por empresas privadas e que estão sujeitos à contraprestação ou
pagamento de tarifa pelo usuário violaria frontalmente a Carta Constitucional de 1988, art.
129
150, VI, § 3º. E essa conclusão não vai de encontro a alguns precedentes178 do Supremo
Tribunal Federal que se posicionaram pela índole pública dos serviços postais, por se tratar de
serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, contexto que permitiria a
extensão da imunidade tributária recíproca aos serviços postais.
Fala-se aqui em extensão da imunidade tributária recíproca aos serviços não
postais, o que nos parece uma violação ao princípio da livre iniciativa e livre concorrência
dispostos nos arts. 170 e 173, II, da Constituição Federal e § 4º - A lei reprimirá o abuso do
poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros.
A exemplo disso, o Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto na Repercussão
geral em Recurso Extraordinário 601.392 Paraná, informa que a lista anexa do Decreto-lei
406/1968, em seu item 95, traz serviços tipicamente privados que, mesmo sendo exercidos
por empresa pública federal que desempenha predominantemente serviços postais
considerados essenciais à coletividade, devem ser tributados pelos Municípios por via do ISS,
haja vista a exploração em regime de concorrência, vejamos:
Item 95. Cobranças e recebimentos por conta de terceiros, inclusive direitos autorais, protestos de títulos, sustação de protestos, devolução de títulos não pagos, manutenção de títulos vencidos, fornecimentos de posição de cobrança ou recebimento e outros serviços correlatos da cobrança ou recebimento (este item abrange também os serviços prestados por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central);
178 RE nº 407.099. Ministro Carlos Velloso. Segunda Turma. DJ 06.08.2004, RE nº 354.897. Ministro Carlos Velloso. Segunda Turma. DJ 03.09.2004, RE nº 398.630, Ministro Carlos Velloso. Segunda Turma. DJ 17.09.2004, dentre outros.
130
Para atender às necessidades de todo o território nacional, diversas empresas
privadas – empresas do ramo da distribuição – surgiram no mercado nacional para fornecer
serviços de logística, de distribuição de malotes, revistas, periódicos, cartas de cobrança, de
pequenas encomendas, cartas de cobrança de luz, gás e telefone, dentre outros, todos
autorizados por lei, sem que isso representasse a realização de serviço postal sob o monopólio
da União Federal. E respeito à livre concorrência e à liberdade de iniciativa, qualquer
tentativa de abuso de poder econômico, dominação de mercados e eliminação de concorrentes
sob o argumento de monopólio dos serviços pela União Federal. Os serviços sob monopólio
da União estão taxativamente previstos no art. 177, da Constituição, de modo que banir o
ramo da distribuição da exploração dos diversos modos de serviços de distribuição e logística
– não postais, representaria uma ameaça à ordem econômica e ao desenvolvimento de uma
atividade econômica competitiva e eficiente.
Nos casos em questão, os Correios não prestam serviços postais, serviços
públicos em regime de monopólio ou de exclusividade da União, portanto, jamais poderiam
ser equiparadas às empresas públicas delegatárias de serviços públicos ou de atos de polícia,
em seu favor das quais incide o disposto no § 2º do art. 150, VI da CF/88, sem as ressalvas do
§ 3º desse mesmo dispositivo. Na hipótese de não exercer um serviço tipicamente público –
como o serviço postal – os Correios não ficam imunes aos impostos, pois se os Correios ao
exercerem serviços não postais ficassem protegidos pela imunidade recíproca, as empresas
privadas não teriam condições de igualdade tributária para competir, pois restaria evidente o
desequilíbrio fiscal gerado pela aplicação seletiva de privilégios fiscais.
131
Na presente situação, a empresa pública explora atividade econômica
com fins lucrativos, não exercem serviço público, sequer explora a atividade em prol do bem
comum, com o intuito de alcançar as finalidades essenciais do Estado. Nessas circunstâncias,
a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é empresa pública que veste os trajes de
empresa tipicamente privada, obstinando lucro e regida por todas as regras de direito privado,
jamais podendo ser equiparada às entidades políticas prepostas à atividade administrativa, não
podendo, destarte, ter os serviços não postais alcançados pela imunidade tributária recíproca.
Pois, se assim o fosse, representaria a homologação da concorrência desleal, uma afronta à
livre iniciativa e a todos os princípios que regem a ordem econômica.
4.2.2. Imunidade dos tempos de qualquer culto
Art. 150. CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre:
b) templos de qualquer culto;
O art. 150, VI, “b” da Carta Constitucional de 1988 vem reforçar o direito à
liberdade de crença e de prática religiosa prestigiada pelo art. 5º, VI a VIII no mesmo
diploma. Com a aplicação da imunidade aos templos de qualquer culto, fica garantida a
desoneração fiscal (leia-se: não tributação) do exercício de qualquer culto ou prática religiosa.
Isso vem tornar imunes à tributação os templos e cultos religiosos.
132
Por templo, deve-se entender edifício público destinado ao culto religioso179,
ou seja, o local destinado às cerimônias religiosas, inclusive a entidade mantenedora dos
templos. Pois a Constituição visa proteger as manifestações de fé e fomentar a religiosidade
das pessoas, através da não tributação da liberdade e isonomia de crenças. É inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo livre o exercício dos cultos religiosos e protegidos
os locais de culto e liturgias (art. 5º, VI, da CF/88). E ainda, ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII, da CF/88). E para viabilizar tudo isso, a
Constituição veda, por meio das imunidades tributárias, a cobrança de qualquer imposto sobre
os templos de qualquer culto.
Isso significa que, como defende Roque Antonio Carrazza, sobre o imóvel
onde o culto se realiza não pode incidir o imposto predial e territorial urbano – IPTU; sobre o
serviço religioso não deve incidir Imposto sobre Serviço – ISS; sobre as esmolas, dízimos,
doações não pode incidir o Imposto sobre a Renda; sobre a aquisição de imóveis pelas
entidades mantenedoras não deve incidir o Imposto sobre a transmissão “inter vivos”, por ato
oneroso, de bens imóveis – ITBI; sobre o veículo usado para catequese e serviços de culto não
deve incidir o IPVA, e assim avante. Nenhum desses impostos – nem qualquer outro – pode
incidir sobre os templos de qualquer culto, em conseqüência da regra imunizante180.
Entretanto, na hipótese de as entidades mantenedoras dos templos e cultos
religiosos explorarem atividades tipicamente comerciais, visando auferir renda ou lucro, a
179 CUNHA, Antônio Geraldo Da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon. 2007. P. 762 180 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2005. p. 709.
133
imunidade tributária não deve alcançá-las, pois não se trata do exercício de funções essenciais
ao culto.
Ainda que possa questionar a manutenção da imunidade, quando da prática
de atividade econômica não relacionada diretamente à finalidade essencial pelas referidas
entidades, o mesmo não poderá ocorrer quanto à permissão para o exercício da atividade.
Tendo em vista que art. 170, da CF/88, em seu parágrafo único, assegura a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos
públicos, não havendo qualquer dispositivo que impeça exercício de atividade econômica seja
pelos templos de culto religioso, como pelos partidos políticos, entidades de assistência social
e educacional consideradas imunes.
4.2.3. Imunidade dos partidos políticos e das instituições educacionais ou assistenciais
Art. 150. CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre:
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;
Não será tributado o patrimônio, a renda ou os serviços dos partidos
políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições
de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei (art.
150, VI, “c”, CF/88).
134
Os requisitos para a aplicação da imunidade tributária prevista no art. 150,
VI, “c”, da CF/88 estão dispostos no art. 14 do Código Tributário Nacional – artigo este que
oferece plena eficácia e total aplicabilidade à referida imunidade do diploma constitucional –
, quais sejam, in verbis: I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas
rendas, a qualquer título; II - aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na
manutenção dos seus objetivos institucionais; III - manterem escrituração de suas receitas e
despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
Assim, só podem se beneficiar das imunidades as referidas entidades que
não tenham fins lucrativos, portanto, não distribuam parcelas de seu patrimônio, renda ou
parcelas de resultados econômicos positivos obtidos no exercício; apliquem todos os recursos
no Brasil e escriturem as receitas em consonância com as formalidades e exigências –
obrigação tributária acessória. Convém salientar, que somente terão direito à imunidade
tributária, o patrimônio, a renda ou os serviços dos partidos políticos, inclusive suas
fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
assistência social, legalmente constituídos.
O não cumprimento de quaisquer desses requisitos autoriza a autoridade
competente a suspender a aplicação do benefício, e ainda, se os serviços exercidos não
estiverem diretamente ligados aos objetivos institucionais dos partidos políticos, inclusive
suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
assistência social, não poderão ser protegidos pela imunidade tributária. Logo, os serviços
deverão ser exercidos exclusivamente visando as finalidades essenciais das entidades em
135
referência (art. 150, § 4º da CF/88), sob pena de não ver aplicada a imunidade tributária do
art. 150, VI, “c” da CF/88.
Os requisitos essenciais à aplicação da imunidade tributária estão dispostos
exclusivamente no art. 14 do Código Tributário Nacional, lei complementar, o que impede
que lei ordinária crie novos requisitos para que os partidos políticos, inclusive suas fundações,
das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social
gozem da imunidade tributária do art. 150, VI, “c”, da CF/88.
Os partidos políticos são instituições, pessoas jurídicas de direito privado,
criadas com a finalidade de organizar os interesses políticos de uma sociedade, são
representantes dos interesses da coletividade que se filiam aos partidos para discutir
programas e metas de desenvolvimento e melhoria das condições de vida de toda a sociedade.
São entidades que “visam assegura a autenticidade do regime representativo no interesse da
democracia” 181.
O direito à educação está previsto na Constituição Federal de 1988,
especialmente no art. 205, que prevê, in verbis: “A educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. E para promover e incentivar o direito à educação, a própria
Carta Constitucional de 1988 proclamou a imunidade tributária às instituições de educacionais
que satisfaçam os requisitos da lei, no caso, o art. 14 do CTN, pois é assente que instituições
181 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2005. p. 718.
136
de ensino desempenham em relevante papel para a realização do interesse da coletividade de
acesso à educação.
As instituições assistenciais, por sua vez, são aquelas pessoas jurídicas que ,
sem fins lucrativos, ao direitos sociais à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à
segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, na forma do art. 6º da
Constituição Federal de 1988.
Como o Estado por si não consegue prover todos esses direitos sociais, o
texto constitucional oferece o privilégio fiscal da imunidade às entidades se assistência social
beneficente que, sem fins lucrativos e exercendo exclusivamente suas finalidades
institucionais essenciais, aplicam as receitas e sobras financeiras integralmente no território
nacional, não distribui patrimônio e escritura dentro das formalidades as receitas. Pois em
caso de desvio de finalidade, o benefício da imunidade poderá ser cassado pela autoridade
fiscalizatória competente.
4.2.4. Imunidade dos livros, periódicos e do papel destinado à sua impressão
Art. 150. CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre:
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
Pelo art. 150, VI, “d” da Constituição Federal tem-se que todo e qualquer
livro ou periódico, bem como o papel utilizado na impressão, sem restrições, deverão ser
137
alcançados pela imunidade tributária. Como assevera Hugo de Brito Machado, os termos
“livros”, “periódicos”, “jornais” e “papel utilizado na impressão” devem ser entendidos em
seu aspecto finalístico182. “Assim, a imunidade, para ser efetiva, abrange todo o material
necessário à confecção do livro, do jornal ou do periódico. Não apenas o exemplar deste ou
daquele, materialmente considerado, mas o conjunto. Por isto nenhum imposto pode incidir
sobre qualquer insumo, ou mesmo, sobre qualquer dos instrumentos, ou equipamentos, que
sejam destinados exclusivamente à produção desses objetos.” 183
A interpretação da Constituição Federal de 1988, em virtude do avanço da
tecnologia, deve ser extensiva, a fim de que a imunidade tributária alcance e-books, cd-roms,
disquetes, etc. A finalidade do ordenamento jurídico é garantir direito de expressão, a
divulgação de culturas, o incentivo à leitura, etc., por isso é imprescindível que as imunidades
também alcancem os meios magnéticos de acesso à leitura e à informação, uma vez que o
direito deve acompanhar o avanço e as necessidades de uma sociedade em desenvolvimento.
No entanto, a imunidade deverá recair somente sobre os tributos que
alcançam a importação (II), a produção industrial (IPI) e a circulação de mercadorias (ICMS),
uma vez que se busca reduzir tão somente o custo dos produtos para facilitar o acesso à
sociedade, pois, onerar a produção desse material significaria desestimular o acesso à cultura,
à leitura, à informação.
182 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 302. 183 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 303.
138
A imunidade deve abranger todo o conjunto de serviços necessários à
confecção de livros, jornais e periódicos, inclusive a redação, a parte editorial, a revisão dos
exemplares e a publicidade dos anunciantes. Pois, os meios necessários à prestação de
serviços essenciais à informação da sociedade devem ser abrangidos pela imunidade
tributária.
No que se refere a não extensão da imunidade tributária ao imposto sobre a
renda incidente sobre a receita com a venda dos livros, periódicos e jornais, Mizabel Derzi é
categoria ao afirmar que:
“Não tem recebido acolhida entre nós a tentativa de alguns de estender a imunidade aos impostos sobre a renda ou patrimônio, já que as imunidades não beneficiam particulares. Apesar de representarem atividade de interesse público, quando organizadas em empresa com finalidade econômica, as pessoas titulares de jornais, edição de livros, periódicos apropriam-se de seus lucros. Se, não obstante, organizarem-se em instituições sem finalidade lucrativa, é claro, gozarão da imunidade do art. 150, VI, c, ao lado das demais que tem finalidades culturais.”
139
Capítulo V – Anotações sobre o princípio da livre concorrência
5.1. As normas jurídicas econômicas
Ao longo da primeira parte deste estudo, advogamos o fechamento
operativo – estrutura sintática homogênea – e a abertura semântica e pragmática –
heterogeneidade – do sistema jurídico. Na consecução do raciocínio defendido, a lógica que
estrutura todas as normas jurídicas é a deôntica, segundo a qual as normas são expressas
mediante um juízo hipotético-condicional – “Se P, então Q”. Por essa perspectiva o direito
ocupa o universo do dever-ser, e não o universo do ser.
Tomando como axioma a estrutura sintática homogênea do sistema jurídico,
devemos afirmar que a forma das normas jurídicas apresenta o mesmo padrão hipotético-
condicional – o padrão da lógica deôntica, não restando margem para a inclusão de quaisquer
outras lógicas não delineadas pelo sistema jurídico.
Nesse contexto, o que difere uma norma jurídica da outra é o seu conteúdo,
sua heterogeneidade semântica e pragmática. As normas tributárias, apesar de apresentar a
mesma estrutura hipotético-condicional, dispõem sobre fatos, elementos, princípios e
procedimentos diferentes daqueles tratados pelas normas econômicas, penais, trabalhistas,
cíveis, etc. Dentre as normas jurídicas (estruturalmente homogêneas) o que pode haver é a
flexibilização semântica da hipótese normativa, circunstância que se mostra evidente quando
tratamos dos princípios.
140
Os princípios, que pela classificação de Gregório Robles são chamados de
normas ônticas, são normas jurídicas184com conteúdo semântico mais amplo, ou seja, são
normas que apresentam maior carga axiológica se comparas às demais normas. Com o
princípio da livre concorrência não é diferente. Trata-se de uma norma de elevada carga
valorativa incluída no rol de princípios da ordem econômica constitucional.
A ordem econômica constitucional, prevista no art.170, da Constituição
Federal de 1988, encontra-se solidamente estabelecida para garantir a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da livre concorrência,
pleno emprego, propriedade privada, soberania nacional, dentre outros. Neste Capítulo I, do
Título VII da Constituição Federal, os princípios gerais da atividade econômica são abordados
com finco à valorização do trabalho humano e à livre iniciativa.
A ordem jurídica econômica atua na regulação dos fatos econômicos, como
um conjunto de mecanismos de que regulam o sistema econômico, numa implantação
prescritiva de enunciados que orientam as condutas intersubjetivas.
Destarte, esse conjunto de normas gerais da atividade econômica deve ser
aplicado aos casos concretos com a finalidade precípua de reprimir o abuso do poder
econômico, a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário
184 A deonticidade é inerente ao sistema jurídico – mundo do dever-ser. A lógica jurídica é aquela que orienta o estudo sintático do direito, de modo que todas as normas do sistema jurídico são classificadas como deônticas pelo fato de estarem inseridas do universo artificial do dever-ser. Dessa forma, a flexibilização semântica da hipótese normativa de algumas normas não as desqualifica enquanto deônticas, enquanto estruturas hipotético-condicionais.
141
dos lucros185. Logo se percebe que os objetivos prescritos para a ordem econômica, ou seja, os
princípios que regem a atividade econômica apresentam elevada carga axiológica que exige
uma atitude hermenêutica comprometida e abrangente.
Essa atitude hermenêutica, para que esteja em pelo acordo com as diretrizes
constitucionais, precisa reconhecer a carga semântica dos princípios da ordem econômica
sempre em consonância com a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano,
fundamentos da ordem econômica. A livre iniciativa, tal como o termo prenuncia, trata da
liberdade de atuação do particular no domínio econômico, representa a livre possibilidade de
exercer uma atividade econômica sem a obstaculização do poder público.
Como assevera Hugo de Brito Machado Segundo186:
“Não incorrendo em grande falha e consagrando expressamente a liberdade, no plano econômico, como direito fundamental, o art. 170 da Constituição Federal de 1988 elenca a livre iniciativa e, no que mais perto interessa a este texto, a livre concorrência como princípios fundamentais da ordem econômica, vale dizer, valores, metas ou objetivos a serem buscados e prestigiados no âmbito do disciplinamento jurídico da atividade econômica.”
Neste sentido, a livre iniciativa é um princípio que informa a liberdade, seja
na escolha de meios, seja na escolha dos fins almejados pelo particular no desenvolvimento de
uma atividade economia. É norma jurídica com elevada abrangência semântica e flexível
hipótese normativa que permite a atuação no domínio econômico visando à produção de
185 Constituição Federal, art. 173, § 4º. 186Cf. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402.
142
riquezas, à circulação de bens e à prestação de serviços voltados ao mercado. Dessa forma, a
livre iniciativa representa o exercício real do poder econômico pelos agentes.
Hugo de Brito Machado Segundo187, ainda em estudo sobre o tema,
conceitua o princípio da livre iniciativa como “a liberdade, conferida a todos, de exercer uma
atividade econômica, vale dizer, de produzir e disponibilizar a terceiros os recursos materiais
necessários ao bem-estar (através da prestação de serviços, a fabricação e comercialização de
bens, etc.)”
Sendo assim, o princípio da livre iniciativa atua como premissa para o
exercício das demais garantias constitucionais, o ponto de partida para aplicação e cogitação
dos demais princípios. Diego Bomfim188, ao tratar da matéria, expõe que “sem a presença da
livre iniciativa não há de se falar em livre concorrência, surgindo, nesse ponto, a identificação
da relação entre dois princípios, uma relação de desdobramento artificial em que o segundo
(livre concorrência) funciona como delineador do primeiro (livre iniciativa), numa relação
circular de autoingerência”.
Contudo, a liberdade de iniciativa deve ser considerada sempre nos limites
do próprio sistema jurídico, isso porque a possibilidade de exercer uma atividade econômica
livremente não significa exercer uma atividade econômica sem limites, ilimitada ou
desenfreada.
187Cf. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402. 188 Cf. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 175.
143
A ordem econômica delineada na Constituição Federal ao prever um rol de
princípios e valores que devem reger a atividade econômica, está estabelecendo os limites de
atuação dos setores - público e privado189 - no domínio econômico. Logo, a liberdade de
iniciativa fica atrelada às limitações veiculadas na própria Carta Magna de 1988. Entenda-se
por limites, o abstrato delineamento do sistema, a conformação190 entre os conteúdos jurídicos
dos valores que regem a ordem econômica constitucional.
Um dos limites constitucionais à livre iniciativa é o princípio da livre
concorrência, pois estranho seria se o agente econômico ao exercer o seu direito à livre
iniciativa provocasse discrepâncias no funcionamento da ordem econômica, impossibilitando
a livre concorrência – norma jurídica econômica de elevada carga axiológica.
A livre concorrência significa a garantia de as atividades econômicas serão
exercidas de modo que as habilidades de cada um determinem o seu êxito ou o seu insucesso,
não podendo o Estado, em princípio, favorecer ou desfavorecer artificialmente este ou aquele
agente econômico191. “Em outras palavras, o direito à livre concorrência é assegurado por
189 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros. 2004. “Importa deixar bem vincado que a livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. A Constituição, ao contemplar a livre iniciativa, a ela só opõe, ainda que não a exclua, a ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, assim, como bem pertinente apenas à empresa. É que a livre iniciativa é um modo de expressão do trabalho e, por isso mesmo, corolária da valorização do trabalho, do trabalho livre – como observa Miguel Reale Júnior – em uma sociedade livre e pluralista. Daí por que o art. 1º, IV do texto constitucional – de um lado – enuncia como fundamento da República Federativa do Brasil o valor social e não as virtualidades individuais da livre iniciativa e – de outro – o seu art. 170, caput coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa, curando contudo no sentido de que o primeiro seja valorizado.” p. 190. 190 Conformação que nada tem a ver com a relativização de princípios. Os princípios fundamentais da ordem econômica não admitem relativização, apenas a preservação ao máximo. 191 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402.
144
uma norma, com estrutura de mandamento de otimização, segundo a qual o Estado deve
garantir a todos, na medida do que for factual e juridicamente possível, o livre exercício de
atividade econômica, sem criar ou permitir interferências indevidas que prejudiquem a livre
competição dos cidadãos.” 192
5.2. O princípio da livre concorrência e a Lei nº 8.884/94
A Constituição Federal em seu art. 219 determina que “o mercado interno
integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento
cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País,
nos termos da lei federal.” Isso demonstra que o texto constitucional impõe a viabilização e
desenvolvimento econômico através de incentivos postos pela legislação federal.
Nesse contexto instituiu-se a Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, veículo
introdutor de normas jurídicas, com a finalidade de prevenir e reprimir193 as infrações contra a
ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais da liberdade de iniciativa, livre
concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do
192 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402. 193 Cf. BRAZUNA, José Luis Ribeiro. Defesa da Concorrência e Tributação – à luz do art. 146 – A da Constituição. Série Doutrina Tributária Vol. II. São Paulo: Quatier Latin. 2009. “Reconhecendo que a livre concorrência pode ser afetada tanto por falhas estruturais quanto por comportamentos dos agentes econômicos, a legislação brasileira aborda ambos os aspectos da defesa da concorrência, utilizando-se de instrumentos de prevenção e repressão concentrados nas Leis nºs 8.884/94, 9.279/96 e 8.137/90. Trata-se de instrumentos compulsórios de controle e imposição de comportamentos, o que configure intervenção estatal por direção sobre o domínio econômico.” p.90.
145
poder econômico (art. 1º). Lei esta que estabelece como titular dos bens jurídicos protegidos a
coletividade (parágrafo único do art. 1º).
Trata-se de lei voltada à preservação do modo de produção capitalista194, lei
que estabelece regras e procedimentos para proteção dos valores da ordem econômica,
elencados no art. 170 da Constituição Federal de 1988.
Sobre isso, Eros Roberto Grau195 prefere afirmar que:
“As regras da Lei 8.884/94 conferem concreção aos princípios da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico, tudo em coerência com a ideologia constitucional adotada pela Constituição de 1988. Esses princípios coexistem harmonicamente entre si, conformando-se, mutuamente, uns aos outros. Daí porque ao princípio da liberdade de concorrência ou da livre concorrência assume, no quadro da Constituição de 1988, sentido conformado pelos demais princípios por ela contemplados; seu conteúdo é determinado pela sua inserção em um contexto de princípios, no qual e com os quais subsistem em harmonia.”
Fala-se em livre concorrência no sentido de igualdade de condições de
competir, igualdade de condições entre os agentes econômicos que disputam o mesmo
mercado, tudo com o propósito de permitir o desenvolvimento econômico. “Não há que se
falar, portanto, em igualdade entre competidores, e sim de oportunidade de competir”. 196
194 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros. 2004. p.195. 195 Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros. 2004. p. 196/197. (destacamos). 196 Cf. BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 180.
146
Sobre o assunto, Ives Gandra da Silva Martins197 anota:
“Há descompetitividade empresarial e concorrência desleal sempre que ocorra sonegação tributária, visto que, neste ponto, a empresa que sonega leva incomensurável vantagem sobre seus concorrentes que pagam tributes. A questão mais grave acontece, se a empresa que sonega considera haver pequena possibilidade de ser fiscalizada, pela dificuldade de apuração de suas atividades, pela multiplicidade de contribuintes ou pelo tipo do produto que fabrica, com o que o Fisco, com quadro reduzido de agentes fiscais, torna-se impotente em combatê-la.”
Não por outro motivo, a Lei nº 8.884/94, lei antitruste, em seu art. 20, § 1º,
define que a conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência
de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito de dominação
de mercado relevante de bens ou serviços.
Sendo assim, não se trata de infração da ordem econômica toda e qualquer
manifestação dos agentes econômicos no sentido de aumentar a eficiência e o poder de
disputar espaço no mercado perante a concorrência. Pois o processo natural de
desenvolvimento e conquista de parcela do domínio econômico pela eficiência e respeito aos
valores constitucionais não fere as normas gerais da ordem econômica.
Tanto é assim que são consideradas infrações da ordem econômica, os atos,
sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir (ainda que não
sejam alcançados) os seguintes efeitos: (i) limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência e
a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante de bens e serviços (com a ressalva da
197 Cf. Obrigações acessórias no interesse da Fiscalização e da livre Concorrência entre empresas. Direito assegurado ao Fisco pelas Leis Suprema e Complementar. In Revista Dialética de Direito Tributário º. 105. 2004. p.130.
147
conquista pela efetividade); (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; (iv) exercer de forma
abusiva posição dominante - entenda-se por posição dominante o controle de parcela
significante ( > 20%) do mercado; (v) fixar ou praticar, em acordo com a concorrência, preços
e condições de venda - quartéis; (vi) adoção de conduta comercial uniforme; (vii) limitar ou
impedir acesso de novas empresas; dentre outros.
Pelo exposto, são consideradas infrações as manifestações de agentes
econômicos que ofendem de algum modo os princípios da ordem econômica, trazendo
prejuízos à coletividade – titular dos bens jurídicos protegidos pela Constituição de 1988 e
pela Lei antitruste.
5.2.1. CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica: algumas considerações
Lei nº. 8.884/94 foi editada com a finalidade de transformar o CADE -
Conselho Administrativo de Defesa Econômica198 – em Autarquia Federal dispor sobre a
prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos princípios
constitucionais da livre iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos
consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.
O CADE é uma Autarquia Federal vinculada ao Ministério da Justiça, órgão
judicante com jurisdição em todo território nacional. O Plenário do CADE é composto por um
Presidente e seis Conselheiros, nomeados pelo Presidente da República, com mandato de 2 198 Criado pela Lei nº. 4.137 de 10 de setembro de 1962.
148
(dois) anos, permitida uma recondução. Junto ao CADE funciona uma Procuradoria, chefiada
pelo Procurador-Geral, indicado pelo Ministro da Justiça e nomeado pelo Presidente da
República.
O Regimento Interno do Conselho, aprovado pela Resolução nº 12, de 31 de
março de 1998 estabelece as normas de funcionamento processual, incluindo os aspectos
relativos a sigilo, instrução do processo, julgamento, realização de sessões reservadas para
julgamento de recursos de ofício em Averiguações Preliminares, execução e disposições
gerais.
A principal atividade do CADE envolve a instrução de atos de concentração,
processos administrativos e consultas e, principalmente, seu julgamento. Dentre os processos
administrativos, verifica-se uma subdivisão em matérias a serem apreciadas pelo Colegiado:
são os processos administrativos propriamente ditos, os recursos voluntaries, pedidos de
reconsideração e impugnações em autos de infração, averiguações preliminares e
representações.
Ainda compete ao CADE: (i) zelar pela observância da lei e regimento
interno do Conselho; (ii) decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar
as penalidades previstas em lei; (iii) decidir os processos instaurados pela Secretaria de
Direito Econômico do Ministério da Justiça; (iv) decidir os recursos de ofício do Secretário da
SDE; (v) ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica; (vi)
aprovar os termos do compromisso de cessação de prática e do compromisso de desempenho,
bem como determinar à SDE que fiscalize seu cumprimento; (vii) apreciar em grau de recurso
149
as medidas preventivas adotadas pela SDE ou pelo Conselheiro-Relator; (viii) requisitar
informações de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades e entidades públicas ou privadas,
respeitando e mantendo o sigilo legal quando for o caso, bem como determinar as diligências
que se fizerem necessárias ao exercício das suas funções; (ix) requisitar dos órgãos do Poder
Executivo Federal e solicitar das autoridades dos Estados, Municípios, Distrito Federal e
Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta lei; (x) contratar a realização de
exames, vistorias e estudos, aprovando, em cada caso, os respectivos honorários profissionais
e demais despesas de processo, que deverão ser pagas pela empresa, se vier a ser punida nos
termos desta lei; (xi) apreciar os atos ou condutas, sob qualquer forma manifestados, sujeitos
à aprovação nos termos do art. 54, fixando compromisso de desempenho, quando for o caso;
(xii) responder a consultas sobre matéria de sua competência; (xiii) instruir o público sobre as
formas de infração da ordem econômica; além do desempenho de todas as atividades referente
ao funcionamento administrativo do Conselho.
5.3. O princípio da livre concorrência e o art. 146-A da Constituição Federal de 1988
Os princípios constitucionais – tributários ou da ordem econômica - estão
em constante comunicação, em uma permanente interação. Dentre os princípios da ordem
econômica elencados no texto constitucional, interessa-nos o princípio da livre concorrência.
150
Ricardo Lobo Torres199 afirma que “a concorrência ganhou estatura
constitucional com a Emenda nº. 42, de 19/12/2003, que acrescentou ao Texto Fundamental o
seguinte: Art. 146-A – Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação,
com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a
União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”.
Se a Carta Magna de 1988, em seu art. 146 – A, prescreve a possibilidade de
lei complementar estabelecer critérios especiais de tributação com a finalidade de assegurar o
princípio da livre concorrência, prevenindo distúrbios concorrenciais, então que critérios
especiais seriam esses?
Em se tratando de tributação, antes mesmo da Emenda Constitucional nº.
42/2003, o Estado só poderia exercer seu poder interventivo e fomentador respeitando a
legalidade, a capacidade contributiva, e os demais princípios constitucionais, inclusive, o
princípio da neutralidade concorrencial.
O Estado, na posição de titular da competência tributária, deve atuar com o
intuito de evitar desequilíbrios na livre concorrência, ainda que pra isso se valha de critérios
especiais de tributação – fórmulas para reduzir a evasão fiscal em determinados setores da
economia e com isso reduzir os desequilíbrios.200
199 Cf. Interação entre princípios constitucionais tributários e princípios da ordem econômica. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 493. 200 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 422.
151
A função do valor constitucional da neutralidade concorrencial do Estado é
impedir que os entes estatais interfiram de forma negativa a viabilização da livre
concorrência. A situação de ente público é a de atuar perante os agentes econômicos em
igualdade de condições, numa atitude imparcial de garantidor do equilíbrio da concorrência.
Esse princípio na neutralidade concorrencial, no âmbito tributário, reveste-se como
neutralidade tributária, segundo a qual o Estado não pode oferecer desequilíbrios entre
concorrentes em virtude da instituição de tributação desigual. 201 “Ao Estado Fiscal incumbe
não apenas se manter neutro frente à concorrência, mas também lhe compete promover o
ambiente propício ao desenvolvimento das forças do mercado.” 202
Do enunciado do art. 146-A da Constituição Federal de 1988 podemos
extrair normas de competência tributária, ou seja, valores que determinam: quem (União),
como (através de Lei Complementar) e o que (estabelecer critérios especiais de tributação)
deve ser praticado para atingir determinada finalidade (prevenir desequilíbrios da concorrência).
A Constituição de 1988, neste contexto, prevê a possibilidade de edição de
lei complementar que estabeleça normas gerais para a indicação dos critérios especiais de
tributação, tudo pautado nos limites para o exercício das competências, os valores
constitucionais – tributários e econômicos na medida da interação entre os referidos
subsistemas jurídicos. Por esta razão é que Diego Bomfim203 afirma que a edição do art. 146 -
201 Cf. BOMFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 202. 202 TORRES, Ricardo Lobo. Interação entre princípios constitucionais tributários e princípios da ordem econômica. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 494. 203 Cf. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva. 2011. p. 187
152
A da Constituição de 1988 serviu como reforço do entrelaçamento do direito tributário com o
direito econômico.
A ideia de neutralidade tributária, neste estudo, repousa na real influência da
tributação – direta ou indiretamente – nas decisões dos agentes econômicos, ou seja, na
influência da tributação sobre as atividades econômicas desenvolvidas pelos contribuintes.
Independente da função predominante – fiscal ou extrafiscal –, a tributação, inequivocamente,
gera efeitos econômicos, ainda que de forma indireta. Logo, não se cogita a possibilidade de
cogitar a tributação como um mero instrumento de arrecadação de recursos para os cofres
públicos que não provoca nenhuma repercussão no comportamento dos agentes econômicos,
sequer influências no domínio econômico.
Neste sentido, Humberto Ávila204 esclarece:
“(...) tanto os tributos com finalidade fiscal quanto aqueles com finalidade extrafiscal influem no comportamento dos contribuintes: os tributos com finalidade fiscal exercem uma influência indireta, na medida em que a cobrança maior ou menor estimula ou desestimula comportamentos, mesmo que isso não seja o propósito imediato da lei; os tributos com finalidade extrafiscal exercem influência direta, na medida em que visam precisamente a induzir o contribuinte a fazer ou deixar de fazer alguma coisa por meio da tributação.”
Destarte, a neutralidade tributária deve caminhar junto à neutralidade
concorrencial do Estado para traçar o exercício da competência tributária, seja com pretensão
fiscal ou extrafiscal, tudo para usar o poder estatal com imparcialidade e a favor de uma
política tributária que previna e repreenda, quando for o caso, desequilíbrios e ofensas ao
204 Cf. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo: Malheiros. 2008. p. 97 - 98
153
valor constitucional da livre concorrência, sempre respeitando a igualdade de condições, sem
diferenciações tributárias entre os agentes econômicos que praticam a mesma atividade.
Do exposto, a livre concorrência, aliada à neutralidade e igualdade
tributária, deve atuar como um vetor de conformação da tributação impedindo discriminações
não homologadas pelo sistema jurídico.
154
TERCEIRA PARTE: CONCLUSÕES
1. A sociedade é um sistema comunicacional em constante evolução.
2. A comunicação, neste contexto, toma a consistência intersubjetiva de
mecanismo de transmissão de mensagens, cujo conteúdo reflete, a cada tempo, expectativas
evolutivas que se renovam.
3. A cada contexto histórico estaticamente demarcado, é possível
visualizarmos diversas situações novas inaugurando diferentes necessidades; circunstâncias
essas que exigem novos mecanismos de harmonização das relações intra-sistêmicas e
intersubsistêmicas, assumindo a função de reduzir as complexidades e administrar a
contingência do mundo, tudo por intermédio do mais alto grau de diferenciação comunicativa.
4. Contingência é expressão da lógica formal utilizada para demonstrar a
existência de um universo fático de absoluta diversidade, onde o futuro é imprevisível e
incontrolável, e que a qualquer tempo as possibilidades poderão se tornar impossibilidades ou
vice-versa.
5. A sociedade moderna é formada por um conjunto plural de esquemas
comunicativos autônomos.
6. Mesmo autônomo-independentes, os arquétipos comunicativos do
sistema social precisam realizar vínculos entre si (contatos), a fim de recepcionar
internamente as mudanças do entorno. Para isso precisam elaborar mecanismos internos que
garantam a efetiva continuidade da comunicação, e é nesse sentido que cogitamos a real
155
possibilidade de interdependência cognoscitiva e independência operativa dos sistemas
parciais.
7. O sistema jurídico, assim como os demais sistemas, em que pese o seu
fechamento sintático, apresenta uma abertura semântico-pragmática que assimila as diversas
determinações do ambiente e as insere no sistema sempre que seus próprios critérios
atribuem-lhes forma.
8. De uma perspectiva funcional do direito, o que se observa é uma
acentuada e contínua intersecção entre os subsistemas sociais. No específico caso dos
subsistemas jurídicos: tributário e concorrencial/econômico, a situação não é diferente.
9. O direito tributário é o instrumento legitimador de políticas fiscais, é o
instrumento normativo à disposição do Estado para a intervenção no domínio econômico e
concretização de direitos sociais.
10. É através das formas de tributação que é possível evitar distorções
econômicas (concorrenciais), tendo em vista que qualquer atividade fiscal afeta direta ou
indiretamente as relações econômicas, bem como todas as demais relações sociais, tais como
impactos financeiros em orçamentos de entes tributantes e na própria coletividade de cidadãos
que têm serviços públicos custeados pela tributação, etc.
11. A política fiscal caminha na dinâmica dos acontecimentos sociais,
evoluindo e redefinindo complexidades para atender aos interesses dos indivíduos em
constante mudança. É a ação do Estado que impulsiona o aperfeiçoamento das regras jurídicas
e otimiza o ajuste de interesses públicos e privados.
156
12. A delimitação sintático-formal do sistema é traçada o primeiro
momento, pela intuição.
13. O sistema é uma construção intelectiva, o mais alto grau de sofisticação
do pensamento humano
14. A construção de uma ordem, inicialmente intuitiva, capaz de articular a
ideia de sistema, é que viabiliza o mapeamento da realidade, o fornecimento de mecanismos
de intervenção nos planos racionalmente dispostos e a elaboração de uma arquitetura de
relações compatíveis com a concretização de um sistema sociocultural.
15. É pelo mecanismo intuitivo (sensibilidade, emoção e intelecção) que se
realizará a fixação e catalogação das aparências parciais do ambiente/mundo e que se
construirá abstratamente uma categoria provida de altíssima sofisticação – verdadeiras
construções intelectivas elaboradas a partir da coleta de elementos empíricos – e que
chamaremos de sistema.
16. Nesta faixa cognitiva de compreensão do conceito de sistema, de coleta
empírica de dados e necessária ordenação em categorias, é que poderemos vislumbrar a
sociedade como um sistema, e todas as demais categorias existentes insertas como
subsistemas sociais, separados estruturalmente e autônomos em virtude de funções e
linguagens distintas.
17. O sistema é construção intelectiva que elege uma das perspectivas do
ambiente, cujo resultado é a identificação e reunião de elementos que se encontram
interligados por um código universal: a comunicação. Logo, o ambiente é mais complexo que
157
o sistema, apresenta dimensões infinitamente mais amplas, e que o homem é um elemento
atuante no sistema, não um dado comunicacional, é agente viabilizador da comunicação.
18. O sistema jurídico é um subsistema social.
19. Enquanto subsistema social, o sistema jurídico assume todos os perfis
conceptuais inerentes à noção de sistema, inclusive, o aspecto comunicacional, o fechamento
operativo-sintático e o mecanismo autônomo e ininterrupto de autopoiesis.
20. Os elementos cuidadosamente eleitos como caracterizadores da ideia de
sistema (aspecto comunicacional, o fechamento operativo-sintático e o mecanismo autônomo
e ininterrupto de autopoiesis) passam a ser critérios exigidos para inclusão dos subsistemas na
classe (conjunto) do macrossistema social, surgindo, portanto, uma relação lógica de
pertinência.
21. Linguagem é instrumento da comunicação; é toda manifestação capaz
de realizar acoplamentos entre as estruturas sistêmicas; é mensagem com sentido.
22. A linguagem jurídica é forma de constituição da realidade jurídica.
23. Toda forma de manifestação humana implica linguagem, que
verbalizada em palavras, formam enunciados com sentido.
24. Os textos jurídicos (conjunto de palavras) devem se mostrar escritos,
uma vez que é requisito essencial à legitimidade das construções linguísticas, i. e, um dos
critérios de inclusão na classe do ordenamento jurídico.
25. A forma estabelecida é aquela que se mostra em linguagem
competente, ingressando no sistema a partir de um procedimento legítimo.
158
26. Sempre que observados os enunciados jurídicos, cogitamos a existência
de um esquema formal composto por três elementos: 1) Hipótese fática, 2) implicação (modal
deôntico: dever-ser) e, 3) Consequência jurídica. Esquema sintático que denominamos de
norma jurídica.
27. Hipótese fática (H) Consequência jurídica (C)
28. As normas jurídicas são as unidades elementares do ordenamento
jurídico.
29. As normas jurídicas seriam o resultado da atividade interpretativa dos
sujeitos competentes e aptos para aplicar o direito. Apresentam construções lógico-formais
predominantemente homogêneas, entretanto, heterogêneas em termos semânticos e
pragmáticos.
30. A concepção homogênea compreende o ordenamento como um sistema
de normas jurídicas, cuja estrutura lógico-formal obedece ao perfil sintático de uma hipótese
implicando uma consequência (H C).
31. A grande marca da sociedade moderna é a inequívoca necessidade de
atribuir papeis especializados, é a identificação funcional caracterizando e diferençando
sistemas, reduzindo complexidades.
32. Os mecanismos da sociedade diferenciada elegem o aspecto funcional
como efetivo meio capaz de propagar o desenvolvimento e garantir as implicações recíprocas
intra-sistêmicas. Função capaz de diferenciar os subsistemas entre si, construindo universos
operativamente fechados, auto-reprodutivos com amarras reacionárias. Subsistemas com
159
estruturas fechadas que estabelecem diferenças não só através das funções e dos códigos
binários, mas também dos meios, programas e operações diferenciadas.
33. O sistema tributário exerce suas funções com o fim de promover a
transformação e desenvolvimento através do exercício da fiscalidade e da extrafiscalidade.
34. As funções são exercidas de modo preponderante, motivo pelo qual um
tributo deve ser analisado sem a insistência de exclusividade de funções, fiscais e extrafiscais.
35. Os enunciados atribuídos pela Carta Magna à ordem econômica
preconizam a introdução dos princípios e valores que devem orientar a produção normativa
indutoras de efeitos econômicos e até mesmo aquelas de natureza jurídica voltada aos fatos
econômicos.
36. O núcleo de um sistema econômico volta-se para os conceitos de
propriedade privada e liberdade contratual, estes que em si regulados já seria suficientes para
promover limites à ordem econômica material.
37. Os princípios enunciados no art. 170 da CF/88 são limites ao poder de
legislar, ao livre poder de contratar, à atuação e intervenção do Estado na economia, inclusive,
são limites ao poder de instituir e exonerar tributos – poder de tributar.
38. O domínio econômico refere-se à parcela do mundo do ser – relações
sociais relacionadas à produção, circulação de bens e prestação de serviços voltados para o
mercado – regulado pelas normas jurídicas que compõem a ordem econômica.
39. O direito, para processar a realidade econômica e exercer seu poder
regulatório, necessita produzir linguagem prescritiva que se adeque à realidade descrita,
normas dirigidas à regulação pelo Estado do domínio econômico.
160
40. É o sistema jurídico atuando como poder, como controlador das
relações, inclusive no processo de desenvolvimento econômico, ou seja, é o direito agindo
como instrumento dos fatores econômicos (propriedade, contrato, lucros, preços, etc.),
protegendo os negócios, reprimindo os abusos e assegurando as condutas através do viés de
previsibilidade próprio do direito frente ao universo mutante dos fatos.
41. Ao prescrever o comportamento social, conduzindo as condutas
intersubjetivas pelo caminho da “justiça”, o direito aperfeiçoa os elementos do entorno
revestindo-lhes de uma forma propriamente jurídica capaz de causar efeitos de transformação,
ainda que mediata.
42. A lei é o instrumento sintático de inserção de dados-de-fato dentro do
sistema jurídico, o texto positivo. As normas jurídicas são o conteúdo construído a partir da
análise desses enunciados prescritivos.
43. O Estado se manifesta através do direito, e é por meio dele que
consegue conduzir os comportamentos intersubjetivos da direção dos ditames prescritivos
dispostos na ordem jurídica vigente. Nesta medida, é o direito o único sistema que ostenta
como instrumento operativo a coercitividade, capaz de aplicar sanções àqueles que
descumprirem seus mandamentos.
44. O sistema jurídico intervêm no sistema econômico a partir de contínuos
estímulos inter-sistêmicos induzidos por normas jurídicas. O sistema econômico, por sua vez,
reage processando as regras e aplicando-as de acordo com seus próprios critérios. Sendo
assim, é inegável que a liberdade econômica fica limitada pela ordem normativa do Estado de
161
Direito, a ordem econômica constitucional, assim como toda e qualquer manifestação social
regulada normativamente.
45. Para que a ordem econômica possa alcançar uma boa sinergia
sistêmica, é necessário que os valores jurídicos positivados para a economia sejam validados e
processados pelos atos econômicos, pois é pelo poder coercitivo da ordem jurídica que a
economia pode garantir o alcance da livre concorrência, da divisão de trabalho, da
neutralidade concorrencial estatal, da igualdade tributária, etc.
46. O domínio econômico é autônomo e se articula com seus próprios
critérios, o que o torna auto-regulável (perspectiva endógena). Nesse contexto, o direito
(sistema jurídico) ingressa como instrumento interventivo do Estado na regulação, inibição
(intervenção negativa) ou no estímulo de fatos econômicos (intervenção positiva),
descontinuando a ordem espontânea desses fatos.
47. O Sistema jurídico é formado por um conjunto de normas jurídicas
prescritivas. A natureza jurídica das normas se deve à necessária obediência aos critérios de
pertinencialidade dispostos no próprio sistema jurídico.
48. O Sistema jurídico, em sua completude, pretende-se detentor de normas
jurídicas que possam ser fundamento de validade de outras novas normas jurídicas,
estabelecendo como e de que forma deve se dá esse cíclico mecanismo de criação normativa.
49. As normas jurídicas são um esquema de interpretação, motivo pelo
qual situa a posição cognoscente do cientista do direito na direção dos instrumentos
prescritivos que conferem juridicidade aos fatos e atos praticados pelo homem social.
162
50. Destarte, se as normas jurídicas prescrevem condutas humanas em seu
sentido amplo, então as normas jurídicas também regulam a sua própria criação, pois a
competência ou o poder para intervir na produção de normas jurídicas concretiza-se através da
conduta humana. É a chamada auto-referencialidade do sistema, ou seja, a capacidade que o
sistema jurídico tem de falar sobre si mesmo, através das chamadas normas de competência.
51. O caráter auto-referencial do sistema jurídico – auto-
regulação/autopoiesis – não implica uma classificação cujo critério seja “regular
comportamento/não – regular comportamento”. Todas as normas do sistema jurídico regulam
comportamento.
52. Pela perspectiva da Teoria Comunicacional do Direito, numa atitude
atenta à funcionalidade comunicativa das entidades linguístico-prescritivas denominadas
normas jurídicas, não se admitem normas que não orientem a ação, muito pelo contrário,
todas as normas são construídas para orientar a ação humana, só que umas de modo indireto,
outras orientam diretamente os comportamentos.
53. O conceito de ação é intrínseco ao conceito de sistema jurídico. Tudo
no direito leva à ação humana. Toda regra jurídica se põe em função da ação humana.
54. A ação é o significado de um conjunto de movimentos interiores (atos
de consciência) e exteriores (manifestações concretas), um entrelaçar de atos e movimentos,
que juntos oferecem suporte ao labor hermenêutico de construção de um significado.
55. Ação é objeto regulado. Norma é instrumento regulador. Relação de
interdependência recíproca.
163
56. Uma ação será considerada jurídica sempre que houver uma norma
jurídica que a regule, sem norma uma ação não ingressa no sistema jurídico, reside numa
região não-jurídica, portanto, fora dos limites sistêmicos do direito.
57. As normas ônticas são entidades do sistema que se dirigem às
condições mínimas da ação.
58. As regras ônticas são resultado de um ato de decisão que cria uma
realidade convencional, motivo pelo qual jamais estarão sujeitas aos valores: verdadeiro ou
falso.
59. As normas jurídicas que têm como função a determinação das
condições “a priori” da ação: espaço, tempo, sujeitos e competências, são regidas pelo nexo
verbal “ser” em sentido diretivo/prescritivo e denominadas de normas jurídicas ônticas.
60. As normas ônticas de competência são aquelas que definem os sujeitos
que podem desempenhar um conjunto de ações juridicamente possíveis, ou seja, prescrevem
os poderes, o conteúdo e a forma do seu exercício, delimitando as ações potenciais dos
sujeitos.
61. Competência, portanto, é a capacidade de realizar uma ação, é a
atribuição de um poder convencional.
62. As normas jurídicas de competência, por tudo quando exposto, ocupam
o universo estrutural ôntico do sistema jurídico, pois são normas jurídicas ônticas que não
prescrevem procedimentos, nem obrigações, permissões ou proibições, muito pelo contrário,
são entidades linguísticas prescritivas anteriores à ação e que exercem a função de vetor das
manifestações intersubjetivas juridicamente reguladas. As normas de competência devem ser
164
consideradas normas indiretas da ação, na medida em que são construídas para orientar a
criação da outras normas jurídicas.
63. No Brasil, a competência tributária é um tema exaustivamente tratado
pela Constituição Federal de 1988, ao definir os meandros do poder de tributar, o modo de
produção das normas tributárias e quem é competente para editá-las.
64. Ao demarcar a regra matriz de incidência dos tributos, a Constituição
Federal de 1988 prescreve verdadeiras regras que talham a liberdade do legislador ordinário
no exercitar das habilitações para tributar, impondo-lhe limites materiais e formais
intransponíveis.
65. As normas de competência tributária, dessa forma, definem o conteúdo
semântico mínimo de cada tributo, que deve ser obrigatoriamente respeitado pelos sujeitos
(pessoas políticas) aptos a exercer o poder de tributar.
66. O legislador infraconstitucional não pode transitar livremente em
matérias que envolvam normas de competência, pois o conteúdo e o alcance das normas
tributárias de competência são matérias exclusivas da Constituição Federal.
67. O legislador para exercer as competências constitucionais de tributar
deve atentar com rigidez para as regras e princípios da tributação, sem olvidar os demais
princípios prestigiados pela Constituição Federal de 1988.
68. Prestigiar os princípios da tributação não implica o afastamento dos
princípios que regem a ordem econômica constitucional, pois os textos constitucionais não
devem ser tratados como capítulos estanques de realidades distintas.
165
69. O exercício da competência tributária, seja para instituir ou exonerar
tributos, deve atentar para a harmônica relação entre as ordens constitucionalmente
disciplinadas, sob pena de prescrever mandamentos inconstitucionais.
70. A convivência harmônica dos subsistemas jurídicos consiste no
respeito às regras constitucionais, no exercício das competências materiais e formais em
conformidade com os ditames previstos na Carta Magna.
71. O subsistema tributário, assim como o subsistema econômico, é
autopoiético, opera com código binário próprio, exercem funções diferentes, ainda que devam
convergir para a funcionalidade do macro-sistema jurídico. Essa afirmativa não implica dizer
que os subsistemas são estanques ou fechados, significa apenas que em termos sintáticos cada
subsistema apresenta categorias exclusivas e inconfundíveis. Entretanto, semântica e
pragmaticamente os subsistemas interagem, noutros termos, induzem efeitos entre si.
72. As normas tributárias induzem um comportamento econômico de modo
que serão constitucionais quando construídas, editadas ou modificadas em consonância com
os princípios das ordens tributária e econômica constitucionais, devendo, portanto, preservar
os interesses do sistema constitucional, intervindo positivamente no entorno social a fim de
equilibrar as desigualdades.
73. O rol de garantias suso transcrito e o tracejar das competências no texto
constitucional, além de oferecerem previsibilidade quanto a eventuais atos harmônicos dos
poderes executivo legislativo e judiciário, devem inaugurar um universo de segurança jurídica
para os contribuintes que não poderão ser tributados por fatos que sequer estão regulados por
166
normas jurídicas constitucionais, sequer a tributação poderá contribuir com o aumento das
desigualdades.
74. A aptidão para criar tributos (o poder para estabelecer e aplicar normas)
permeia a chamada competência material, enquanto os procedimentos específicos para essa
criação (quem e como deve ser instituído o tributo) são delineados por uma competência
formal, daí os limites materiais e formais ao exercício do poder de tributar. Não por outro
motivo, as imunidades tributárias fazem parte do conjunto de competências materiais, pois
são elas que estabelecem o alcance e os limites ao poder de tributar, sem que isso signifique a
exclusão ou supressão de competência tributária.
75. As imunidades tributárias definem os campos de competência das
entidades tributantes, e não a possibilidade de incidência da norma tributária já criada pela
entidade tributante (competente para instituir e revogar tributos) numa sucessividade lógica.
76. As imunidades seriam normas de competência dirigidas ao legislador
ordinário, que compõem o tracejo emblemático da distribuição constitucional das
competências tributárias. Obviamente, que uma regra que poda uma competência que se
pretendia mais ampla, está limitando-a, e limitar, neste contexto, significa colaborar com o
desenho do quadro de competências impondo dispositivos vedatórios ou proibitivos.
77. A imunidade recíproca “é uma decorrência pronta e imediata do
postulado da isonomia dos entes constitucionais, sustentado pela estrutura federativa do
Estado brasileiro e pela autonomia dos Municípios.” 205, ou seja, a verdadeira expressão do
princípio federativo, imutável por meio de emenda à Constituição (art. 60, § 4º da CF/88).
205 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18ª edição. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 238.
167
78. A imunidade recíproca é um instituto constitucional posto no sistema
jurídico para promover incentivos à prestação dos serviços públicos, impedindo que a
tributação afete o alcance das finalidades essenciais do estado, interferindo na própria
autonomia dos estados.
79. A imunidade recíproca será extensiva ao patrimônio, à renda e aos
serviços das autarquias e fundações das entidades políticas integrantes da Federação somente
se estiverem vinculados às finalidades essenciais do exercício do poder público ou às delas
decorrentes.
80. Se o patrimônio, a renda e os serviços estiverem relacionados à
exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos
privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, não
se aplica a imunidade recíproca prevista no art. 151, VI, “a” da CF/88, nem exonera o
promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
81. Existem pelo menos duas hipóteses previstas na Carta de 1988 em que
não se aplica a proteção da imunidade recíproca à tributação do patrimônio, da renda ou dos
serviços dos entes públicos – União, Estados e Municípios, quais sejam: (i) quando o
patrimônio, a renda e os serviços estiverem relacionados à exploração de atividades
econômicas regidas por regras aplicadas às empresas privadas, e (ii) quando houver
contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.
82. A exploração de atividade econômica com fins lucrativos pelos entes
públicos situa-os em par de igualdades com as empresas privadas que desenvolvem a mesma
168
atividade, por isso que também se explica o motivo pelo qual se excluem da imunidade
recíproca as empresas públicas organizadas em regime de direito privado.
83. Isso significa que o imóvel, pertencente ao ente público, utilizado por
empresa privada revendedora de veículos automotores com fins lucrativos, não poderia estar
sujeito à imunidade recíproca, pois violaria a liberdade de iniciativa, provocando
discrepâncias no funcionamento da ordem econômica e a consequente inviabilidade da prática
da livre concorrência.
84. O conjunto de normas gerais da atividade econômica deve ser aplicado
com a finalidade precípua de reprimir o abuso do poder econômico, a dominação dos
mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros. E a livre
concorrência significa a garantia de que as atividades econômicas serão exercidas de modo
que as habilidades de cada um determinem o seu êxito ou o seu insucesso, não podendo o
Estado, em princípio, favorecer ou desfavorecer artificialmente este ou aquele agente
econômico206.
85. Quando as sociedades de economia mista desenvolvem uma atividade
econômica elas precisam obedecer às normas constitucionais de livre iniciativa e livre
concorrência, sujeitando-se às normas aplicáveis aos empreendimentos privados e ao regime
tributário que lhes é comum. Ainda que as referidas sociedades tenham participação do
Estado, elas não gozam de privilégios ou prerrogativas inerentes aos entes públicos, pois para
206 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402.
169
garantir a competitividade no mercado, qualquer tipo de benefício somente será concedido por
intermédio de lei específica.
86. O exercício de serviços públicos de forma exclusiva por empresas
públicas e sociedades de economia mista é capaz de caracterizá-lo como serviço de ente
público que deve ser alcançado pela proteção constitucional da imunidade recíproca. Pois, a
circunstância de serem revestidas da natureza de empresa pública ou sociedade de economia
mista não lhes retira a condição de pessoas administrativas, que agem em nome do Estado,
para consecução do bem comum.
87. A regra constitucional que lhes alcança não é aquela prevista no § 3º do
art. 150, VI da CF/88, mas o § 2º que afirma a extensão da imunidade recíproca às autarquias
e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda
e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. Assim, por
titularizar interesses públicos, as pessoas administrativas delegatárias de serviços públicos
quando desempenharem típicas funções típicas, devem ser alcançadas pelo benefício
constitucional da imunidade recíproca.
88. Quando as empresas públicas ou sociedades de economia mista são, por
lei, delegatárias de serviços públicos ou de poder de polícia, elas não ofereceriam risco à livre
concorrência ou à livre iniciativa, pois exercem o papel de entidades públicas, fazendo as
vezes de autarquias, ainda que com elas não se confundam.
89. A empresa pública explora atividade econômica com fins lucrativos,
não exercem serviço público, sequer explora a atividade em prol do bem comum, com o
intuito de alcançar as finalidades essenciais do Estado. Nessas circunstâncias, a Empresa
170
Pública que veste os trajes de empresa tipicamente privada, obstinando lucro e regida por
todas as regras de direito privado, jamais podendo ser equiparada às entidades políticas
prepostas à atividade administrativa, não podendo, destarte, ter os serviços não postais
alcançados pela imunidade tributária recíproca. Pois, se assim o fosse, representaria a
homologação da concorrência desleal, uma afronta à livre iniciativa e a todos os princípios
que regem a ordem econômica.
90. Por templo, deve-se entender, além do edifício público destinado ao
culto religioso, ou seja, o local destinado às cerimônias religiosas, a entidade mantenedora dos
templos. Pois a Constituição visa proteger as manifestações de fé e fomentar a religiosidade
das pessoas, através da não tributação da liberdade e isonomia de crenças. É inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo livre o exercício dos cultos religiosos e protegidos
os locais de culto e liturgias (art. 5º, VI, da CF/88). E ainda, ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII, da CF/88). E para viabilizar tudo isso, a
Constituição veda, por meio das imunidades tributárias, a cobrança de qualquer imposto sobre
os templos de qualquer culto.
91. Na hipótese de as entidades mantenedoras dos templos e cultos
religiosos explorarem atividades tipicamente comerciais, visando auferir renda ou lucro, a
imunidade tributária não deve alcançá-las, pois não se trata do exercício de funções essenciais
ao culto.
92. O reflexo da extensão das imunidades recíprocas nos domínios da
concorrência e da livre-iniciativa é o que mais preocupa neste universo de alcance de
171
benefícios, uma vez que estar-se-ia oferecendo às empresas públicas e sociedades de
economia mista o desfrute de privilégios fiscais não aplicáveis a todo o setor privado. Pois, é
inequívoco que o privilégio fiscal teria o condão de desonerar as atividades econômicas
desenvolvidas pelo Estado em relação às mesmas atividades desenvolvidas pelas empresas
privadas não alcançadas por tais privilégios, o que representaria a decretação de um universo
de concorrência desleal.
93. A ordem econômica constitucional, prevista no art.170, da Constituição
Federal de 1988, encontra-se solidamente estabelecida para garantir a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da livre concorrência,
pleno emprego, propriedade privada, soberania nacional, dentre outros.
94. A ordem jurídica econômica atua na regulação dos fatos econômicos,
como um conjunto de mecanismos de que regulam o sistema econômico, numa implantação
prescritiva de enunciados que orientam as condutas intersubjetivas.
95. A livre iniciativa é um princípio que informa a liberdade, seja na
escolha de meios, seja na escolha dos fins almejados pelo particular no desenvolvimento de
uma atividade economia. É norma jurídica com elevada abrangência semântica e flexível
hipótese normativa que permite a atuação no domínio econômico visando à produção de
riquezas, à circulação de bens e à prestação de serviços voltados ao mercado. Dessa forma, a
livre iniciativa representa o exercício real do poder econômico pelos agentes.
96. A liberdade de iniciativa deve ser considerada sempre nos limites do
próprio sistema jurídico, isso porque a possibilidade de exercer uma atividade econômica
172
livremente não significa exercer uma atividade econômica sem limites, ilimitada ou
desenfreada.
97. A ordem econômica delineada na Constituição Federal ao prever um
rol de princípios e valores que devem reger a atividade econômica, está estabelecendo os
limites de atuação dos setores - público e privado - no domínio econômico.
98. A livre concorrência significa a garantia de as atividades econômicas
serão exercidas de modo que as habilidades de cada um determinem o seu êxito ou o seu
insucesso, não podendo o Estado, em princípio, favorecer ou desfavorecer artificialmente este
ou aquele agente econômico. “Em outras palavras, o direito à livre concorrência é assegurado
por uma norma, com estrutura de mandamento de otimização, segundo a qual o Estado deve
garantir a todos, na medida do que for factual e juridicamente possível, o livre exercício de
atividade econômica, sem criar ou permitir interferências indevidas que prejudiquem a livre
competição dos cidadãos.” 207
99. A Constituição Federal em seu art. 219 determina que “o mercado
interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o
desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia
tecnológica do País, nos termos da lei federal.” Isso demonstra que o texto constitucional
impõe a viabilização e desenvolvimento econômico através de incentivos postos pela
legislação federal.
207 Cf. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Tributação e livre concorrência. In Princípios e Limites da Tributação 2 – Os princípios da ordem econômica e da tributação. Coordenação: Roberto Ferraz. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p. 402.
173
100. Fala-se em livre concorrência no sentido de igualdade de condições
de competir, igualdade de condições entre os agentes econômicos que disputam o mesmo
mercado, tudo com o propósito de permitir o desenvolvimento econômico.
101. A Lei nº 8.884/94, lei antitruste, em seu art. 20, § 1º, define que a
conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente
econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito de dominação de mercado
relevante de bens ou serviços.
102. Não se trata de infração da ordem econômica toda e qualquer
manifestação dos agentes econômicos no sentido de aumentar a eficiência e o poder de
disputar espaço no mercado perante a concorrência. Pois o processo natural de
desenvolvimento e conquista de parcela do domínio econômico pela eficiência e respeito aos
valores constitucionais não fere as normas gerais da ordem econômica.
103. Os princípios constitucionais – tributários ou da ordem econômica -
estão em constante comunicação, em uma permanente interação. Dentre os princípios da
ordem econômica elencados no texto constitucional, interessa-nos o princípio da livre
concorrência.
104. A função do valor constitucional da neutralidade concorrencial do
Estado é impedir que os entes estatais interfiram de forma negativa a viabilização da livre
concorrência. A situação de ente público é a de atuar perante os agentes econômicos em
igualdade de condições, numa atitude imparcial de garantidor do equilíbrio da concorrência.
174
105. A ideia de neutralidade tributária, neste estudo, repousa na real
influência da tributação – direta ou indiretamente – nas decisões dos agentes econômicos, ou
seja, na influência da tributação sobre as atividades econômicas desenvolvidas pelos
contribuintes. Independente da função predominante – fiscal ou extrafiscal –, a tributação,
inequivocamente, gera efeitos econômicos, ainda que de forma indireta.
106. A neutralidade tributária deve caminhar junto à neutralidade
concorrencial do Estado para traçar o exercício da competência tributária, seja com pretensão
fiscal ou extrafiscal, tudo para usar o poder estatal com imparcialidade e a favor de uma
política tributária que previna e repreenda, quando for o caso, desequilíbrios e ofensas ao
valor constitucional da livre concorrência, sempre respeitando a igualdade de condições, sem
diferenciações tributárias entre os agentes econômicos que praticam a mesma atividade.
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