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:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:
Introduo
Fork bomb uma tcnica de ataque a computadores na qual pro-
cessos se replicam indefinidamente at esgotar a capacidade de pro-
cessamento de um determinado sistema. Em 2002, o artivista hacker
Jaromil criou aquilo que ficou conhecido como o mais elegante cdigo
de Fork bomb j escrito. Apenas onze caracteres ( :(){ :|:& };: ) pareci-
dos com as carinhas sorridentes usadas nas redes sociais, mas que uma
vez digitados em um terminal UNIX impedem o sistema operacional
de seguir funcionando, at que seja reiniciado.
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura livre };: introduz uma sabota-
gem similar no mbito dos sistemas reguladores da propriedade in-
telectual. O livro se coloca nos lugares marginais, esquecidos ou
menores das discusses e prticas da produo imaterial, abordando
diversos aspectos das produes artsticas e culturais, alm de des-
construir a suposta neutralidade do conhecimento tcnico e do desen-
volvimento tecnolgico e criticar a crescente apropriao privada dos
cdigos genticos.
Copyfight lana ainda uma perspectiva crtica s instncias de po-
der que identificam a pirataria como prtica improdutiva, segundo a
qual os piratas so parasitas que roubam a riqueza legtima de outros.
O livro traz vises dissonantes que, como veremos a seguir, assumem
a pirataria como prtica positiva e produtiva, considerando-a como o
compartilhamento fora dos limites legais, mas principalmente como
criao de espaos de liberdade e cooperao.
Do mesmo modo, veremos que so muitos os interesses envol-
vendo a cultura livre: se por um lado existem as prticas de redes co-
operativas de livre circulao de conhecimento e cultura que buscam
a valorizao e organizao autnomas, por outro h uma inflexo
corporativa deste conceito: o trabalho livre como trabalho grtis. Ou
seja, uma estratgia de mobilizao de uma multido de pessoas que
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:3
investem seu tempo de vida produzindo gratuitamente contedos e re-
laes que posteriormente sero apropriados e vendidas por empresas
e novos intermedirios privados.
Neste sentido, Copyfight remete a um espao de disputa comple-
xo e indeterminado, sempre em aberto. A questo, por vezes reduzida
a debates do tipo legalistas e piratas ou criadores e consumidores,
emerge agora atravs de disputas mltiplas e cheias de nuances. Sem
pretender esgotar a riqueza do tema ou mesmo suas ambiguidades pe-
culiares, como as novas relaes sociais que se popularizaram nas lti-
mas dcadas, os textos a seguir trazem tona crticas e prticas ainda
pouco debatidas no mbito da cultura livre e da pirataria, mostrando a
insuficincia da compreenso dessas disputas a partir do pensamento
dicotmico do copyright VS copyleft.
Trata-se assim de uma reflexo-ao que vai alm do licenciamento
como ferramenta de luta ou parte dos processos criativos, avanando
sobre outros mbitos das relaes sociais que so atravessadas pela
pirataria e a cultura livre. Copyfight questiona inclusive o prprio co-
pyleft e a ampla gama de licenas Creative Commons quanto s suas
respectivas potncias de transformao das condies de explorao e
desigualdade. Entendemos que cultura livre no de forma alguma re-
alizada apenas com licenas livres, mas com a democratizao radical
dos meios de comunicao/produo e a contnua radicalizao de-
mocrtica das novas formas de entender a cooperao e a apropriao
da tecnologia, da cultura e do conhecimento.
Assumimos assim que no se concretizar a utopia digitalista, que
prega que o sistema tcnico digital iria naturalmente acabar com
a explorao e a desigualdade, trazendo melhores condies de vida
para todos. Por outro lado, porm, tampouco adotamos uma postu-
ra tecnofbica, que encara as novas tecnologias como algo ruim em
si. Entendemos que o funcionamento do capitalismo atualmente se
adapta s novas formas de produo em rede, qui de modo mais efi-
ciente e sinergtico que os modelos antigos. Deste modo, no so as
tecnologias por si que iro alterar o contexto poltico, mas suas apro-
priaes por parte dos distintos sujeitos e principalmente seu aspecto
coletivo, social e transversal.
Assim, o objetivo do livro no difundir uma viso nica ou uma
proposta acabada para as questes atuais acerca da cultura livre e da
pirataria; mas sim desvelar uma multiplicidade de reflexes e prti-
cas que no se constituem como totalidade derivada da soma de suas
partes, tampouco uma totalidade originria que unificaria todos os
pontos de vista em uma ideologia restauradora. Os contedos a se-
guir so como pedaos de quebra-cabeas de diferentes colees de
onde sempre sobram (e faltam) partes. O livro constitudo assim com
contedos elaborados em locais e momentos diferentes, que dispostos
conjuntamente reconstituem e atualizam o debate sobre a cultura livre
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 4
e a questo da pirataria. Copyfight no remete a um mundo de encaixes
perfeitos, mas sim a um mundo de atritos.
Resta por ora agradecer a todos os movimentos e pessoas que con-
triburam para a realizao do Copyfight, at esse momento. No seria
possvel listar aqui todos, afinal essa construo fruto da coletividade
e tem uma dimenso transversal que no se resume somente aos au-
tores ou a equipe de produo, pois todas as pessoas que lutam pela
liberdade e contra a explorao esto envolvidas direta ou indireta-
mente nas realizaes do Copyfight. Sabemos que essas contribuies
so uma fora viva sem a qual Copyfight seria apenas mais uma ao
dentre muitas outras.
Ainda assim, gostaramos de registrar aqui nossa especial gratido:
a todos os autores que acreditam na cultura livre e que gentilmente
enviaram suas contribuies, aos tradutores que nos ajudaram na pu-
blicao dos materiais at ento inditos em portugus; ao Ponto da
ECO por ter sido o bero desta iniciativa e pelo apoio incondicional
com que sempre nos brindou; i-Motir pelo apoio financeiro e pela
parceria na produo do livro; ao Movimento Unidos dos Camels, em
especial na figura nica da Maria dos Camels, por sua luta e parce-
ria em diversos momentos; Universidade Nmade Brasil pelas con-
tribuies tanto em termo de reflexes, quanto por ter aberto vrias
portas importantes para a concretizao do livro; a todas as redes de
ciberativistas no Brasil como Metareciclagem e Submidialogia; e
Azougue por acreditar nessa iniciativa e na viabilidade de se produzir
conhecimento de uma forma mais livre e democrtica.
SIga Sua rota
Tendo em vista a prpria multiplicidade de abordagens sobre o
tema, seria impossvel construir uma nica linha de raciocnio que
unificasse todos os trabalhos a seguir. No se trata de definir cultura
livre ou pirataria. Reunindo trabalhos diferentes entre si no s em sua
forma ou estilo, como tambm em seus contedos e pontos de vistas,
Copyfight busca implodir noes pr-concebidas sobre tais temas e es-
timular a produo de novas perspectivas no cartografadas nos siste-
mas jurdicos ou tericos j pr-definidos.
Deste modo, os trabalhos a seguir foram organizados para per-
mitir a leitura em diferentes nveis. Sugerimos trs formas de ler o
livro. Sinta-se vontade para escolher uma, mais de uma, nenhuma
ou inventar outras.
Linear: Por no trabalhar com captulos, a tradicional leitura do livro
ganha contornos peculiares, pois conduz o leitor por diferentes estilos
e perspectivas em uma narrativa mais livre e fluida.
Temtica: os trabalhos esto agrupados em quatro ns: N prssico;
N de oito; N de trevo e, por fim, N torto. Cada um constitui-se
como um campo de aproximao, agrupando perspectivas que se
cruzam em certos momentos. O primeiro aborda prticas que valo-
rizam o comum como campo de constituio de igualdade e autono-
mia, a partir de diferentes contextos, como o de hackers, agricultores
e funkeiros. J o N de oito conduz por anlises de estruturas his-
tricas das questes relativas cultura e ao trabalho, enquanto N
de trevo concentra as reflexes sobre autoria. J o N torto trata da
sabotagem ao sistema de propriedade intelectual.
No linear: outro modo de leitura possvel seguir as referncias
das notas dos organizadores posicionadas ao lado direito dos textos.
Atravs delas, buscamos estabelecer conexes no causais e incenti-
var a produo de novos pontos de vistas no expressos diretamente
nos trabalhos. A bifurcao que a nota prope sempre opcional, no
entanto o recurso permite a conexo direta com outras perspectivas
para o tema em questo.
Boa leitura.
SumrIo lInear
trabalho sem obra, obra sem autor: a Constituio do Comum | Giuseppe Cocco ...................................................Sonho pirata ou realidade 2.0? | Jorge Machado ............................................Poesia | f? erre! ..............................................................................................os commons: uma estrutura e um caleidoscpio de prticas sociais por um outro mundo possvel | Silke Helfrich ..................................................a ideologia da cultura livre e a gramtica da sabotagem | Matteo Pasquinelli .......entrevista com richard Stallman | Adriano Belisrio .....................................Sobre guerrilhas e cpias | Adriano Belisrio .................................................repensando a autoria na era das redes | Beatriz Cintra Martins ..........................o comum das lutas entre camels e hackers | Bruno Tarin e Pedro Mendes ..........metamorfose arte e trabalho imaterial | Antonio Negri ................................Capitalismo cognitivo e resistncia do comum: o caso da lei Sinde | Direito do Comum .........................................................Interveno | Chapolin ................................................................................. entrevista com Yann moulier Boutang | Bruno Tarin ......................................liberdade ainda que tardinha .......................................................................Por licenas mais poticas | Felipe Fonseca .....................................................Copyfight | Washington Luis Lima Drummond ...........................................robinright | Marcus Vinicius ........................................................................Sobre arte livre e cultura livre | Antoine Moreau ...........................................Copyfarleft e Copyjustright | Dmytri Kleiner ..................................................o mal-entendido do Creative Commons | Florian Cramer ................................o funk carioca e a liberdade | Guilherme Pimentel .........................................livre como queijo confuso artstica acerca da abertura | Aymeric Mansoux ...............................Beerware .......................................................................................................Sementes e comunidades copyleft | Tadzia Maya ............................................o inventor e o banco de ideias | Toms Vega ...................................................aI5 digital | Thiago Skrnio ........................................................................Cuidado! a guilhotina digital vai te pegar! | Miguel Afonso Caetano .................licena da arte livre 1.3 ................................................................................a realidade - das ruas - na Propriedade Intelectual| Copyfight ........................
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SumrIo temtICo
os commons: uma estrutura e um caleidoscpio de prticas sociais por um outro mundo possvel.........................o comum das lutas entre camels e hackers .................................................liberdade ainda que tardinha ......................................................................Por licenas mais poticas ..............................................................................Copyfarleft e Copyjustright .............................................................................o funk carioca e a liberdade ...........................................................................Beerware ......................................................................................................a realidade - das ruas - na Propriedade Intelectual...........................................
trabalho sem obra, obra sem autor: a Constituio do Comum .......................................entrevista com richard Stallman .....................................................entrevista com Yann moulier Boutang ..............................................livre como queijo confuso artstica acerca da abertura .................o inventor e o banco de ideias ...........................................................aI5 digital ........................................................................................
Poesia ...........................................................................................................Sobre guerrilhas e cpias ...............................................................................repensando a autoria na era das redes ............................................................metamorfose arte e trabalho imaterial .........................................................Capitalismo cognitivo e resistncia do comum: o caso da lei Sinde ..................robinright ....................................................................................................Sobre arte livre e cultura livre ........................................................................licena da arte livre 1.3 ...............................................................................
Sonho pirata ou realidade 2.0? ...................................a ideologia da cultura livre e a gramtica da sabotagem ............................................Interveno ...............................................................Copyfight ..................................................................o mal-entendido do Creative Commons .......................Sementes e comunidades copyleft ...............................Cuidado! a guilhotina digital vai te pegar! ................
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traBalho Sem oBra, oBra Sem autor: a ConStItuIo do ComumGiuseppe Cocco
Introduo
No momento de finalizarmos esse artigo, o debate brasileiro sobre
direitos autorais foi atualizado pela mudana de gesto do Ministrio da
Cultura (MinC), em funo da nomeao de Ana de Holanda, em janei-
ro de 2011. Figura desconhecida entre os movimentos culturais, a nova
ministra tem uma relao reivindicada e confirmada pelas nomeaes
que realizou na rea de direitos autorais do MinC de proximidade com
o Escritrio Central de Arrecadao e Distribuio (ECAD) e os interes-
ses da classe artstica. Seus primeiros passos no MinC so emblemti-
cos de uma ruptura radical com a gesto de Gilberto Gil e Juca Ferreira.
Ainda antes de definir suas primeiras iniciativas, a Ministra decidiu su-
primir do site do MinC o selo do Creative Commons e anunciou a vonta-
de de rever (em sentido conservador) a Lei dos Direitos Autorais (LDA),
que est tramitando no Congresso. Ao mesmo tempo, a composio das
secretarias do Ministrio confirma ulteriormente a virada, em particular
com a introduo de uma nova Secretaria da Economia Criativa. A cul-
tura volta a ser culta, profissional e nacional.
Se trata de uma inflexo geral e abertamente conservadora. A eco-
nomia volta a ser o eixo que qualifica as outras polticas: aquelas da
cultura, mas tambm as polticas sociais e de educao, com nfase no
ensino tcnico. Pior, o que h de cultural na economia passar a ser
enxergado como um setor especfico: justamente aquele onde a eco-
nomia teria elementos criativos. Nessa nova configurao do MinC, o
conceito de criao funciona como um aparelho de captura. Por um
lado, ele qualifica aquelas cadeias produtivas que se caracterizariam por
seus contedos culturais e constituiriam assim as economias criativas,
naturalmente com suas indstrias criativas. Pelo outro, quando no
se trata de indstria, o conceito usado para reafirmar a primazia da
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 10
figura do artista como Deus ex machina de uma criao que aconteceria
de maneira isolada (da relao social) e ex nihilo (do nada). Como no
lembrar as reflexes de Walter Benjamin sobre o estatuto da arte e as re-
laes entre esttica e fascismo, em particular quando ele lembrava que
os conceitos tradicionais como a criatividade, a genialidade, o valor
eterno e secreto conduzem ao fascismo, esttica do fascismo.
A indstria criativa (cultural) e aos vrios clusters criativos devem
ser proporcionados subsdios estatais adequados. Ao artista criador
dever ser garantido um direito (autoral) to inquebrantvel quanto o
estatuto divino (transcendente) atribudo a ele: assim, a nova direto-
ra de direitos autorais acha normal que o ECAD no possa ser fisca-
lizado pelo Estado. A aliana de interesses evidente: o Estado deve
subsidiar as indstrias e submeter-se transcendncia superior do
criador, figura divina.
Nesse panorama, a mtrica do valor j dada. A cultura volta a
ser o enfeite que sempre foi, vista na perspectiva da economia. Aqui,
reencontramos o novo lema do Governo Federal: Pas rico pas sem
pobreza. De repente, ser rico um valor (moral) cuja nica limitao
seria a existncia externa a ele da pobreza. A soluo da pobreza est
dada: tornar-se rico. Apena se trata de implement-la. Contudo, essa
inesperada virada conservadora nos obriga a um pensamento mais
profundo dos efetivos desafios que atravessam a questo da cultura e
da arte diante das novas condies materiais de sua produo (as redes
digitais) e ao capitalismo contemporneo (organizado em rede).
A excessiva nfase na evoluo tecnolgica precisa ser atravessada
pela anlise das contradies e dos paradoxos a partir do ponto de vista
do trabalho. Nossa reflexo sobre direitos autorais e redes se organiza
em 4 partes. So elas: uma reflexo inicial sobre o Estatuto da cultura
no capitalismo contemporneo; em seguida, um aprofundamento da
relao entre trabalho e virtuosismo num horizonte de trabalho sem
obra; o desdobramento sucessivo diz respeito crise do emprego e s
relaes paradoxais que se abrem entre precariado e soberania do ar-
tista; enfim, abriremos para um debate geral sobre os desafios do mo-
delo de produo antropogentico e a sociedade plen.
1- o estatuto da cultura no capItalIsmo contemporneo
Produo de conhecimento por meio de conhecimento No capitalismo contemporneo, o papel do conhecimento mudou
radicalmente. Se a modernidade industrial foi baseada no uso intensi-
vo do conhecimento para a produo de bens, no regime de acumula-
o da ps-modernidade o uso do conhecimento se d para produzir
outros conhecimentos (produo de conhecimento por meio de co-
nhecimento). O cerne de nossa reflexo diz respeito ao conhecimento
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:11
enquanto recurso chave desta produo contempornea. Logo, apare-
cem duas importantes linhas de reflexo: a da crise do valor e a dos
esforos de framing, de construo de um novo horizonte de valora-
o. Por um lado, precisamos lidar com o desaparecimento da mtrica
vigente (aquela do paradigma industrial, da produo de mercadorias
por meio de conhecimento). Por outro, trata-se de apreender as con-
dies nas quais se define um marco (frame), uma nova unidade de
medida adequada ao paradigma (ps-industrial) da produo de co-
nhecimento por meio de conhecimento.
Os termos do deslocamento esto definidos:
Na modernidade industrial, o conhecimento funcionava
como uma racionalidade instrumental voltada a um fim: a
produo de bens. A objetivao do conhecimento em um
bem funcionava como padro de valor. Nos mesmos termos,
o trabalho que era definido como produtivo era aquele, ma-
terial, produtor de mais-valia: de um bem separado da pr-
xis de sua produo. A mtrica (o valor) se organizava em
torno de um trabalho que quantificava a obra (o bem) e o
qualificava, em retorno;
Na produo de conhecimento por meio de conhecimento,
a produo no mais atividade instrumental voltada a um
fim, mas contm seu fim dentro dela mesmo, como atividade
reflexiva: o conhecimento deve produzir sua prpria signifi-
cao, criando um mundo: o framing uma criao de mun-
dos (world making).
Avanando na reflexo sobre esses deslocamentos, cruzamos es-
sas duas linhas de reflexo na perspectiva da antropologia. Dentro
dessas transformaes paradigmticas, assistimos como que h uma
acelerao das transformaes antropolgicas, no sentido que o afir-
ma Michel Serres (2001) em Hominescncia: ns j no somos mais
os mesmos homens, j vivemos na quadra seguinte. A intensidade da
transformao antropolgica leva alguns economistas (Marazzi, Ver-
cellone, 2008) a retomar a profecia marxiana para dizer que, na passa-
gem do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo (depois do
interregno ps-fordista), afirma-se um modelo antropogentico: por
trs da produo de conhecimento por meio de conhecimento temos
realmente uma produo do homem por meio do homem. O conheci-mento do qual estamos falando mesmo uma nova dimenso antro-
polgica do capitalismo e, nesse sentido, cultural.
Do modo de produo produo de mundos: a crise da mtricaPor que fala-se de capitalismo cognitivo? Porque a dimenso
cognitiva faz contraponto com aquela de informao: a economia
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 12
poltica neoclssica mobiliza a noo de informao como algo natu-
ral, imaterial e homogneo, que cria um conhecimento objetivo do real
como base de referncia a escolhas, que desta maneira sero racionais,
baseadas em um clculo. No capitalismo contemporneo, marcado por
incerteza e singularizao dos produtos, dos produtores e dos consu-
midores, os mercados ignoram a informao porque ela substituda
pelo conhecimento: a escolha se torna o fato de uma atividade reflexiva
de julgamento, e no uma arbitragem instrumental a partir dos preos.
A informao permitia instaurar um mesmo mundo que os atores
compartilhavam com base na mensurabilidade e equivalncia generali-zada: aquela dos preos. A informao a caracterstica de base de um
conhecimento funcional produo de bens com base na subordinao
do trabalho vivo (capital varivel) pelo trabalho morto (o capital fixo).
O conhecimento diz respeito a uma multiplicidade de mundos. O
que caracteriza o conhecimento de ser uma produo de mundos.
O clculo (quantitativo informacional) deve fazer as contas com o
julgamento (qualitativo comunicativo): os saberes sociais, longe de
serem unitrios e indiscutveis, so mltiplos e controvertidos. Ser
o julgamento, ou seja, uma atividade reflexiva de world making, por
meio de sua dimenso comunicativa, que juntar a singularidade e o
conjunto, o valor e o conhecimento: Quando o mercado inclui a di-
versidade qualitativa das obras humanas e a diversidade qualitativa
dos critrios de avaliao, a escolha toma a forma de um julgamento (Karpik: 2007, p.58-62).
O relatrio da comisso sobre a economia do imaterial encomen-
dado pelo Ministrio da Fazenda francs apresenta o caso da empresa
norte-americana Nike: o custo de produo de seus sapatos esportivos
estimado em no mais de 4% do preo de venda total; o resto remune-
rao dos ativos imateriais (marca, pesquisa, patentes e o know how da
empresa) (Lvy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani apresenta os mesmos
resultados na anlise da composio do valor dos bens de consumo: Se
uma armao de culos custa 70 euros ao consumidor final, seu conte-
do material igual no mximo a 7 euros (o valor pago fbrica do
produtor manufatureiro). O bem material (7 euros) suporte de algo
intangvel que vale 7 vezes mais. Mas no se trata s disso.
Se o produtor material for chins, o peso relativo do contedo tan-
gvel pode cair para 3,5 euros (apenas 5% do valor total). Na direo
oposta, se a armao consegue atrelar-se a uma griffe, seu valor final
pode ser multiplicado por dois (140 euros), dando lugar a uma mais-
valia incomensurvel. Estamos, pois, no mbito da desmedida. De
onde vem esse suplemento de valor para o mesmo objeto de consumo?
Com certeza no se trata mais da tradicional extrao de um tempo de
trabalho excedente. No apenas o contedo tangvel pesa apenas 5 a
10% do valor pago pelo consumidor final, mas ele gera uma verdadeira
guerra entre pobres para defender as partes de manufatura (produto-
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:13
ras deste tangvel), que se deslocam para procurar manter esse percen-
tual nesse patamar ou baix-lo (Rullani: 2004, p.13-4).
Na tentativa de oferecer elementos de quantificao do imaterial,
o Relatrio Lvy-Jouyet prope uma dupla qualificao dos ativos imateriais e imateriais tecnolgicos, dizendo que eles se qualificam
por estarem relacionados ao imaginrio e organizao. Por suas vez,
o relatrio prope uma taxonomia dos ativos e investimentos imate-
riais em trs grandes categorias: (a) Os investimentos em pesquisa
e desenvolvimento e em softwares se traduzem assim em ativos de
patentes, know how, design e modelos. (b) Os investimentos (ligados
ao imaginrio) de propaganda e comunicao se consolidam em pro-
priedade intelectual e marcas. (c) Os investimentos (gerenciais) em
educao e formao permanente e outras tecnologias da informa-
o e da comunicao, bem como as despesas de marketing se conso-
lidam, diz o relatrio, em capital humano, bases de dados de clientes,
fornecedores, assinantes, suportes de venda, cultura gerencial e pro-
cessos especficos de organizao da produo.
Contudo, as trs tipologias apresentam limites analticos impor-
tantes, pois continuam usando o antigo paradigma. Elas conseguem
distinguir mais os investimentos do que os resultados e, na realidade,
a distino no ntida ao passo que seus resultados so dificilmente
quantificveis. Com efeito, o relatrio do governo francs sobre o ima-
terial afirma claramente: Seria errado reduzir o imaterial a determina-
dos setores (...). Com efeito, a lgica do imaterial (...) se difunde para
bem alm desses setores especficos e envolve hoje a quase totalidade
das atividades econmicas (Lvy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani
(2009) tambm insiste: a economia dos custos e dos investimentos da-
quela que ele chama a fbrica do imaterial diz respeito no a uma
firma, mas a uma cadeia produtiva. E a cadeia o mnimo. O prprio
Rullani radicaliza, dizendo: somos todos grande ou pequenos ca-
pitalistas cognitivos que tentamos, mesmo sem ter conscincia disso,
tornar rentvel nossos investimentos: aqueles da famlias na educao
dos filhos, das firmas em conhecimentos, dos territrios nos recursos
culturais e infraestruturais; do Estado que investe em pesquisa e insti-
tuies, etc. Todos juntos, enfim, investimos nas mdias interconecti-
vas e na padronizao artificial dos contextos de vida e trabalho.
Trata-se das prprias relaes sociais e polticas que desenham os
territrios produtivos e de uma mudana de paradigma que envolve as
unidades de medida tradicionalmente utilizadas pelas contabilidades
das empresas e das naes: Apesar de seu carter central para a criao
de valor e o crescimento, a dimenso imaterial da economia esbarra no
problema da medida, tanto no nvel das empresas quanto no nvel ma-
croeconmico (Lvy e Jouyet: 2006, p.13).
Isso se traduz na desconexo crescente entre o valor das empresas
(mercado dos ativos) e o lucro (mercado dos bens): segundo as ava-
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 14
liaes de um escritrio de anlise financeira, o peso do imaterial nos
balanos das 120 mais importantes corporaes europeias chegava, em
2004, a 71%. Desses, 21% correspondentes consolidao dos ativos in-
tangveis (marcas, patentes, quotas de mercado) e 50% ao goodwill, ou
seja a parte do valor dos ativos (da empresa), que no encontra lastro
em nenhum tipo de capital, seja ele material ou imaterial! (Rebiscoul,
2006). Rullani atribui essa situao a um paradoxo (ns poderamos fa-
lar mais marxianamente de uma contradio estrutural) entre o
fato que o conhecimento se torna o cerne da fbrica do imaterial e o fato
que essa fbrica se desmaterializa e perde suas dinmica de valorizao.
A contradio que faz explodir a mtrica diz respeito a uma contagem
(contabilidade) de empresa (executada pela firma e dentro de seu per-
metro) e uma valorizao difusa nas redes sociais e seus territrios.
Para Maurizio Lazzarato (2006), passamos de um modo de produ-
o a uma produo de mundos, de significaes. Nessa perspec-
tiva, o capitalismo cognitivo diz respeito a uma relao direta entre
valor monetrio e o valor como significao tica e social mais ampla.
Mas tambm nos remete quele modelo antropogentico, onde a pro-
duo de conhecimento por meio do conhecimento aparece como
produo do homem por meio do homem, quer dizer, de formas de
vida por meio de formas de vida.
Na economia do conhecimento, as mercadorias so produzidas
pelo uso do conhecimento como fator primrio. O conhecimento
usado nos processos de produo como fator autnomo e incorporado
s pessoas, objetos e servios que contribuem ao resultado produtivo.
Ao mesmo tempo, o conhecimento usado para produzir mercadorias
tambm uma mercadoria, ou seja, um produto que pode ser com-
prado e vendido no mercado, da mesma maneira que todas as outras
mercadorias. O conhecimento se torna o principal fator produtivo,
mas tambm o principal produto. Trata-se de um processo circular, no qual o output (o novo conhecimento conseguido do processo em
andamento) deve voltar a gerar suas prprias premissas, reconstruin-
do as condies de um novo incio do ciclo produtivo. Mas o novo co-
nhecimento no apenas deve reproduzir o seu input (o conhecimento
anterior). Deve inovar, adaptar, desenvolver o conhecimento anterior
para manter ativas as condies que justificam sua propagao e seu
novo uso em contextos que so sempre diferentes. Isso porque o fator
produtivo (conhecimento) no foi consumido pelo uso, como acontece
na produo de mercadorias por meio de mercadorias, onde o output
deve repor o input que foi destrudo na sua produo.
Sem uma nova mtrica, teremos a impresso paradoxal que a pro-
pagao da inovao (tida como know how, patentes e segredos indus-
triais) acaba determinando seu duplo desaparecimento. Por um lado,
porque se procura mensur-la onde ela no est. Por outro, a prpria
operao de mensurao (patentes e segredos industriais) destri os
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:15
processos de inovao. O conhecimento at pode ser produzido ou
usado por indivduos isolados, mas ele indivisvel do processo social.
Por isso, diremos que o conhecimento no pode ser confinado dentro
do circuito proprietrio de cada firma, pois sua capacidade de produ-
zir valor depende de modo determinante das externalidades (seja para
os custos que para os lucros) (Yann Moulier Boutang, 2007). Cada vez
mais, realiza-se a tendncia que antecipava o desaparecimento do au-
tor, de uma obra sem autor, que acontece em fluxo, por enxamea-
mentos sucessivos e por propagao virtica.
Rullani, Moulier-Boutang, Negri e Lazzarato indicam que a econo-
mia do conhecimento diz respeito a processos cognitivos, envolvendo
o conjunto dos atores que trocam entre si conhecimento dentro das
diferentes fases da cadeia, passando da produo para o uso e a pro-
pagao. Isso significa que a presena do conhecimento como recurso
chave da produo muda o objeto da economia: a gerao de valor no
pode mais ser observada no nvel da firma; precisamos assumir como
novo campo de observao as redes cognitivas e seu sistema complexo
de relaes entre firmas diferentes e complementares.
2 - o trabalho sem obra: trabalho e vIrtuosIsmo
O valor instrumental do conhecimento (industrial)No regime de acumulao da grande indstria, trabalho e capital es-
tavam numa relao de interdependncia dialtica. Era o paradoxo do
socialismo na Rssia ps-revolucionria: Lnin queria compatibilizar os
sovietes (a democracia de base dos conselhos) com a eletricidade e o
taylorismo, quer dizer, com a disciplina da grande fbrica. Aqui, a con-
veno que liga o trabalho ao emprego (industrial) diz respeito a uma re-
lao social de produo que com base no direito absoluto da proprie-
dade estatal (ou privada) e do controle separado (pelos trabalhadores
intelectuais) da cincia aplicada tcnica faz com que o trabalho vivo
(o capital varivel) tenha que subordinar-se ao capital fixo (maquinaria,
tecnologia: trabalho morto e cincia) para se tornar produtivo.
Esse tambm o paradoxo das sociedades afluentes, como dizia
J.K. Galbraith (1961), quando apontava o fato de que nelas preciso
produzir bens inteis para poder distribuir renda, pois o emprego
que funciona como dispositivo de distribuio da renda: Ao passo
que nossa energia produtiva (...) serve criao de bens de pouca
utilidade produtos dos quais preciso suscitar artificialmente a
necessidade por meio de grandes investimentos, sem os quais eles
no seriam mesmo demandados o processo de produo conser-
va quase integralmente seu carter de urgncia, enquanto fonte de
renda. Os paradoxos so determinados pela contradio entre valor
econmico e significao social da mobilizao produtiva. O me-
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canismo fundamental desse quebra-cabea a conveno que nos
impe reduzir o trabalho (atividade de produo social de significa-
o) ao estatuto de emprego assalariado e dependente. Isso deter-
mina a reduo da significao social a dois elementos dialticos: o
salrio (custo a ser reduzido) e o lucro (objetivo instrumental a ser
maximizado). A dinmica da inovao e de sua mensurao tambm
influenciada por esse horizonte.
No segundo ps-guerra, durante a hegemonia do fordismo, essas
duas dimenses encontravam sua sntese na dinmica do consumo:
estatal e militar no caso dos pases socialistas, militar e de consumo
no caso do bloco ocidental (Estados Unidos, Europa Ocidental e Ja-
po). Mais estruturalmente, o trabalho vivo (capital varivel) no sa-
bia como tornar-se produtivo sem juntar-se ao capital fixo (fosse o da
grande indstria estatal ou das grandes multinacionais) e, ao mesmo
tempo, a dinmica de seu salrio real (resultado mesmo dessa subor-
dinao) funcionava no caso das economias ocidentais do norte
como o elo articulador (e legitimador) entre a produo em massa e
o consumo em massa.
No paradigma industrial, a produo de bens e inovaes tec-
nolgicas aparecia como processo determinado por lgicas separa-
das da atividade que os produzia: para o trabalhador, o bem que ele
produzia era apenas o meio de aceder a um salrio. J a tecnologia
(o conhecimento) lhe aparecia como evoluo natural, sob as formas
das leis da eficincia, da concorrncia e da inovao capitalista. O su-
jeito se mantinha separado do objeto da mesma maneira que a cul-
tura se mantinha separada da natureza e se apresentava de maneira
altamente hierarquizada: por um lado, a cultura culta, aquela elitista
(da arte) e aquela codificada no saber acadmico e tecnolgico e, pelo
outro, a cultura popular, enxergada como fenmeno natural, algo a
ser superado.
O valor no capitalismo cognitivoNo capitalismo cognitivo, o trabalho saiu do cho de fbrica e se
descolou do emprego. Com isso, perdeu sua capacidade de funcionar
como padro de mensurao (tempo de trabalho, custo do trabalho)
das atividades produtivas e de consumo. Isso se traduziu como sabe-
mos em perdas salariais e de direitos trabalhistas (enfraquecimento
das organizaes sindicais, diminuio da parte dos salrios sobre a
renda total, aumento do desemprego e, sobretudo da precariedade).
Mas, saindo da fbrica, o trabalho perdeu potencialmente aquela
subordinao dialtica que o identificava ao emprego (assalariado) e
o mantinha numa relao de inquebrantvel dependncia tecnolgi-
ca e cultural com o capital.
A produo passa a se organizar dentro das prprias redes de circu-
lao: por isso a privatizao dos servios das redes de comunicao
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to importante para o capital e o neoliberalismo foi desse ponto de
vista, a retrica e a poltica dessa investida capitalista. O capitalismo
cognitivo se caracteriza por um paradoxo estrutural, aquele da dupla
dimenso dos servios que permitem aos trabalhadores continuarem
a serem empregveis.
Em 2007, a crise dos subprimes tem como estopim a incapacida-
de dos trabalhadores precrios de continuar pagando as dvidas que
eles contraram para ter acesso aquela moradia que lhe deve permitir,
junto aos outros servios como sade, educao, transporte, Internet e
telefonia, de continuar trabalhando de maneira intermitente, interina
e informal (ou at ilegal, no caso dos imigrantes sem visto de trabalho).
A crise do capitalismo global crise de sua dimenso cultural: a pro-
duo se torna relao (circulao) e cultura. O trabalho no mais
empregado (assalariado). O que ele produz so servios (privatizados
ou cada vez menos accessveis, a no ser que se recorra ao crdito) dos
quais depende inclusive sua capacidade de se manter trabalhando. O
trabalho se tornou imaterial e cognitivo (cultura) e precisa dos servios
para manter-se tal. O emprego foi substitudo pela empregabilidade
e a varivel do custo (do trabalho: salrio) complementada ou at
substituda pela que diz respeito os custos de transao: os custos no
so mais (ou apenas) imputados ao tempo de trabalho, mas prpria
relao de trabalho. Ao passo que a lgica da conteno do custo do trabalho (do salrio) comprimia o tempo de trabalho necessrio, aque-
la da conteno do custo de transao comprime a prpria transao,
estilhaando a relao salarial.
No capitalismo industrial, a varivel estratgica era o salrio. No ca-
pitalismo cognitivo, a varivel estratgica a relao, ou seja, a cultura.
Por sua vez, o trabalho passa por uma transmutao do mesmo tama-
nho: de trabalho instrumental que se de objetiviza numa obra (um
bem) ele passa ao estatuto de uma atividade relacional sem obra. As
relaes de servio so de uma crescente complexidade cognitiva, co-
municativa e afetiva do trabalho. A separao do trabalho do emprego
faz com que tal relao acontea nos moldes de uma prestao pessoal
(terceirizada) que, por sua vez, funciona por terciarizao (amplifica-
o do setor de servios). Terceirizao e terciarizao se alimentam
circularmente, por propagao. De maneira emblemtica, recente-
mente, o tradicional outsourcing (externalizao) tenha passado a se
chamar tambm crowdsourcing: a mobilizao da multido de singu-
laridades (Howe, 2008-2009).
O trabalho virtuosoAinda em 1994, o filsofo italiano Paolo Virno mobiliza as anlises de
Hannah Arendt sobre os conceitos de trabalho e ao, alm das noes
marxianas de trabalho intelectual produtivo e improdutivo, para expli-
citar o novo paradigma como sendo a condio na qual funcionam pelo
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avesso as clivagens entre: (1) trabalho e ao e (2) trabalho intelectual
produtivo e improdutivo. A inverso diz respeito s transformaes do
intelecto: tornando-se pblico, o intelecto passa ter como figura emble-
mtica aquela do executor virtuoso.
Diferentemente da poiesis (trabalho da produo), que repetitiva,
taciturna, previsvel e instrumental, a prxis (ao) diz respeito no s
relaes com a matria (com a natureza), mas s prprias relaes so-
ciais. A ao lida com o possvel e o imprevisto, e modifica o contexto
no qual evolui e acontece. Diferentemente do bios theoretikos (pensa-
mento puro), que solitrio e no aparente, a ao pblica, entregue
exterioridade, contingncia, ao murmrio da multido.
Habermas desenvolveu os temas da colonizao do mundo da vida
(e seu agir comunicativo) pela razo instrumental. De maneira parecida,
Arendt afirmava que o capitalismo industrial determina a colonizao
da ao pelo trabalho. A prxis se tornava poiesis, um processo de fabri-
cao cujos produtos so o partido, o Estado, a Histria. J na passagem
do fordismo ao ps-fordismo, isto se deu em direo oposta: a prxis
que coloniza o trabalho. Ou seja, o trabalho introjetou os traos da ao
poltica, tornou-se prxis. Ao mesmo tempo, esse deslocamento fica em
aberto, como que diante de uma alternativa radical: entre o eclipse da
poltica (apontada, por exemplo, por Agamben) e a difuso geral de um
novo horizonte poltico.
exatamente aqui que entra a discusso sobre o terceiro termo de
comparao, quer dizer, sobre a dinmica do pensamento puro. com
relao s formas de vida relacionadas ao intelecto (bios theoretikon)
que se define uma alternativa entre um intelecto difuso (mas fragmen-
tado) e um intelecto pblico constitudo por novas formas de atividade
livre. Nesse nvel, Virno prope a metfora do executor virtuoso, deslo-
cando a distino que Marx fazia entre trabalho intelectual produtivo
e improdutivo.
Para Marx, o trabalho intelectual produtivo aquele que se objetivi-
za em uma obra que existir independentemente do ato de produzi-la.
O ato de produzir separa-se do produto: prxis e poiesis se separam. A
produo mais importante do que a prxis. A mercadoria se separa do
produtor, em objetos distintos das prestaes artsticas. So os livros,
os quadros, as esttuas, de quem escreve, pinta ou cria. Esse trabalho
intelectual, dizia Marx, produtivo porque ele produz mais-valia.
Ao contrrio, h um segundo tipo de trabalho intelectual, que no
se objetiviza em obra nenhuma: trata-se das atividades cujos produ-
tos so inseparveis do ato de produzir. Nesse caso, a prxis coincide
com a poiesis e a sobredetermina. Estamos falando das atividades que
encontram sua realizao em si mesmas como so todas as execu-
es virtuosas dos oradores, dos professores, dos mdicos, dos padres,
dos bailarinos, dos msicos em um concerto, de um artista em uma
performance etc. Nesses casos, dizia Marx, temos um trabalho intelec-
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tual improdutivo. Pode at ser um trabalho assalariado, mas ele no
produz mais-valia, por no haver separao entre o ato de produzir e
seu resultado. Para Marx, esse tipo de trabalho intelectual no apenas
improdutivo; este tipo de trabalho tambm contm elementos de tipo
servil, pois funciona com base em prestaes pessoais, prestaes de
servios! Os executores virtuosos so, pois, improdutivos, embora seu
trabalho seja de tipo servil.
Para Virno, o que caracteriza a transformao do trabalho na pas-
sagem do fordismo ao ps-fordismo que a execuo virtuosa quer
dizer a prxis se torna o paradigma de todo e qualquer tipo de pro-
duo. No capitalismo contemporneo, a atividade sem obra deixa
de ser a exceo e se transforma em prottipo do trabalho em geral.
Walter Benjamin tinha analisado esse deslocamento j na Era da re-
produtibilidade tcnica da obra (de arte) e o tinha colocado numa
perspectiva oposta daquela adotada pelos seus colegas da Escola de
Frankfurt. Ao passo que estes enxergavam na sociedade de produo
e consumo em massa a perda de aura e de autenticidade da obra,
Benjamin apreendia a transmutaco poltica e social da prpria aura
e da prpria autenticidade e aprendia os novos desafios culturais
para os projetos de emancipao social. Diante do fascismo que es-
tetizava a poltica, Benjamin, apontava para a necessidade do movi-
mento comunista politizar a arte.
Benjamin afirmava: o nmero muito mais elevado de partici-
pantes provocava uma participao de tipo diferente. Assim como
o desvio quantitativo ligado reprodutibilidade tcnica da obra de
arte determinava uma alterao qualitativa da natureza da obra de
arte, o trabalho colaborativo em rede implica hoje numa mudana
radical do estatuto do trabalho e da obra. Uma mudana que atualiza
e radicaliza a antecipao benjaminiana: na Era da reprodutibilidade
tcnica da obra de arte, a diferena entre autor e pblico est prestes
a perder seu carter fundamental e o leitor est sempre pronto a
tornar-se escitor.
O que est no cerne da produo uma ao que ao mesmo
tempo pblica e criativa. A prxis virtuosa tornou-se o paradigma do
trabalho em geral, pois hoje em dia o trabalho comunicativo, lingus-
tico, afetivo. A base desse trabalho a partitura constituda pelo que
Marx chamava de General Intellect e Benjamin definia como um bem
comum constitudo por uma formao politcnica. Este o trabalho
que encontramos nos servios, nas prestaes de servio das quais de-
pende a produo de valor, inclusive dos bens materiais que se torna-
ram suportes de formas de vida (mundos). Estamos muito prximos
da condio da criao artstica, quer dizer da definio proposta por
Negri da noo de belo: produo de excedente de ser, a partir de um
trabalho livre. O belo novo ser construdo pelo trabalho colaborati-
vo, coletivo das redes e nas redes.
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Um novo conflitoEsse deslocamento no linearmente libertador ou emancipador.
Ele apenas define o marco de um novo conflito. Na execuo virtuosa,
nos lembra Virno, temos sempre uma prestao pessoal, quer dizer os
elementos ambguos prprios da mobilizao produtiva da vida. Abre-
se o horizonte de uma atividade livre e criativa, mas tambm cria-se
uma nova condio servil. A execuo virtuosa aparece como o mxi-
mo de atividade livre e criativa, mas temos uma prestao pessoal que
indica os termos de uma nova escravido. A clivagem entre esse dois
polos no sempre ntida. Em primeiro lugar porque entre eles h uma
infinita modulao de condies que dosam graus diferentes de liber-
dade e servilismo: entre o trabalhador informal dotado de um telefone
celular e o trabalhador intelectual continuamente conectado rede.
Em segundo lugar, porque uma vez que essas dinmicas correm fora
da tradicional relao salarial nem sempre fica claro qual mecanismo
agencia e qual separa, qual participa da colaborao e qual hierarquiza
e modula o controle.
Uma boa maneira de construir a capacidade crtica de apreender
esse mecanismo de articular a metfora do trabalho virtuoso com a
questo dos modos de construo e funcionamento da partitura que
o prestador de servios executa. No capitalismo das redes, a partitura
do virtuoso aquela de um intelecto (saber) que se tornou geral: co-
nhecimento que produz conhecimento, formas de vida que produzem
formas de vida. Ao mesmo tempo, esse tornar-se geral do intelecto no
um processo linear, nem unvoco. Ou seja, os modos dessa generali-
dade podem ser diferentes e so o terreno de conflito entre o novo tipo
de trabalho (imaterial) e o novo regime de acumulao (cognitiva). O
conflito entre capital e trabalho passa por uma outra dinmica. Em seu
cerne no se encontra mais o salrio, mas a partitura.
As lutas por salrio privilegiavam o justo reconhecimento do valor
do capital varivel (o trabalho e sua reproduo) e deixavam em segun-
do plano, o da reforma ou da revoluo, a questo da propriedade do
capital constante (as maquinarias). Alis, reforma e revoluo, merca-
do ou Estado, se encontravam no mesmo terreno, aquele da legitimi-
dade tecnolgica do capital fixo e a ele se dobravam, como mostrou a
experincia sovitica.
As lutas do trabalho imaterial tem como varivel fundamental a par-
titura e, pois, conjugam num mesmo terreno um novo tipo de luta sa-
larial e a luta no terreno da propriedade. A produo sensata de formas
de vida por meio de formas de vida depende dos nveis de liberdade e
democracia que caracterizam a produo e a execuo, em espiral, da
partitura. No plano salarial, a varivel diz respeito o reconhecimento da
dimenso produtiva da vida e, portanto, o deslocamento do tema sala-
rial em direo ao da distribuio de renda pela implementao de uma
renda universal, uma biorenda. No plano da partitura, o terreno de luta
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:21
aquele da construo das instituies de uma partitura comum. Essas
instituies so aquelas que a prpria luta produz. Por importantes que
sejam, o que interessa no movimento da cultura livre no so tanto as
inovaes jurdicas (o prprio copyleft e o Creative Commons, por exem-
plo), mas a articulao entre redes de produo colaborativa e uma nova
gerao de direitos e dispositivos institucionais.
3 - o trabalho das redes: precarIado e soberanIa do artIsta
Plena atividade e precariadoH mais de trinta anos, o trabalho continua a descolar-se do em-
prego e a subsumir o tempo de vida como um todo. Por sua vez, o em-
prego continua a transformar-se. Ele envolve a alma do trabalhador,
suas faculdades lingusticas e suas dimenses afetivas: uma atividade
plena que mistura tempo de trabalho e tempo de vida. Mas tambm se
torna empregabilidade: no mais uma condio dada, mas uma per-
manente ausncia de condio. Mesmo quando estamos empregados,
dentro da relao salarial, precisamos estar fora dela, empregveis.
O que a empregabilidade? Uma transao entre o capital com-
prador da fora de trabalho que nunca garante ao vendedor (o tra-
balhador) um retorno e uma proteo estveis. O vendedor deve
sempre estar em condies de ser vendvel: empregvel, implicando
no somente a precariedade do emprego, mas tambm a subsuno
da prpria vida (o tempo todo, os afetos, as faculdades lingusticas e as
relaes sociais) dentro do trabalho. O trabalho se torna relao, seu contedo , pois cultura, significao e vida. A explorao passa pelos
mecanismos que permitem reduzir a relao transao.
A transao continuamente negociada e reaberta, sendo que ela
implica um custo dependente das condies de informao da procu-
ra e oferta de mo de obra. S que esse custo est sendo repassado para
o prprio trabalhador. O contedo da empregabilidade exatamente
a dimenso cognitiva e comunicativa (biopoltica) de um trabalho que
se torna imaterial.
O capitalismo cognitivo diz respeito mobilizao das formas de
vida em suas prprias dinmicas sociais, inclusive reprodutivas. A vida
mobilizada sem mais passar pela relao salarial e isso confere (e
reconhece) ao desenvolvimento das foras produtivas uma potncia
nova e libertadora. Mas a relao salarial (sua conveno) continua em
vigor, baseada na continuidade da propriedade privada e do trabalho
subordinado. A imensa potncia produtiva do trabalho social (colabo-
rativo) se transforma assim em nova misria para o trabalhador indivi-
dual, cujo trabalho sem emprego no mais reconhecido.
Em uma economia do trabalho imaterial, os gastos em termos de
servios e distribuio de renda so investimentos em capital huma-
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no, sem os quais no haver a qualidade de populao (biopoltica) da
qual dependem as bacias de foras de trabalho. A substituio de tudo
isso pela lgica do mercado (a privatizao dos servios) leva direto
para o impasse da crise dos subprimes: o crdito acaba se substituindo
renda, mas o dbito se torna impagvel.
Para o capital, a transao de custo zero era viabilizada pela sua
financeirizao, uma acumulao autorreferencial e tautolgica que
a crise nos mostra em toda sua nudez. Para o trabalho, isso funciona
potencialmente pelo avesso: o trabalho que se torna produtivo sem
passar pela transao aquele que consegue socializar-se sem passar
pela relao salarial.
O trabalho (capital varivel) integrou o capital fixo, quer dizer a
cooperao social, o conhecimento, exatamente como acontece no
trabalho compartilhado das redes sociais e tcnicas. Michael Bauwens
fala do papel das prticas emergentes de produo entre pares (peer-
to-peer) que constroem com base na autoagregao por meio de
motivaes afetivas comunidades que praticam a inovao livre e
permanente, procuram a qualidade absoluta e tornam obsoleto todo
o tipo de estratgia proprietria (2009, 16). A viso de Bauwens ade-
quada em termos sociolgicos, mas assume a mudana como algo tec-
nologicamente determinado.
J as anlises de Jeff Howe em termos de crowdsourcing mostram
como no podemos confiar no determinismo da tcnica como porta-
dora de emancipao. Bauwens acredita que essas prticas emergentes
entre pares, paradoxalmente, salvam e colocam em crise o sistema ca-
pitalista. Andr Gorz dizia que a produo colaborativa nas redes trazia
consigo a extino da acumulao capitalista. Os dois concordam que
a base dessa nova condio o movimento do software livre, ou seja,
a produo que tem como base as comunidades de likeminded peers,
mais criativas do que as corporaes: o trabalho pode ser muitas vezes
mais eficientemente organizado no contexto de uma comunidade do
que em um contexto de uma corporao (Howe, 8).
Todos colocam no cerne da mudana a relao de tipo novo entre o
trabalho e os afetos: a melhor pessoa para fazer um trabalho aquela
que mais quer fazer aquele trabalho, e as melhores pessoas para avaliar
sua performance so seus amigos e pares (Ibid.). Para os apologti-
cos californianos da web, tudo isso se transforma na mais nova forma
de negcio: O crowdsourcing capitaliza a partir da natureza profun-
damente social da espcie humana (Howe, 14). Para os libertrios, a
motivao afetiva (dos trabalhadores das comunidades) ultrapassa em
produtividade as motivaes de origem coercitiva. Com efeito, a trans-
formao no linear nem determinista: pelo contrrio, ela implica
uma dimenso poltica, em particular no que diz respeito questo da
propriedade, por um lado, e o reconhecimento da dimenso produtiva
de todo o tempo de vida que esse tipo de trabalho mobiliza, pelo outro.
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4 - o modelo da produo antropogentIca e a socIedade plen
O modelo antropogenticoChristian Marazzi (2008) fala da emergncia de um modelo an-
tropogentico. Para ele, a produo de conhecimento por meio de
conhecimento na realidade um modelo de produo do homem
por meio do homem, no qual as possibilidades do crescimento en-
dgeno e cumulativo dizem respeito, sobretudo ao desenvolvimento
do setor educacional (investimento em capital humano), do setor da
sade (evoluo demogrfica, biotecnologias) e da cultura (inovao,
comunicao e criatividade). Quer dizer, os fatores de crescimento
so imputveis diretamente atividade humana (...), ou seja, pro-
duo de formas de vida e, pois, criao de valor agregado, que define
a natureza da atividade humana (2008). Isso vale tambm para a ino-
vao. Precisamos de indicadores que levem em conta as inovaes
humanas: o framing do qual temos que dar conta aquele de uma
bioeconomia (Fumagalli, 2007).
No modelo antropogentico, o conhecimento do qual se fala na
realidade o prprio homem: formas de vida que produzem formas de
vida. A questo da significao e, nesse sentido da inovao, diz res-
peito relao entre cultura e natureza que o modelo antropogentico
carrega. Se a racionalidade instrumental tpica da modernidade oci-
dental no funciona mais, onde encontraremos um padro de valor e
significao de uma relao entre cultura e natureza que se tornou ob-
soleta? aqui que temos os termos da questo ecolgica e ambiental
e a ligao que eles tem com os desafios da inovao no capitalismo
ou para alm do capitalismo cognitivo. A ecologia no um problema
de limite externo (natural) ao desenvolvimento humano (cultura), mas
de relao imanente e democrtica entre desenvolvimento (cultura) e
mundo (natureza): a ecologia uma questo de imanncia e valor!
As reflexes sobre a Amaznia e sobre a insero do Brasil no mun-
do (Cocco, 2009) nos indicam uma das novas e fundamentais linhas de
conflito que atravessam a bioeconomia (e o capitalismo cognitivo). Por
um lado, ns teremos um horizonte no qual a produo antropogentica
se reduz a um novo tipo de antropocentrismo, reproduzindo a clivagem
ocidental entre cultura e natureza, numa dinmica que torna impossvel
apreender a imanncia de nossa condio terrestre. Aqui, a crise do valor
se apresenta como catstrofe: perda de mundo. Mesmo quando fala da
proteo da natureza, se faz segundo o mecanismo da transcendncia,
de uma cultura (proteo) separada da natureza (floresta).
Por isso, so os indgenas com seu animismo que melhor cons-
tituem o horizonte de uma outra relao entre cultura e natureza. E as
reservas (sobretudo quando so demarcadas de maneira contnua) as-
sumem uma dimenso completamente outra ao que lhe era atribudo
pela lgica estatal. Por outro lado, a propagao antropogentica pode
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ser pensada como o antropomorfismo animista, do perspectivismo
amerndio (Viveiros de Castro 2002, Cocco 2009). Esse permite pensar
a hibridizao de cultura e natureza, bem nos termos dos coletivos que
habitam a antropologia simtrica de Latour (1994); aqui a crise do valor
abre-se construo de um mundo como desafio democrtico de mo-
bilizao dos hbridos de natureza e cultura, dos humanos e dos no
humanos. A antropologia da cosmologia amerndia do Brasil renova,
em termos inovadores, o trabalho que a etnologia desenvolveu desde
as dcadas de 1960 e 1980 para apreender a pluralidade das formas de
troca, contra a concepo da economia poltica que afirma o mercado
como universal (Karpik: 2007, p.22).
Aqui, a inovao brasileira, animista e antropfaga: o perspectivis-
mo amerndio radicalmente no-antropocntrico. A antropofagia defi-
ne um antropomorfismo cuja propagao pura alterao. O sistema de
inovao do qual precisamos um sistema antropofgico de inovao:
o saque e a ddiva, a relao de alterao que faz o framing da que-
bra das patentes (no caso dos remdios), do sampleamento como base
das atividades de criam o tecnobrega (de Belm do Par), o funk do Rio
(como j estiveram nas bases do tropicalismo). A noo de imaterial diz
respeito dimenso relacional e lingustica do trabalho e ao seu tornar-
se prxis, para alm da dialtica sujeito-objeto. Seu modelo , pois a cria-
o artstica que, por sua vez, est cada vez mais parecendo com a cria-
o cientfica que sempre foi trabalhada em rede, um trabalho que voc
trabalha em cima do outro, que exige um aparato institucional complexo
de produo propriamente coletiva (Viveiros de Castro, 2007).
Nesse contexto, falar de trabalho imaterial significa apreender a
recomposio materialssima da mente e da mo, na direo oposta
hierrquica espiritualizao do mundo. O trabalho imaterial tem
como base tecnolgica o que Christian Marazzi, usando o manifes-
to ciborgue de Donna Haraway, chama de Corpo mquina. Ou seja,
a disjuntiva que a desmaterializao do capital fixo e a transferncia
de suas funes produtivas e organizacionais no corpo vivo da fora
de trabalho geram a que separa a importncia crescente do trabalho
cognitivo produtor de conhecimento e das prprias formas de vida,
como mecanismos fundamentais da produo de riqueza e, ao mesmo
tempo, sua desvalorizao em termos salariais e de emprego. A disjun-
tiva est no no reconhecimento poltico da mutao (a subsuno da
vida como um todo) para permitir seu controle socioeconmico.
Dizer que o trabalho se tornou imaterial significa afirmar que, no ps-
fordismo, so as dimenses relacionais do trabalho que determinam as
dimenses objetivas (da relao sujeito/objeto), tpicas do processo de
trabalho industrial. A antropologia permite um aprofundamento dessa dimenso relacional, lingustica do trabalho, recuperando e incluindo
uma nova maneira de apreender a relao com a natureza, com a his-
tria comum que a sociedade e o ambiente constituem. Uma produo
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que produo de mundos dentro de um leque aberto de possibilida-
des, para alm do antropocentrismo. Precisamos aqui apreender as ino-
vaes que esto nas reservas indgenas, nos territrios dos quilombo-
las, nos Pontos de Cultura, nos assentamentos da reforma agrria, nas
incubadoras de empresas solidria, entre outros espaos. ali que a res
nullius (as terras devolutas) se transforma em um comum que inclui o
sampleamento, a mixagem e a mestiagem antropofgica entre cultu-
ra e natureza, um devir Amaznia da inovao. O world making que d
significao propagao do conhecimento tem no devir Amaznia do
Brasil e no devir Brasil do mundo um novo horizonte, na perspectiva do
qual pensar um novo tipo de indicadores.
A sociedade plen e o comum como novo padro de valorDo lado dos governos, mergulhados na crise, isso parece organizar-
se em torno do discurso do crescimento ecologicamente sustentvel,
bem nos termos do debate que aconteceu diante da falncia do conjun-
to das montadoras norte-americanas: aquelas que sobrevivero (graas
interveno estatal) devero tornar-se mais enxutas (com menos em-
pregados) e produzir carros sustentveis. Isso diz respeito a definio de
um novo motor de crescimento e, sobretudo, da tentativa de restabelecer
um critrio de valor ao qual ancorar uma nova dinmica da acumulao.
Estes deslocamentos esto longe de ser definidos, estveis e fecha-
dos. Nada diz que essa ressignificao possa acontecer sem uma rede-
finio radical dos prprios alicerces do capitalismo, do regime jurdico
da propriedade privada e estatal. Por definio, a procura de uma eco-
nomia sustentvel no garante em si nenhum padro objetivo-natural.
O respeito da natureza no deixa de ser o produto de uma razo to
instrumental quanto aquela que agride a natureza. Nos dois casos, o
modelo antropogentico reproduz o antropocentrismo ocidental e sua
transcendncia. O respeito da natureza natural acaba opondo-a as
polticas sociais. O humanismo se desvela pelo que : um anti-humanis-
mo. A continuidade das atividades predatrias da natureza reproduz um
direito de dominao de tudo que no humano. Este foi o instrumento
fundamental da dominao dos homens sobre aqueles animais antro-
pomorfos que no tinham alma e cujas vidas no mereciam ser vividas:
os ndios, os negros, os ciganos, os judeus, os muulmanos, etc.
Precisamos de indicadores capazes de reconhecer as dimenses
qualitativas e sociais da atividade econmica e de desnaturalizar seus
recursos para afirm-los como artefatos, hbridos de cultura e nature-
za. Esses passam a ser atravessados por critrios de valorao social
relacionistas e perspectivistas que no cabem mais na simples con-
tabilidade dos custos. De repente, a privatizao do domnio pblico
como direito irrestrito de uso-fruto de um bem precisa ser profunda-
mente revisada. Acontece para os bens materiais exatamente o que j
est acontecendo para os bens imateriais: a propriedade privada tem
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dificuldade de sustentar economicamente as posies adquiridas (por
causa, por exemplo, da pirataria) e se torna (na forma do copyright e
das patentes) um obstculo polticas pblicas (como no caso da que-
bra das patentes dos remdios para a luta contra AIDS) e at prpria
dinmica da cooperao criativa (que encontra novas formas de pro-
priedade comum: o copyleft e o software livre). O comum cultura e
natureza ao mesmo tempo: nossa imanncia terrestre.
Nossa referncia deve ser o carter duplamente artificial da con-
veno de propriedade do conhecimento (dos bens conhecimento e
das obras artsticas). Por um lado, essa dimenso artificial o fato de
uma conveno humana que no depende de nenhuma necessidade
natural, mas est sobre uma norma jurdica que precisa ser aceita, legi-
timada. Por outro lado, ela artificial pelo fato de depender do artefato
humano e do grau de desenvolvimento tcnico de uma sociedade.
Hoje, uma srie de inovaes tcnicas desestabilizaram os mode-
los econmicos de remunerao (crise do valor): a mudana que cria
problemas o carter indivisvel do bem conhecimento. No modelo
anterior, eram os efeitos de escala (a multiplicao dos leitores de um
jornal, por exemplo) que tornavam rentvel os investimentos. Hoje, o
pblico construdo por processos que associam a comunidade e a sin-
gularizao. O marketing ameaado pelas tcnicas automatizadas de
profiling dos clientes, atravs da explorao de cookies (memorizao
dos sites visitados pelos internautas), por exemplo. A singularizao do
consumidor permite pensar servios anexados aos produtos: a fora de
venda deve tornar-se uma capacidade de escuta da vida singular. o
data mining (a explorao em tempo real dos dados amontoados sobre
o uso da Internet) articulado a outros mecanismos interativos que pro-
movem a eficcia das redes comerciais por meio de processos bottom
up: relaes de proximidade e de propagao.
Eis a sociedade plen. Se abandonamos as metforas do trabalho
humano como aquela das formigas, desenvolvendo aquela da colmeia,
poderemos ver que (alm da produo do excedente de mel, inicialmen-
te destinado ao autoconsumo, a criao das rainhas e das futuras abe-
lhas bem como ao lucro do apicultor) a construo da rede material dos
compartimentos da colmeia em cera a construo da rede cognitiva
do territrio, que serve colheita do plen de flor em flor. A anlise tra-
dicional do valor (e da inovao) se limita ao output de mel que pode ser
negociado no comrcio e, pois, a uma racionalidade instrumental volta-
da a um fim (o mel) aproprivel sob as formas de direito de propriedade
privada ou pblica (estatal). O desaparecimento das abelhas, por causa
do uso e abuso de pesticidas, mostrou que a polinizao fundamen-
tal para a agricultura e tambm para as floresta selvagem. Mais do que
isso, mesmo calculado em termos de produo agrcola, o valor criado
pelo trabalho indireto, imaterial, relacional de polinizao n vezes
mais importante do que o trabalho material (direto) de produo de mel.
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:27
A atividade de polinizao aparece como uma multido de singu-
laridades que cooperam entre si se mantendo tais. Mas a polinizao
no uma evoluo natural. Trata-se de algo artificial e at contre na-
ture: interespecfica. A polinizao precisa das instituies que reco-
nheam o compartilhamento comum de uma rede, a rede como res
nullius: que de todos e de todos, seja ela a comunidade da Internet
ou a Reserva indgena da Raposa Serra do Sol em Roraima. Ao mesmo
tempo, a polinizao o fato de uma atividade ir de flor em flor no
finalizada onde o fun (a felicidade ou o amor como forma superior do conhecimento) um indicador de valor enquanto construo de sen-
tido, construo de um mundo.
Estamos na perspectiva onde a produo em rede constitui uma
alternativa radical na organizao do trabalho. O comum da rede apa-
rece como uma alternativa ao pblico (estatal: propriedade de todos e
de ningum) e ao privado (mercado: direito absoluto do particular). A
inovao est do lado, pois, das instituies que reconheam a esfera
do comum e atualizem seu potencial: na passagem de um esquema
proprietrio baseado na separabilidade para um fincado na indivisi-
bilidade; de um estruturado em torno da exclusividade e rivalidade do
uso para um uso no rival que participa da produo por propagao
(Moulier Boutang, 2007): a produo e inovao por propagao poli-
nizadora aquela do enxame. Precisamos de instituies de enxame-
amento, de investimentos que reconheam a dimenso produtiva e
propagadora da polinizao, de polticas pblicas que reconheam a
polinizao e no a deixem esgotar-se.
concluso provIsrIaA constituio da nova partitura, do intelecto pblico, est comple-
tamente aberta em alternativas que correspondem clivagem sepa-
radora da prestao virtuosa entre as novas formas de atividade livre
e os mecanismos de uma servido renovada. Ou seja, por um lado, a
partitura do intelecto pode permitir a uma esfera pblica a produo
e reproduo (a circulao produtiva!) de suas dinmicas livres e mul-
titudinrias. Nessa ponta, o intelecto pblico constituinte de uma
esfera do comum: aquela que encontramos no movimento do copy-
left, do software livre e dos pr-vestibulares para negros e pobres. Aqui
temos produo do belo, resistncia e criao, excedente de ser de uma
vida livre e produtiva.
Pela outra ponta, a dimenso pblica do intelecto pode ser cap-
turada pelo mercado e pelo Estado pela sua sistemtica reduo
a uma densa rede de relaes hierrquicas. Nesse segundo caso, a
imprescindvel presena de outrem toma uma dupla forma perversa:
dependncia pessoal e arbitrariedade hierrquica que transformam a
atividade produtiva do virtuoso em trabalho servil de novo tipo. Aqui, a
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 28
esfera pblica constituda e sobredetermina as condies de existn-
cia do intelecto em geral. A arte capturada e reduzida comunicao
e ao marketing: trabalho fragmentado e precrio e nova servido do
copyright. Toda a vida capturada dentro de um processo de produo
que barra o ser nas mil formas da segregao espacial e da fragmenta-
o social (a excluso como horizonte que no pode ser ultrapassado).
Temos aqui todos os elementos para apreender a importncia das
polticas que contribuem para a constituio de uma esfera pblica de
mobilizao democrtica e produtiva, para alm do trabalho assalaria-
do. O primeiro governo Lula, talvez at involuntariamente, foi o teatro
de duas grandes inovaes adequadas a esse desafio: o programa Bolsa
Famlia e o programa dos Pontos de Cultura.
O Bolsa Famlia indica o caminho da construo de um comum (a
distribuio de renda) que pode constituir-se como a base da ao das
singularidades. No se trata apenas da necessria e urgente reduo da
desigualdade, mas de pensar a mobilizao produtiva como algo que
depende da cidadania, substituindo a equao que descrevia a integra-
o social como dependente do crescimento econmico. Embora com
base em uma escala de investimento ainda apenas simblica, os Pon-
tos de Cultura aprofundam essa tendncia, democratizando a poltica
cultural e pondo a cultura como cerne potencial da mobilizao pro-
dutiva. Com os Pontos, o MinC no apenas deu sentido pblico s po-
lticas culturais, mas as democratizou radicalmente, visando a reforar
(e no a determinar) as dinmicas prprias dos movimentos culturais.
Nesse encontro entre polticas culturais e polticas sociais podemos
afinal pensar a construo de uma partitura pblica e radicalmente
democrtica para o virtuosismo brasileiro do sculo XXI.
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19 de setembro de 2008.
Sonho PIrata ou realIdade 2.0?Jorge Machado
1. o sonho
No final do Sculo XVII, quando o capito Misson e o ex-padre
dominicano Caraciolli acompanhados por centenas de piratas deci-
diram se estabelecer na costa ocidental de Madagascar, as primeiras
medidas que tomaram foram renunciar suas nacionalidades, abolir
a propriedade privada e acabar com a circulao de dinheiro os re-
cursos passaram a ser reunidos em um fundo comum. Surgia Liber-tlia. No se sabe se foi uma comunidade, uma aldeia ou mesmo uma mera utopia. Sua fama circulou pelos oceanos, de barco a barco,
de costa a costa pelas bocas do povo do mar, do povo da areia e do
povo da floresta.
Localizada em um paraso tropical e habitada por gente amiga,
Libertlia era tambm perfeita por estar prxima as principais rotas
martimas. Para Daniel Dafoe1 (1724), testemunha da era de ouro da
pirataria, Libertlia foi a maior expresso da Utopia pirata por uma
terra livre. Onde embarcaes sem bandeira podiam atracar, rinco
onde pobres, escravos libertos, indgenas e perseguidos viviam em
paz. L no havia lugar de privilgios de nobreza, inquisio religio-
sa, explorao colonial ou comerciantes de escravos. Era o nico lo-
cal onde se ostentava em terra firme a bandeira preto e branca, co-
nhecida como jolly roger cuja origem vem do francs jolie rouge
(bela vermelha). Seu uso significava a disposio de uma embarca-
o lutar at a morte.
Libertlia foi a origem de uma srie de ataques a navios negrei-
ros. Estes eram saqueados e tinham seus cativos libertados. O enclave
pirata colocava a rota de comrcio que passava por Madagascar em
constante ameaa. E a Misson e o padre Caraciolli, se juntaram outros
famosos piratas, como Thomas Tew e George Drew.
1. O livro A General
History of the Pyrates
deriva de pesquisa em
registros oficiais e en-
trevistas com piratas
presos em Londres.
Dafoe tambm au-
tor de The Pirate Gow,
The King of Pirates,
Captain Singleton,
entre outras obras
relacionadas com a
vida no mar.
Ideologia da cultura livre e gramtica da sabotagem
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O reduto tornou-se um smbolo do humanismo comunitarista pi-
rata. Cercada por inimigos de todo lado, Libertlia s poderia resistir
com a unio de um povo de diferentes origens.
Uma terra onde todos so livres. Onde no h exploradores ou ex-
plorados; nem senhores, nem escravos; nem proprietrios, nem servos.
Onde sequer h nacionalidades e fronteiras de qualquer espcie. Onde
o dinheiro no centro da vida, mas sim a solidariedade e o bem-estar
comum. Um lugar onde todos so iguais, onde o poder est distribudo
e as decises so tomadas de forma direta e por deliberao coletiva.
No pde ser Libertlia. Libertlia caiu sob um ataque contundente de
naus europeias e por invasores por terra.
2. pIratas, negros, ndIos e pobres
Quando o navio foi capturado, o esplio foi dividido por um
sistema de partes. Este tipo de sistema de partes era comum no
transporte martimo medieval, mas tinha sido eliminado quan-
do o transporte tornou-se um empreendimento capitalista e os
trabalhadores marinheiros assalariados. (Osborne, 1998)
O igualitarismo era comum entre esses nmades, que tinham
que carregar consigo tudo o que possuam. Seu principal valor era
a liberdade. Em tempo de regimes absolutistas, dominao colonial,
escravido, inquisio tudo ao mesmo tempo, os barcos piratas po-
diam ser considerados ilhas de democracia em meio a um oceano de
tirania. Ao contrrio da marinha mercante e militar, nas embarcaes
piratas, marinheiros no eram explorados nem tratados com brutali-
dade. Eram todos iguais.
Para serem livres, contavam com um eficiente sistema de informa-
o: indgenas, escravos fugidos e a gente mestia que vivia na costa. A
violncia a eles atribuda no tinha essa gente como objeto. Corrobora
isso, o fato que suas tripulaes eram formadas por gente de toda ori-
gem. Para sobreviverem por longos anos vagando de costa em costa
tinham que escolher bem seus inimigos e no podiam arriscar seus
barcos em batalhas ou ataques suicidas.
A estratgia pirata consistia em explorar as fraquezas do sistema
organizado de roubo, baseado em uma poltica colonial, onde uma
monarquia vida por riquezas, cercada por uma nobreza corrupta con-
trastava com o povo miservel.
2.1 pIrata chegou, catIveIro acabou
Nos galees era fcil despertar uma rebelio interna. Conduzidos
a remo por numerosos escravos atirados no mar quando doentes ou
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inaptos ao trabalho -, o povo da galera tinha esperana de um ataque
libertador. Por outro lado, marinheiros amedrontados, descontentes
ou vidos por ter acesso ao botim que transportavam no eram exata-
mente pessoas dispostas a luta mortal.
Difcil imaginar que um pirata como Sam Bellamy conseguisse sa-
quear com poucas perdas 54 barcos sem a colaborao do povo das
gals. Seu navio, chamado Whydah, afundado aps uma tormenta, foi
descoberto em 1984 (NG, 2011). Recheado de joias e moedas, uma
prova de como os piratas eram a maior resistncia da poca domina-
o colonial. O Whydah, que fora navio negreiro, foi entregue sem com-
bate por seu capito britnico. Curiosamente, nele foram encontradas
joias marcadas com golpes de faces e machados, usados para dividir
peas grandes do tesouro entre sua tripulao (Osborne, 1998) o que
ilustra bem o carter da pirataria.2
Os barcos piratas eram uma ameaa a todo o sistema de explorao
colonial: manuteno das colnias, ao comrcio martimo, aos na-
vios negreiros e a prpria estrutura social vigente, baseada na diviso
de classes, nacionalidades e raas.
2.2 seja lIvre, seja pIrata
Aos perseguidos e candidatos a insurretos no havia muitas opes
na poca. Reunir marinheiros habilidosos no era tarefa difcil para os
piratas, dadas s duras condies em que vivia o proletariado da poca,
cuja populao crescia nas grandes cidades. Mas boa parte dos piratas
eram marinheiros de navios mercantes que decidiram se juntar quan-
do seus navios eram capturados. Nos navios mercantes, os marinhei-
ros eram submetidos a pssimas condies de trabalho e viviam uma
inexistncia prtica de direitos. Eram atrados aos navios piratas fugi-
tivos da lei, nativos indgenas, dissidentes polticos e escravos fugidos
das plantaes (Wilson, 1999). Havia tambm mulheres piratas famo-
sas, como Anny Bonny, Mary Read e Grace OMalley. Para atravessarem
oceanos deviam contar com uma tripulao com bons conhecimentos
de astronomia, geometria, matemtica e cartografia, alm de pessoas
que dominassem diferentes ofcios da poca. No se tratava de uma
mera busca por riqueza, mas havia um ideal libertrio, por trs da reu-
nio desse tipo de gente.
Segundo Wilson (op. cit., 1999), os marinheiros tambm usavam
o motim e desero e outras tticas para sobreviver e resistir sua
sorte. Mas os piratas eram, talvez, a parte mais internacional e mi-
litante do protoproletariado constituda por marinheiros do sculo
XVII e XVIII. (...) Liberdade, Igualdade e Fraternidade prosperaram
no mar mais de cem anos antes da Revoluo Francesa. As autorida-
des ficavam chocadas com suas tendncias libertrias, o governador
2. Exemplo de pea
cortada no Whydah:
:(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };: 34
holands das Ilhas Maurcio aps conhecer uma tripulao pirata e
comentou: Todo homem tinha tanta voz como o capito e cada um
levava suas prprias armas consigo. Isto era profundamente ameaa-
dor para a ordem da sociedade europeia, onde as armas de fogo eram
restritas s classes superiores.
Para dificultar qualquer responsabilidade ou punio individual
por suas aes, os piratas tinham um cdigo de comportamento para
garantir o compromisso coletivo. Assinavam um documento denomi-
nado round robin (Wikipedia, 2011), onde todos escreviam seus nomes
em crculos, de modo a tornar impossvel definir quem tinha assinado
primeiro ou depois. Assim, responsabilidades e culpas seriam iguais
para todos se um dia fossem capturados.
Por suas tendncias antiautoritrias, a mera existncia dos piratas re-
presentava um risco s autoridades. Qualquer igualitarismo ou ideologia
libertria era incompatvel com regimes monrquicos, elites rurais, se-
nhores de escravos, explorao mercantilista e colonial. E essa forma de
vida contrariava a moral e costumes da poca. Nesse contexto, no havia
porto seguro para aqueles que desejavam uma sociedade internacional,
sem propriedades e sem escravido. O sonho pirata de liberdade no ti-
nha lugar. A utopia humanista naufragava fora dos seus barcos.
3. o enIgma da bandeIra
As cores preta e branca, em geral com uma caveira estampada, torna-
ram-se um forte smbolo de medo, destruio, desobedincia e ameaa
ordem. Lutar at a morte, seu significado era claro. Grupos anarquistas
e libertrios se inspiraram nelas. As foras anarquistas russas, forma-
da com base camponesa, cuja ao foi fundamental para as principais
vitrias contra o czarismo, adotaram a jolly roger como seu smbolo.
Jolly Roger usada
por Stede Bonnet.
Bandeira dos
anarquistas russos
(1918-20).
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3.1 Simbolismo
O preto e branco se associam as dualidades, luz/escurido, bem/
mal, positivo/negativo, masculino/feminino. No taosmo, o preto e
branco com dois pontos invertidos significam as foras polares que
movimentam o universo. a partir dos opostos/complementares (yin
e yang) que tudo criado. A dualidade est at nas menores unidades,
onde a fora da atrao rumo totalidade
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