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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da
Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011
Da Arte de Escrever Serenamente
Von der Kunst des Schreibens aus Gelassenheit
Affonso Henrique Vieira da Costa1 - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo: O texto tem por objetivo apresentar um questionamento acerca do que é o escrever a partir de sua possibilidade de ser e de não ser, região em que ele mesmo se revela como ação inaugural, fundadora de mundo. Palavras-chave: Arte, Escrever, Poesia, Serenidade. Zusammenfassung: Der Text beabsichtigt zuerst die Frage nach dem Schreiben zu stellen. Damit sucht man noch zu bestimmen, inwiefern dieses Schreiben sich als ein Eröffnungsgebiet darstellt, d.h. inwiefern es Welt gründet. Grundwörter: das Schreiben, die Dichtung, die Gelassenheit, die Kunst.
I
pergunta pelo que vem a ser o “escrever” parece, ao mesmo tempo, absurda
e despropositada, afinal de contas todos sabem o que é escrever alguma coisa. Até mesmo os
analfabetos, aqueles que não sabem ler e nem escrever. No entanto, insistimos no
despropósito e, preferindo perder tempo, perguntamos: O que é escrever? Não se trata de, com
essa pergunta, falar de qualquer um que, ao usar papel e caneta, escreve. De maneira genial e
bem humorada, Mário Quintana permite-nos perceber isso, com pouquíssimas palavras, no
seu texto Branca de Neve e os Tarados. Diz ele: “Uma página em branco é a virgindade mais
desamparada que existe. Só por isso é que abusam tanto dela, que fazem tudo dela...”
(QUINTANA, 2005, p. 267). Ele nos chama a atenção para que não abusemos da virgindade
desamparada da folha de papel, pois qualquer um pode escrever qualquer coisa nela. E é desse
escrever qualquer coisa que precisamos, primeiramente, nos afastar. É preciso que
desconfiemos daquilo que escrevemos. Mas será que com tanta desconfiança ainda
conseguiremos escrever alguma coisa? De que modo poderemos fazer bom uso da folha de
papel? Como e o quê escrever?
1 Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto do Departamento de Educação e Sociedade - UFRRJ
A
COSTA, Affonso Henrique Vieira da -6-
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A necessidade de desconfiarmos do que escrevemos e também do que falamos se
funda no fato de que as palavras que empregamos muitas das vezes já perderam o seu
significado originário e não atingem mais o âmago daquilo que pede para ser dito. Vamos a
outro exemplo. Trata-se de um poema de Manuel Bandeira. Aliás, Manuel Bandeira possui
vários poemas em que ele revela a dificuldade do emprego da palavra “amor” e do verbo
“amar”, visto que estas palavras parecem ter perdido o seu viço pelo excesso de uso, pelo
abuso através do qual sempre delas nos utilizamos. No interior dessa perspectiva, do fato de
que ele não mais consegue fazer uso de tais palavras, mas ainda trazendo consigo o seu
sentido mais fundo, é que o poeta se revela como um criador/descobridor de novas palavras.
E, justamente por isso, cria um poema de nome Neologismo, que diz:
Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo, o verbo teadorar. Intransitivo: Teadoro, Teodora (BANDEIRA, 1996, p. 281).
O poeta é o inventa línguas, e o que ele traz à tona é pura composição. Poema é
composição. Daí o porquê do verbo “teadorar” ser intransitivo, isto é, não precisar de
complemento, pois já diz tudo na sua maneira concentrada e adensada de ser. Ele só é o que é
na composição poemática, no edifício arquitetado das palavras, onde não há nenhuma palavra
faltando e nenhuma a mais. Só há mesmo é a solidez de toda uma estruturação que vem à fala,
que irrompe o silêncio emergindo na sua possibilidade mesma de ser e de não ser.
Justamente esse dizer concentrado, que emerge não sabemos de onde, mas que nos
espanta com o seu brotar, é o que nos faz perder o prumo, sacudindo-nos e retirando-nos de
nosso hábito, fazendo-nos suspeitar de que ele tem sua proveniência numa habitação a partir
da qual isso que é a linguagem vem à tona e torna-se palavra viva, que já sempre antes é
compacta e reveladora de mundo. É o que também nos procura mostrar o poeta Carlos
Drummond de Andrade, em seu poema intitulado A palavra mágica:
Certa palavra dorme na sombra de um livro raro. Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo. Vou procurá-la.
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Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo. Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura ficará sendo minha palavra (2002, p. 854).
A palavra é mágica por dizer o mundo, nunca por representá-lo. Ela é mágica porque é
e poderia não ser. Mas, para que ela sobrevenha, seja o que ela é – palavra, pura palavra
poética, linguagem –, ela precisa ser acordada, despertada de um longo sono. Ela é a senha da
vida, do mundo, ou seja, ela é a própria vida, o próprio mundo nela se fazendo e se mostrando
no seu dar-se resguardado que exige uma busca, uma procura, todo um empenho, uma luta,
uma disposição que vem a ser toda a atitude disciplinada e respeitosa do poeta com relação
àquilo que está por vir.
Vejamos ainda em outro poema de Carlos Drummond de Andrade – O lutador – o que
é essa atitude:
Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã. São muitas, eu pouco. Algumas, tão fortes como o javali. Não me julgo louco. Se o fosse, teria poder de encantá-las. mas lúcido e frio, apareço e tento apanhar algumas para meu sustento num dia de vida (2002, p. 99).
Este fragmento nos impõe a seguinte pergunta: Que luta luta o poeta? Ele não
arrebenta com as palavras, não abusa delas, não as escraviza. Antes, ele sabe que não pode
fazer isso. Elas são muitas, diz, e, ao mesmo tempo, ele é pouco. Pouco, pobre e fraco. Elas
são fortes e ricas, as muitas palavras. Trata-se de uma luta desigual em que não cabe
trapacear, pois ele não é louco e nem tem o poder de encantá-las. Não é ele quem floreia o
verso com palavras encantadoras, como se elas estivessem à sua disposição. Ao contrário, ele
é quem se dispõe ao seu aparecer para, aí sim, apanhar algumas. A sua lucidez e frieza se
resumem no fato de ele saber que é inútil lutar com as palavras. Mas, mesmo sabendo que é
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inútil, ele segue lutando, mal rompe a manhã. Elas, por sua vez, já nascem encantadas. Todo
o seu encanto já se dá no próprio canto, na toada entoada e afinada do fazer-se canção na
unidade de escritor e escrever, poeta e palavra, atravessando todo o percurso da obra.
Mas como fazer com que elas surjam, venham à tona, de modo que ele possa apenas
apanhar algumas? Seria muito querer isso? Pode até ser, mas sem essa ambição que toma
como medida o mais elevado, o grande, o nobre, sem essa hybris não há poesia e nem nenhum
escrever essencial que mereça este nome.
II
Com isso, parece que estamos de volta ao ponto de partida, isto é, precisamos ir ao
encontro do escrever que é essencial, radical. Entretanto, é bom que se diga, o escrever que é
essencial, radical, dá-se de muitas formas. Ele pode ser encontrado na poesia, na filosofia, na
prosa dos contos e dos romances, nas crônicas, nas peças teatrais etc. Não falamos exatamente
de nenhuma delas em particular, mas, sobretudo, daquilo que distingue o escrever, que é
desde um interesse, do escrever como penduricalho, mero capricho.
O que é o escrever caprichoso? É aquele que compreende as palavras como símbolos,
representações. É todo aquele que ainda quer mostrar alguma coisa e, por querer mostrar,
floreia, embeleza, fala/escreve em demasia. Acerca disso, somos advertidos por Mário
Quintana em seu texto Arte Poética:
Esses poetas que tudo dizem Nada conseguem dizer: Estão fazendo apenas relatórios (2005, p. 905).
O escrever caprichoso é derramado, não cabe em si, não tem contenção e nem
concentração. Ele quer tudo dizer. E, justamente neste tudo, ele não pode nada. E, o que é
pior, não vê que não diz, não vê que é mera representação – ou mesmo uma teatralização – do
dizer essencial. É-se manipulado pela linguagem ordinária, habitual e, com isso, afastado de
uma experiência extraordinária, inabitual. É desta cegueira que se nutrem todos aqueles que se
prestam apenas a fazer relatórios, inventários. Trata-se de um escrever anêmico, sem sangue,
posto que acoplado, acrescentado ao escritor.
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Caso tomemos o escrever por essa perspectiva, a saber, a do inventariante, diremos
que primeiro há o escritor, o homem, o “eu” que pode ser tantas outras coisas e, depois,
acrescentando-se a ele, surge o escrever.
Isto soa tão estranho quanto uma estória que ouvi de um jovem há alguns anos. Ele me
disse que precisaria primeiro solucionar o problema de sua vida, fazer uma faculdade, formar-
se em algo que desse dinheiro e, depois de estar bem financeiramente, aí sim, passaria a
estudar filosofia. Com isso, poderia pensar mais tranquilamente. E o nosso jovem, é claro, não
se transformou em um filósofo e provavelmente não se transformaria, mesmo se, depois de
tudo, viesse a estudar filosofia. É que fazer Faculdade de Filosofia, Mestrado e Doutorado
ainda não é garantia de que um dia seremos filósofos. Pois filosofar, assim como escrever,
não é penduricalho, não é algo que se some a um “eu” previamente constituído.
Mas, retomando o problema por uma perspectiva diferente, perguntamos: O que é o
escrever desde um interesse? O que nos interessa não pode ser resumido em algo
“interessante” e que, logo em seguida, deixamos de lado. O interesse é algo agudo, que toma
conta daquele que se interessa. Este “tomar conta” é uma disposição de humor, uma afecção,
um pathos, no interior do qual já nos movemos quando somos tomados pelo interesse de
escrever. Já estamos como que enlaçados nessa ação. Somos todos nela, a partir dela. Não há
aqui um “eu” prévio que escolhe um escrever como poderia ter escolhido qualquer outra
coisa. Há aqui um deixar-se conduzir por aquilo que antes de tudo já nos escolheu e que
perfaz o nosso ser, atravessando-o e adensando-o, e isto de tal modo que não há, neste
instante, diferença entre o “eu” que faz e a “coisa” que é feita. No fazer da “coisa” o meu “eu”
também vai se constituindo. O escritor e o escrever encontram-se num único e mesmo
movimento, que é o pôr-se em obra da própria obra. O escritor mata o seu “eu” prévio e deixa
nascer o seu “eu” escritor a partir do próprio escrever, isto é, do escrever que faz aparecer a
obra em seu movimento de realização.
É nessa entrega ao por fazer, no abandono de um “eu” já previamente constituído,
seguro de si, sabedor e ciente de suas ações, que há um encaminhamento a um não saber, a
um estar lançado, jogado na própria atividade, ao sabor imprevisto da criação, que impõe ao
escritor um ser desde a possibilidade de não ser, isto é, desde um balanço, que é toda a sua
disposição ao movimento afinado, entoado de sua tarefa realizadora, que aparece como a
única entre tantas outras que precisa, necessita ser feita.
É desde essa necessidade, por exemplo, que Nietzsche pode dizer no seu Assim falou
Zaratustra, mais precisamente no capítulo que tem por nome Do ler e do escrever que “De
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tudo o que se escreve, aprecio somente o que se escreve com seu próprio sangue” (2006, p.
66). Escrever com seu próprio sangue é dar-se de todo para aquilo que se impõe como
necessário, como essencial, sem o qual o “eu” mesmo não seria o que ele é, a saber, escritor.
Não há, neste sentido, nenhum “eu” antes da ação realizadora. Para que haja um “eu”,
é preciso que ele já tenha se apropriado de si na ação realizadora. A dicotomia, por exemplo,
entre eu e mundo, sujeito e objeto, é tardia. O movimento de auto-realização desde o interesse
antes já se deu, já se enviou como movimento de realização de realidade, como História. Está
em jogo a História, não como factualidade, mas como fazer-se de mundo, como aparecer do
real.
O escrever, neste sentido, funda um mundo, é ação inaugural. Ele só é o que é à
medida que faz aparecer isso que é o real em seu movimento de realização. Ele é, com isso,
algo compactado, adensado, poético, posto que é lapidado no próprio fazer obediente ao que
pede para aparecer.
Em O Banquete, Platão diz que a produção (poiesis) é “tudo o que promove a
passagem do não ser ao ser” (1983, p. 205).2 É nesse limiar entre ser e não ser, nessa tensão,
que se dá o desdobrar-se da própria obra. É nessa tensão ainda, na atenção à coisa, que o
escritor se dispõe inteiramente, isto é, de maneira una, recolhida, contida e plena de zelo. O
seu fazer é uma espécie de não fazer, uma modalidade de ócio, no interior da qual a sua tarefa
é “apenas” deixar que a obra sobrevenha, emerja desde o abisso (o sem fundo) do próprio
real.
Quando Guimarães Rosa diz que “a espera é um à toa muito ativo”, é no seio desse
“deixar-ser na espera” que ele transita, que ele se permite habitar, pois é aí que se dá o que se
pode chamar de ócio produtivo, que é toda possibilidade de ingresso no movimento do trazer
à tona a obra e que faz dele o escritor que ele é. Do mesmo ócio, bem distante do negócio,
Mário Quintana também é partícipe, principalmente por afirmar que “o que prejudica a minha
preguiça, prejudica o meu trabalho” (1994, p. 7). O que é, aqui, a preguiça? Não é um não
querer fazer nada cheio de tédio, mas sim um lento, um lentíssimo trabalho que se delicia com
a sua própria lentidão. A preguiça aqui não acontece no momento de se iniciar o trabalho,
quando este surge como algo pesado e que, infelizmente, precisaria ser feito, mas, ao
contrário, ela toma o poeta no sentido maior de ele não querer chegar ao seu fim, de modo a
aproveitar todos os seus momentos, abandonando-se no por fazer. Não é à toa que o livro a 2 Na tradução de Heidegger, em A questão da técnica, p.17, temos que “Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poiesis, produção”.
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que pertence a passagem acima tem por título Da preguiça como método de trabalho. Trata-se
do método, do caminho que o escritor precisa percorrer para produzir a obra. É o que ele nos
ensina com mais uma passagem do mesmo livro:
Não sei pensar à máquina, isto é, faço o meu trabalho criativo primeiro a lápis. Depois, com o queixo apoiado na mão esquerda, repasso tudo à máquina com um dedo só. - Mas isto custa muito? - Custar, custa, mas dura mais... (QUINTANA, 1994, p. 5).
É nesta disposição de humor, neste pathos, deixando-se conduzir pelo que vai se
abrindo na ação interessada, no entremeio, no elemento reunidor e articulador de sentido, que
o escrever, assim como qualquer outro verbo, faz-se, concresce e vem a ser o que é.
Isso é, sobretudo, produção, poiesis, uma condução que lança para diante, para frente,
aquilo que antes não havia, na sua possibilidade mesma de ser e de não ser. Aí, neste
movimento, pode-se dizer que o homem é um ser que está na possibilidade de não ser. O seu
poder ser é este estar lançado, jogado numa ação necessária, interessada, ou seja, no elemento
que antes já reuniu homem e mundo, sujeito e objeto. Aí ele está lançado para além de si
mesmo, para o que é maior do que ele, para aquilo que precisa emergir, vir à tona, fazer-se
visível, pura aparição, fenômeno. Ele e a “coisa” a ser produzida são um só na ação do pôr em
obra. O escrever faz aparecer o escritor como escritor e a obra como obra. É o verbo que, em
conascendo e concrescendo desde ação interessada, funda a relação. Jamais o contrário. Não
há um sujeito antes e que viesse a se relacionar posteriormente com um objeto. Ambos já
estão desde sempre em relação porque já estão desde sempre numa ação interessada, isto é, no
elemento a partir do qual ambos são o que são, que determina o seu modo de ser, seja ele qual
for.
III
Deste modo, o ser desde a possibilidade de não ser, o ser na compreensão de seu
próprio modo de ser, que se revela no interior de seu poder ser já de antemão lançado, é o que
precisa ser conquistado quando se almeja uma ação necessária, interessada e, portanto, grande
e nobre. O almejar, o ambicionar, neste sentido, pelo menos no modo como o encaminhamos,
está presente em todo grande criador, em todo aquele que se permite uma aproximação com o
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in-habitual, com o extra-ordinário. É o que podemos perceber nesse fragmento do poema Os
carvalhos, de Hölderlin:
Cada um de vós é um mundo, como estrelas do céu Vós viveis, um deus cada qual, juntos em livre união. Pudesse eu tolerar a servidão, e já não invejava Este bosque e bem me amoldava à vida em comum (1959, p. 7).
Essa inveja não é uma inveja qualquer, algo como um querer sobrepor-se ao outro,
destruindo-o, justamente por não poder ser como ele é. E já que não pode, é preciso aniquilá-
lo, massacrá-lo. Não, essa inveja é de outro quilate. É uma grande inveja, uma desmedida
especial, uma hybris essencial, pois ela se mede com o que é grande e nobre, pois quer ser
grande e nobre. Ela é, digamos, uma inveja inocente, que, ao invés de pretender matar,
procura a própria morte. E qual o porquê? Pelo simples fato de almejar aquilo que é maior do
que o “eu” previamente estabelecido pelas convenções do senso comum. Ela almeja uma
liberdade para pôr em obra, para a ação interessada, de maneira que o “eu” mesmo se
disponha a ser feito, a ser perpassado, perfeito pela ação realizadora – no nosso caso o
escrever propriamente dito. Essa inveja é aquela que já se dispõe à experiência da angústia, à
presença do nada, ao fundo sem fundo do próprio real, ao espanto de seu mero dar-se, sem
porquê e nem para quê, puro jogo inocente, onde tudo o que é brota desde...nada! Onde tudo
é, mas poderia... não ser!
Mas, em que região nos encontramos? Para onde nossa meditação nos conduziu?
Começamos a falar do que seria um escrever vigoroso, proveniente de uma ação interessada,
do escrever que não é penduricalho, acréscimo, mas daquele que é, antes de tudo, reunidor e
doador de sentido, que se dá desde uma disposição de humor, de um pathos e chegamos... no
nada!? Na angústia!? Bem poderíamos ser chamados de niilistas. Nosso trabalho dá em nada,
ou melhor, não dá em nada. Melhor ainda: não serve para nada. É inútil!
Mas, insistamos: Essa ação inútil é necessária. Ouçamos o poema O artista
inconfessável, de João Cabral de Melo Neto, presente em seu livro Museu de tudo:
Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer. Mas não, fazer para esquecer que é inútil: nunca o esquecer. Mas fazer o inútil sabendo que ele é inútil, e bem sabendo que é inútil e que seu sentido
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não será sequer pressentido, fazer: porque ele é mais difícil do que não fazer, e difícil- mente se poderá dizer com mais desdém, ou então dizer mais direto ao leitor Ninguém que o feito o foi para ninguém (1994, p. 384).
Ora, que fazer é esse que, em princípio, não é feito para ninguém? Que fazer é esse
que não é feito para esquecer? Como fazer o inútil, sabendo que ele é inútil? Esse conjunto de
indagações parece nos conduzir ao absurdo. Mas se pararmos um pouco para meditar,
poderemos nos questionar acerca do que comumente entendemos por “inútil”.
IV
Algo inútil é o que não serve para nada. A perspectiva da qual parte o homem
contemporâneo é aquela que acredita que tudo deve servir para alguma coisa. Desta maneira,
encontramo-nos enredados nos entes, apenas voltados para eles, enquanto do nada, nada
queremos saber. A perspectiva de entrega ao ente funda-se na fuga do nada, na fuga do estar
lançado, jogado, que é próprio do modo de ser do homem, de seu poder ser, de sua abertura
para a compreensão de sentido desde uma tarefa realizadora.
De acordo com isso é que podemos dizer ainda que o fazer que parte dessa perspectiva
prévia, que separa a utilidade da inutilidade e que demarca uma posição acerca de que
somente é útil aquilo que é feito para atender a certos objetivos, finalidades, compreende a
produção como um processo de causa e efeito, como uma fabricação, uma operação. No
entanto, como nos ensina Heidegger, produzir “não significa tanto fabricar, manipular e
operar, mas mais o termo alemão herstellen, que quer dizer literalmente: stellen, pôr, fazer
levantar, her, fazendo vir para aqui, para o manifesto, aquilo que anteriormente era dado
como presente” (1999, p. 22).
De acordo com isso, o fazer inútil é necessário porque faz aparecer o ente na sua
possibilidade de ser e de não ser. Ele é produtivo no sentido da poiesis e não da
disponibilidade exploradora da produção técnica orientada pela Gestell (composição), que
pretende vedar toda possibilidade de compreensão de seu sentido, jogando o homem apenas
na direção dos entes... e mais nada. A técnica possui um parentesco com a techne grega,
compreendida como um modo do desencobrimento e jamais como um simples meio para um
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fim. Sobre ela, diz-nos Heidegger: “A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é
uma forma do desencobrimento, isto é, da verdade” (2002, p. 17).
Cabe-nos, portanto, no interior da própria técnica, deixarmo-nos conduzir por aquilo
que permite ir ao encontro de sua essência desde a abertura de seu modo de ser. Tal atitude a
encontramos, por exemplo, no texto Serenidade (Gelassenheit), de Martin Heidegger, onde o
filósofo não toma os objetos técnicos de maneira demoníaca, como se precisasse deles fugir.
Ele faz uso deles, mas não se permite dominar por eles, ficar por eles completamente
determinado. Ele deixa os objetos serem naquilo que eles mesmos são, isto é, no modo como
são destinados, enviados pela técnica, pelo seu sentido explorador, isto é, pela Gestell
(composição). Essa atitude, que ele nomeia de serenidade para com as coisas (die
Gelassenheit zu den dingen), é o que permite que ele mantenha-se na abertura para a ação
realizadora, interessada, inútil, no entremeio desde o qual isso que é o sentido do real se
apresenta em seu próprio movimento de realização.
Mas essa já é outra estória e, em que pese a importância da meditação acerca da
essência da técnica, o tema em questão é Da arte de escrever serenamente. Nele intentamos
falar acerca de um escrever que é essencial, que é fala originária, contida e refinada desde a
abertura de sentido, que impõe a todo aquele que é chamado a ser escritor tomar uma atitude,
a saber, serenar, isto é, ser na tensão e na atenção àquilo que pede para ser dito, a palavra em
estado de nascividade, que jamais é representação e que precisa ser nomeada como se fosse
pela primeira vez, pois o que não cabe na página em branco, na sua virgindade mais
desamparada – caso ainda almejemos um escrever que não seja apenas no modo do relatório –
é, conforme nos ensina Manoel de Barros, em seu Livro sobre nada, a “palavra acostumada”
(1997, p. 71).
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Referências ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 2002. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e obra. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2002. _________. Língua de tradição e língua técnica. Tradução de Mário Botas. Lisboa: Passagens, 1999. HÖLDERLIN, Friedrich. Poemas. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1959. NETO, João Cabral de Melo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. PLATÂO. O banquete. In: Os pensadores. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1983. QUINTANA, Mário. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
Submetido em: 03/10/2011 Aceito em: 15/11/2011
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