CAVA, Bruno - Produzir Direitos, Gerar o Comunismo

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    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Cincias SociaisFaculdade de Direito

    Bruno Cava

    Produzir os direitos, gerar o comunismo:

    teoria do sujeito em Badiou e Negri

    Rio de Janeiro

    2012

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    Bruno Cava

    Produzir os direitos, gerar o comunismo:

    teoria do sujeito em Badiou e Negri

    Dissertao apresentada, como requisitoparcial obteno do ttulo de Mestre emDireito, ao Programa de Ps-Graduao emDireito, da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao:Transformaes do Direito Privado, Cidade eSociedade. Linha: Teoria e Filosofia doDireito.

    Orientadora: Prof. Dr. Bethania Assy.

    Rio de Janeiro

    2012

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    CATALOGAO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C

    C376p Cava, Bruno.

    Produzir os direitos, gerar o comunismo: teoria do sujeito Badiou eNegri. / Bruno Cava. 2012.

    152 f.

    Orientador: Prof. Dr. Bethania Assy.Dissertao (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

    Faculdade de Direito.

    1. Filosofia do direito- Teses. 2. Ontologia. I. Assy, Bethania. II.Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Ttulo.

    CDU 340.12:111.1

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial destadissertao, desde que citada a fonte.

    _______________________________________ _____________________

    Assinatura Data

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    Bruno Cava

    Produzir os direitos, gerar o comunismo:

    teoria do sujeito em Badiou e Negri

    Dissertao apresentada, como requisitoparcial obteno do ttulo de Mestre emDireito, ao Programa de Ps-Graduao em

    Direito, da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. rea de concentrao:Transformaes do Direito Privado, Cidade eSociedade. Linha: Teoria e Filosofia doDireito.

    Aprovado em 27 de agosto de 2012.

    Banca Examinadora:

    ________________________________________Prof. Dr. Bethania Assy (Orientadora)Faculdade de Direito da UERJ

    ________________________________________Prof. Dr. Jos Ricardo CunhaFaculdade de Direito da UERJ

    _________________________________________

    Prof. Dr. Alexandre Fabiano MendesFaculdade de Direito da PUC

    Rio de Janeiro

    2012

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    DEDICATRIA

    Ao padrinho Gilberto.

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    AGRADECIMENTOS

    professora Bethania, pela dignidade e pacincia.

    Ao Guto, Alexandre, Mariana, Beppo, Fabricio, Pedro, Sindia, Brbara, Diana

    e Hugo, meus maiores cupinchas.

    Aos companheiros da Universidade Nmade, Direito do Comum, OcupaRio e

    Ocupa dos Povos.

    E Talita, por uma noite nas barricadas.

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    A luta contra a desfigurao da vida e do amor pelos mecanismos demarginalizao, degradao e represso s tem sentido quando me esforo

    igualmente pela positividade da construo, num projeto confluente e plural de

    comunidade e liberdade. Outros conceberam o buraco negro da esperana como

    justificao para o terrorismo. Mas que direito tenho eu de substituir-me, --- com meu

    silncio, meu desespero e minha vontade destrutiva, --- multido? A sua luta, a

    doura da sabotagem e de todo o tempo de amor arrancado do sistema? Porque

    esse tempo existe, o tempo arrancado do inimigo, aquele tempo em que me sintocomo que liberto, e que as massas acumulam e desdobram numa recusa que

    riqueza. Nada sei de grandes projetos de reconstruo. S sei que milhes e

    milhes de seres humanos como eu constroem a cada instante uma alternativa de

    desejo, sei que este enorme acmulo de desejo atrapalha o funcionamento do

    sistema, e sei que este tempo outro que quero viver constri um signo de

    contradio ao inimigo e uma esperana para mim. O tempo liberto, a sua potncia

    de massas um imediato. Deste ponto de vista, libertao constituio.

    Antonio Negri

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    RESUMO

    CAVA, Bruno.Produzir direitos, gerar o comunismo: teoria do sujeito em Negri e

    Badiou.150 f. Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito,

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

    Prope-se examinar o processo de afirmao de novos direitos, tomando porponto de partida o pensamento dos filsofos Alain Badiou e Antnio Negri, de quemse realiza uma leitura seletiva e intensiva das obras. Disserta-se sobre a articulaoentre ontologia, evento e poder constituinte, como polos para uma teoria do sujeito.Trata-se da questo da afirmao de direitos alm, ou antes, de o estadoreconhec-los. Um direito vivo liberto das mediaes do estado e do mercado. O

    direito como potncia e no sob a espcie da norma. Discutem-se ainda osconceitos de direito singular e direito comum. O sujeito em pauta o sujeitocomunista, interno ao movimento real de abolio do estado de coisas, na esteira deKarl Marx. Outros autores abordados com frequncia so Spinoza e Hegel.Apresentam-se brevemente o mtodo da copesquisa militante (do operasmoautonomista), o materialismo dialtico da ciso (Badiou) e a prxis constituinte(Negri). Mais alm de uma discusso restrita ao campo de filosofia poltica, adota -se a perspectiva de que o pensamento imediatamente poltico, que se podeexercer uma poltica na filosofia e produo do conhecimento. Conclui-se com ocotejamento entre as teorias do sujeito de Negri e Badiou, quanto aos pontosdesdobrados neste trabalho, e como esse parcial encontro pode potenciar

    ferramentas prticas e tericas. Especial destaque na concluso, ao duplo processopars construens pars destruens, para uma poltica subversiva e radical. A mtuaimplicao de um e outro vital para a capacidade um movimento real transformar oestado das coisas.

    Palavras-chave: Ontologia. Filosofia do Direito. Antnio Negri. Alain Badiou.

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    ABSTRACT

    This dissertation addresses the issue of how to create new rights, breathing

    the air of the radical thought of Alain Badiou and Antonio Negri, from whom it hasbeen made an intensive and selective review. It goes over the articulation ofontology, event and constituent power, as polarities for a theory of the subject. Thequestion in discussion is about rights beyond, or before, the state recognizes them. Aliving law freed from states or markets mediations. Law as power [potentia], and notsub species of the norm. Singular right and common right are also discussed. Thesubject in question is communist subject, internal to the real movement for theabolition of the present situation, following Marx. Other authors frequently referred:Spinoza and Hegel. Some methodological aspects are presented briefly: con-ricerca(of operaismo autonomist), dialectical materialism of scission (Badiou) andconstituent praxis (Negri). Beyond some debate limited to political philosophy field,this work adopts premise that thinking is immediately political, and that there can beexerted a political intervention in philosophy itself and knowledge production. Theconclusion puts Negris and Badious theories of subject to interact, on pointsdeveloped through the text, aiming hopefully to contribute for some practical ortheoretical tools. A special remark must be made for the importance of the doubleprocedure pars construens pars destruens, for a truly subversive and radical politics.The mutual incidence of one over the other is vital for any movements real capacityof transformation.

    Keywords: Ontology. Philosophy of Law. Antonio Negri. Alain Badiou.

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    SUMRIO

    INTRODUO................................................................................. 9

    1 A COPESQUISA NO OPERASMO AUTONOMISTA.................... 29

    1.1 O operasmo.................................................................................... 29

    1.2 A con-ricerca como subjetivao das lutas................................. 32

    1.3 Os Grundrisse como mtodo........................................................ 36

    1.4 O mtodo da tendncia antagonista............................................. 41

    1.5 A renovao da copesquisa.......................................................... 48

    2 A TEORIA DO SUJEITO EM BADIOU............................................ 52

    2.1 O Um tem que virar Dois................................................................ 52

    2.2 Hegel, a dialtica e o sujeito.......................................................... 55

    2.3 A dialtica da ciso........................................................................ 63

    2.4 Periodizar a revoluo................................................................... 69

    2.5 A falta da poltica e do sujeito na representao........................ 72

    2.6 O proletariado em falta.................................................................. 76

    2.7 O que o sujeito............................................................................. 80

    3 A ONTOLOGIA CONSTITUINTE DE NEGRI.................................. 84

    3.1 Spinoza, Marx e o direito............................................................... 84

    3.2 A subsuno real e a destruio do valor................................... 93

    3.3 A subsuno real, a crise, o comunismo..................................... 101

    3.4 Prxis constituinte e singularidade em Spinoza......................... 114

    4 ENTRECHOQUES E FAGULHAS................................................... 130

    4.1 Comunismos................................................................................... 130

    REFERNCIAS................................................................................ 143

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    INTRODUO

    A inquietao que me motiva a escrever esta dissertao : como se criam os

    direitos? De onde emerge essa fora que mobiliza as pessoas a afirmar tenho odireito, este ou aquele direito, a afirm-lo assim ou assado no mundo da vida? Que

    entropia afirmativa esta, que leva a ousar alm do que j est posto, reconhecido,

    codificado e estruturado, que leva as pessoas a resistir, a querer e exercer direitos

    novos, como capacidades de relacionar-se, viver e produzir de um jeito diferente?

    Porque sei que historicamente muitos grupos, movimentos e protagonistas usam e

    continuam a usar os enunciados de direitos, de modo eficaz, para tonificar os seus

    quereres, agendas, demandas e prticas. Renunciar ao direito como campo de

    incidncia para o empoderamento de movimentos transformadores me parece

    aodado, seno pretensiosamente dogmtico. preciso encarar a tarefa de

    transfigurao do direito em vigncia, desse que se apresenta como forma, funo,

    finalismo ou instituio, cristalizados pela ordem, o estado, a classe dominante, to

    preocupada em produzir e reproduzir o conhecimento jurdico tradicional. preciso

    encarar a tarefa com a mesma revolta e generosidade com que se pode aventurar

    na construo de outro mundo possvel. E no aposto na prxis porque necessito e

    no tem outro jeito, numa reedio da aposta pascalina, mas porque quero. Com o

    mesmo otimismo desencantado ou pessimismo alegre que nos inspirem a abraar o

    que deste mundo resiste, enorme margem do intolervel, contra a generalizada

    desfigurao da vida e do amor pelas foras e estruturas dominantes, do estado, do

    mercado, do direito, da moral. Em vez de pular a foras utpicos e de l lanar

    invectivas incendirias, o caso usar a imaginao por dentro do que a est,

    inclusive do direito, de sua maquinaria infernal. Como desarranj-lo fazendo o novo

    saltar, uma mundivivncia criadora no interior dos circuitos e labirintos do Processo?

    Sem renunciar luta pelos direitos, ao problema do jurdico, ao sistema subvertido

    como arma? Mas, como isso seria possvel? Como essa prxis resistente de

    produo de direitos, indissocivel do mundo em que estamos, sua percepo

    como premncia vvida, pode se dar? De que maneira, entre a prxis de afirmao e

    a captura pelos poderes constitudos, se pode enxergar uma franja de criao de

    novos direitos, colocar-se nela, viv-la? Como potencializ-la e sustent-la, no

    momento em que acontece ou, que seja, como memria militante? No me refiro,pelo menos no propriamente, ao problema clssico das fontes do direito. No me

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    preocupa tanto identificar fenmenos pr-jurdicos, como se os direitos tivessem

    uma pr-histria, aqum da cincia ou prtica jurdicas, propriamente ditas. Como se

    coubesse ao cientista do direito pesquisar o que vem antes para entender o depois,

    a origem das normas para compreender a norma atual. No reconheo instncias

    privilegiadas de enunciao dos direitos que estejam desatreladas da imanncia da

    vida e do ser, noutro plano epistemolgico. Penso no direito como prxis de

    afirmao de direitos1. Em verdade, quando falo direito, essencialmente me ocupo

    do direito enquanto potncia2, ainda que sob a modalidade normativa, em seus

    distintos graus de impotncia. Isto , direito como uma potncia do agir que um

    sujeito cria no processo mesmo em que age, no ato mesmo em que se cria como

    sujeito. No pretendo estabelecer, de incio, uma dicotomia entre o direito comonorma construda e potncia de construo, como se fossem duas atividades

    separadas. De um lado, o fenmeno da normatividade posta. De outro, a fora

    normatizante. No. As normas exprimem foras cristalizadas. A forma jurdica

    embute momentos construtivos sistmicos que atravessam os muros epistmicos

    entre direito, poltica, economia e cultura. Com efeito, a prpria sequncia

    tradicional, da potncia norma, do constituinte ao constitudo, neste trabalho

    colocada em questo, seja essa sequncia atribuda de carter cronolgico,ontolgico ou deontolgico.

    Esta interrogao tem me acompanhado desde o comeo de meu estudo do

    direito, durante o perodo da graduao. Em parte, essa interrogao resultou na

    apresentao de minha monografia de concluso de curso, intitulada Spinoza:

    ontologia da liberdade. Vale a pena pensar retrospectivamente, distanciado que

    estou de sua redao, como uma espcie de grau zero deste trabalho. Nela,

    orientado pelo professor e amigo Antnio Augusto Madureira de Pinho, pesquisei ascondies ontolgicas da liberdade, segundo Baruch de Spinoza. O filsofo elaborou

    uma tica rigorosa, atravessada pela ontologia, que contorna a necessidade de

    assumir um ponto de vista normativo, transcendente ou deontolgico. Uma tica

    alternativa aos grandes eixos da modernidade. O universo spinozano se desdobra

    como plano de imanncia em que territrios muito distintos do ser podem coexistir

    1Por exemplo, a concepo militante do direito por FLORES, Joaqun Herrera. Teoria Crtica dos DireitosHumanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2009. Filio-me, em

    especial, leitura por MENDES, Alexandre.cJoaqun Herrera Flores e a dignidade da luta. Revista LugarComum, n. 33-34, p. 19-36, 2011.2 Nesse sentido, por GUIMARAENS, Francisco de. Direito, tica e poltica em Spinoza; uma cartografia daimanncia. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2011.

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    sem separao metafsica, sem a guilhotina tpica da modernidade: entre homem e

    natureza, razo e instinto, civilizao e barbrie, linguagem e ser. Trazido para o

    jurdico, o monismo spinozano descortina a imaginao dos direitos de um modo

    imanente, como produo interna ao criadora do ser em que cultura e natureza

    coabitam. Ou seja, fabul-los inextricavelmente produtividade ao ser. Imaginar os

    direitos alm das distines tpicas dos universalismos ou culturalismos humanistas,

    em qualquer caso matizados pelo corte humano/no-humano. Assim, com Spinoza,

    no se assume como premissa algum horizonte transcendente ou transcendental de

    dever-ser, a que deveramos apelar para valorar, qualificar, subsumir ou enquadrar

    os eventos do ser ou os fatos. Em vez de duplicar a realidade em planos separados,

    o ontolgico e o deontolgico; tem-se um universo que funciona como proliferaode essncias atuantes, de potncias irremediavelmente encadeadas nas relaes de

    causa e efeito, que se afetam entre si na efetividade das produes. Da, se d a

    gerao combinada de efeitos, sejam eles produtivos ou improdutivos, de toda sorte

    mltiplos e multiplamente direcionados o mundo mesmo, enquanto causalidade

    eficiente infinita. Essa multiplicidade de efeitos no pode ser reduzida a entidades

    transcendentes ou finalismos. Termina por implicar uma tica da potncia, sem

    transcendncias de qualquer ordem; logo, sem conotaes maniquestas oumoralizantes, aqum e alm do pensamento da soberania como organizador

    monolgico das coisas, dos homens, da cidade. Com Spinoza, aprendi uma tica

    voltada para o incremento de potncia dos seres, no constante aperfeioamento dos

    encontros, arte dos afetos, cincia do amor. Essa tica to relacional se anima pela

    expanso dos bons encontros, os que ampliam a esfera de realizao, cupidez e

    alegria da gente. Uma tica que viceja politicamente com a maior produtividade da

    vida, com a democracia da multido e sua liberdade polimorfa, da felicidade comoatividade constituinte de todos, para todos. Neste pensamento to rico que aprendi,

    no h lugar para nenhum pensamento dicotmico a distinguir Cu e Inferno,

    conformando a poltica aplicao prescritiva do primeiro para evitar o segundo,

    como em todos os projetos utpicos de cidade ideal, divina ou perfeita. Nenhuma

    formalizao das relaes materiais que atravessam irredutivelmente complexas a

    prxis na plis, que venha a negar a multiplicidade substantiva em proveito da

    escolha mistificada entre Deus e o Diabo. Pe-se em movimento uma poltica em

    que o ser varia e se produz continuamente, a grandes velocidades e intensidades,

    num cadinho geracional em que o novo pode ser criado, apesar das condies

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    dadas de tempo e espao, e mesmo contra o status quo. Essa tica da potncia d

    a chance de o sujeito se afirmar no mundo prescindindo de autorreflexo moral, de

    uma conscincia andarilha atrs do eixo axiolgico da existncia. Ela dispensa a

    clssica equao que faz o sujeito surgir quando se constitui moralmente, em

    oposio amoralidade da natureza, dos instintos, da irracionalidade dos

    interesses, da vontade de poder. Pensar o direito com Spinoza tambm significa

    pens-lo como substncia ontolgica, primeira e anterior a qualquer entidade

    representativa da razo, legitimidade, legalidade ou moralidade pblicas,

    transcendente ou transcendental, totalitria ou individual: o estado, a nao, a norma

    fundamental, a sociedade poltica. O direito como produo alm do estado, de

    qualquer sntese de contrrios dialticos ou unificao da diversidade afetiva dasessncias singulares. E igualmente alm da mera formulao de demandas dirigidas

    ao estado, i.e., do carter reivindicatrio de movimentos, grupos de presso ou

    organismos ditos instituies da sociedade civil. Um direito que, no limite, tensiona

    internamente aos constrangimentos para abolir a prpria forma jurdica e forma-

    estado3. Se no me furto a pensar o estado, recuso a colocar-me em seu ponto de

    vista, sobre ele como perspectiva dos saberes de resistncia. Desde j, me ponho

    fora daqueles que erigem o estado a totem, como se a legalidade embutisse um bemem si, teologizada. Em erro simtrico, tambm no se pode abandonar a legalidade

    como um todo, pois pode tambm ser reutilizada como arma, por quem luta.Alm do

    estado e da sociedade civil, desta lgica em que o agente transformador ainda

    precisa de uma instncia externa tal qual o estado, para existir e criar e se afirmar

    como ente produtivo poltica e eticamente. Diversamente, a lio de Spinoza est em

    que a sociedade poltica surge de uma produo imanente multido (moltitudine).

    Que ela depende do esforo de perseverar e ser eficaz (conatus), noutras palavras,produzir e causar efeitos: potentia. Que se desenvolve graas imaginao de

    construo de instituies relativamente duradouras, segundo a ao sinergtica da

    razo e do desejo (conatus). Todo esse riqussimo solo tico permitiu a mim, como a

    muitos outros, frutificar um rol de questionamentos e inquietaes capazes de

    manter-me motivado nos estudos do direito. Julgo fundamental esclarecer este ponto

    autobiogrfico. Pensar com Spinoza significou se distanciar da maioria das linhas

    3 Nesta linha, como se sabe, PACHUKANIS, Evgeny B. The General Theory of Law and Marxism. Traduo deBarbara Einhorn. New Jersey: Pluto Press, 2002 [1924]. Recomendo a apreenso cuidadosa da obra por:NAVES, Mrcio Bilharinho. Marxismo e direito; Um estudo sobre Pachukanis. So Paulo: Boitempo, 2008.

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    dominantes na teoria e prtica do jurdico, de todo insatisfatrias dentro de meu

    escopo de desejos. A mim, isto significou a libertao de muitos esquemas e

    edifcios tericos que costumam matizar o ensino jurdico e que constrangem a

    fabulao, mobilizada exatamente pelo desejo, de uma alternativa radical ordem

    posta.

    A minha hiptese: a emergncia de novos direitos depende de uma inovao

    que articula sujeito e situao. uma hiptese comunista, na medida em que, para

    mim, a produo de novos direitos se situa na franja de constituio de uma nova

    forma de organizar as relaes produtivas. No se trata de produzir direitos para

    dentro da sociedade capitalista, mas para alm. Uma criao centrfuga. Nesta

    dissertao, a articulao entre sujeito e situao tambm se exprime como entrepoltica e fato poltico, entre verdade e doxa, entre foras produtivas e relaes de

    produo, entre poder constituinte e poder constitudo, entre trabalho vivo e capital,

    entre direito como potncia vivo, singular ou comum, e direito normativo. Tais

    pares conceituais no formam dicotomias ou maniquesmos, o que seria moralizar a

    luta. Ser materialista significa reconstruir a procisso interna por meio do que os

    processos produtivos se concretizam, compreender a gnese das foras, as cadeias

    de causas e efeitos; e ento intervir. Sobretudo intervir. Noutra temporalidade,tambm se trata de pesquisar as descontinuidades, as rupturas, os eventos

    constituintes, as variaes intensivas, as viradas inesperadas, as impudiccias e

    astcias que desestabilizam narrativas demasiado ordenadas e snteses

    apressadas. Essa hiptese no desmerece quaisquer lutas reformistas quando se

    propem a melhorar a condio do proletariado por dentro da ordem constituda.

    Pesquisa-lhe as limitaes e se impregna desses processos mais institucionais, para

    compreender os pontos de fuga, os potenciais de escape e radicalizao. Nemsempre o reformismo se ope revoluo. A revoluo permanente se diz de muitos

    modos, e mesmo o reformismo por vezes se assenta sobre momentos crticos onde

    as tenses podem atingir o ponto de ebulio. O terico radical no deve cultivar a

    expectativa em seu pblico de invectivas incendirias e veementes condenaes

    todo o tempo. s vezes, bom decepcion-los e praticar a tcnica do anticlmax. O

    caminho sinuoso. Se elogivel o despeito para ignorar as placas de pare e

    todos os panfletos anticomunistas, isto no significa que se deva marchar em frente

    sem olhar para os lados. A prosa revolucionria costuma se apresentar seca, direta,

    masculinizada. Em tom de manifesto, a letra militante se faz de msculos, tendes e

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    nervos. E nada mais. No essa a minha fome. A minha prosa se quer mulher.

    Barroca, sinuosa, tensa, incontida, por vezes torrencial. Poderia dizer que exprime a

    resistncia do colonizado contra a forma e a razo europeizantes, como um

    Carpentier ou talvez Oswald viesse a meu socorro. Poderia me reclamar artista,

    mas no. Considero essa qualificao ambgua, seno 90% elitizada, e facilmente

    manejada para segregar o pequeno deus das massas ignaras. No materialismo, o

    contedo drena as formas e no o inverso. O estilo adotado se justifica pelo singelo

    fato de que no pratico mtodo cientfico propriamente dito. Em absoluto. Isto

    filosofia no direito, e prosa poltica. Escrevo como derrame de uma vida mais

    carnuda, que um dia vaza no papel. Escrevo porque amo a prtica da escrita e, pra

    mim, s faz sentido escrever sobre o que se ama. Mesmo que seja sobre o dio, queno deixa de ser uma forma de amor (amide mais intensa), ainda que geralmente

    mal utilizada.

    Muitas vezes embriagado dos ardores da poltica, volto a fincar o p no cho

    com certo livro de cabeceira. Um livro, alis, nada pbere. Estou falando do mais

    brilhante livro do sculo 20, O Homem Revoltado4, de Albert Camus. Como estou

    digredindo sobre a forma de uma dissertao, como pede a melhor tcnica, quero

    falar desse exemplo literrio. H obras ensasticas pretensiosas, em geral tesessobre grandes temas, que comeam muito firmes, porm, chega uma hora em que

    visivelmente dobram os joelhos. comum escritores pberes ou acadmicos

    deslumbrados proporem mundos e fundos na introduo de seus trabalhos de

    juventude. s vezes, at abrem promissoramente a exposio do argumento,

    exibem algum talento, mas de um modo ou de outro no so capazes de manter o

    flego. Parecem como aqueles corredores diletantes que, nos primeiros dez ou

    quinze minutos de uma maratona, at conseguem acompanhar o ritmo da elite eaparecer na TV. Contudo, passado o entusiasmo inicial, os maratonistas treinados

    terminam por se destacar da turba amadora, e assumem a liderana at o final da

    prova. O Homem Revoltado um livro que mantm o flego por 350 pginas.

    Aproveito a oportunidade, antes de entrar no principal desta dissertao, para falar

    um pouco do contedo de O Homem Revoltado. Perante o empenho novecentista

    de legitimar o assassinato ideolgico, o livro recusa tanto a concepo terrorista,

    quanto a burguesa acomodada. A primeira concepo de que fala Camus agasalha

    4 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado.Traduo de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996.Aproveito-me neste pargrafo de minha prpria resenha da obra.

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    a violncia imediata, a brutalidade exercida sem piedade ou comoo, a fim de,

    esperanosamente, desarticular os mecanismos de violncia difusa e annima.

    Mata-se visando a um futuro igualitrio e sem classes. Eis a subverso da revolta,

    isto , o triunfo do niilismo sanguinrio, a culminar no terror jacobino, na seita de

    Nechaev, no nazismo e no estalinismo. A segunda concepo horroriza-se com a

    violncia imediata e sua face sangrenta, mas aceita a presena difusa como crime

    quotidiano do poder: perpetuao da opresso de classe, mediante a virtude do

    porrete estatal. Eis o cinismo de classe-mdia, o cinismo do desenvolvimento da

    nao e do povo, em direo a um futuro de glrias. Desculpa para a injustia do

    presente, da ausncia de revolta. Penso que a revoluo no est no meio disso,

    entre o terrorismo e o liberalismo antitotalitrio, mas numa segunda via que rejeitaesse problema. Nem a mquina assassina comandada por burocratas e intelectuais

    do partido nem a mquina assassina administrada pelos filisteus. Nem a profecia

    revolucionria nem a profecia do progresso, duas escatologias, duas tentativas de

    impor a cidade de Deus na cidade dos homens, tendo com resultado o assassinato.

    Camus propugna pela revolta enquanto violncia que se faz na hora da ao, na

    urgncia da luta, decodificada e no premeditada. Uma violncia voltada

    desconstruo dos mecanismos de violncia, aqum da extrapolao utpica, sem apretenso de legitimar-se nas calendas gregas, sem jamais tergiversar na veemente

    rejeio pena de morte. Em todo caso, uma revolta em que cada um

    pessoalmente responsvel por suas aes, em que morte alguma se justificar com

    a invocao de letras maisculas. Como sustenta Ivan Karamzov, preciso poupar

    todos e cada um, sem exceo. A revolta camuseana perscruta por uma justa

    medida, qual no classicismo latino, por uma clareza de meio-dia contra todas as

    noites romnticas de torpeza e pessimismo. A eficcia no pode derrotar a justia:os fins justificam os meios assim como os meios justificam os fins. Anseia por um

    equilbrio entre meios e fins, entre ao e ponderao, por um antdoto contra as

    grandiloquncias do discurso. Refere-se por essa expresso, aos calores demasiado

    iconoclastas e exageros demasiado romnticos, ao orgulho luciferiano, e s

    imprecaes cnicas. Contrape-se assim o autor ao demasiado das ideias

    regicidas, deicidas e liberticidas; s crenas dos religiosos da virtude (ilumin istas),

    dos religiosos do crime (libertinos e poetas malditos), dos religiosos da histria

    (marxistas-leninistas). Em todos eles, rasteja o verme de um niilismo que viceja

    como ideologia assassina. s ideias grandiloquentes, ope-se o pensamento

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    mediterrneo, uma metfora que nada tem de bairrista. Enlanguescido beira de

    nostro mare, acalentado pela brisa seca, ligado intimamente terra ensolarada e ao

    corpo sensual, o homem mediterrneo no sucumbir s profecias, no trocar a

    sua alegria e liberdade por promessas de salvao ultraterrena. Generoso e

    irresignado, ele diz sim vida, em toda a sua tragicidade e absurdo, mas est

    pronto para o no diante da mais tnue injustia. Sua dignidade consiste na revolta

    e atravs dela se percebe unido aos outros homens. A eles combinado menos por

    ideologias abstratas, do que pela potncia de insurgir-se, pela prtica comum de

    direitos concretos. Pela luta em nome de coisa alguma, luta pela afirmao do que

    eles so: corpos livres, sadios e inviolveis. Eu me revolto, logo existimos. Fecho o

    parntese.Testar a minha hiptese, a rigor, implicaria reconstruir toda a memria das

    lutas. Porque todas se unem pelo menos na coragem da revolta, e isso no pouca

    coisa. Evidentemente, a interrogao sobre os modos de criao dos direitos seria

    inesgotvel. O nmero de peas do quebra-cabea, suas hipteses, recortes,

    modelos e metodologias ultrapassam o escopo de uma pesquisa como esta,

    arrematada em cento e poucas pginas. trabalho de uma vida, de muitas. Outras

    consideraes metodolgicas tambm convm. Faz-se necessrio admitir quepesquisas desta natureza extravasam dos muros internos e externos da academia.

    No fundo, a pesquisa sobre a produo dos direitos percorre as prprias lutas,

    informa-lhes e por elas informada, na medida em que os sujeitos produzem um

    conhecimento na luta mesma e se constituem como tal nela, pensando-a e agindo-a.

    Muito longe de teorias ornamentais, a fim de preencher requisitos burocrticos, ou

    colher o aplauso em acomodaes confortveis da Academia, os saberes

    situados na luta se propagam para municiar de ferramentas, esclarecer, mobilizar eempoderar os sujeitos do conhecimento. Subsiste um copertencimento afetivo entre

    a produo de conhecimento e a produo dos direitos, na autoformao de

    sujeitos. Por isso, seria ingnuo elaborar uma teoria sobre a produo dos direitos

    que fosse demasiado descolada da prpria prtica, junto do movimento real de

    transformao. Nunca pretendi aprender o direito para servir de conselheiro ulico,

    nem fui picado pela mosca azul das bibliotecas. Mas no gostaria de recair em

    empiricismos. Teorias prontas que ignoram os fatos so to ruins quanto os fatos

    prontos falaciosamente dirigidos contra as teorias. Teoria e fato que se contradizem

    s podem ser sinnimos de teoria ruim e fato ruim. Mudem-se as teorias e os fatos.

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    Por isso, menos do que degenerar nalgum empiricismo ingnuo, isto significa

    conceder teoria o estatuto que ela merece. Se no pode ambicionar a sintetizar os

    saberes situados em totalidades onicompreensivas, reduzir-lhes a frmulas,

    mximas ou quaisquer regramentos demasiado gerais e aambarcantes. Por outro

    lado, como teorizava Michel Foucault, pode (sim!) atuar como caixa de ferramentas,

    imaginando e forjando instrumentos, ainda que precrios e inacabados, em

    constante remodelao e autocrtica. Mas ainda assim dotados no s de

    materialidade, pertinncia e utilidade, mas ousadia criadora. preciso assumir que a

    produo de um conhecimento situado nas lutas no se dissocia da prtica

    multitudinria, do trabalho da multido de agentes e foras polticas, em diferentes

    regimes enunciativos e territrios discursivos. Saberes por vezes desqualificados,ridicularizados, interditados, menores. Uma matria supostamente informe que

    caberia ao cientista, devidamente dotado de mtodo a expresso mxima est na

    sociologia emprica , depurar e sistematizar. Mas aquela produo selvagem de

    saberes menores excede as convenes, os recortes epistmicos e as metodologias

    acadmicas, e guarda a sua qualidade. Um excesso que riqueza, denso de

    determinaes e antagonismos reais, na potica de quem precisa de discurso e

    subjetividade aqui e agora, porque o hoje no tarda. O que no quer dizer que asteorias, as teoriaspropriamente ditas no possam se deixar atravessar e mesmo se

    agenciar aos saberes menores, mapeando-os. O saber no tem fronteiras se seu

    artfice depe preconceitos e olha o mundo com desprendimento. Se quiser

    enxergar e criar e no somente catalogar e reproduzir. A interconexo de redes

    produtoras de saber acontece junto do enlaamento e superposio de lutas sociais

    e polticas. Est atravessada pela subverso tica colocada em marcha, no dia a dia,

    por quem resiste e reexiste. No se trata, portanto, de adaptar essa subverso aalgum mistificado domnio terico, mas de modular a percepo. Aperceber as

    linhas to fugidias da alteridade, da resistncia, da dor, da reinveno, e lhes ligar

    pontos, prolongar os fios soltos, enredar as malhas. Do mesmo modo que a teoria

    pode e precisa se debater alm das limitaes da prtica, esta pode superar os

    obstculos da teoria5. Trata-se de uma avenida de dupla mo, sem a primazia de

    5 O relacionamento entre teoria e prtica, conforme a concepo ps-althusseriana de Gilles Deleuze, ementrevista com Michel Foucault: FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poderin Microfsica do poder. Org. eTraduo de Roberto Machado. 20. ed. Rio de Janeiro: graal, 2004 [1979]. p. 71.

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    uma ou outra. Uma derruba os muros da outra, quando est esclerosada de

    inefetividade.

    O problema que coloco nesta dissertao consiste em investigar como se d

    uma transformao produtora de direitos. Coloco o problema deste modo: como

    possvel uma interveno numa situao dada, no status quo (jurdico, poltico,

    econmico, biopoltico etc), que prorrompa um novo criador de direitos. No de

    normatividade ou de Direito, com maiscula; porm de direitos enquanto potncias

    de agir, existir e produzir, de resistir e reexistir. Esta questo to vasta, me parece,

    tambm significa perquirir sobre o sujeito da transformao, sobre como incidir com

    prticas e aes, de modo a gerar a mudana criadora. Est em causa, sem dvida,

    uma teoria do sujeito (ou da subjetividade), bem como uma teoria da revoluo.Afirmo desde j a predileo pelo mtodo materialista, como desenhado com tanta

    repercusso histrica pelo marxismo. Le marxisme bouge encore! O marxismo de

    Karl Marx, e aqui cabe o pleonasmo. Refiro-me concepo de sujeito

    transformador que no se distancia da prxis. De incio, tomo grande distncia de

    todas as teorias contratualistas, consensualistas ou intuicionistas, que partem do

    dogma do indivduo. Como se a substncia primeira da tica e da poltica fosse o

    indivduo, a vontade individual, sua existncia factual como corpo e menteindividualizados. Rejeito a hiptese. Nem as robinsonadas, contra o que se insurgiu

    Marx ao afirmar que o indivduo j produo social. Nem as totalizaes idealistas,

    em que o estado no passa de indivduo coletivizado e o indivduo uma

    coletividade individualizada. Totalidades, snteses e robinsonadas prprias de

    idelogo de que o capital tanto precisa. No gostaria de alienar-me no abstrato de

    espritos estatais ou vontades gerais. Tampouco me refiro, cumpre introduzir esta

    premissa de uma vez, a um sujeito meramente cognoscente ou contemplativo,mas revolucionrio. Sobretudo revolucionrio. Rejeito a chantagem de

    conservadores, liberais, legalistas, positivistas jurdicos e funcionrios da ordem

    estabelecida, em especial os constitucionalistas inveterados, para quem toda

    perspectiva da revoluo invariavelmente choca o ovo da serpente. E seria preciso

    conservar o essencial da estrutura presente para evitar os totalitarismos esquerda

    ou direita do espectro ideolgico. Opem ao intolervel do presente o mal absoluto

    que pregam a ttulo de pesadelo. Sou ainda jovem para sucumbir chantagem do

    menos pior. Os dois so piores. possvel viver de outra forma, viver o presente na

    sua textura de vida e amor comunalizados. Ento sim!, sujeito revolucionrio. Que

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    conhece e se conhece na medida em que se constitui, se afirma, deseja e, assim,

    existe como criatura deste mundo. Protagonista do presente, nas emergncias onde

    se transformam mutuamente os sujeitos e objetos, na cadeia de articulaes

    materiais e produtivas entre eles, no sistema de produo. A teoria do sujeito sobre

    que pretendo dissertar passa longe de anlises epistemolgicas decididas

    simplesmente a identificar a nota distintiva do sujeito poltico e traar-lhe os

    caracteres definidores. No existe sujeito em si, diga-se logo. Uma teoria voltada a

    definir o sujeito rapidamente se esgotaria em paralogismos de razo pura, em

    esquematismos pra acadmico ver. Sujeito, neste trabalho, significa sujeito em

    atividade (sujeito-atividade, subjetividade), entretecido e dinmico aos eventos de

    seu tempo e espao, de processos dinmicos, precrios, inacabados. Ainda quepara, singularmente, romper com esses processos, no evento do comunismo. No

    outro o sentido preliminar que posso conferir ideia de emergir: ruptura,

    descontinuidade, irreversibilidade, deslocamento intensivo em relao s

    objetividades, estados de coisas e poderes constitudos.

    Esta interrogao se construiu, principalmente, ao redor da vida e obra de

    dois pensadores revolucionrios. Os filsofos Antonio Negri (1933- ) e Alain Badiou

    (1937- ). Por que os dois autores? A totalidade das razes talvez o leitor (e eumesmo) s venha a descobrir ao final. Mas se podem introduzir algumas pistas. A

    mim, trata-se de duas referncias indispensveis para que a dissertao no se

    atole no terreno movedio das muitas radicalidades do pensamento poltico. Duas

    balizas firmemente ancoradas na vivncia de seu tempo histrico. So dois

    pensadores radicais da filosofia nos sculos 20 e comeo do 21, que adotaram a

    poltica como eixo condutor de suas produes intelectuais. Cada um a seu modo,

    militantes desde cedo, um e outro viveram intensamente lutas marcantes da poca.Publicaram mais do que teorias revolucionrias, revolues na teoria. Hoje, contam

    com abrangente recepo pelos intrpretes e estudantes da filosofia poltica. Em

    comum entre eles, salta aos olhos o resgate da ontologia como vitalizadora do

    pensamento poltico. Ambos os filsofos continentais compreendem a virada

    ontolgica como imediatamente incidente sobre a ao transformadora. Os dois

    concordam que, no presente estgio do desenvolvimento das lutas, a poltica

    pautada pela representao perdeu de vista o essencial. As formas de mediao

    atravs do estado, partidos e sindicatos no servem como instrumento eficaz de

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    contrapoder. Pelo contrrio, encontram-se inteiramente subsumidas pelos

    dispositivos de captura da potncia criadora do sujeito revolucionrio.

    A partir de reviso intensiva da literatura gerada pelos dois pensadores, o

    foco desta dissertao reside na teoria do sujeito e da produo de subjetividade. A

    interrogao sobre o sujeito comunista e o prprio comunismo, como alteridade

    radical ao capitalismo, constituem topos onipresentes na vida e obra de ambos. Por

    sinal, Negri e Badiou jamais deixaram de se reivindicar publicamente comunistas.

    Mesmo durante a dcada do fim da histria, os anos 1990 em que o neoliberalismo

    parecia triunfar como a nica via aceitvel diante do que se defenestrava como

    totalitarismo ideolgico. A teoria do sujeito badiounista, no princpio

    heterodoxamente dialtica e inusitadamente maosta, depois recoberta de laivosmatemticos e poticos, culmina nas produes mais recentes na hiptese

    comunista como proposta militante altura dos tempos. Por sua vez, a ontologia

    constituinte negriana, fortemente preenchida de Spinoza e o Marx dos

    Grundrisse6 [ou Cadernos Manuscritos, preparatrios para O Capitale impublicados

    em vida], se desenvolver no sentido da produo de subjetividade, num

    comunismo fabulado maneira enfaticamente imanentista e monista.

    De Antonio Negri, expresso mais notvel da corrente marxista operasta,este trabalho aproveita a construo poltico-terica que articula o comunismo

    ontologia constituinte de extrao spinozana e marxista. Em Marx alm de Marx

    (1978)7, originalmente um curso oferecido em Paris a convite de Louis Althusser,

    Negri consolida duas dcadas de reflexo no bojo das mobilizaes sociais. Sua

    investigao terica atravessada por um perodo densssimo de eventos,

    passando por momentos cruciais da histria das lutas europeias, como o Outono

    Quente (1969), o Movimento de 1977 e a intensificao da represso estatal dosgrupos radicais de esquerda, como resposta ao assassinato de Aldo Moro (1978) por

    um comando das Brigadas Vermelhas. Marx alm de Marx, a bblia do operasmo,

    foi um livro forjado no calor do conflito dos anos 1970 na Itlia, apesar da

    linguagem profundamente intelectualizada, beira do hermtico para elementos do

    prprio movimento social.

    6

    MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econmicos de 1857-1858; Esboos da crtica da economia poltica.Traduo de Mario Duayer e Nlio Schneider. So Paulo: Boitempo, 2011.7 NEGRI, Antonio. Marx beyond Marx; Lessons on the Grundrisse. Traduo de Harry Cleaver, Michael Ryan eMaurizio Virno. Londres: Pluto Press, 1991.

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    O sujeito revolucionrio, para Negri, deve ser pensado de maneira transitiva

    ao processo de produo. As condies de emergncia do sujeito devem ser

    perscrutadas dentro e contrao modo de produo. Modo de produo, aqui, tem

    um sentido alm do econmico, produtivista ou objetivante. O conceito de modo de

    produo, tipicamente marxista, na releitura alm-Marx, no deve ser confundido

    por sua reduo por economicismos, sociologismos ou estruturalismos, ento em

    voga. Contrapondo-se a tendncias da ortodoxia marxista de sua poca, Negri

    prope uma teoria antieconmica, onde a subjetividade assume papel

    fundamental. Ou seja, a questo da produo no se circunscreve somente na

    produo de objetos, com seus respectivos regimes de valorizao e acumulao,

    mas tambm (e sobremaneira), na produo de subjetividade. No existe forautpico de onde surgiria o sujeito revolucionrio, como numa salvao

    transcendente da situao de opresso. Para o cattivo maestro, como era conhecido

    por amigos e inimigos, todos os conceitos marxistas devem ser interpretados na

    chave da luta de classe, que confere inteligibilidade ao processo de produo. E luta

    de classe pressupe o antagonismo entre duas subjetividades, entre duas

    formaes materiais de relaes e configuraes produtivas, entre dois modos de

    temporalizao e individuao das foras sociais. Se o processo do capital precisa, acada momento dialtico, abstrair o antagonismo nas snteses do Um, para o

    movimento contestatrio o Um tem de se fazer Dois. No processo do capital, no h

    esforo somente com vistas produo de objetos para os sujeitos, mas tambm de

    sujeitos para os objetos. Da a relevncia da luta revolucionria tambm investigar e

    mesmo inventar novos sujeitos, novas formas de viver a liberdade, produzir relaes

    e modos de vida. Disso tudo, decorre que a crtica ao capitalismo manejada por

    Negri vai alm de alguma sociologia do capital, mais interessada em compreender edescrever, quase em contemplao esttica, o funcionamento fascinante da

    maquinaria do capital contemporneo. No basta apontar as contradies

    intrnsecas ao funcionamento do capital, apontando a iminncia ou inevitabilidade da

    crise inscrita no regime de acumulao. Mais do que isso, o filsofo italiano elabora

    uma teoria afirmativa da subjetividade, que pesquisa na superfcie das lutas a

    formao de alternativas e os elementos do sujeito comunista. Se o mundo do

    capital se encontra em crise, se o poder constitudo se perpetua nela e graas a ela;

    faz-se necessria, como resposta, viver a crise como mundo, fazer dela a dignidade

    de uma recusa e uma reafirmao de propsito. E a partir dela, do ranger dos

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    antagonismos, do Dois subjetivamente tomado, promover a exploso de verdades

    revolucionrias e subjetividades resistentes, a expanso de potncias e afetos

    capazes de fabricar a transio comunista aqui e agora. Para Negri, constituir uma

    alternativa comunista significa, em primeiro lugar, no se restringir dialtica

    negativa, diante do modo de organizao e reproduo capitalista. No tanto a

    resistncia como, essencialmente, uma reao s manobras dos poderes

    constitudos, nas vrias dimenses: poltica, econmica, antropolgica ou social. Isto

    seria antes espelhar o poder, a transform-lo. preciso, todavia, edificar alternativas

    de contrapoder, que dependem de pesquisa e militncia.

    Nesse sentido, a conexo entre o Marx dos Grundrisse e Spinoza se torna

    fundamental na artilharia terica de Negri. A imanncia da tica spinozana secoordena com a crtica imanente do modo de produo capitalista, de Marx. A

    violncia e o intolervel esto inscritos na estrutura produtiva e permeiam o

    cotidiano, difusamente por todo o tecido social. A dominao capitalista se projeta

    sobre o tempo de vida como um todo, uma socializao da fbrica. Do mesmo

    modo, o outro mundo, o amor, a beleza, a justia e a criatividade que milhes e

    milhes de pessoas insistem em afirmar apesar das dominaes, eles tambm

    podem ser desenvolvidos a partir de uma luta cotidiana. Nisso, Negri elege afinidadecom o rico tempo dos movimentos sessentoitistas, muitos dos quais viam na arte do

    viver diferente uma resistncia intrnseca. O comunismo no vem do exterior, como

    um messias se acercando de Jerusalm, mas das frinchas, desarranjos e franjas, no

    interior mesmo das operaes do capital, do mundo da mercadoria e suas

    temporalidades abstratas e mortas. O rendimento afirmativo est em recus-lo no

    ato em que se opta por viver e existir socialmente de outros modos. O sujeito

    revolucionrio emerge, destarte, graas a um excesso constitutivo da existncia,uma soma de afetos ativos que desborda das malhas e aparelhos de captura do

    tempo vivo. Em suma, resistir no significa simplesmente se opor ao poder, mas

    afirmar uma alternativa de desejo, qui uma institucionalidade liberta da forma-

    estado, do capital, do trabalho. Reexistir no apenas como produzir objetos e

    sujeitos, mas viver mesmo, viver tout court, como resistncia biopoltica. A luta de

    classe produz outra racionalidade, uma razo vital mais plena e potente. A

    autonomia, a autoformao e a autodeterminao, trade de termos de uso

    comum pelos operastas, se tornam bases polticas e tericas para o problema da

    organizao. Ser autonomista, para eles, quer dizer construir e pensar o sujeito

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    transformador direta e imediatamente nas foras vivas da luta de classe,

    independente de estados, partidos ou sindicatos. Tais instncias totalizantes e

    representativas exprimem sempre um menos em relao ao poder constituinte do

    movimento, que lhes precede e excede ontologicamente. Movimento entendido no

    sentido lato e no somente como entidade orgnica, munido desta ou daquela

    bandeira. O corolrio autonomista tambm se fundamenta na distino entre poder

    (potestas) epotncia (potentia), que Negri se deixa afetar inteiramente pela potncia

    e alegria da filosofia spinozana, em particular com Anomalia Selvagem (1981)8. Em

    segundo lugar, para uma anlise eficaz do sujeito revolucionrio, se exige ao

    pesquisador a colocao em vvido contato com os movimentos de seu tempo. Pr-

    se no limiar biopoltico em que aparecem novas estratgias de luta, formas de auto-organizao produtiva e modalidades de convivncia. Isto conduziu a uma expanso

    dos horizontes de apreenso do sujeito revolucionrio, incluindo movimentos

    heterogneos concepo de proletariado da esquerda ortodoxa, como os

    feministas, LGBT, arte-ativistas e outros mais afinados ao ciclo de lutas do Maio de

    1968. Para Negri, a proliferao de lutas sociais e polticas de seu tempo

    demandava o alargamento das condies de constituio e fortalecimento do sujeito

    revolucionrio. Tem-se, portanto, uma teoria altamente heterclita pautada pelatransitividade entre subjetividade e modo de produo, de carter endgeno e

    antagonista (dentro e contra) s foras do capital, onde cabe ao militante-

    pesquisador desenredar e reconstituir os fios vermelhos do comunismo. Embora

    destoante dos economicismos e estruturalismos, o mtodo no pode colocar em

    segundo plano as sistematizaes mais compreensivas das foras produtivas e das

    relaes de produo tpico clssico do marxismo. Por isso, Negri progrediu com

    sua obra mediante sucessivas periodizaes diacrnicas e sincrnicas, analisandoos desequilbrios, descontinuidades, reviravoltas e astcias da luta de classe.

    Sucessivamente, aperfeioou e refinou a perspectiva do sujeito capaz de constituir o

    comunismo no presente.

    No primeiro captulo, exposta a metodologia de pesquisa militante

    desenvolvida e praticada pelos operastas. Mais do que caminho para a verdade, a

    con-ricerca (copesquisa) presta contas ao materialismo marxista e spinozano, em

    que teoria e prxis caminham juntas no interior dos sujeitos em luta. Essa anlise

    8 NEGRI, Antonio.A anomalia selvagem. Traduo de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: ed. 34, 1993.

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    est associada apreenso heterodoxa que Negri, como terico mais profcuo da

    corrente, faz dos Grundrisse, quanto aos mtodos da abstrao determinada e da

    tendncia. No terceiro captulo, so tecidas as consideraes mais filosficas sobre

    a ontologia constituinte, interna ao projeto negriano de sujeito revolucionrio,

    tomando como eixo as referncias centrais de Spinoza e Marx.

    De Alain Badiou, pretendo aproveitar a teoria do sujeito revolucionrio

    elaborada no livro intitulado (no por acaso) Teoria do Sujeito (1982)9. Assim como o

    quase contemporneo Marx alm de Marx, de Negri, esse livro consolida um perodo

    de escritos polticos e tericos do filsofo francs. O pensamento filosfico de Alain

    Badiou atravessado pelo poltico de ponta a ponta. Para ele, poltica pensamento

    e no pode subsistir qualquer distncia entre a poltica e a filosofia poltica, entre aprxis e a teoria que lhe anima. Da militncia maosta da juventude, Badiou

    permaneceu fiel ao antagonismo como centralidade na luta revolucionria. A ruptura

    com o que est posto imprescindvel ao aparecimento do novo. E o novo liberta

    contra o velho, numa reedio dos ensinamentos de Mao. O novo liberta na

    contradio, jamais idealistamente ou ex nihilo, mas no recomeo e reorganizao

    do que j existe. O novo como materialidade, como apario de verdades reais em

    meio a uma situao saturada de constries, escleroses e foras conservadoras. Onovo irrompe e dispara processos de organizao, enunciao, reformulao,

    reinveno. Trata-se de um processo do novo, associado a um processo de

    verdades. Cabe ao militante se comprometer com os processos de inovaes e

    verdades revolucionrias, a fim de no acabar militando em proveito da velha ordem,

    pela via transversa. A tica militante de Badiou est na compreenso da natureza

    das contradies peculiares do mundo histrico-poltico em que nos encontramos,

    com o objetivo de intervir, de fazer uma ciso transformadora na ordem das coisas.Tem-se a uma concepo forte de sujeito, que se desdobra como conjunto de

    aes revolucionrias orientadas para a ruptura, a interveno, o conflito e a ciso

    social. O projeto poltico-terico consiste no s em abordar a possibilidade de

    irrupo do sujeito revolucionrio que opera o novo em uma dada situao. Mas

    tambm elucubrar como se poderia dar a interveno nessa situao em que o

    sujeito acontece, assim como manter operativo, aberto o processo em que o novo

    pde irromper. E como se conservar fiel a esse projeto que o evento revolucionrio

    9 BADIOU, Alain. Theory of the Subject. Traduo de Bruno Bosteels. Londres: Continuum, 2009.

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    apresenta. Badiou coloca claramente o problema do novo de um ponto de vista

    revolucionrio: como algo novo sob o sol pode fazer com que uma situao se

    transforme em outra absolutamente diversa? Balizado por sua experincia como

    militante de pequenos grupos radicais maostas, em Teoria do Sujeito as teses de

    Badiou se encontram fortemente matizadas pela invocao do materialismo dialtico

    (diamat). Heterodoxa em relao tradio esquerdista, o diamat de Badiou

    contorna a leitura do Hegel to familiar da academia francesa dos anos 60 e 70.

    Refiro-me ao Hegel recepcionado por Alexandre Kojve e Jean Hyppolite, Hegel

    prioritariamente da Fenomenologia do Esprito10, to obsessivamente contestado por

    praticamente todos os ps-estruturalistas, de Gilles Deleuze a Michel Foucault, de

    Jacques Derrida a Emmanuel Lvinas. Diversamente, o Hegel de que Badiou seabebera est noutra obra do filosofo alemo, a Cincia da Lgica11. Na

    contracorrente do ps-estruturalismo francs, no comeo dos anos 1980, o professor

    de Paris VIII no s ainda aposta num hegelianismo de esquerda, como continua

    falando em marxismo-leninismo (pela via maosta). Ele prprio encabeou um

    grupsculo chamado Union des Communistes Marxiste-Lniniste de France

    (UCMLF, ou simplesmente UC), ativo durante os protestos de 1968 em Paris. No

    se deve, no entanto, o que tambm vale para muitos conceitos e polmicas deBadiou, tais como verdade, evento, fidelidade, genrico render-se s primeiras

    impresses. O dialtico de que ele fala nada tem do safri do esprito da

    Fenomenologia do Esprito. Esta narra uma conscincia peregrina que se reencontra

    e reflete o fora em si mesma, uma mquina onvora de interiorizao ontolgica. No

    esse o sujeito badiounista, que nada tem de reativo e autorreflexivo. A crtica usual

    do ps-estruturalismo ao sujeito subsistente e autoportante, progressivamente

    identitrio e totalizador, no cabe ao hegelianismo de Badiou. A sua dialticaestabelece como polos o vazio e o excesso, e no a conscincia autocentrada; e se

    move pelas operaes de ciso e ruptura, e no de sntese progressiva. Se a

    corrente ps-estruturalista contesta o percurso da ideia que se autoapresenta at ser

    levada ao conceito, Badiou escapa dessas crticas, pois prefere usar Hegel para

    falar do colapso da representao, das categorias e identidades. O sujeito s pode

    emergir quando desloca a malha das identidades incidentes na situao poltica,

    quando recorta o jogo de representaes e mquinas de separao. O novo

    10 HEGEL, G. W.F. Fenomenologia do Esprito.Traduo de Paulo Meneses. 6. ed. Petrpolis: Vozes, 2002.11 HEGEL, G. W.F. Cincia da Lgica.Traduo de Marco Aurlio Werle. So Paulo: Barcarolla, 2011.

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    embaralha as cartas, abrindo outra forma de organizar o mundo poltico, suas

    identidades e representaes. Sem receio de vanguardismos, bem alinhado ao

    mpeto sessentoitista, Badiou rompe inclusive com a crtica da economia poltica. O

    evento instaura as novas verdades contra o prprio sistema produtivo de verdades

    do velho marxismo. O novo no depende da transitividade com o processo de

    produo. O modo de produo um conceito demasiado estruturalista, enrijecido

    pelas condies de contorno da situao dada, o capitalismo. No se trata de fetiche

    do novo, como se pudesse acontecer e basta. O filsofo tambm se debrua sobre o

    problema da durao. Como conferir consistncia, durao e corpo ao processo do

    novo material? Como evitar que os inevitveis desvios destruam a fora criativa do

    novo? Novamente em chave maosta, Badiou propugna pela revoluo permanenteinclusive dentro da revoluo. Sustentar o novo significa manter-se fiel linha justa

    de suas verdades, contra as tendncias revisionistas ou contrarrevolucionrias que

    usualmente sucedem no mbito processual do prprio sujeito revolucionrio.

    preciso manter-se depurado das contratendncias, manter o sujeito puro. Esses

    desvios podem acontecer seja direita, seja esquerda do movimento. A crise do

    materialismo histrico, por exemplo, tanto sucedia por seu desvio estruturalista ou

    objetivante, por assim dizer direita; seja como desvio anarquista ouanarcodesejante, esquerda. O alvo de Badiou no primeiro caso so os marxistas

    de partido, estado e sindicato. No segundo, os ditos ps-modernos, em especial, o

    colega professor em Vincennes: Gilles Deleuze. Segundo Badiou, a anlise das

    dinmicas produtivas e a prpria ideia de crtica da economia poltica no so to

    centrais para pensar e constituir o sujeito revolucionrio. Este um excesso

    impossvel e impensvel no interior dos esquemas produtivos vigentes. A poltica

    comea onde o sujeito excede a situao. Ele no est na luta de classe, como nomarxismo. Mas na subtrao dos laos comuns e identidades vigentes, na recusa de

    pertencer a esta, aquela ou aqueloutra categoria de seres.

    Em Ser e Evento (1988), o filsofo desdobrar suas teses sobre o sujeito

    comunista numa elaborao trabalhada a partir da matemtica, numa hibridao

    terica sem paralelo na filosofia poltica. Novamente, o que mobiliza o filsofo o

    pensamento do novo, numa ontologia capaz de recomear as lutas revolucionrias

    dentro das condies do presente. a virada da dialtica matemtica, do diamat

    teoria dos conjuntos. Badiou prope um recomeo radical da ontologia mediante o

    conceito de evento, que caracterizar da por diante a obra do filsofo. Nessa obra,

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    o evento implica uma ruptura dramtica, radical, da situao objetiva. As condies

    do evento se alargam com a existncia de excessos inerentes a toda situao, de

    uma carga insuportvel de alteridade, de dor, de paixo, que o sistema existente no

    consegue codificar e domesticar. Todo status quo contm em si, imanente, como

    subconjunto excessivo, um etctera que lhe ameaa a estabilidade. Um etctera em

    revolta que no pode ser categorizado, domesticado ou controlado por essa

    situao, pelo estado, pela moral, pelo direito posto. A essncia subjetiva atrelada

    ao evento deflagra novas verdades, uma subjetividade transformadora que

    desestabiliza as estruturas, descodifica o pensamento, desbloqueia os desejos

    excessivos por outro mundo. Dispara o processo de verdade, que passa a depender

    da militncia para durar e adquirir consistncia, para transfigurar a prxis nocomunismo. A verdade, portanto, depende de figuras da subjetividade que a

    sustentem enquanto processo poltico, por dentro dos movimentos e foras vivas do

    presente. Esse processo no se guia somente por militantes veteranos capazes de

    compreend-lo, mas por todos sem distines de qualquer natureza. A leitura de

    Plato por Badiou permite afirmar esse igualitarismo radical. Pois qualquer um

    capaz de aceder verdade, tem dentro de si a capacidade de perceb-la, segui-la,

    ser-lhe fiel. O evento pe em marcha formas de pensar e fazer poltica quereclamam, pela evidncia de suas verdades, a fidelidade de quem pretende resistir

    ordem vigente. Mas o evento no gera uma diferenciao vanguardista, e sim um

    nivelamento das diferenas existentes. Se o evento coloca radicalmente a diferena

    das verdades que esgara, para abolir as categorizaes e identidades existentes.

    Da perspectiva da estrutura de poder, o evento sequer pode existir. No estranha a

    dificuldade com que a ordem estabelecida tem para lidar com verdades novas,

    difceis de codificar, domesticar ou atender. Como se a revoluo no passasse deinsurreio cega, incapaz de articular demandas e expor um projeto poltico

    duradouro em substituio ao que critica. O preconceito no passa da racionalizao

    do medo ancestral das jacqueries, dos pobres de tochas na mo para matar os

    patres. Novamente, o argumento chantagista do menos pior entre o intolervel

    diludo no cotidiano e o mal absoluto. De tudo isto fica claro que, para Badiou, o

    sujeito no um subsistente (seguro e confivel) que permanece apesar das

    mudanas que o atravessam, como em certa recepo hegeliana. No tem

    conscincia nem unifica a experincia de vida de um corpo-mente. Trata-se, na

    realidade, de um processo de subjetivao imanente situao dada, na

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    contradio entre ela e a interveno do evento. Esse processo de subjetivao

    implica a revoluo da ordem colocada e se orienta por verdades em processo. O

    sujeito revolucionrio, por assim dizer acontecimental, emerge como conjunto de

    aes que excedem, enquanto processo sustentado, o estado das coisas. Se o

    evento corta a situao, o sujeito quem opera o corte radical. O caminho da

    revoluo se confunde com o caminho da verdade e da fidelidade. Esta breve

    introduo nos permite ver o quo longe se est das totalizaes e identificaes

    usualmente atribudas ao hegelianismo. Quo distante, tambm, do idealismo

    hegeliano ou platnico, por vezes imputado ao filsofo francs.

    No segundo captulo, proponho investigar com maiores detalhes a teoria do

    sujeito badiounista, de sua apropriao singular da dialtica, perpassada pelaatmosfera do maosmo, at o limiar da virada matemtica de seu pensamento. No

    irei, no escopo deste trabalho, adiante.

    Esta dissertao concluir, no quinto captulo, com um breve encontro e as

    fagulhas que podem resultar da, entre o sujeito e a subjetividade em Negri e

    Badiou. No viso a nenhuma posio intermediria, um ponto arquimdico que

    pudesse balancear ou conciliar as teorias dos autores. Quanta arrogncia seria us-

    los como pretexto para sustentar a posio mdia, a nossa. Os claros-escuros deminha argumentao esto organizados a favorou contra, podem at recolocar os

    problemas noutros termos, mas sempre e sempre atravs dos dois filsofos. As

    opes polticas, tericas e metodolgicas dos autores divergem entre si em muitos

    pontos. A minha, esperanosamente, deve ficar mais clara na medida em que as

    abordo. Prefiro Prometeu a Narciso e no renuncio inventividade do discurso nem

    agressividade da diferena.

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    1. A copesquisa no operasmo autonomista

    1.1. O operasmo

    Os operastas so um dos mais produtivos grupos militantes e intelectuais de

    perspectiva marxista. Mais do que uma escola do pensamento, elaboraram uma

    prtica ativista original, junto das mobilizaes e lutas polticas de seu campo de

    atuao, conjugando densidade terica e efetividade. Este captulo se prope a

    investigar, preliminarmente, aspectos da metodologia desse movimento poltico e

    terico cuja histria, relativamente pouco difundida, ainda est sendo escrita.

    Oriundo da Itlia

    12

    , inicialmente reunido ao redor das revistas QuaderniRossi13e Classe Operaia, o operasmo se desenvolveu continuamente do incio dos

    anos 1960 at o limiar dos anos 1980, em constante mutao a partir da anlise das

    circunstncias histricas, oportunidades polticas e possibilidades de composio,

    abertas por suas hipteses para a transformao social e seus encontros militantes.

    No comeo, era formado por dissidentes do Partido Socialista Italiano (PSI) e do

    Partido Comunista Italiano (PCI), decididos a realizar um retorno Marx. A

    renovao do marxismo pelos operastas teve por primeiro objetivo desenvolver

    ferramentas para lidar com os desafios revolucionrios, no contexto da intensiva

    industrializao fordista da Itlia do ps-guerra. Nesse escopo, eles propuseram

    radicalizar o marxismo professado pela esquerda oficial nos partidos e sindicatos,

    cuja atuao fora diagnosticada pelos operastas como j funcionalmente integrada

    prpria matriz capitalista de dominao. Determinaram-se a estudar a realidade da

    fbrica italiana, para apreender as relaes de fora e os dispositivos materiais de

    explorao e comando capitalista (a composio orgnica do capital), bem como

    sondar a composio poltica de classe que lhe poderia resistir e combater. A partir

    da, realizaram anlises inovadoras e discusses polticas, circulando nos

    movimentos sociais e se articulando aos desejos e organizaes de resistncia de

    seu tempo, como uma autntica subjetividade ativista. Em sntese, para o

    pesquisador argentino Csar Altamira, a originalidade operasta repousa na

    12ALTAMIRA, Csar. Os marxismos do novo sculo. Traduo de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 2008. Captulo 2: O operasmo italiano. p. 115-217. Mais sobre a histria do operasmo autonomista:WRIGHT, Steve. Storming heaven; class composition and struggle in Italian Autonomist Marxism. NY: mimeo,

    2004. BALLESTRINI, Nanni, MORONI, Primo. Lorda doro.Milo: Sugar & Co, 1988.13 Fundada por Mrio Tronti e Raniero Panzieri, teve seis nmeros seminais sobre composio de classe eautonomia operria, de 1961 a 1966. Desse perodo, referncia central : TRONTI, Mario. Operai e capitale.Turim: Einaudi, 1966.

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    alternativa terica ortodoxia marxista predominante nos partidos comunistas,

    teoria crtica pela Escola de Frankfurt, ao existencialismo humanista de Jean-Paul

    Sartre e ao estruturalismo de Louis Althusser.14Alm do marco terico, no se pode

    esquecer que o operasmo no se restringiu a fenmeno circunscrito

    intelectualidade marxista. Ele somente pode ser entendido e explicado quando

    tambm considerado uma expresso das foras vivas do movimento dos

    trabalhadores em estado de revolta, como uma cultura de resistncia e um

    fenmeno de contrapoder de significativa abrangncia.

    Na virada para os anos 1970, o operasmo se ramificou em duas trajetrias.

    De um lado, o grupo mais ligado a Mario Tronti passou a adotar o conceito de

    autonomia do poltico em relao autonomia de classe, ao mesmo tempo emque apostou na criao de um sindicato de tipo novo, e se reintegrou s fileiras do

    PCI. Do outro lado15, o grupo com Antonio Negri e Srgio Bologna rompeu de vez

    com a esquerda oficial, afirmando a autonomia da classe operria diante de

    qualquer mediao por parte de estado, partidos, sindicatos ou outras instncias de

    representao. Para eles, o movimento de transformao deve assumir a

    perspectiva diretamente de classe, contribuindo para a auto-organizao dos

    trabalhadores, a partir da realidade concreta do trabalho e da explorao, menos doque depender de mediaes e interpretaes externas. Pontuando o surgimento da

    vertente autonomista, Giuseppe Cocco explica: Aps mais de dez anos de

    contribuies tericas inovadoras crtica tradio do movimento operrio oficial,

    s noes gramscianas de bloco histrico e intelectual orgnico e de con

    ricerca, isto , de pesquisas diretamente envolvidas com a construo de instncias

    organizacionais dos novos sujeitos...16. Por esse motivo, o ltimo grupo foi

    sucessivamente repudiado por organismos da esquerda mais representativa e seusintelectuais institucionais.

    O operasmo uma fora poltica marxista que, graas metodologia de

    pesquisa e formas de atuao, conseguiu disseminar-se pelas redes de movimento

    14 Ibid. p. 118.15A corrente mais autonomista e movimentista se organizou em dois eixos principais: Potere Operaio e LottaContinua. O primeiro, Potere Operaio, ttulo tambm de sua revista,durou de 1969 a 1973, encabeado porAntonio Negri, Srgio Bologna, Oreste Scalzone e Lanfranco Pace, at gerar o mais famosoAutonomia Operaria(1973-79), que se concentrou nas lutas dos desempregados, trabalho informal, artistas, coletivos culturais,imigrantes e outros setores no-contemplados pela concepo rgida de proletariado industrial dos sindicatos. O

    segundo, o grupo Lotta Continua, baseou-se mais ao noroeste italiano (principalmente Turim) e durou at 1982,articulando lutas de universidades e fbricas.16 COCCO, Giuseppe. Introduo de: LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial: formas de vidae produo de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 16.

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    na Itlia dos anos 1960 e 1970. Foi um trabalho cooperativo, ombreado com os

    trabalhadores, numa frente sucessivamente redefinida com novos sujeitos e

    composies sociais, medida que emergiam e se organizavam no mundo do

    trabalho vivo. Operou lado a lado com coletivos autnomos alm dos sindicatos e

    auto-organizaes de trabalhadores, em meio ao cotidiano, mas tambm a greves,

    marchas e aes diretas. Esteve integrado s lutas reais, especialmente, no Outuno

    Quente de 1969 (o Maio de 68 italiano), nas greves selvagens de 197317 e no

    heterogneo Movimento de 197718.

    Em 1979, os autonomistas operastas sofreram a represso intensificada por

    parte do aparato estatal, mediante processos, perseguies, censuras e prises

    arbitrrios, na sequncia do assassinato de Aldo Moro (cometido por outro grupo, asBrigadas Vermelhas). A represso contou com a cumplicidade do PCI que, no final

    da dcada, compunha uma coalizo de governo com o partido de centro-direita, a

    Democracia Crist. Seguiu-se ento um perodo de dispora, com o exlio de vrios

    pensadores e militantes por outros pases. No houve Lei da Anistia na Itlia.

    Passados 30 anos do desmantelamento formal da Autonomia Operria, sua fora

    segue pulsante no s como memria das lutas, mas tambm como um desejo de

    resistir e reexistir, consistentemente articulado em propostas de organizao poltica,metodologia militante e ferramentas de anlise.

    Sobre a corrente operaista-autonomista, no artigo Sobre a dita Italian

    Theory19, Matteo Pasquinelli aponta a recente virada da atualidade acadmica nas

    universidades anglo-americanas. Se, no comeo dos anos 2000, a French Theory,

    ps-estruturalista e desconstrutivista, predominava em conferncias e cursos,

    concentrada em filsofos como Michel Foucault, Franois Lyotard, Gilles Deleuze,

    Jacques Lacan, Paul Ricoeur e Jacques Rancire, Pasquinelli anota umareocupao desse espao universitrio por parte de autores formados no operasmo:

    Antonio Negri, Paolo Virno, Christian Marazzi, Sandro Mezzadra, Maurizio Lazzarato

    e Franco Berardi. Negri reivindica para o operasmo o projeto de uma ontologia

    constituinte, retomando o fio do discurso onde o pensamento francs havia deixado

    desejo e micropoltica.20 A virada de interesse no interior da filosofia nas instituies

    17 Destaca-se a massiva ocupao da fbrica da Fiat em Mirafiori, em maro de 1973. 18

    Vale a leitura o bom verbete da Wikipedia em italiano, Movimento Del 77.19 PASQUINELLI, Matteo. On the so called Italian Theory. Site pessoal. Amsterd, 2011. Disponvel em . Acesso em 13 fev. 2012.20 Idem.

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    de pesquisa est relacionada fora da ontologia italiana para pensar as lutas

    sociais e fortalec-las, no contexto de crise globalizada do capitalismo. A maquinaria

    intelectual e militante do operasmo permite se situar altura dos debates filosficos

    polticos de seu tempo e, ao mesmo passo, margem dos grandes troncos da

    filosofia analtica (da linguagem) inglesa, da hermenutica alem (heideggeriana, de

    direita ou de esquerda) e do desconstrucionismo francs (derrideano).

    Em nota sugestiva, Pasquinelli sublinha o carter materialista e antagnico da

    Italian Theory, que no deve ser esquecido inclusive para dentro das lutas na

    universidade e na produo do conhecimento, que no pode se separar

    completamente das mobilizaes transformadoras. O ncleo inovador do operasmo,

    que no se pode perder com a recente tendncia de academicizao, reside nocampo compartilhado da copesquisa [con-ricerca] entre intelectuais, militantes e

    movimentos. A copesquisa recusa a disciplinariedade dos saberes e a

    hierarquizao interna produo social do conhecimento ou entre sujeito e objeto

    da investigao (a distino epistemolgica neokantiana). Con-ricerca significa

    hoje repensar, at dentro da universidade, o n entre prxis e teoria na poca da

    crise financeira.21

    por no sublimar a metodologia militante, diretamente implicada noconhecimento produzido, que o operasmo no correr o risco de degenerar em

    mais uma teoria meramente acadmica sobre o existente.

    1.2. A con-ricerca como subjetivao das lutas

    Os operastas nomearam con-ricerca22seu mtodo de pesquisa militante. A

    copesquisa comeou quanto alguns intelectuais e militantes decidiram produzir

    conhecimento formando redes transversais com a classe operria, imergindo na

    organizao realdos trabalhadores dentro da fbrica realde sua poca. Ou seja, no

    interior das grandes formaes industriais do norte da Itlia, no auge do fordismo,

    durante o perodo de crescimento econmico do segundo ps-guerra (o Milagre

    Italiano). Na Itlia dos anos 196023, esta prtica se contrapunha do intelectual

    orgnico de partido comunista. Geralmente advindo das camadas mdias e

    21 Ibidem.22 Traduz-se aproximadamente copesquisa.23 ALQUATI, Romano. Per fare conricerca.Turim: Velleit Alternative, 1993.

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    universitrias, era formado na linha do partido e ento apresentado nas fbricas,

    greves, comcios e intervenes pblicas, com a misso de vocalizar os dirigentes e

    conscientizar a massa de trabalhadores de sua prpria luta. Na copesquisa,

    diversamente, com todos os considerandos e problemas associados, se propunha a

    romper a verticalizao ideolgica da produo do conhecimento, que acabava

    reproduzindo a mesma diviso hierrquica do trabalho que o marxismo costuma

    criticar.

    Nessa proposta, os operastas passaram a se articular diretamente com o

    cho de fbrica e os movimentos sociais, mediante entrevistas, enquetes,

    encontros, articulao de textos e debates, sem mediaes institucionais entre uns e

    outros. Os primeiros envolvimentos do novo mtodo foram coordenados pelooperasta Romano Alquati nas grandes fbricas da FIAT e da Olivetti, na virada para

    os anos 1960. A hiptese de pesquisa era ousada: na opinio dos pesquisadores,

    uma srie de processos objetivos e subjetivos estavam se desenrolando na FIAT, de

    forma a estabelecer as bases para a ressurgncia da luta de classe dentro da

    empresa"24. Considerava-se que era importante compreender a relao social entre

    as classes, no lugar mesmo em que ela acontece: no momento produtivo. A partir

    da, eram discutidos, junto dos operrios, o funcionamento real da empresa, asformas de cobrana e superviso, a remunerao e a premiao, e a organizao do

    trabalho, bem como a mediao exercida pelos sindicatos e centrais sindicais. De

    maneira que os operrios, eles mesmos, em conjunto com os pesquisadores,

    desenvolvessem progressivamente um ponto de vista a respeito de sua condio,

    diante da maquinaria produtiva em que estavam funcionalizados.

    Assim, a con ricerca gera efeitos na organizao poltica de classe, que por

    sua vez determina o sujeito da pesquisa, uma composio combinada de vozesexternas e internas ao processo. De modo mais arejado do que aplicar

    dogmaticamente categorias de alguma teoria pr-estabelecida, a con ricerca expe e

    produz ressonncia sobre os comportamentos operrios, decorrentes da real

    inscrio da fora-trabalho nos mecanismos de explorao. Com isso, comea a

    perceber micro-resistncias de classe, pequenas sabotagens e recusas, disrupes

    e insatisfaes localizadas, pouco visveis, mas, ainda assim correntes, e

    intercambiadas discretamente entre grupos de trabalhadores. Essas micro-

    24 WRIGHT, Steve.Storming heaven: class composition and struggle in Italian Autonomist Marxism. NY: mimeo,2004. p. 47

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    resistncias podem ser articuladas, potenciadas, podem ganhar momentum como

    fora poltica. Elas exprimem uma inadequao subjetiva que, com auto-organizao

    que a copesquisa estimula, pode adensar e espessar em consistncia e durao, a

    fim de enfrentar diretamente as tcnicas de gesto do trabalho e os gestores

    capitalistas.

    Por isso, se diz que a con ricerca antes uma pesquisa da subjetividade, do

    que da lgica objetiva de como se produz valor numa unidade produtiva de

    organizao capitalista25. A luta de classe acontece, essencialmente, quando h

    uma apropriao subjetiva das condies de produo que o capital faz parecer

    como objetivas (mas que desde o princpio dependeram da subjetividade). Isto ,

    depende de um processo de subjetivao da condio de explorado, de umaativao dos antagonismos internos relao do capital, que se esfora por mediar

    a relao social por meio das coisas. No h pretenso de neutralidade. Mais do

    que apenas colher uma base sociolgica emprica para metas de pesquisa,

    acercando-se do objeto com uma metodologia de tipo epistemolgico, a con-ricerca

    prope-se a assumir inteiramente o ponto de vista de classe, adotar abertamente a

    parcialidade das lutas operrias. Tudo isso para, da, desse conhecimento situado

    subjetivamente, compreender o todo, sem perder de vista a sua importncia comoorganizao poltica. Se, por um lado, ganha corpo com a experincia e a

    perspectiva desenvolvida pelos trabalhadores; por outro, compartilha e faz circular

    os saberes e hipteses, contribuindo para a auto-organizao do movimento, para a

    gerao de uma composio que, a rigor, no existia. Desta maneira, podem ser

    superados muros tericos e prticos, propiciando encontros entre lutas paralelas e

    conectando pontos soltos das articulaes existentes, alm de proliferar locais para

    os possveis de antagonismo e resistncia. Trata-se de um processo multidirecional,work in progress, que coordena a produo do conhecimento e ao poltica, para a

    ruptura da condio explorada. A pesquisa no se organiza como uma espcie de

    vanguardismo, que venha a considerar a classe operria alienada da luta de classe

    e pacificada pelas sedues ou injunes do capital. Pelo contrrio, admite que o

    espontanesmo das insatisfaes, localizadas e dispersas, j um embrio da dita

    conscincia de classe. Alquati raciocinava: se Lnin estava certo em insistir que a

    conscincia de classe fosse trazida de fora, estava errado em pensar que essa

    25 Ibid. p. 49

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    conscincia poderia ocorrer fora do contexto da produo mesma.26 A copesquisa

    perquire pontos de antagonismo difundidos ao longo das cadeias de organizao do

    trabalho e assalariamento, e ento busca articul-los na autonomia do movimento

    real da prpria classe em processo.

    Na con-ricerca, portanto, no se pode falar propriamente numa preocupao

    em modificar o objeto da pesquisa, na medida em que o operariado sequer visto

    como objeto. No existe a distino entre sujeito e objeto da pesquisa, devendo

    avanar em permanente autocrtica (formal e material) no sentido da mtua

    implicao entre lutas e teoria, no sentido de uma teoria das lutas imanente aos

    problemas de autonomia, resistncia e estratgias coletivas do movimento. Isto no

    significa depor o rigor, mas redimension-lo como resultado das interaes diretasentre os muitos agentes, enredados na produo colaborativa do conhecimento. O

    objetivo tanto conhecer para transformar, quanto transformar para conhecer. As

    snteses prtico-tericas permitem, se forem bem sucedidas, reforar a

    autovalorizao do movimento, ao valorizar a capacidade de os prprios sujeitos se

    envolverem em narrativas sobre si e a condio da fbrica, que os empoderam como

    fora poltica auto-organizada. Nesse contexto, a colocao do problema, o

    estabelecimento das hipteses, as referncias tericas e a autoformao dos gruposprecisam acontecer numa espcie paradoxal de espontaneidade estimulada, em

    que os pesquisadores se preocupam em abolir as muitas fronteiras e assimetrias e,

    fazer parte, eles mesmos, do encontro entre teoria e militncia, tudo isso dentro

    de uma problemtica poltica, que tambm se metamorfoseia ao longo da con-

    ricerca.

    No se deve, de qualquer forma, mistificar a horizontalidade, como se fosse

    um ponto de partida da copesquisa. A horizontalidade ponto de chegada, e secondiciona a um trabalho intensivo de exposio e superao dos inmeros

    desnveis, hierarquias ocultas e assimetrias, encontrados no seio do movimento e na

    sua relao com os pesquisadores-militantes.

    Segundo o historiador do operasmo (e operasta-autonomista ele mesmo)

    Gigi Roggero, a copesquisa:

    Ou servia para organizar autonomamente os trabalhadores, ou ento no existia. Eno havia qualquer ideal populista de horizontalidade: o prefi xo con expressava o

    questionamento das fronteiras entre a produo de conhecimento e de subjetividade

    26 Ibid. p. 50.

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    poltica, entre cincia e confl ito. No se tratava simplesmente do conhecimento, masda organizao de uma resistncia. Conricerca era a cincia da classetrabalhadora.27

    1.3. Os Grundrisse como mtodo

    Se a copesquisa informa um mtodo de atuao dos pesquisadores no

    campo, junto a movimentos sociais, os operastas tambm elaboraram

    continuamente ferramentas de carter mais conceitual, para operacionalizar a

    poltica das lutas. Para introduzir essa elaborao terica, vale, brevemente,

    reconstruir a trajetria heterodoxa do marxismo apropriado pelos operastas. Isto

    porque o operasmo nunca deixou de reivindicar uma apropriao bastante singular

    da obra de Marx. A metodologia operasta para a formulao terica, no interior

    mesmo das lutas e movimentos, se assenta em ltima anlise sobre o mtodo de

    Marx. um marxismo estratgica e seletivamente retrabalhado, tomando por linhas

    de fora a emergncia de novos sujeitos das lutas e a ruptura com o socialismo

    oficial das esquerdas dominantes na Europa Ocidental.

    Pode-se assumir por eixo da reconstruo uma das realizaes tericas mais

    significativas do autonomismo operasta. Marx alm de Marx28 foi escrito em 1978

    por Antonio Negri para uma srie de seminrios apresentada na cole Normale

    Suprieure, a convite de Louis Althusser. Esse trabalho culmina as elaboraes

    tericas realizadas em esquema de con-ricerca durante a dcada de 1970, e

    conquistou fortuna militante entre tericos radicais e movimentos. Simultaneamente,

    a obra de encerramento de um perodo das produes de Negri, que vai da

    associao com os intelectuais das primeiras revistas operastas dos anos 1960 at

    a segunda priso do filsofo, em 1979. Depois do que, passar a recombinar o seu

    pensamento com os estudos aprofundados e criativos de Spinoza.Marx alm de Marxse compe de nove lies sobre cadernos manuscritos de

    Marx impublicados em vida, os Grundrisse29. Os Grundrisse ocupam um lugar

    27 ROGGERO, Gigi. Liberdade Operasta.Traduo de Pedro Mendes. Revista Lugar Comum, Rio de Janeiro, n.

    31-32, p. 94, 2011.28

    NEGRI, Antonio. Marx beyond Marx. Lessons on the Grundrisse. Traduo de Harry Cleaver, Michael Ryan eMaurizio Virno. Londres: Pluto Press, 1991.29 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econmicos de 1857-1858: Esboos da crtica da economia poltica.Traduo de Mario Duayer e Nlio Schneider. So Paulo: Boitempo, 2011.

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    central na teoria e prtica do operasmo. a Bblia do operasmo30. Especialmente,

    em termos de metodologia materialista: A importncia excepcional dos Grundrisse

    nas configuraes do pensamento marxista est baseada no mtodo31. Negri

    sustenta a autonomia dos Grundrisse em relao a O Capital , em vez de diminu-lo

    como mero trabalho preparatrio ou instrumental. O Marx alm de Marx do ttulo

    pode, ento, ser lido como o Marx dos Grundrisse alm do Marx de O Capital. Para

    Negri, os Grundrisse contm um Marx superabundante, selvagem, pleno de

    intuies e inquietaes, que somente em parte pde ser vertido nos textos

    publicados em vida. Os Grundrisse foram escritos no delrio de uma inspirao

    poderosa, no desespero do isolamento profundo, num momento em que a prtica foi

    colocada em xeque. Foram escritos febrilmente, luz da meia noite32. As peasmais polidas e sistemticas que o filsofo conseguiu ver publicado foram capazes de

    exprimirparte do conjunto do pensamento abrangente de Marx, nunca o conjunto

    completo.

    A manobra operasta de resgatar os Grundrisse visa, tambm, a polemizar

    com a ortodox