Compre rápido, compre muito, compre mais -...

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• Compre rápido, compre muito, compre mais:com 80 bilhões de peças de roupas vendidaspor ano, a indústria da moda mantém afórmula que combina o consumo desenfreadocom a exploração da mão de obra escrava. Evocê é parte do problema (e da solução).

• Dizem que cada vida tem suas rosas eespinhos. No caso de Stephen Blackpool,houve algum engano, porque alguém receberasuas rosas e ele ficara com os espinhos dessealguém, além dos dele.

• Homem encurvado, de testa enrugada eaparência dura, trabalhava em um tearmecânico – era uma mão entre centenas deoutras que ajudavam os motores dasmáquinas a transformar algodão em tecido.

• Quando publicou Tempos Difíceis, em 1854, oescritor britânico Charles Dickens utilizou ahistória de personagens como Blackpool paradescrever as mudanças econômicas e sociaisvividas pela Inglaterra do século 19, quando acriação da máquina a vapor aumentou aprodução de mercadorias de modoexponencial.

• Com a tecnologia veio uma nova relaçãoeconômica, fundamentada em uma troca: osoperários cediam seu tempo e a força detrabalho enquanto os donos das fábricasofereciam um salário pago mensalmente.

• Negociação que não era das mais justas, secontar o expediente de 14 horas por dia, oambiente infestado pela fumaça do carvãoque alimentava os teares mecânicos, o riscode morrer com a má operação da máquina e,claro, a baixa remuneração oferecida: umaínfima parte dos ganhos do patrão

• O problema é que, mesmo após mais de 160anos da publicação da obra, a história deStephen Blackpool ainda não se tornouassunto restrito às discussões acadêmicas deliteratura.

Em recente operação que fiscalizou oficinassubcontratadas de fabricante de roupas da Zara,15 pessoas, incluindo uma adolescente de 14anos, foram libertadas de trabalho escravocontemporâneo em plena capital paulista.

Para sair da oficina que também era moradia, era preciso pedir autorização

Unique Chic

Entre os 19 trabalhadores libertados estava umadolescente. Todos eram peruanos. A inspeçãoaconteceu após um deles procurar asautoridades reclamando ter apanhado doempregador. O dono da oficina, que retinha osdocumentos dos trabalhadores para que elesnão fossem embora.

Atmosfera

O dono de uma oficina de costura localizada emCabreúva (SP) tentou vender dois trabalhadoresimigrantes como escravos no bairro do Brás, naregião central de São Paulo. O proprietário daconfecção em questão admitiu ao Grupo Especial deFiscalização Móvel ter pago a passagem de ambos emais um terceiro, e afirmou que os apresentou nacapital para tentar “ajudá-los” a conseguir outroemprego. A oficina produzia para a Atmosfera,empresa que atende indústrias, hospitais e hotéis, eé considerada uma das principais do setor no país.

M.Officer

M.Officer

Em julho de 2014, o MPT protocolou uma açãocivil pública que determinava multa no valor R$10 milhões contra a marca M.Officer, depois deuma investigação que percorreu diferentespontos da cadeia produtiva de roupas daempresa.

Imigrantes paraguaios e bolivianos trabalhavamno local, que também servia de residência — noquarto da família de origem boliviana haviaapenas uma cama, em que dormia o casal eduas crianças. As condições de trabalho, saúde esegurança eram péssimas: instalação elétrica emmás condições e material altamente inflamávelsem a devida segurança. Na única janelaexistente e que tinha visibilidade para a rua,havia um pano cobrindo a vista.

Os imigrantes tinham uma jornada diária quese iniciava às 7 horas e se estendia até às 22horas, e eram remunerados de acordo com aprodução das peças, recebendo R$ 850 por mês,em média. – FATO OCORRIDO EM 2013

2014

• Em um imóvel aparentemente residencial, seisbolivianos trabalhavam em condiçõessemelhantes às da primeira inspeção — osauditores apreenderam duas peças-piloto damarca, um blazer e uma calça, que possuíamficha técnica com instruções sobre medidas,tamanho e técnica do corte.

• Os agentes públicos encontraram documentoscom particularidades no contrato: peças sujasteriam desconto de R$ 1, enquanto costuraserradas receberiam a penalização de R$ 0,50por peça. A marca encomendou a produçãode 331 calças a uma fornecedora, pagando ovalor unitário de R$ 52. Essa empresaterceirizou o trabalho para a oficina da VilaSanta Inês, com um pagamento de R$ 13 peloserviço — deste valor, apenas um terço eradestinado aos funcionários (R$ 4,33).

• Cada trabalhador produzia de 110 a 190unidades por mês e a remuneração era feitaapenas no momento em que a encomendaera paga, o que podia demorar mais de ummês. Para pagar as contas, os imigrantesrecorriam a vales feitos com o dono da oficina,em que os valores eram anotados edescontados de seus ganhos

Pernambucanas

A casa branca, localizada em uma rua tranquilada Zona Norte da capital paulista, não levantavasuspeita. Dentro dela, no entanto, 16 pessoasvindas da Bolívia viviam e eram explorados emcondições de escravidão contemporânea nafabricação de roupas. O grupo costurava blusasda coleção Outono-Inverno da Argonaut, marcajovem da tradicional Pernambucanas

Caso mais recente...

Ministério flagra trabalho escravo e infantil naBrooksfield Donna: Auditores encontraramcinco trabalhadores bolivianos na pequenaoficina no bairro de Aricanduva, em São Paulo

Fonte: Folha de São Paulo (20/06/2016)

• O Tribunal Superior do Trabalho condenouuma confecção ligada ao grupo Riachuelo apagar uma indenização no valor de R$ 10 mil auma funcionária que ganhava um salário deR$ 550 e cumpria metas diárias como acolocação de 500 elásticos em calças por horaou a costura de 300 bolsos no mesmoperíodo.

No mundo...

• Shima Akhter tinha 12 anos quando saiu deseu vilarejo para morar com uma tia em Daca,capital de Bangladesh, país localizadono Sudeste Asiático com população superior a150 milhões de habitantes.

• Ela era uma entre os 4 milhões de habitantesdo país que trabalham na confecção de roupaspara o mercado externo — de acordo com aOrganização Mundial do Comércio (OMC),Bangladesh é o segundo maior exportador devestuário do mundo, com um volume de US$28 bilhões em transações, e 85% da mão deobra é formada por mulheres.

• Com um salário inferior a US$ 3 por dia, Shimae outros colegas uniram-se para pedirmelhores condições de trabalho e entregaramuma lista de propostas aos supervisores dafábrica.

• A negociação entre trabalhadores e patrõesnão demorou muito a ser resolvida: osgerentes fecharam as portas da confecção,reuniram quase 40 pessoas e atacaram Shimae seus colegas utilizando cadeiras, pedaços depau e tesouras.

• Desde a década de 1990, quando a Nike foiacusada de utilizar trabalho infantil emfábricas na Ásia, a falta de ética no processode fabricação de mercadorias por grandesempresas é discutida pela sociedade. Oproblema é que o questionamento costumaresistir apenas até a primeira promoçãoimperdível no shopping.

• A roupa não fala, mas ela transmite umainformação: ao vestir determinada peça, vocêpode ser reconhecido como uma pessoa beminformada ou que tem dinheiro para comprar,por exemplo. Como um fenômeno capitalistae ocidental, o desenvolvimento da modatambém surge com o conceito de prestígio eascensão social.

Cerca de 80 bilhões de roupas são vendidas no mundo, média superior a 11 peças por habitante da Terra

Enquanto isso...

Cinco moradores de rua morrem por causa dofrio, diz Arquidiocese de SP: Quinta vítima foiencontrada no Bom Retiro, na região central.Em nota, entidade expressa "preocupação pelosmoradores de rua".

O Globo 14/06/2016

• Por falar em capitalismo, as mudanças queaconteceram no sistema a partir da década de1980, com a descentralização da produção enegociações feitas em escala global, são aprincipal razão para entender como aindústria da moda criou um novo padrão deconsumo, sustentado com base em um tripé:

Baixo custo de produção, rápido escoamento da distribuição e preços atrativos

• Com mais de 6,6 mil lojas distribuídas em 88países e faturamento em vendas que chega aquase US$ 15 bilhões, a rede espanhola Zara éuma das empresas precursoras da fastfashion, nome dado a essa nova maneira deconsumir a moda.

• A moda rápida(fast-fashion) pede que a produçãoem alta escala seja rápida e barata para vendermais e logicamente consumirem mais.Atualmente as empresas que praticam ummodelo de negócios caracterizado por umarapidez na produção e por uma disponibilidadeimediata dos produtos nas lojas. O mercadoglobal domina a economia de baixo custo paraelevar os lucros de empresas americanas.Escolhem países como China, Índia entre outros,para produzirem em massa e mais barato.

• Criada em 1975 por Amancio Ortega, dono deuma fortuna de US$ 67,1 bilhões e quartohomem mais rico do mundo, a marca inovouao adaptar para a indústria têxtil as lições damontadora japonesa Toyota, que desenvolveuum sistema de logística para eliminar osgrandes estoques das fábricas.

• Se as grifes tradicionais europeias lançavamcoleções de roupas de acordo com as estaçõesdo ano, as marcas de fast fashion despejam nomercado novos produtos a cada semana

• Tudo isso a preços relativamente acessíveispara uma parcela considerável da sociedade:enquanto um vestido da grife francesa Diorcusta por volta de R$ 9 mil, um modelosimilar da Zara sai por apenas R$ 300 — naEuropa, peças vendidas pela marca espanholachegam a custar € 10 (ou R$ 44).

• O ritmo de comercialização imposto por essasredes de varejo causou impacto em empresastradicionais no ramo. Fundada no século 19 efabricante de itens de luxo, abritânica Burberry afirmou neste ano quedisponibilizaria suas novas coleções logo apósa realização dos desfiles, tendênciaacompanhada por outras grifes, como TommyHilfiger, Versace e Marc Jacobs.

• E com esse mercado de cores, texturas enovidades, não surpreende que você seesqueça da história de Shima Akhter.

• Para diminuir os custos da produção, as grandescorporações descentralizaram sua produção.

• Na década de 1960, 95% das roupas vendidasnos Estados Unidos eram fabricadas emterritório norte-americano, enquanto hoje essepercentual não passa de 3%. Enquanto aprodução é deslocada para outros locais, asempresas continuam com seus quartéis-generaisnos países de origem, responsáveis pelaidealização de novas coleções, análise do controlede qualidade e, claro, arrecadação dos lucros.

• Entre as cinco maiores nações exportadorasde vestuário em 2015, quatro estãolocalizadas no Sudeste Asiático: a China, comUS$ 173,4 bilhões em exportações, aindalidera o ranking por conta das zonaseconômicas especiais criadas pelo PartidoComunista Chinês para impulsionar odesenvolvimento industrial.

• Ao longo dos anos, no entanto, o crescimento dopaís ocasionou um aumento gradual dos saláriose das condições de trabalho. O resultado foi queas grandes confecções se mudaramimediatamente para paísescomo Bangladesh, Vietnã e Camboja, onde acompetição por postos de trabalho mantinha ossalários baixos e, consequentemente, as margensde lucro mais altas — em 2015, oficinas deroupas também se expandiram para a África, coma instalação de fábricas na Etiópia.

E NO BRASIL?

• No Brasil, os pontos de vendas de roupas sãopulverizados: pouco mais de 20% do mercadoé controlado por grandes redes varejistas,enquanto cerca de 30% dos vendedores vivemna informalidade, como sacoleiros e camelôs.Quase metade do mercado, portanto, éformada por comércio de bairro e redes locais.

• Nos últimos anos, grandes empresas de fastfashion, como H&M e Uniqlo, cogitaram abrirlojas no Brasil, mas o alto custo de operação ea competição com outras multinacionaisfizeram com que os executivos dascompanhias mudassem de ideia.

CUSTO BRASIL

• Quase 85% do vestuário consumido no país éproduzido por fábricas instaladas aquimesmo. Com faturamento de US$ 55,4bilhões em 2015, o Brasil é o quarto maiorprodutor de roupas do mundo — 75% da mãode obra é composta de mulheres.

• O setor conta com 160 mil postos de vendaespalhados pelo Brasil, emprega quase 1,5milhão de pessoas e vendeu 6,5 bilhões depeças por ano.

• As contradições da cadeia produtiva de roupasno Brasil, no entanto, não estão restritas aomomento da confecção das peças

• Com um volume colhido de 1,4 milhão detoneladas em 2015, o país é um dos cincomaiores produtores de algodão do mundo. E ocultivo de algodão é um dos que mais utilizaagrotóxicos para combate de pragas.

• Além dos problemas de saúde ocasionadospelo contato com os agrotóxicos, muitas vezesos trabalhadores são expostos a condições detrabalho escravo: em 2014, o Ministério doTrabalho e Emprego inspecionou uma fazendana Bahia em que os camponeses recebiam umsalário mensal de pouco mais de R$ 450 eeram submetidos a jornadas de trabalhosuperiores a 10 horas

• De acordo com dados da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT), quase 21milhões de pessoas no mundo estão expostasa trabalhos forçados. Das vítimas, 11,5milhões são mulheres.

• O Brasil só reconheceu que ainda abrigavacasos de escravidão contemporânea em 1995(!) e, desde então, resgatou mais de 50 miltrabalhadores expostos a essas condições.Mas sabe aquela nossa legislação elogiada porconta da abrangência de caracterização dotrabalho escravo?

• Pois ela está em risco, graças a um projeto deautoria do senador Romero Jucá(PMDB/RR), que pretende retirar ascaracterizações de “condições degradantes detrabalho” e “jornada exaustiva” comoatributos capazes de identificar a exploraçãode trabalhadores.

DÁ PRA MUDAR?

1.INFORMAÇÃOAntes de sair para comprar uma nova roupa,confira se as empresas de varejo estãoenvolvidas com exploração da mão de obra pormeio de serviços como o aplicativo Moda Livre

2.UTLIDADE

• Em quais ocasiões você vestirá aquela camisada vitrine? Perguntas como essa ajudam aavaliar se a sua próxima compra terá uma boautilidade, além de frear possíveis impulsos deconsumo

3.QUALIDADE

• Verifique as matérias-primas utilizadas naprodução do tecido e busque informaçõessobre a satisfação dos clientes em questõescomo conforto e durabilidade

4.ECONOMIA

• Caso tenha de vestir uma roupa para umaocasião especial, mas que dificilmente seráutilizada em outras situações, pense napossibilidade de alugar a peça ou pedir aqueleempréstimo camarada a seus amigos

5. MAIS OPÇÕES

• Dê uma olhada em roupas feitas emproduções locais, de maneira mais artesanal:o preço e a qualidade são tão bons quanto osencontrados nas grandes redes de varejo

A Escravidão do Corpo

• O corpo tem tido lugar de destaque nos temasda cultura. Nas últimas semanas, apreocupação extrema com a magreza - e orisco dos transtornos alimentares, que podemlevar à morte -- se tornou assunto frequentena mídia.

• A medicina estética, com todas as suas"intervenções mágicas", técnicas depreenchimento, levantamento e esticamento,tenta vender a idéia de que "o corpo é oespelho da alma". Quanto mais jovem,saudável e "malhado", mais intimamente seestá vinculado à idéia de sucesso eautocontrole.

• Numa época em que o domínio da imagem éimperioso, a cultura é permeada por ideaisnem sempre atingíveis. Esse é o ponto no quala moda se articula com o narcisismo etransmite sua mensagem: "É possível ser belo,glamuroso e escolher o próprio estilo".Vivemos um paradoxo. Há a ilusão de umaenorme oferta de possibilidades. Mas paraaceder aos valores difundidos, éimprescindível submeter-se ao padrão damoda.

• Cria-se, assim, a ideia de um corpo servil, umaespécie de "corpo-escravo" que se submete aregras que funcionam como o "leito de

Procusto"

• Afinal, todos sabem: para ser modelo épreciso ser muito magra, muito alta e muitobonita. E ter estilo, é claro. Assim, é possívelser linda - e mais que isso: poderosa.

• As regras rígidas da indústria da modafuncionam como ímã para algumas jovenscom predisposição para desenvolver anorexianervosa - em geral, são exigentes,extremamente disciplinadas e sensíveis aoolhar do outro, ou bulimia

• Estão sempre à procura de um ideal, nãoexatamente de beleza, mas de força e poderque as faça se sentir menos frágeis,vulneráveis e lhes dê a sensação de controlesobre sua vida. A combinação entre demandasexternas e características de personalidadepode resultar numa combinação explosiva.

• O anoréxico hostiliza a falta, a imperfeição, afragilidade. Busca, de alguma maneira,amenizar as angústias e frustrações inerentesà experiência humana. Nesse sentido, osdiscursos da moda da anorexia podem formarum par perfeito. E mortífero.