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DEVER OU DEVIR: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SHAKESPEARE E
PLATÃO
Gabriel Cornelio Moura
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia e Ensino, do Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow
da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Filosofia
Orientador: Roberto Cesar Zarco Câmara
Rio de Janeiro
2018
Rio de Janeiro
2018
CEFET/RJ – Sistema de Bibliotecas / Biblioteca Campus Nova Friburgo
Elaborada pela bibliotecária Cristina Rodrigues Alves CRB7/5932
M929t Moura, Gabriel Cornelio.
Dever ou Devir: uma relação dialética entre Shakespeare e Platão /
Gabriel Cornelio Moura. — 2018.
107f.; apêndice e anexo ; enc.
Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca, 2018.
Bibliografia: f. 84-93.
Orientador: Roberto Cesar Zarco Câmara.
1. Filosofia. 2. Shakespeare. 3. Platão. 4. Devir (Filosofia). I Câmara
Roberto Cesar Zarco (orient.) II. Título.
CDD 100
CDD 658.404
CDD 658.47
DEDICATÓRIA
“Dedicado às flores mais lindas do meu jardim:
Danielle, Júlia e Sofia”
AGRADECIMENTOS
Em função desta pesquisa tive o prazer de compartilhar dos saberes de inúmeras
pessoas que direta e indiretamente são responsáveis por essa dissertação. Um
agradecimento especial para os professores Eduardo Gatto, Rafael Barbosa, Maurício
Castanheira, Filipe Pinto e Marcelo Senna que transformaram o meu olhar sobre a
Filosofia.
Agradeço à coordenadora do PPFEN Taís Pereira pela generosidade na prestação de
informações.
Agradeço ao meu amigo e companheiro das longas viagens, Rafael Guimarães.
Agradeço ao meu amigo e orientador Professor Roberto Zarco pelo altruísmo em
compartilhar um pouco de seu vasto conhecimento e por nortear de forma
fundamental esse trabalho.
Agradeço à minha esposa e às minhas filhas pelas horas de paciência e de
compreensão. Bem como pelo apoio incondicional no longo caminho percorrido até a
defesa desta dissertação.
EPÍGRAFE
Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?
PLATÃO, Górgias, 492e
RESUMO
Dever ou Devir: Uma relação dialética entre Shakespeare e Platão
Ao desvelar o mundo do devir, Platão identifica uma estrutura baseada na
mutabilidade e nos sentidos e por isso falsa. Entende, assim, que o mundo do devir é
necessário ao Homem para que este possa alcançar o mundo das Ideias/Formas. Por
outro lado, as tragédias shakespearianas tratam dos mais íntimos sentimentos humanos,
como raiva, vingança e ganância, sempre coniventes com a noção de dever, de
obrigação diante de alguma situação imanente. O Homem compreende que as suas
ações, sentimentos e paixões, em seu eterno movimento contrastante e tenso, não
possuem nenhuma Forma/Ideia imutável que o ampare em sua trajetória. É essa
percepção da vida humana, que a tragédia de Shakespeare proporciona. Dessa forma, a
dissertação analisará como a busca pelo mundo inteligível através do entendimento do
mundo do devir e a ideia de dever como um primeiro passo para o Homem conhecer-se,
guardam entre si relações dialéticas, ora paradoxais ora mais próximas do que
aparentam.
Palavras-chave: Platão; Shakespeare; Devir
ABSTRACT
Duty or Becoming: A Dialectical Relationship between Shakespeare
and Plato
In unveiling the world of becoming, Plato identifies a structure based on
mutability and senses and therefore false. He understands, therefore, that the world of
becoming is necessary for Man to reach the world of Ideas/Forms. On the other hand,
Shakespearean tragedies deal with the most intimate human feelings, such as anger,
revenge and greed, always conniving with the notion of duty, obligation in the face of
some immanent situation. Man understands that his actions, feelings and passions, in
theirs eternal contrasting and tense movement, have no immutable Form/Idea that
supports him in his trajectory. It is this perception of human life that the tragedy of
Shakespeare provides. In this way, the dissertation will analyze how the search for the
intelligible world, through the understanding of the world of becoming and the idea of
duty as a first step for the Man to know himself, keep among themselves dialectical
relations, sometimes paradoxical now closer than they appear.
Keywords: Plato; Shakespeare; Becoming
Sumário
1 Introdução....................................................................................................... 11
1.1 Cronologia da Platonis Opera........................................................................ 11
1.2 Diálogos platônicos........................................................................................ 18
1.2.1 Fédon.............................................................................................................. 19
1.2.2 Fedro.............................................................................................................. 20
1.2.3 República........................................................................................................ 22
1.2.4 Teeteto............................................................................................................ 25
1.2.5 Outros diálogos............................................................................................... 26
1.3 Tragédias shakespearianas............................................................................. 26
2 Da ψυχὴ à διάνοια: o devir para Platão.......................................................... 28
2.1 A Ψυχὴ de Homero a Platão........................................................................... 28
2.1.1 Homero........................................................................................................... 28
2.1.2 Thales de Mileto............................................................................................. 30
2.1.3 Pitágoras de Samos......................................................................................... 32
2.1.4 Heráclito de Éfeso.......................................................................................... 37
2.1.5 Parmênides de Eléia....................................................................................... 40
2.1.6 Empédocles de Agrigento.............................................................................. 42
2.1.7 Anaxágoras de Clazomena............................................................................. 45
2.2 A ψυχὴ em Platão........................................................................................... 47
2.2.1 A ψυχὴ imortal e tríade.................................................................................. 47
2.2.2 A διάνοια e o mundo do devir........................................................................ 53
3 A imanência do dever Shakespeariano........................................................... 58
3.1 O gênero tragédia e seu legado....................................................................... 58
3.2 As tragédias Shakespearianas e o Homem..................................................... 62
3.2.1 A loucura e a lucidez...................................................................................... 64
3.2.2 O rosto e o retrato........................................................................................... 66
3.2.3 A mentira e a verdade..................................................................................... 69
3.3 Shakespeare e o autoconhecimento através do dever..................................... 72
4 Conclusão....................................................................................................... 74
4.1 O distanciamento entre Platão e Shakespeare................................................ 74
4.2 A aproximação entre Platão e Shakespeare.................................................... 77
4.3 Platão e Shakespeare: uma relação dialética.................................................. 81
5 Referências..................................................................................................... 84
6 Glossário......................................................................................................... 94
7 Apêndice A..................................................................................................... 97
8 Anexo I........................................................................................................... 105
11
Capítulo 1
Introdução
A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma relação dialética entre
o devir de Platão e o dever de Shakespeare. Ao desvelar o mundo do devir, Platão
identifica uma estrutura baseada na mutabilidade e nos sentidos e por isso falsa. Entende,
assim, que o mundo do devir é necessário ao Homem para que este possa alcançar o
mundo das Ideias/Formas. Por outro lado, as tragédias shakespearianas tratam dos mais
íntimos sentimentos humanos, como raiva, vingança e ganância, sempre coniventes com
a noção de dever, de obrigação diante de alguma situação imanente.
Dessa forma, a dissertação analisará como a busca pelo mundo inteligível através
do entendimento do mundo do devir e a ideia de dever como um primeiro passo para o
Homem conhecer-se, guardam entre si relações dialéticas, ora paradoxais ora mais
próximas do que aparentam.
1.1 Cronologia da Platonis Opera
A importância de Platão para a humanidade tem sido demonstrada há muito
tempo, seja pelas suas contribuições a diversos campos do conhecimento, seja pelo seu
próprio pensamento que nos foi legado através de séculos de análises e interpretações
acerca de sua vasta obra. Como acontece com todos os grandes nomes da humanidade, a
obra de Platão é alvo de intensos debates sobre as mais variadas esferas, sendo uma delas
a querela acerca da cronologia dos diálogos platônicos.
Porém, antes de adentrar na altercação acerca da cronologia, cabe aqui fazer uma
breve introdução sobre um assunto também de grande relevância para o entendimento da
obra platônica. Existe uma outra discussão sobre a forma “correta” de ler e compreender
os diálogos. Essa contenda apresenta duas interpretações: de um lado o que se chama de
visão unitarista, de outro uma visão desenvolvimentista.
12
Os adeptos da primeira visão, chamados unitaristas, entendem que os diálogos de
Platão só podem ser compreendidos “dentro de uma ligação filosófica com as demais
obras do autor […] [pressupondo] desde o primeiro instante, uma unidade espiritual que
nelas se vai desentranhando gradualmente”1. Um grande expoente dessa visão é
Schleiermacher2. Para ele, os primeiros diálogos apresentam as bases das discussões dos
diálogos posteriores. Dessa forma, supõe-se a existe de uma ordenação e de uma
sequência natural e necessária entre os diálogos para revelar “que as diversas questões
apresentadas por Platão obedecem uma ordem lógica de desenvolvimento e exposição”3.
Ordem essa que avança em direção a completa apresentação de um sistema esboçado
desde o início.
A tese de Schleiermacher se tornou um marco nas interpretações da obra platônica
na antiguidade. Contudo, não se pode deixar de notar que a visão unitarista apresenta
falhas estruturais de compreensão dos diálogos platônicos. A primeira delas é ver o
diálogo como algo isolado de uma conjuntura de produção, ou seja, ver o autor Platão
distante ou até mesmo estanque do cidadão ateniense que se relacionava com filósofos e
políticos e tinha grande capacidade de reflexão. Outra crítica é a suposição de que Platão
manteve uma linha de pensamento durante toda a sua vida, e de que seus primeiros
escritos já continham um sistema filosófico fechado, esquecendo que Platão “não
raramente parece se contradizer”4. Há ainda a falta de referência a eventos históricos e
políticos que ajudaram, de sobremaneira, Platão a escrever seus diálogos.
Assim, a visão unitarista se apresenta como simples ponto de início para
compreender uma visão desenvolvimentista. Essa interpretação considera que Platão
passou por diversas situações, internas e externas, que o ajudaram a moldar sua filosofia
e que demonstram o desenvolvimento do pensamento do autor. Seguindo essa linha de
interpretação, a organização dos diálogos serve para “identificar o posicionamento final
de Platão acerca destes temas e os momentos em que uma tese é abandonada e substituída
1 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 6ªed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2013, p.602. 2 Principalmente sua obra: Introduction to the Dialogues of Plato. Translated: William Dobson. Cambridge,
The University Press, 1836. 3 MATOSO, Renato. As origens do paradigma desenvolvimentista de interpretação dos diálogos de Platão.
Archai, Brasília: Universidade de Brasília, nº18, set-dez 2016, p.82. 4 ROWE, Christopher. Interpretando Platão. In: BENSON, Hugh (org.). Platão. Tradução: Vera Porto
Carrero, Porto Alegre: Artmed, 2011, p.37.
13
por outra”5. Essa organização necessária para a compreensão da obra de Platão é
conseguida através da data de composição dos diálogos, legando à cronologia um papel
fundamental para o entendimento de todo o Corpus Platonicus.
Contudo, a visão desenvolvimentista também suscita críticas. Em primeiro lugar,
parece ser improvável que Platão inicie o abandono dos pressupostos socráticos nos
diálogos da maturidade, mas continue a utilizar Sócrates como personagem principal;
uma segunda crítica se deve justamente à ordenação dos diálogos em três grupos
herméticos, estipulando uma importância desmesurada à cronologia.
Muitos estudiosos já se debruçaram sobre o tema, e continuam fazendo-o6. Grosso
modo, uma visão mais tradicional7, para não dizer paradigmática, sobre a cronologia das
obras de Platão tende a dividir os trabalhos em 3 grandes grupos: diálogos socráticos ou
da juventude, diálogos da maturidade e diálogos da senectude ou da velhice. Essa divisão
apresenta os diálogos através de uma suposta chave interpretativa chamada Sócrates.
Assim, os diálogos do grupo “da juventude” seriam as obras feitas sobre a extrema
influência socrática, onde Platão apenas dava vazão aos ensinamentos do mestre. Os
diálogos “da maturidade” apresentam um Platão mais autoral, mais dono de sua própria
filosofia, porém ainda mantendo pequenos vínculos com o pensamento socrático;
segundo especialistas é nessa fase da vida que Platão cria os principais pressupostos de
seu pensamento metafísico. E nos escritos “da velhice” Sócrates é apenas um figurante.
Platão com controle sobre o que escreve inicia um processo de contestar sua própria
filosofia. Vale ressaltar que há problemas sérios nessa ordenação dos diálogos, pois “a
divisão em grupos é ela própria incerta e sujeita a controvérsias”8.
Contudo, para além dessa visão esquemática fechada, outras formas de definir a
cronologia do Corpus Platonicus têm sido consideradas. Entre elas, as que mais se
destacam, são: histórico-evolutiva; crítica literária; considerações filosóficas; eventos
históricos e análise estilométrica. Apesar disso, ainda existem sérias divergências entre
os estudiosos sobre a cronologia correta. Apresentaremos abaixo, em linhas gerais, as
principais discussões que pretendem atingir uma “cronologia platônica perfeita”.
5 MATOSO. op. cit., p.80. 6 Cf. Field (1967), Stefanini (1932/35), Ross (1951), Crombie (1962/63), Guthrie (1975), Vlastos (1991),
Vlastos (1994), Kahn (1996), Thesleff (1982), Brandwood (1976), Brandwood (1990) e Ledger (1989). 7 Visão estabelecida pelos estudiosos do século XIX que praticamente se tornou uma unanimidade no século
XX. 8 ROWE. op. cit., p.37.
14
Karl Friedrich Hermann9 iniciou os estudos da corrente histórico-evolutiva. Nesta
linha interpretativa, os acontecimentos da vida de Platão tiveram grande influência sobre
seus escritos. Assim, os primeiros diálogos teriam sido escritos com Sócrates ainda vivo.
Por exemplo, o diálogo Protágoras “tem um tom tão otimista e alegre que é difícil
acreditar que ele pode ter sido composto depois de uma catástrofe como a morte de
Sócrates foi para Platão”10. Após o julgamento e a condenação de Sócrates, é sabido
através de outros autores que Platão e alguns discípulos de Sócrates buscaram refúgio em
Mégara. Hermann reconhece, então, traços de teorias megárias e eleatas no grupo de
diálogos que formam o grupo intermediário, como Teeteto, Crátilo e Parmênides. E para
o último período de vida de Platão, Hermann entende que o grupo formado por República,
Timeu e Leis expõe “um conjunto de teses que formam um sistema filosófico mais
completo e compreensivo”11.
Porém, a interpretação histórico-evolutiva considera que Platão deliberadamente
modificou sua forma de escrever após incidentes ocorridos em sua vida. O exame mais
detalhado dessa corrente de interpretação revela outro erro primordial: as virtudes tratadas
nos diálogos, conhecidos como “socráticos”, ou seja, do período da juventude platônica,
são consideradas como investigações éticas e colocam esses primeiros diálogos em uma
fase puramente ética do pensamento de Platão. “A valentia, a prudência e a piedade são
as virtudes examinadas nos diálogos menores e formam o objeto de cada uma dessas
conversações”12, contudo, ao analisarmos o diálogo Protágoras e o Livro I da República,
vemos claramente que o objetivo de Platão era traçar um paralelo entre cada virtude e a
arte política. Dessa forma, reconhece-se que “tudo o que desde o primeiro instante ele
tem em mente não é outra coisa senão o Estado”13.
As considerações de caráter literário dos trabalhos platônicos são outra forma de
tentar apresentar uma cronologia adequada. Porém, esta se mostra muito superficial,
tratando os diálogos como textos fechados em si, sem relação com as demais obras. A
criação de epítetos como “maturidade de estilo” e “poder artístico” não fornecem uma
9 HERMANN, K. F. Geschichte und System der Platonischen Philosophie. Vol.1. Heidelberg: C.F. Winter,
1839. 10 LONBORG, Sven. The Chronology of the Platonic Dialogues. Theoria, Sweden: Wiley-Blackwell, vol.5,
pp.141-160, 1939, p.146. (Tradução nossa). 11 MATOSO. op. cit., p.87. 12 JAEGER. op. cit., p.603. 13 Ibidem, p.605.
15
base muito sólida e confiável para distinções cronológicas, como afirma Guthrie: “a única
característica literária que pode ser atribuída a Platão sem qualificação é a
versatilidade”14.
Considerar os temas filosóficos para definir uma cronologia correta é o que
pretende essa corrente de interpretação. Os argumentos de Charles Kahn15 nessa esfera
apresentam a circularidade a que esse tipo de método de pesquisa é propenso. As
considerações sobre sequência filosófica dos diálogos “não podem ser usadas para
estabelecer uma cronologia correta se essas afirmações dependerem de pressupostos
cronológicos”16.
Já a utilização de eventos históricos encontra alguns obstáculos intransponíveis,
como o fato de que ao citar um evento histórico em um diálogo, Platão pode estar distante
do evento e apenas citá-lo para compor o texto, fazendo uma referência a um evento do
passado, o que não implica que tal evento seja de sua geração. De outra forma, a
proximidade temporal, caso exista, com o evento histórico mostra apenas quando Platão
finalizou o texto. Sobre esse aspecto é importante ressaltar que alguns autores acreditam
que Platão não seguia uma ordem cronológica para escrever alguns diálogos. Por
exemplo: no Fedro, as formas de persuasão e sedução “derivam dos anos 380 [a.C.] [...]
mas a crítica da escrita em prosa na última parte, e várias referências ao passar para a
dialética, as formas, a cosmologia e a psicologia sugerem os últimos anos dos 370
[a.C.]”17. Assim, Platão pode citar eventos próximos a ele ocorridos em duas décadas, o
que abre a possibilidade para importantes divergências cronológicas.
Dentre os métodos mais utilizados atualmente a estilometria se apresenta como
um campo bem vasto de estudos. A estilometria pretende, através da ocorrência de certos
tipos de palavras, identificar estilos de escrita, criando grupos situados cronologicamente.
Por exemplo, Constantin Ritter
mostrou por meio de estatísticas, que certas palavras e construções
comuns ao primeiro período, apareciam cada vez mais raramente no
14 GUTHRIE. W. K. C. A History of Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1975
APUD HOWLAND, Jacob. Re-Reading Plato: The Problem of Platonic Chronology. Phoenix, Toronto:
Trinity College, vol.45, nº3, pp.189-214, 1991, p.205. (Tradução nossa). 15 KAHN, Charles. Plato and the Socratic Dialogues: The Philosophical Use of a Literary Form.
Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 16 HOWLAND. op. cit., p.205. 17 THESLEFF, Holger. Platonic Chronology. Phronesis, Netherlands: Brill, vol.34, nº1, 1989, p.19.
(Tradução nossa).
16
segundo e desapareciam no terceiro, e como, por outro lado, palavras e
construções que não se encontraram no primeiro período, apareceram
de tempos em tempos no segundo e completamente no terceiro18.
Nesse sentido, Dittemberger19, ao analisar a expressão τί μήν20, nos fragmentos de
Epicarmo e Sophron, concluiu que essa expressão era um coloquialismo de Siracusa.
Portanto, a aparição dessa expressão nos diálogos comprova que estes só foram escritos
após a primeira viagem de Platão à Siracusa, por volta de 388 a.C.. Assim, supostamente,
diálogos como República, Fedro, Leis, Teeteto, Parmênides e Sofista já apresentariam
uma datação aproximada. Nesse caso, críticos apontam para o fato de que Banquete e
Timeu são comprovadamente dessa mesma época e não possuem a expressão τί μήν,
ratificando as falhas nesse aspecto de interpretação.
Os estudiosos que utilizaram a estilometria para consolidar uma cronologia21
apresentam um consenso com relação aos últimos diálogos, contudo, a maneira que se
aproximam dos supostos diálogos aporéticos, ou socráticos, essa concordância
desaparece e dá lugar a uma verdadeira colcha de retalhos de interpretações.
Considerando essas disparidades, é aceito atualmente que “a relação estilométrica entre
os dois primeiros grupos de diálogos nunca ficou estabelecida de maneira precisa, sendo
esta a principal limitação do método estilométrico”22.
O método estilométrico repousa sobre uma suposta evolução de estilo. E um
exemplo dessa suposta evolução está no uso do hiato23. Assim, Platão utiliza os hiatos
nos diálogos socráticos, como no Fedro, mas evita em obras notadamente da velhice, ou
seja, há uma evolução na escrita de Platão que sugere uma medida temporal para essa
evolução. Nesse sentido, Janell afirma que Platão estava preocupado com o uso do hiato
apenas nos seus últimos seis diálogos (Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis) nos
18 RITTER, Constantin. The essence of Plato's philosophy. New York: Russell & Russell, 1968 APUD
LONBORG. op. cit., pp.142-143. 19 DITTEMBERGER, W. Spachliche Kriterien fur die Chronoloyie der platonischen Dialoge. Hermes,
Stuttgart: Franz Steiner Verlag, nº15, pp. 321‑345, 1881. 20 Traduzida por Sim, porque não!, ou, Sim, é claro! 21 Blass (1874), Brandwood (1990), Campbell (1867), Dittemberger (1881), Guthrie (1975), Lutoslawski
(1897), Ritter (1910). 22 MATOSO. op. cit., p.99. 23 O hiato consiste na sucessão imediata de duas vogais em palavras separadas. Para evitar este tipo de
sucessão, que constantemente surge na formação e inflexão das palavras, diversos recursos podem ser
empregados: a crase, a elisão e a aphaeresis, além da escolha vocabular. Cf. SMYTH, H. W. Greek
Grammar. Cambridge: Harvard University Press, 1920, p.18.
17
quais, “[de acordo com] seu novo estilo de escrita isocrateano ele evitou cuidadosamente
um certo hiato, ou seja, aqueles definidos como ‘censuráveis’”24.
Dessa forma, para tirar conclusões sobre a cronologia dos diálogos seguindo a
estilometria, “o investigador […] deve subscrever a hipótese geral da evolução estilística
e é obrigado, além disso, a pressupor a existência de uma regra ou princípio específico
suficiente para explicar essas diferenças”25. Contudo, aceitar esses pressupostos significa
desconsiderar que as mudanças estilísticas podem fazer parte de requisitos particulares
do contexto onde estão inseridas. Assim, o uso da estilometria implica a subordinação da
capacidade de entender o caráter e a complexidade de cada diálogo como uma conversa
viva e incompleta, que se integraliza nas múltiplas conexões entre essas conversas e uma
τέχνη26 calculada, semelhante à διαιρεσις27.
Ademais a todos esses métodos, outros autores ainda supõem outras
possibilidades relevantes para interpretar uma suposta cronologia das obras platônicas.
Um exemplo ilustrativo pode ser visto em Holger Thesleff. Ao considerar que a sociedade
grega antiga não tinha a escrita como uma de suas principais preocupações e ocupações,
Thesleff defende que Platão e seu círculo interno de amigos e alunos “sempre
consideraram as discussões orais como uma parte mais essencial do filosofar do que a
produção de textos escritos”28. Assim, muitos diálogos escritos no tempo da Academia
são, na verdade, transcrições feitas por amigos e alunos próximos das aulas ministradas
por Platão. Outra tese do autor diz que esses trabalhos que procediam da Academia tinham
dois públicos bem definidos, e que eles não devem
ser lidos como tratados filosóficos explícitos expondo a posição
filosófica de Platão no momento da escrita, mas, na maioria dos casos,
como dramas de prosa com uma função dupla: principalmente, como
memorandos e exercícios intelectuais para o iniciado [tratado
esotérico]; e, secundariamente, como introdução de tópicos acadêmicos
24 JANELL, Gualtherus; JANELL, Walther. Quaestiones Platonicae. Berlin: Nobel Press, 1901, p.272.
(Tradução nossa). 25 HOWLAND. op. cit., p.208. 26 Τέχνη está referenciando a palavra técnica como um conjunto de regras, sistema ou método de fazer algo.
Cf. LIDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Disponível em:
[http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0057]. 27 Διαιρεσις como uma forma de classificação utilizada na lógica antiga (especialmente platônica) que
serve para sistematizar conceitos e chegar a definições. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 28 THESLEFF. op. cit., 1989, p.23.
18
e modos de pensamento para os não iniciados [protrépticos
exotéricos]29.
Dessa forma, diante da miríade de possíveis interpretações acerca da cronologia
platônica, e de suas recorrentes refutações e críticas, entendemos que a organização
cronológica dos diálogos platônicos é irrelevante para buscar a compreensão do
pensamento e da filosofia de Platão. Estes se encontram acima de qualquer debate sobre
cronologia para fazer sentido e ter relevância. Defendemos nesta dissertação o ponto de
vista de Miller30 e Griswold31, que “contradizem claramente a visão padrão”32, ao não
fazer grandes distinções cronológicas entre os diálogos da juventude, da maturidade e da
velhice. Tornando a Platonis Opera mais fluida e aberta. Concluímos, junto com
Howland, que “enquanto insistimos em trazer distinções cronológicas para o estudo dos
diálogos, os textos que confrontamos continuarão a refletir os compromissos de esquemas
interpretativos extrínsecos”33.
1.2 Diálogos platônicos
A dissertação que ora se apresenta tem como um de seus objetivos apresentar
discussões presentes em alguns dos diálogos de Platão sobre corpo e alma e analisar como
o pensamento de Platão sobre essa dualidade o levou a conceber sua filosofia das
Ideias/Formas. Além disso, as concepções platônicas sobre a alma serão extrapoladas
para constatar que o mundo sensível, que Platão chama de mundo do devir, é
extremamente importante para que o Homem tenha soslaios do mundo inteligível das
Ideias/Formas. Para tanto, alguns diálogos foram selecionados do Corpus Platonicus por
conterem discussões filosóficas sobre temas caros ao presente trabalho, como a Teoria
das Ideias/Formas e a compreensão da alma imortal e tripartite. Estes diálogos são
29 Ibidem. 30 MILLER, Mitchell. The Philosopher in Plato's Statesman. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers,
1980. 31 GRISWOLD, Charles. Philosophy, Education, and Courage in Plato's Laches. Interpretation, Waco:
Baylor University, vol.14, nº2-3, pp.177-193, 1986. 32 HOWLAND. op. cit., p.213. 33 Ibidem, p.214.
19
considerados como as obras mais importantes e “de mais perfeito acabamento literário”34
de Platão, principalmente porque são obras de um período de crescimento da Academia
e “do fortalecimento de seu prestígio no vasto âmbito da cultura grega”35. Ademais, nestes
diálogos Platão desenvolve ideias próprias, extrapolando muito dos princípios formulados
por Sócrates. Para tanto, faz-se necessário uma breve apresentação dos diálogos que serão
largamente utilizados. São eles: Fédon, Fedro, República e Teeteto.
1.2.1 Fédon
O diálogo Fédon tem a pretensão de elevar a memória de Sócrates e mostrar este
em meio a seus concidadãos. Platão tenta fazer, no Fédon, uma defesa de Sócrates sub-
repticiamente, e apresenta um filósofo que instaura a coragem e a determinação diante de
seus momentos finais “proclamando num consenso impressionante a superioridade do
filósofo sobre seus contemporâneos”36. O diálogo vai muito além da simples defesa da
imortalidade da alma, assim Platão evita apresentar argumentos que estabeleçam uma
doutrina fechada sobe o assunto. Consideramos que nada se afasta mais do pensamento
socrático do que supor que Platão teria usado argumentos de total segurança para
comprovar a imortalidade da alma. Na verdade, Sócrates deixa em aberto tais
pensamentos ao explicitar que havia uma vida melhor à alma após esta ser libertada da
prisão do corpo, “condição ideal para atingir o verdadeiro conhecimento da ideia do Bem
em si mesmo, sem as indefectíveis turvações condicionadas pelos sentidos”37.
Platão não está presente nos últimos momentos de Sócrates, mas pretende
apresentar fielmente o relato de Fédon, dando vazão, talvez, às suas próprias intenções e
pensamentos. Também não diz em que local aconteceu o encontro entre Fédon e
Equécrates, supondo qualquer lugar, tanto a ágora ateniense ou um de seus muitos
ginásios quanto à beira de um riacho fora dos muros da cidade, tal como no Fedro. O
relato é solene, mas ao mesmo tempo natural, fruto da inventividade e astúcia literária de
34 NUNES, Carlos Alberto. Marginalia Platônica. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973, p.35. 35 Ibidem, p.241. 36 Ibidem, p.240. 37 Ibidem, p.243.
20
Platão. Sócrates busca a razão, insiste na perene busca da verdade, até o fim. O diálogo
Fédon é “um relato emocionante do último dia de Sócrates, de seus argumentos sobre a
imortalidade da alma e da devastação de seus amigos no momento de sua morte”38.
É um diálogo de extrema importância dentro do Corpus Platonicus por se
vislumbrar nele toda uma importante discussão sobre imortalidade da alma e
reminiscência, que liga a alma às Ideias/Formas justificando o conhecimento destas pelo
homem; teoria dos contrários e a própria teoria das Ideias/Formas. Platão coloca na boca
do personagem Sócrates uma de suas concepções mais importantes: “são indiferentes
nossos atos: [...] o que importa em nossa conduta é a intenção com que fazemos alguma
coisa”39.
1.2.2 Fedro
O diálogo Fedro é considerado, por alguns estudiosos40, como a primeira obra de
Platão. Por outro lado, o momento de sua escrita está envolto em algumas querelas41.
Acima das discussões cronológicas com base em estilos literários, talvez um dos motivos
para esse intenso debate seja a grande beleza do diálogo. Esse encanto faz com que
aqueles que pretendam começar os estudos sobre Platão, comecem pelo mais belo de
todos. Ademais, neste diálogo apresenta-se uma súmula de importantes pontos do
pensamento filosófico de Platão, como a tripartição e a “imortalidade da alma,
38 MCCABE, Mary Margareth. A forma e os diálogos platônicos In: BENSON. op. cit., p.76. 39 NUNES, Carlos Alberto. Introdução. In: PLATÃO. Diálogos: Protágoras, Górgias, Banquete, Fédon.
Vol.III-IV. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 1980, p.22. 40 Talvez o mais importante autor a analisar o Fedro por esse viés seja Schleiermacher. Para ele o Fedro é
o ponto de partida para compreender os objetivos finais visados pela obra de Platão como escritor e pelos
seus métodos educativos. Cf. SCHLEIERMACHER, Platos Stellung in Aufbau der Griechischen Bildung.
Berlin: de Gruyter, 1928, p.21. 41 Apesar de não defendermos qualquer viés interpretativo baseado na cronologia, o principal debate sobre
a posição do diálogo dentro da Obra Platônica está na perspectiva da análise estilométrica. Alguns aspectos
de sedução e persuasão envolvidos nas falas de Sócrates, bem como o jogo com a retórica derivam da
década de 380 a.C.; porém a segunda parte do diálogo escrita em prosa e várias referências à dialética,
forma e cosmologia sugerem que esta foi escrita na década de 370 a.C. Cf. THESLEFF. op. cit., 1982.
21
reminiscência e a apreciação do valor de Eros e da poesia no comportamento humano”42,
além de versar sobre a preexistência e a palingenesia das almas.
É um diálogo único, pois se passa fora dos muros de Atenas. Fedro e Sócrates
buscam um lugar aprazível para conversar sobre um discurso de Lísias sobre Eros. Platão
faz com que Sócrates se encontre com Fedro, tido como padrão de beleza helênica, “numa
radiosa tarde de verão”43, junto à relva e a um aprazível riacho. Criando um cenário
idílico, propício para receber elevações à Eros, Fedro é, sem dúvida, “o mais fascinante
diálogo de Platão, num verdadeiro desafio à argúcia dos comentadores de todos os
tempos”44. Mesmo podendo ser dividido em duas partes estanques, a primeira com as
exortações sobre Eros “que se erguem a um tom ditirâmbico”45 e a segunda com um
debate sobre a verdadeira eloquência na escrita, Platão escreve sobre a sua postura com a
retórica o tempo todo.
Tamanha disparidade entre o Sócrates citadino e o Sócrates do Fedro, supõe que
Platão tenha outras intenções com o diálogo, além dos objetivos paidéticos. O pensador
grego, mais que apresentar argumentos para comprovar a imortalidade da alma,
surpreende ao apresentar uma supremacia da alma sobre o corpo sustentada por sólidas
formulações filosóficas, como a reminiscência da alma, que se apresenta como uma
consequência da visão direta das Ideias/Formas. Inclusive, afirma que apenas poetas e
filósofos “são os seres de alma mais bem aquinhoada quanto à capacidade de captar o
reflexo das imagens celestes que ela contemplou noutra existência no reino das ideias”46.
Provavelmente alguns trechos do diálogo foram escritos após Fédon e República, pois
também aqui a Teoria das Ideias/Formas está em estado acabado, atingindo a sua melhor
expressão formal. O diálogo pode parecer uma forma de exaltação ao Amor que se
alimenta na contemplação da ideia de Beleza, mas também é “um livro de combate, com
endereço declarado e o fito de desmoralizar as composições dos retóricos do seu tempo e
de apontar o rumo certo para o bom aprendizado da arte de escrever”47.
42 NUNES, Carlos Alberto. Introdução, In: PLATÃO. Diálogos: Fedro, Cartas, Primeiro Alcibíades. Vol.5.
Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 1975, p.8. 43 Esse é o feliz título de um capítulo: Ein Glücklicher Sommertag, sobre o diálogo Fedro, da grande obra
de Wilamowitz, Platon. Vol.1, Berlim: Weidmannsche Buchhandlung, 1920. 44 NUNES. op. cit., 1975, p.15. 45 JAEGER. op. cit., p.1271. 46 NUNES. op. cit., 1975, p.23. 47 Ibidem, p.21.
22
1.2.3 República
O problema do Estado é o principal problema que orienta o pensamento de Platão
e por isso grande parte dos seus escritos anteriores convergem para a República, fazendo
deste diálogo sua obra central. Uma das acepções é que existe um claro desenvolvimento
da teoria moral de Platão, que rejeita certas doutrinas socráticas dos diálogos da juventude
e das obras da maturidade, culminando na República48.
Importante frisar que as diversas tentativas de apreciar a República não levavam
em consideração que o objetivo precípuo de Platão era “pôr a descoberto o próprio
processo do conhecimento”49. Pois, no pensamento platônico, a construção do
conhecimento constitui “uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a
episteme é fruto de inteligência e de amor”50.
O dinamismo de Platão está em demonstrar, através da República, que o Estado
versa sobre a alma do Homem, por isso a importância atribuída ao Homem na construção
do melhor Estado. É importante sopesar que o conceito de justiça, e a sua função dentro
no Estado perfeito,
é uma imagem reflexa da teoria de Platão sobre a alma e as suas partes,
a qual se projeta, ampliada, na concepção que ele tem do Estado e das
suas classes. Platão faz o Estado surgir diante dos nossos olhos a partir
dos elementos mais simples que o integram51.
Sem depreciar os 10 livros que compõem essa obra fascinante, e peça chave para
o entendimento do pensamento platônico, a presente dissertação, além de utilizar os
Livros II, III,IV, V, VI, VIII, IX e X, esmiuçará o Livro VII, por se tratar de um tema voltado
para a importância das “ciências” abstratas, e por conter em sua Alegoria da Caverna um
arcabouço importante para o entendimento didático dos temas relevantes para este
trabalho.
48 Cf. IRWIN, Terence. Plato's Moral Theory: The Early and Middle Dialogues. Oxford, 1977 APUD
HOWLAND. op. cit., p.212. 49 JAEGER. op. cit., p.749. 50 PESSANHA, José Américo Motta. Introdução, In: PLATÃO. Diálogos. Coleção: Os Pensadores. Seleção
de textos: José Américo Motta Pessanha. Tradução e notas: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João
Cruz Costa, 5ªed., São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.30. 51 JAEGER. op. cit., p.769.
23
A Alegoria da Caverna dramatiza o desenvolvimento do conhecimento. Um
prisioneiro das sombras que vai aos poucos tendo contato com reflexos luminosos até
desenvolver e aperfeiçoar o olhar para a luz, num movimento dialético entre escuridão e
claridade, mas que extrapassa esse entendimento e que manifesta uma dialética também
entre corpo e alma. “A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o
símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível”52, e a contemplação da
Ideia do Bem é o último estágio da região do conhecimento, é a imagem do Sol para
Platão.
Diversas são as possibilidades de interpretação53 dessa alegoria54, mas a
República, como um todo, tem um caráter político, e sobre esse viés também pode ser
interpretada:
Aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da realidade é o que
pode e deve governar para libertar os outros prisioneiros das sombras:
é o filósofo-político, aquele que faz de sua sabedoria um instrumento
de libertação de consciências e de justiça social, aquele que faz da
procura da verdade uma arte de desprestidigitação, um
desilusionismo55.
Uma interpretação nossa da Alegoria da Caverna, e que balizará este estudo, diz
respeito à ascese da alma. Importante ressaltar que a alma será entendida em seu estado
tríade, onde o aspecto racional terá prevalência. Assim, representada pelo prisioneiro da
caverna, a alma está presa ao corpo. E assim como o ser humano está voltado para o fundo
da caverna e tem apenas a experiência daquilo que é falso ou enganoso, pois não passa de
um simulacro da realidade, a alma também se prende ao corpo e fica intensamente sob os
augúrios dos sentidos, verdadeiras correntes para a alma.
52 Ibidem, p.885. 53 Uma possiblidade de interpretação da Alegoria da Caverna é feita por Martin Heidegger. Para o pensador
alemão a gradação pela qual o homem passa de dentro da caverna para a contemplação das coisas em si
fora da prisão cavernosa é o caminho da gradação que a Verdade passa para se apresentar em seu caráter
desvelado. Para Heidegger, as transições entre os diversos cenários da Alegoria da Caverna são o não-dito
de Platão, onde este não-dito é todo o arcabouço do pensamento platônico sobre a Verdade. Cf.
HEIDEGGER, Martin. Teoria platônica da verdade. In: Marcas do Caminho. Tradução: Enio Paulo
Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. 54Outra possibilidade de interpretação interessante está ligada diretamente ao Banquete. O desenvolvimento
do homem durante a Alegoria da Caverna assume uma concepção de ascese erótica. Eros desempenha um
papel de intermediário em relação aos sentimentos e às emoções. Ele comanda a subida, por via da atração
que a beleza dos corpos exerce sobre os sentidos, e remete, afinal, à contemplação do Belo em si. Cf.
PLATÃO. op. cit., 1991, p.29. 55 Ibidem.
24
Contudo, ao desprender-se da prisão, que o corpo impõe, através da educação
filosófica, a alma lentamente volta a atentar para os reflexos das coisas como elas
realmente são ainda encarnada. Então, em um longo esforço de desprendimento dos
sentidos, a alma volta a contemplar o mundo das Ideias/Formas. Neste reino invisível e
eterno, a alma alcança o conhecimento puro, que é a Ideia do Bem. Sobrepujando a
simples contemplação, a alma conclui que o Bem é a causa de tudo o que existe de belo
e justo no mundo, que é o conhecimento necessário a todo aquele que deseja viver com
retidão e agir racionalmente tanto na vida privada quanto na vida pública.
À Filosofia cabe ser exatamente o impulsor para que a alma, educada
filosoficamente, ao se libertar do corpo possa contemplar o Bem, incidindo sobre o
verdadeiro filósofo a correção e a consciência do melhor caminho para alcançar, ainda
em vida, a lisura que permitirá a consecução desse objetivo de passar do temporal ao
eterno.
Porém, antes de delimitar sua viagem ao mundo do inteligível apenas ao terreno
das Ideias/Formas, a alma adquiri o poder de retornar novamente à prisão do corpo.
Porém, agora, com os conhecimentos de tal mundo metafísico, a alma tenciona contribuir
para o desenvolvimento do corpo. Dessa forma, a teoria da reminiscência platônica é
justamente o conhecimento que a alma carrega consigo do mundo das Ideias/Formas e
que pode ser acessado pelo homem, a partir do momento em que este se coloca na posição
de buscar esse conhecimento constituído em si próprio. Sócrates, no diálogo Mênon,
explicita essa capacidade de relembrar os conhecimentos obtidos em outros momentos da
alma, ao dizer que “todos temos a verdade dentro de nós mesmos e que esta verdade pode
vir à luz por meio de seu questionamento crítico”56.
A utilização de uma alegoria para demonstrar, ou ainda tornar inteligível, o
pensamento, mostra que Platão busca outras ferramentas que não somente a retórica ou a
dialética, para se fazer entender. Com uma grande expertise, Platão alcança o seu objetivo
com o uso do sentido figurado: consegue fazer com que seu pensamento seja apreendido,
e possibilita que diversas interpretações se coadunem com seu pensamento. Novamente,
aqui, sua capacidade literária se alia à sua filosofia na consecução de seus objetivos.
56 BENSON. op. cit., p.66.
25
1.2.4 Teeteto
Este diálogo aparentemente se posta à parte, se considerado com os outros
trabalhos referenciados acima. É uma obra considerada aporética, onde a questão
principal que motiva o diálogo é uma pergunta simples: o que é o conhecimento? Mas
que ao final, após visitar inúmeras respostas de Teeteto, até mesmo Sócrates não sabe
responder a questão. Sem dúvida “é um dos mais instigantes diálogos de Platão. [..] segue
uma lógica férrea e visa um público arguto nos problemas filosóficos”57.
No Teeteto, Platão apresenta o método socrático em estado cristalino. Coloca no
personagem Sócrates a coordenação da técnica da maiêutica, onde supõe que o
conhecimento já está intrínseco ao Homem e através do método dialético de discursos, a
verdade deve ser alcançada, e não apenas o melhor argumento. Para Platão o
conhecimento imanente do Homem, que será acessado através da rememoração, foi
adquirido quando a alma estava no mundo das Formas/Ideias. Assim, a teoria da
reminiscência está, mesmo que de forma velada, presente neste colóquio.
Outro aspecto importante presente no Teeteto é a discussão entre o que seja
opinião e conhecimento. Platão inicialmente refuta a possibilidade de opinião acerca
daquilo que não se conhece ou percebe, e afirma que por mais que a opinião seja falsa,
ela necessariamente está baseada naquilo que o Homem sabe ou percebe. O filósofo
mostra ainda que a verdade e o erro das opiniões estão diretamente ligados ao movimento
incessante que os objetos que devém apresentam. Dessa forma, Platão busca
“esclarecimentos e distinções, começando por examinar e criticar a assimilação entre
sensação e aparência, a equivalência entre sensação e opinião, e a identificação entre
sensação e conhecimento”58.
Contudo, o mais importante aspecto presente no diálogo é a exposição de uma
doutrina “secreta” que Platão afirma estar de acordo com Heráclito e Empédocles.
Segundo essa doutrina, nenhuma coisa é una em si mesma e quando aparece de modo
57 ZENI, Eleandro Luis. Conhecimento e Linguagem: um estudo do Teeteto de Platão. Santa Maria:
Universidade Federal de Santa Maria, 2012. 92 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012, p.11. 58 FLAKSMAN, Ana. Ser, aparecer e devir: Heráclito no Teeteto de Platão. Anais De Filosofia Clássica,
Rio de Janeiro: Unirio, vol.8, nº16, 2014, p.13.
26
determinado também aparece de modo oposto, o que decorre que nada pode ser
determinado com justeza pelo nome ou outra denominação. Assim, Platão postula “o
movimento e a mudança das coisas ao longo do tempo como a origem de tudo o que
erroneamente supomos ser, mas que na verdade não é, e sim devém”59. E estando dentro
desse estado de constante mudança, que o mundo do devir proporciona, os objetos
sensíveis não mostram a verdade e o conhecimento é impossível.
1.2.5 Outros diálogos
Além dos diálogos citados, outros colóquios serão visitados por conterem trechos
importantes para o debate que esta dissertação pretende suscitar. Pensamentos sobre a
relação corpo x alma; sobre a importância da reminiscência como comprovação da
transmigração da alma e a apresentação da Ideia/Forma da Beleza como o aspecto do
mundo inteligível visível com a alma encarnada, são algumas das questões levantadas e
logradas neste trabalho. Os diálogos são: Cármides, Górgias, Crátilo, Sofista, Mênon,
Timeu, Banquete, Íon, Apologia, Leis e Filebo.
1.3 Tragédias Shakespearianas
Além disso, buscar-se-á uma analogia entre Filosofia e Arte ao apresentar as
referentes questões filosóficas dentro de uma perspectiva literária especificamente nas
obras trágicas de William Shakespeare. Sendo assim, outro objetivo que se coloca é
apresentar uma relação dialética entre o pensamento platônico sobre o mundo do devir e
a compreensão e entendimento shakespeariano sobre os sentimentos humanos, ou seja
sobre o dever do Homem diante de situações imanentes.
Dentro da antologia de William Shakespeare podemos identificar 3 grandes eixos
temáticos, se considerarmos apenas as peças. Existem as peças históricas, tanto referentes
59 Ibidem, p.18.
27
à história da Inglaterra quanto à de Roma; as comédias; e as tragédias. Para o que esta
dissertação propõe, uma análise sobre como Shakespeare tratou os sentimentos mais
próprios do ser humano, as quatro grandes tragédias, Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth,
mostram que Shakespeare ultrapassa a estrutura de uma peça trágica e, em última análise,
apresentam ao Homem novas perspectivas sobre os seus íntimos sentimentos.
Em Macbeth Shakespeare apresenta a ganância pelo poder; em Rei Lear, a
loucura; em Otelo, a inveja; e em Hamlet, a vingança. Todos esses sentimentos revelam
os aspectos mais íntimos do Homem sem que este se encerre naqueles. Shakespeare alça
tais sentimentos em bastiões, de onde os Homens apenas podem contemplar sua própria
natureza. São sentimentos imanentes, que fazem o Homem ser o que é: imperfeito. Ao
desvestir o Homem dessa forma, Shakespeare expõe o que de mais próprio se insere no
gênero humano. Desenvolve, assim, o pensamento de que o autoconhecimento do
Homem passa invariavelmente pela análise profunda de suas particularidades.
As quatro tragédias citadas mostrarão como podemos pensar a descoberta e a
consciência de viver no mundo do devir de Platão através da chave interpretativa
shakespeariana de autoconhecimento do Homem através da investigação de seus
sentimentos imanentes.
28
Capítulo 2
Da ψυχὴ à διάνοια: o devir para Platão
2.1 A Ψυχὴ de Homero a Platão
Antes de dissertar sobre as particularidades que a ψυχὴ adquire com os trabalhos
de Platão, cabe ressaltar uma certa trajetória que o termo ψυχὴ passou para chegar ao
século IV a.C. com o significado que entendemos por alma. É importante refletir que de
tempos homéricos aos dias de Platão, a alma adquire um aspecto central na compreensão
da estrutura da realidade e do conhecimento. Diversos conceitos são formulados ao longo
desse período para dar conta da miríade de possibilidades acerca da natureza da alma e
sua estreita relação com o corpo.
2.1.1 Homero
Começamos por Homero pois este, segundo Platão, “foi o educador da Hélade [...]
que entende dos problemas da educação e das relações humanas”60. Na Grécia arcaica, a
palavra σῶμα (sôma) ainda não era empregada para designar “corpo” como entendemos
atualmente, este era um aglomerado de membros e músculos representado pela graça e
pelo ritmo dos movimentos e pela exuberância de sua força. Da mesma forma, a palavra
ψυχὴ (psyché) fazia referência a algo que existia na natureza do Homem e que no
momento da morte abandonava o σῶμα e vagava pelas sombrias regiões do Άδης
(Hades)61 como uma sombra sem consistência.
60 PLATÃO. República X, 606e. Todas as citações do diálogo República terão como referência: PLATÃO.
A República. Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3ªed. Belém: Editora UFPA, 2000. 61 Άδης (Hades) é o local no subterrâneo para onde vão as almas das pessoas mortas (sejam elas boas ou
más), guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, para lá tornarem-se Sombras. É o Mundos dos Mortos.
O nome Hades era usado frequentemente para designar tanto o Mundo dos Mortos como o deus que o
29
Compartilhando uma visão comum a outras culturas anteriores62, Homero acredita
que o Homem vivo possui duas existências63 dentro de si. Assim, a ψυχὴ se torna um
“outro”, ou “duplo”, que tem a sua existência comprovada, para Homero, nos sonhos,
quando além de participar de outros ambientes e situações esse “duplo” se envolve com
outros “duplos”. Criando a ideia de existência contínua, Homero apresenta ao Homem
vivo que a morte é mais que um nada, é o início de um novo caminho de existência. Esse
ineditismo homérico relacionado à ψυχὴ refletirá, a partir de então, por toda a história
grega.
Homero não especifica uma função para a ψυχὴ durante a vida do Homem. É no
post-vidae que o aedo apresenta suas características. Ao se dirigir ao Άδης, a ψυχὴ possui
uma forma semelhante ao Homem em vida, podendo por isso ser reconhecida por todo
aquele que lhe for conhecido. É o caso de Aquiles que encontra Pátroclo junto a diversas
almas no Άδης: “a psyché sobrevém-lhe do mísero Pátroclo, símil a ele no talhe, na voz
e nos olhos, nas vestes”64. Contudo, a ψυχὴ, no Άδης, não possui consciência, não
conserva o sopro vital, que Homero chama de θῡμός (thymós)65. Assim, o Homem quando
morre se vê privado de tudo, “tem o poder do movimento, mas é desprovido de propósito;
tem uma voz, mas apenas a de um chiado; é fumaça, cintilante, de natureza vaporosa”66,
sobressaindo apenas a ψυχὴ.
É importante sopesar que o sofrimento após a morte do Homem, a desesperança
homérica diante dessa visão sombria, é o resultado da indivisibilidade entre vida, corpo
físico e pessoa. A vida, em Homero, é indissociável do corpo e a existência se resume à
governa. Posteriormente, a mitologia grega provocará mudança nesse conceito, acrescentando os Campos
Elísios, lugar de eterna alegria e felicidade também governado por Hades, oposto ao Tártaro (lugar de eterno
tormento e sofrimento). Nos Campos Elísios, os homens virtuosos repousavam dignamente após a morte
rodeados por paisagens verdes e floridas dançando e se divertindo noite e dia. O deus Hades, portanto,
governa o Hades, que é dividido entre Tártaro (onde ficam os maus) e Campos Elísios (onde ficam os bons).
Com isso, temos que Hades não é nem um deus bom nem mau, mas um deus justo. Cf. SISSA, Giulia;
DETIENNE, Marcel. Os deuses gregos. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; KERÉNYI, Karl. Os
deuses gregos. Tradução: Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1998. No entanto, Homero é quem
apresenta o primeiro conceito: no Hades bons e maus são apenas sombras. Cf. HOMERO, Ilíada. Tradução:
Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2003. 62 Anterior se refere ao que ocorreu ou se desenvolveu antes no tempo cronológico, sem qualquer sentido
que possa diminuir perspectivas precedentes. 63 σῶμα e ψυχὴ compreendidos como unidades ontológicas. 64 HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.66-68. (Tradução: Haroldo de Campos). 65 θῡμός é o ardor, a coragem. Ele também pode ser traduzido como coração, sede dos sentimentos, das
paixões, dos impulsos involuntários, das decisões, da inteligência. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 66 KATONA, Gabor. The Evolution of the Concept of Psyche from Homer to Aristotle. Journal of
Theoretical and Philosophical Psychology, Washington: Princeton University, vol.22, nº1, 2002, pp.33-34.
(Tradução nossa).
30
vida corpórea e física. Não existe a redução do Homem a um núcleo permanente que o
representaria. Para Homero, a vida após a morte é significada pela existência contínua,
não há a imortalidade da alma como um núcleo imaterial. A importância da associação
entre existência e corpo é asseverada no Mito do Transporte (Translation)67 na Odisseia,
onde alguns heróis recebem a imortalidade e são enviados para as Ilhas Sagradas. Essa
imortalidade é concedida através desse transporte, no sentido de levar algo de um lado
para outro, que se torna, assim, um surgimento instantâneo para uma nova forma de
existência sem a mediação de uma ideia de alma.
“A imortalidade no sentido homérico não é a imortalidade de uma ‘alma’ capaz
de sobreviver à morte do corpo, mas o transporte de toda a pessoa para um novo modo de
existência compartilhado com deuses”68. Todo Homem continua vivendo em uma nova
existência, pois, para Homero, a crença na convivência inseparável entre alma e corpo é
o sustentáculo para erigir uma imagem mais consoladora e mais reconfortante para a vida
depois da morte, do Homem homérico, pois “humanizando os deuses e afastando o temor
dos mortos, as epopeias homéricas descrevem um mundo luminoso no qual os valores da
vida presente são exaltados”69.
A ψυχὴ ainda não possui uma estrita ligação com o conceito posterior de alma,
mas inicia-se em Homero um processo que assim culminará, através da ideia de existência
contínua, que representa, ainda, um avanço no “processo de racionalização e laicização
da cultura, que conduzirá à visão filosófica e científica de um universo governado pela
razão”70.
2.1.2 Tales de Mileto
67 Translation possui o sentido etimológico de uma movimentação ou remoção de um lugar para outro, um
transporte, transferência Cf. ONLINE ETYMOLOGY DICTIONARY, disponível em:
[http://www.etymonline.com/index.php]. 68 KATONA. op. cit., p.35. (Tradução nossa). 69 SOUZA, José Cavalgante de. Os Pré-Socráticos: Fragmentos, Doxografia e Comentários. Coleção: Os
Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996, p.12. 70 Ibidem.
31
Tales de Mileto, conhecido por suas proezas nos campos da astronomia e da
matemática, é também considerado como um dos primeiros filósofos. Apesar de seu
modo de pensar parecer elementar71, Tales foi um dos primeiros pensadores a abandonar
as formulações míticas e desenvolver a mentalidade de reformular e corrigir teses
fechadas em si, além de propor “uma nova visão de mundo cuja base racional fica
evidenciada na medida mesma em que ela é capaz de progredir, ser repensada e
substituída”72.
Com isso, Tales acredita que o mundo possui um poder de movimento e de
transformação, que por suas variações e tamanhos, não é apenas humano, mas possui
aspectos divinos que representam algo que permanece além do tempo de existência
corpórea. Dessa forma, imbuído das ideias de movimento e mudança, Tales será o
primeiro pensador pré-socrático a tentar elaborar uma teoria para a ψυχὴ. Esta se
apresenta como uma força capaz não apenas de mover-se, mas também de mover outras
coisas, ou seja, uma força cinética.
O caráter divino que Tales relaciona com a ψυχὴ pode ser comprovado pela
afirmação de Aristóteles: “outros [pensadores] dizem que a alma está misturada com a
totalidade do universo daí, provavelmente, Tales ter julgado que tudo está cheio de
deuses”73. Essa onipresença de deuses representa, para Tales, que o mundo não precisa
de explicações particulares, visto que possuía certo modo de existência, e passava, por
isso, por transformações espontâneas. O exemplo utilizado por Tales está relacionado
com a φύσις (physis)74, para ele árvores, rios e até mesmo pedras possuíam espíritos
animados capazes de proporcionar movimento, comprovando a ideia de que “o mundo
como um todo estava [...] de certo modo penetrado de uma força vital que, devido ao seu
alcance e persistência, podia naturalmente ser chamada divina”75.
Assim, o aspecto divino da ψυχὴ deu razão a outra teoria atribuída a Tales.
Segundo Aristóteles, “parece que também Tales, ao avaliar pelo que se conta, considerava
a alma como algo de cinético, se é que ele disse que a pedra [de Magnésia] possui alma
71 Elementar pois Tales utiliza os elementos para buscar a apreensão da estrutura do cosmos. 72 SOUZA. op. cit., p.19. 73 ARISTÓTELES. De anima, 411a. In: BARNES, Jonathan. Aristotle: Complete Works. Princeton:
Princeton University Press, 1991. (Tradução nossa). 74 Φύσις será apresentada neste trabalho com o sentido de natureza. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 75 KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos – História crítica com seleção
de textos. 7ªed. Tradução: Carlos Alberto Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p.97.
32
pelo fato de deslocar o ferro”76. Assim, Tales assegura que o fato do imã conseguir
deslocar o ferro, significa que o imã possui uma ψυχὴ própria, capaz de mover-se e mover
outras coisas. Da mesma forma, o Homem ao movimentar-se é considerado com vida e
com uma ψυχὴ ativa, mas quando perde os sentidos é como se tivesse sido abandonado
pela ψυχὴ; para Tales, se o Homem morre é porque ficou permanentemente sem contato
com a ψυχὴ. Fazendo referência à concepção homérica, para Tales a ψυχὴ, ao estar
dissociada do σῶμα, “desce ao Hades, soltando gritos estridentes”77.
Portanto, a concepção de Tales, assim como de seus contemporâneos, é retratar a
ψυχὴ do Homem como algo essencialmente conectado, ou mesmo sendo parte, “de uma
ordem ou elemento cósmico maior”78. Para Tales a ψυχὴ não está inscrita apenas ao
corpo, mas ainda não se apresenta como uma substância imaterial totalmente
independente. Para ele, a ψυχὴ está “constantemente sob influência de elementos de fora
(éter, fogo ou ar)”79, o que abriu caminho para pensadores como Pitágoras de Samos e
Heráclito de Éfeso demonstrarem a importância da ψυχὴ no conhecimento da estrutura
do cosmos.
2.1.3 Pitágoras de Samos
Apesar de não ter deixado qualquer obra escrita, Pitágoras de Samos legou
inúmeros pensamentos que somente muito tempo depois se tornaram objeto de atenção.
Por isso, o que se conhece de sua doutrina está baseado nessas produções textuais
posteriores, não sendo possível, assim, extrapolar o terreno das conjecturas e suposições.
De todo modo, a Pitágoras é atribuída a introdução de algumas crenças na Grécia antiga,
incluindo sua afirmação de que “a alma, em primeiro lugar, era imortal e, depois, se
transferia a outras espécies de seres vivos, e, além disso, que o que havia acontecido em
alguma ocasião, em certos âmbitos temporais, ocorreria novamente”80. Contudo, a falta
76 ARISTÓTELES. op. cit., 405a. 77 KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. op. cit., p.94. 78 KATONA. op. cit., p.38. 79 Ibidem. 80 PORFIRIO. Vida de Pitágoras; Argonáuticas Órficas; Himnos Órficos. Introdução, tradução e notas
Miguel Periago Lorente, Madri: Editorial Gredos, 1987, p.35.
33
de qualquer relato escrito torna necessário uma apreciação mais detalhada das origens da
doutrina pitagórica.
Com o despontar das religiões dos mistérios entre os séculos VI e V a.C., surgem
inúmeras indagações referentes à origem, substância, trajetória e razão de ser da alma
humana. A imortalidade se apresenta, assim, como conceito central a ser desvelado pela
nova racionalidade grega. Examinando o ritual praticado em nome de Dioniso81, “onde a
ideia da morte se mesclava com todas as manifestações da vida, [e que] suscitou a ideia
do sacrifício expiatório, da purificação através da qual a alma se desprende dos laços do
corpo e vive uma vida divina”82, inferimos que o renascimento do culto Dionisíaco marca
o início da construção da ideia de imortalidade da ψυχὴ, como veremos adiante em
Pitágoras.
O culto a Dioniso era uma celebração sagrada onde através do ἔκστασις
(ékstasis)83 os adeptos aos rituais tinham uma experiência supra corpórea que
proporcionava uma sensação de vida fora do corpo físico, uma separação completa da
alma com o corpo. Esse estado de ἔκστασις era uma busca pela superação dos próprios
limites da condição humana com o objetivo de alcançar a liberdade e conseguir a
aproximação a Dioniso. Assim, a ψυχὴ em ἔκστασις é livre, e o σῶμα se torna um cárcere
opressor, um obstáculo que impede que o Homem possa elevar-se “acima do nível normal
de sua consciência limitada e cotidiana, e [que] poderia elevá-lo a uma condição de visão
e conhecimento ilimitados”84.
Contudo, o ritual a Dioniso ainda não “preconiza a fuga para fora do mundo, não
prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas, por um tipo de vida ascético, o
acesso à imortalidade”85, ele propõe a abertura de um novo caminho para que os homens
se encontrem nas múltiplas figuras do outro que surgem. Contudo, outro movimento
81 Dioniso (Διόνυσος) era o Deus Grego das festas, do vinho, do lazer e do prazer. Filho imortal de Zeus e
Perséfone, nasce como Zagreu, depois renasce como Dioniso, filho imortal de Zeus com Semele. O culto
Dionisíaco já estava presente na Grécia desde o século XIV a.C. Cf. BRANDÃO, Junito de Souza.
Mitologia grega. Vol.2, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 115-117. 82 WERNER, Charles. La Philosophie Grecque. Paris: Ed. Payot, 1972, p.22. (Tradução nossa). 83 ἔκστασις em seu sentido etimológico de qualquer deslocamento ou remoção do lugar apropriado e ainda
transe, arrebatamento, ser outro ao mesmo tempo que si próprio. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 84 ROHDE, Erwin. Psyché: La idea del alma y la inmortalidade entre los griegos. Tradução: Wenceslao
Roces. México: Fondo de Cultura Econômica – FCE, 1983, p.291. 85 VERNANT, J.P. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.80.
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doutrinal mítico-poético vinculado especificamente a Dioniso surge como catalisador
dessas ideias, ainda embrionárias, sobre a imortalidade da alma: o Orfismo.
A doutrina Órfica assevera que o Homem é um ser dual, ou seja, que o Homem
possui uma natureza dupla, composta do bem e do mal, uma parte mortal e outra imortal.
Essa teoria surge da interpretação do mito de nascimento de Dioniso, onde Zeus, senhor
do cosmo e dos deuses, se apaixonou por Perséfone e desse amor nasceu Zagreu, o
primeiro Dioniso. Sabendo que sua mulher, Hera, pretendia matar Zagreu, Zeus confiou
a segurança deste ao Deus Apolo. Ao descobrir seu esconderijo, Hera mandou os Titãs
raptarem e matarem Zagreu. Os Titãs, então, fizeram-no em pedaços e o devoraram, mas
Zeus conseguiu salvar o coração de seu filho e o comeu, além de fulminar os Titãs com
um raio. Das cinzas dos Titãs nasceu a raça humana, mas o coração de Zagreu/Dioniso
ficou com Zeus86.
Os homens carregam consigo a culpa pelo desmembramento do corpo de Dioniso,
mas, purificando-se da falta ancestral pelos ritos e pelo tipo de vida
órficos, abstendo-se de toda carne para evitar a impureza desse
sacrifício cruento que a cidade santifica mas que lembra, para os
órficos, o monstruoso festim dos Titãs, cada Homem, tendo guardado
em si uma parcela de Dioniso, pode, também, retomar à unidade
perdida, reencontrar o deus e recuperar no além uma vida de época
áurea87.
O Orfismo apregoava, assim, uma série de rituais de purificação, ou κάθαρσις
(katharsis), para que a ψυχὴ, após a separação do σῶμα, não caísse nas águas do
esquecimento, λήθη (léthe), e se esquecesse do que havia sido transmitido pelo divino. A
ascensão junto a Dioniso se dava através de inúmeras transmigrações e os rituais órficos
intentavam purificar a ψυχὴ para que esta transpusesse o ciclo de nascimentos o mais
rápido e pura possível para alcançar a liberdade e, consequentemente, a imortalidade. A
purificação da ψυχὴ como objetivo final é a principal diferença entre esse movimento e
os demais que também cultuavam Dioniso.
Nos rituais purificadores, os órficos, através das técnicas de ἔκστασις,
experimentavam a presença de um ser divino alheio à vida terrestre, uma ψυχὴ que não
86 Cf. BRANDÃO. op. cit.; SISSA; DETIENNE. op. cit.; KERÉNYI. op. cit. 87 VERNANT. op. cit., pp.83-84.
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seria mais como em Homero, “uma sombra sem força, um reflexo inconsistente”88 sem
atividade ou esperança, mas um δαίμων (daimon)89, um elemento aparentado com o
divino que, por ter essa origem, deve tomar consciência de si mesma e tem o destino de
estar eternamente junto ao divino após a morte. Essa diferença substancial com a ψυχὴ
homérica, coloca o Orfismo como precursor direto “da ideia da natureza divina da alma
ou espírito de Platão e Aristóteles”90.
Contudo, para além das concepções de transmigração e dos rituais de purificação
da ψυχὴ, a doutrina Órfica sobressaiu-se notadamente por desenvolver um entendimento
da ψυχὴ como uma unidade da vida e do espírito, e também por conceber essa ψυχὴ
“como um ser espiritual por seu próprio direito, totalmente independente do corpóreo”91.
O Homem começou a se sentir responsável pelo destino de sua ψυχὴ, que na perspectiva
Órfico-Dionisíaca, é a verdadeira essência do Homem.
Dessa forma, é do coração da doutrina Órfica que Pitágoras retira sua própria
doutrina. Porém, algumas distinções claras entre o Pitagorismo e o Orfismo sedimentarão
o caminho para compreender o pensamento de Pitágoras em sua totalidade. Apesar de
coincidirem em remeterem o sentido da existência a um terreno ultra corpóreo e a
atribuírem à κάθαρσις (katharsis)92 um papel central para libertar as almas do ciclo de
reencarnações para fazê-las se unirem ao divino, Orfismo e Pitagorismo diferenciam-se
quanto aos instrumentos de purificação e quanto às formas de atingir a purificação da
alma.
A primeira diferença nítida se encontra no fato de que os órficos apoiavam a
autoridade de sua doutrina em textos escritos, à medida que os pitagóricos não faziam da
escrita uma prática. A outra diferença, mais acentuada, diz respeito às formas de
purificação, no Orfismo a purificação da alma era alcançada através das “celebrações e
práticas religiosas dos sagrados mistérios”93, nas quais a alma se elevaria ao divino. Em
88 Ibidem, p.87. 89 Δαίμων é um tipo de ser que se assemelha a uma espécie de espírito que rege o destino de alguém ou de
um lugar. Trata-se do sinal divino que se percebe dentro de si mesmo em circunstâncias particulares. Um
espírito orientador, uma deidade tutelar. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 90 JAEGER, Werner. La Teologia de los primeiros filosofos griegos. Tradução: José Gaos. México: Fondo
de Cultura Economica, 1952, p.91. (Tradução nossa). 91 Ibidem, p.88. 92 Κάθαρσις no sentido de purificação. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 93 CASORETTI, Anna Maria. A origem da alma: do Orfismo a Platão. São Paulo: Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2010. 76 fls. Monografia (Bacharelado em Filosofia) - Curso de Filosofia,
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010, p.50.
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contrapartida, a doutrina de Pitágoras confiava, quase que inteiramente, na ciência,
através do desenvolvimento de ideias sobre os números.
O número seria o princípio do conhecimento porque ordena e organiza
a realidade ao engendrar as coisas como unidade e diversidade de
proporções inteligíveis. O número torna as coisas discerníveis umas em
relação às outras e as torna concordantes com a alma, concórdia que
decorre do fato de que a alma também é número. Assim, as coisas e a
alma são comensuráveis (proporcionais) porque possuem a mesma
medida comum ou o mesmo lógos: são feitas da mesma phýsis.
Conhecer é, pois, encontrar a unidade de alguma coisa e o princípio de
sua mudança. O número é o que produz a unidade e a diversidade das
coisas, permitindo, desta maneira, que sejam conhecíveis por nossa
alma. A alma é, pois, o elo de união entre os dois mundos, aquela à qual
é permitido participar de duas realidades, seja do princípio de unidade,
seja do princípio de mudança94.
Pitágoras entendia a totalidade dos números como uma unidade. E essa unidade
era, por consequência, também a totalidade das coisas visíveis e invisíveis. A ψυχὴ era
assemelhada à harmonia, conquanto que ambas eram, na verdade, a concordância de
muitos elementos discordantes. E, como à harmonia, cabia à ψυχὴ proporcionar essa
consonância entre elementos distintos, induzindo os elementos superiores à dominação
dos elementos inferiores95. Dessa forma, a purificação da ψυχὴ é resultado de um trabalho
intelectual “que descobre uma estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma
semelhante ao cosmo, em harmonia, proporção e beleza”96.
No Pitagorismo a ψυχὴ tem um importante papel a desempenhar, e purificá-la
torna-se assunto de primeira grandeza para os pitagóricos. Assim, a busca e a prática de
uma vida virtuosa, aliada à sabedoria, seriam prerrogativas para a purificação da ψυχὴ.
Pitágoras elabora, então, a teoria da metempsicose, que seria a única maneira de
proporcionar a libertação da ψυχὴ, e fazer com que esta pudesse entrar em contato com o
mundo supra sensível, a esfera da estrutura numérica do cosmos97. Na teoria da
metempsicose pitagórica, a ψυχὴ é levada a reencarnar diversas vezes, não apenas em
94 Ibidem, p.48. 95 Esse aspecto de elementos discordantes na ψυχὴ será objeto de análise no Mito do Cocheiro, ou Carro
Alado, no diálogo Fedro, de Platão. 96 SOUZA. op. cit., p.22. 97 A ψυχὴ como elo de união entre o mundo físico e o metafísico será desenvolvida posteriormente por
Platão.
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existências antropomórficas, mas inclusive em formas animais, para purgar uma culpa
originária.
Dessa forma, analisando os preceitos da doutrina pitagórica, é crível ver como
Pitágoras promoveu a expansão do conceito de ψυχὴ na Grécia antiga. Entre outras coisas,
estava em jogo a preocupação “com a existência contínua da pessoa após a morte”98. Para
o Pitagorismo a ψυχὴ é imortal, ou seja, preexiste ao σῶμα e continua a existir após a
morte deste. Dessa forma, outra concepção pitagórica foi desenvolvida, a concordância
de contrários99. Pois a ψυχὴ, de natureza divina, e portanto imortal, se une ao σῶμα, de
natureza mortal e corruptível, como uma espécie de punição e com o objetivo de expiar
sua culpa. O Homem, assim, não deve viver em função de seu σῶμα ou de seus sentidos,
visto ser este um cárcere, deve, contudo, viver para sua ψυχὴ, a única que pode
proporcionar um caminho para um mundo junto ao divino.
Pitágoras, dessa forma, é o primeiro a apontar para a imortalidade da alma na
filosofia antiga. Ele também é o primeiro a tentar penetrar nas raízes das coisas e
desenvolver a ideia de que a verdadeira realidade não está nas coisas materiais, corpóreas,
mas sim na ψυχὴ e em sua essência imortal. Muitos aspectos do Pitagorismo estão
presentes em Platão, entre eles, “o fato da alma se revelar semelhante aos seres que vivem
no mundo superior, contendo em si uma centelha da essência divina”100 permitindo que a
ψυχὴ transite tanto pelo mundo material quanto pelo mundo das realidades eternas.
Estabelecendo, assim, as bases para o desenvolvimento de uma filosofia das
Ideias/Formas.
2.1.4 Heráclito de Éfeso
Heráclito de Éfeso buscou uma compreensão mais profunda para a ψυχὴ. Ao
desenvolver seu pensamento, Heráclito concluiu que para se conhecer a estrutura do
cosmos era necessário desvendar os mistérios e a natureza da ψυχὴ. Assim, era
98 LORENZ, Hendrik. Ancient Theories of Soul. Stanford Encyclopedia of Philosophy, Stanford: Stanford
University, 2009, p.8. (Tradução nossa). 99 Que será largamente utilizada por Platão e será conhecida como Teoria dos Contrários. 100 CASORETTI. op. cit., p.50.
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imprescindível conhecer a natureza da parte para chegar ao conhecimento do todo, parte
que possuía a mesma essência e estava sob as mesmas leis do todo. “Assim, conhecer
deixa de ser somente pensar e passa a envolver, também, uma sabedoria prática ligada à
prudência, isto é, um agir que se fundamenta na sabedoria e na virtude”101.
Uma revolução heraclítica diz respeito à corporificação da ψυχὴ. Para Heráclito
não haviam grandes problemas nas relações entre σῶμα e ψυχὴ, “a alma do Homem,
ferida alguma parte do corpo, apressadamente acode, quase indignada pela lesão do corpo,
ao qual está ligada firme e harmoniosamente”102. Seguindo claramente as tradições Órfica
e Pitagórica, Heráclito proclama: “o que aguarda os homens após a morte, não é nem o
que esperam nem o que imaginam”103. Contudo, Heráclito deu intensa importância a outro
aspecto importante da ψυχὴ: sua constituição. No pensamento heraclítico não há
diferença radical entre σῶμα e ψυχὴ, sua diferença consiste apenas no grau de
composição, como finura e mobilidade.
Sendo a constituição corpórea a principal diferença entre σῶμα e ψυχὴ, Heráclito
coligiu a importância em se desvendar a natureza da ψυχὴ. Assim, a ψυχὴ é ígnea104, e
por isso, “está intimamente unida à Natureza cujo elemento fundamental é o fogo”105.
Assim, pela primeira vez, a estrutura da ψυχὴ foi relacionada não apenas com o σῶμα,
mas com o mundo como um todo, onde a ψυχὴ desempenha “um certo papel no grande
ciclo da mudança natural”106. Heráclito reconhece que “uma alma seca é mais sábia e
melhor”107, e que apesar de ter sua origem na umidade, a ψυχὴ úmida encontra-se
diminuída em sua capacidade, sem discernimento ou força física.
Contudo, a ψυχὴ sendo parte do fogo cósmico, mas tendo sua origem na umidade
e ainda sendo constituída pelo ar, apresenta um paradoxo de existência que será explicado
101 Ibidem, p.39. 102 HERÁCLITO. Fragmento 67a. Todos as citações dos fragmentos dos filósofos pré-socráticos terão
como referência: BORNHEIM, Gerd A. Os Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1967. 103 Ibidem, Fragmento 27. 104 Ígnea como aquilo que tem as qualidades do fogo. Quando Heráclito diz que a alma é fogo, ele não está
falando a linguagem da física moderna, mas está inserindo a alma do homem no ciclo dos elementos
cósmicos. Enquanto vida, ela se torna água (sêmen reprodutor) e terra (corpo da mulher). Na morte, o corpo
se evapora e, quando incinerado, volta a ser fogo, por isso para as almas é morte tornar-se água. Cf.
HERÁCLITO. Fragmento 36. Também segue esse pensamento: RAMNOUX, Clémence. Héraclite ou
L’homme entre les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1959. (Tradução nossa). 105 ROCHA, Zeferino. Psyché: Os caminhos do acontecer psíquico na Grécia Antiga. Revista Latino-
Americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental, vol.4, nº2, pp.67-91, jun.2001, p.75. 106 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.212. 107 HERÁCLITO. Fragmento 118.
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por Heráclito de forma inédita até o momento. Assim, existe uma constituição anímica
formada pelos três elementos, mas a ψυχὴ será tanto mais racional quanto mais prevalecer
as medidas do fogo sobre as medidas de água e ar. Por conseguinte, outra importante
peculiaridade do pensamento heraclítico se apresenta, pois o cosmos, no seu constante
vir-a-ser, resulta de uma grande luta de contrários, e uma vez que “tudo se faz por
contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”108.
A cosmologia heraclítica apregoa que o cosmos está em constante movimento,
“que todos os entes se encontram em movimento”109, ou seja, que todas as coisas que são
não permanecem imóveis, fixas, estáveis, mas se movem, sem cessar e sem exceção. Esta
intensa movimentação cria tensão, principalmente entre as coisas contrárias110, e da
tensão entre os opostos nasce a harmonia do mundo. Para Heráclito, cada contrário nasce
de seu contrário e faz nascer o seu contrário111. Essa harmonia que resulta da tensão entre
contrários é entendida por Heráclito como uma unidade de tensões opostas, e que o λόγος
(lógos)112 é precisamente a unidade profunda que as coisas opostas ocultam e sugerem,
assim, “os contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa
unidade”113. Heráclito afirma, em alguns de seu fragmentos, essa íntima relação entre
ψυχὴ e λόγος, assim, segundo o filósofo, “mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais
encontra [remos] os limites da alma, tão profundo é o seu Logos”114, pois “à alma pertence
o Logos, que se aumenta a si próprio”115.
Ao considerar que fogo e água, contrários em suas essências, proporcionam a
harmonia necessária à ψυχὴ, também conjecturamos que esses elementos não se
manifestam uniformemente por muito tempo. Heráclito diz que quando isso ocorre o
resultado é a morte. Para o pensador, a morte para as almas significa “transformar-se em
água; para a água, morrer é transformar-se em terra. Da terra, contudo, forma-se a água,
e da água a alma”116. Contudo, essa transformação em água também ocorre com a ψυχὴ
108 Ibidem, Fragmento 8. 109 ARISTÓTELES. op. cit., 405a. 110 Essa perspectiva de contrários não pode ser entendida ao modo como a moderna gramática possibilita a
dimensão de contrários como opostos, antagônicos. 111 Importante notar que este é o mesmo argumento defendido por Sócrates no diálogo Fédon. 112 λόγος será usado no sentido de razão. Razão que funciona sempre e em acordo com a qual, mas não por
causa da qual, todas as coisas vêm a ser. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 113 SOUZA. op. cit., pp.30-31. 114 HERÁCLITO. Fragmento 45. 115 Ibidem, Fragmento 115. 116 Ibidem, Fragmento 36.
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que busca apenas o prazer, por isso o Homem deve extinguir o desregramento. Segundo
Heráclito, “lutar contra os desejos é difícil. Pois o que exige a compra da alma”117, ou
seja, “tudo aquilo em que o desejo de nosso coração insiste, ele compra ao preço da vida,
isto é, do fogo que há em nós”118.
Apesar do Homem ainda não estar no centro da reflexão filosófica, com Heráclito
a estrutura da ψυχὴ e o ciclo da vida e da morte passam a se inserir no estudo mais
aprofundado do cosmos. Explicando a ψυχὴ como uma parte da substância cósmica,
Heráclito “diz ser a alma imortal, pois após a sua separação do corpo volta à alma
universal, ao homogêneo”119. Em Heráclito, a ψυχὴ se encontra em estado de poder
deslocar-se para todas as partes do corpo que dela necessitem e de ter limites que não
podem ser alcançados. Analisando, sob o prisma heraclítico, a filosofia platônica,
concluímos que a capacidade de auto crescimento da ψυχὴ, assim como a presença de um
λόγος que assegura uma consistência interior durante a vida, além da apresentação da
ψυχὴ como princípio de vida, inteligibilidade e afetividade, são os principais elementos
que Platão usará em suas teorias acerca da ψυχὴ. Platão utilizará a ideia heraclítica de
arco para explicar o caminho que a ψυχὴ percorre até o mundo metafísico, um “arco [que]
tem por nome a vida, e por obra, a morte”120.
2.1.5 Parmênides de Eléia
Parmênides de Eléia preconizou o estudo do Ser. Apesar de ter sido ensinado por
discípulos diretos de Pitágoras, suas concepções, ao final, acabaram por se afastar dos
preceitos pitagóricos. Apesar disso, seu pensamento apresenta íntimas relações com a
natureza da ψυχὴ.
Parmênides desde sempre formulou uma ideia para a imortalidade da ψυχὴ. Para
ele “a alma imortal que pode existir separada do corpo e visitar o outro mundo é a alma
117 Ibidem, Fragmento 85. 118 BURNET, John. A Aurora da Filosofia Grega. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora
Contraponto, 2006, p.166. 119 BORNHEIM. op. cit., p.45. 120 HERÁCLITO. Fragmento 48.
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racional, em oposição aos sentidos e paixões que residem no corpo perecível”121. Assim,
a alma racional, capaz de existir separada do corpo, é responsável pelo pensamento e
mantém, por isso, estreita relação com o Ser, “pois pensar e Ser é o mesmo”122.
Parmênides desenvolveu seu pensamento através da ideia de unidade. Para ele o
devir é sempre movimento, uma mudança qualitativa e quantitativa. Assim, o movimento
é o terreno da aparência e da opinião, pois sempre que as coisas mudam de aparência,
mudam também as opiniões, por isso “o devir é a aparência mutável, é o não-ser123”124.
Parmênides não busca explicar o mundo da multiplicidade e do movimento, ele pretende
mostrar onde os homens erram ao colocar a dualidade em vez do Uno, ou seja, substituem
o que persiste sem mudanças pelo eterno movimento. Assim, Parmênides se aproxima da
conceituação da Verdade como algo com origem divina.
Parmênides apresenta a Verdade como algo incompatível com a multiplicidade e
o eterno movimento do devir. Para o filósofo existe “um abismo intransponível entre o
reino da Verdade atemporal e metafísica e a confusão de qualidades mutáveis que os
sentidos e as opiniões dos mortais tomam erradamente por realidade”125. Assim, ao
defender a imutabilidade, imobilidade e a unidade, Parmênides recusa a noção de que os
sentidos pudessem levar à Verdade, considerando que os sentidos percebem as coisas
móveis e mutáveis, e rejeita a racionalidade do movimento e da multiplicidade, rompendo
claramente com o senso comum da época e com as doutrinas filosóficas em curso,
inclusive o Pitagorismo.
O Ser, em Parmênides, é eterno. Essa é a sua Verdade, “oposto à aparência e a
todas as enganosas opiniões dos mortais”126. O que é, é único, pois além do que é, apenas
o que não é pode existir. Atribuir existência ao que não é, além de impensável é
impossível. Assim, o Ser, necessariamente, é “eterno, imóvel, finito, imutável, pleno,
contínuo, homogêneo e indivisível”127, não tem passado nem futuro, não possui começo
nem mesmo um fim, “não sendo gerado, é também imperecível; possui, com efeito, uma
121 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, p.194. 122 PARMÊNIDES. Fragmento 3. (Tradução: Gerd Bornheim). 123 O devir como não-ser está sendo utilizado seguindo um conceito da tradição que assim também
preconiza. 124 CASORETTI. op. cit., p.40. 125 CORNFORD. op. cit., p.195. 126 JAEGER. op. cit., p.97. 127 SOUZA. op. cit., p.27.
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estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é, no instante presente,
todo inteiro, uno, continuo”128. Assim, podemos inferir a concepção de imortalidade da
ψυχὴ, em Parmênides, como algo afeito ao Ser, imutável, eterno e divino. Nas palavras
do filósofo: “Pouco me importa por onde eu comece, pois para lá sempre voltarei
novamente”129.
2.1.6 Empédocles de Agrigento
O pensamento de Empédocles de Agrigento está atravessado por diversas teorias
e ideias que foram desenvolvidas antes dele. De Homero a Heráclito, incluindo Órficos e
Pitagóricos, todas essas doutrinas tiveram grande importância para Empédocles no
momento de formular suas próprias concepções. Podemos ver nos fragmentos desse
pensador uma das primeiras manifestações para colocar o ser humano no centro das
análises filosóficas acerca da ψυχὴ.
Do pensamento homérico Empédocles se aproxima ao descrever a origem e o
destino da ψυχὴ. Através dos fragmentos intitulados Purificações, nos quais o filósofo
discursa sobre a queda do Homem de um lugar original e as práticas que são necessárias
para sua reabilitação, Empédocles afirma que a verdadeira existência se prolonga para
antes do nascimento e para depois da morte. Segundo ele, “não há nascimento para
nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte funesta, mas somente composição
e dissociação dos elementos compostos: nascimento não é mais do que um nome usado
pelos homens”130. Tal qual em Homero, onde a ψυχὴ é levada ao Άδης, no pensamento
empedocliano a ψυχὴ se dirige a um lugar de suplícios no qual se encontram reunidas
outras ψυχαί que também para lá haviam sido lançadas pela divindade, que “de criaturas
vivas fez mortas, mudando as suas formas”131. Contudo, extrapolando a alegoria do Άδης
homérico, para Empédocles a ψυχὴ percorre um caminho muito mais profundo e com
uma realidade muito mais íntima. De lá, as ψυχαί são conduzidas para uma caverna onde
128 PARMÊNIDES. Fragmento 8. 129 Ibidem, Fragmento 5. 130 EMPÉDOCLES. Fragmento 8. (Tradução: Gerd Bornheim). 131 Ibidem, Fragmento 125.
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são revestidas “de um estranho manto de carne”132 e submetidas às forças contrárias que
regem a existência.
Essas forças contrárias que regem a existência, para Empédocles, são o Amor e o
Ódio133. Assim como Heráclito, Empédocles acredita na força gerada através do
movimento de forças contrárias. Dessa forma, predominando o Amor, os elementos se
recolhem em unidade, ao passo que sob o domínio do Ódio, separam-se. No influxo entre
Amor e Ódio nascem as coisas. “E esta constante mudança jamais cessa: as vezes todas
as coisas unem-se pelo amor, outras, separam-se novamente na discórdia do ódio”134. Da
caverna, de onde a ψυχὴ aguarda o revestimento carnal para voltar à corporeidade, diz
Empédocles:
O triste lugar, onde a Morte e a Cólera, e a multidão dos outros males e
doenças esgotantes, a podridão e o que dela flui, perambulam na
obscuridade sobre os campos de Ate. Lá estavam Ctônia e Helíope, cuja
vista se estende ao longe, a Discórdia sangrenta e a Harmonia de olhar
severo, a Beleza e a Feiura, a Pressa e a Lentidão, a amável Verdade e
a Incerteza de negros olhos. E o Crescimento e a Decrepitude, o Sono e
a Vigília, o Movimento e o Repouso, o Esplendor coroado e a Baixeza,
o Silêncio e a Loquacidade135.
Assim, comandadas pelas forças cósmicas do Amor e do Ódio, essas formas de
energia, contrárias entre si, permitem à ψυχὴ, através da potência gerada de seus
movimentos, retornar à esfera terrestre. Para Empédocles, o retorno da ψυχὴ ao mundo
dos males terrestres está cercado de atenção. O Homem, desse momento, não guarda
nenhuma consciência, mas a ψυχὴ, ao reconhecer “sua conexão com uma existência
anterior e melhor [e ver] muito além do alcance da consciência individual”136, se
manifesta, segundo o pensamento empedocliano, no choro do recém-nascido, que
representa a dor do contato da ψυχὴ com o mundo terrestre. Esse mito escatológico realça
a convicção de Empédocles sobre “a miserável condição da existência humana, [assim
132 Ibidem, Fragmento 126. 133 Faz-se necessário uma abstração dos conceitos humanos de amor e ódio para compreender a real
dimensão do pensamento de Empédocles. Quando Empédocles fala de amor e ódio ele faz referência a
formas de energia, ou ainda forças cósmicas. Podemos ainda usar os termos agregação e desagregação. 134 EMPÉDOCLES. Fragmento 17. 135 Ibidem, Fragmentos 121, 122 e 123. 136 JAEGER. op. cit., p.149.
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como dá] o maior realce possível à ideia de que a vida se enquadra em mais do que as
simples dimensões humanas de espaço e tempo”137.
Outra característica importante do pensamento empedocliano é a contraposição ao
pensamento de Parmênides, e que de certa forma segue a mesma direção dos preceitos
pitagóricos, de que o Homem não pode se afirmar como tal sem o auxílio da linguagem
e das experiências dos sentidos. O pensador altera a concepção parmenídica de Verdade,
como algo de uso exclusivo da razão, e declara que a ἀλήθεια138 “não é mais a revelação
de uma verdade absoluta, porém uma verdade proporcional à medida humana”139. A partir
de então, a evidência procurada é a clareza racional que resulta dos dados fornecidos pelos
sentidos.
Seguindo a tradição Órfica, Empédocles afirma que a ψυχὴ preexiste ao σῶμα e
que passa por inúmeras transmigrações para se afeiçoar ao divino, com isso, ele assegura
que além da “certeza mística do parentesco essencial da alma com o Divino, [...] [há
também] a consciência de que por algum grande pecado ele é condenado e relegado longe
de sua origem divina”140. Por conseguinte, em seu caminho para a divinização, o Homem
deve permanecer humano enquanto corporificado, assim a “compreensão humana é tanto
mais perfeita quanto mais próxima da unidade”141, ou seja, do divino.
Outra aproximação com o Orfismo está em conceber a ψυχὴ como um δαίμων.
Empédocles afirma uma afinidade do Homem com o divino, que proporciona àquele,
enquanto possuidor de um δαίμων, a possibilidade de usufruir de uma existência
incorpórea através das sucessivas transmigrações. Essas transmigrações garantiriam ao
Homem ascender pelos reinos da criação através das melhores formas de encarnação
possível. Identificando, assim, um ciclo de existência da ψυχὴ dentro de um esquema
cósmico.
Dessa forma, Empédocles de Agrigento está elencado como um dos primeiros
filósofos a pensar o Homem enquanto sujeito consciente de sua divindade. Para o
pensador “bem-aventurado o Homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina;
137 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.332. 138 ἀλήθεια se apresenta nesta dissertação como verdade, aquilo que se desvela ou que é desvelado e se
mostra em seu inteiro teor, de forma verdadeira. Literalmente, não-latência, não-esquecimento. Cf.
LIDELL; SCOTT. op. cit. 139 SOUZA. op. cit., p.34. 140 JAEGER. op. cit., p.146. 141 PESSANHA, José Américo Motta. Empédocles e a Democracia. Revista Kléos. Rio de Janeiro: UFRJ,
vol.7-8, nº7-8, pp.97-182, jul.2003–jun.2004, p.163.
45
desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses”142. E o aspecto divino no
Homem é a ψυχὴ, pois é esta que, ciclicamente, acessa o divino antes de retornar à
corporeidade. Afirma Empédocles tacitamente: “é impossível que algo possa ser gerado
do que não é, e jamais se realizou nem se ouviu dizer que o que é seja exterminado; o que
é, sempre estará lá, onde foi colocado por cada um”143. Seus fragmentos corroboram a
concepção de imortalidade da ψυχὴ, tão cara a Platão posteriormente.
2.1.7 Anaxágoras de Clazomena
Para Empédocles, ao se dividir um corpo humano até as menores partes, sempre
sobrariam os quatro elementos fundamentais que compõem todas as coisas, incluindo o
corpo do ser humano. Contudo, a concepção de Anaxágoras de Clazomena se apresenta
de forma oposta. Para o filósofo, por mais que se divida todas as coisas, nunca se chegará
a qualquer parte, por menor que seja, que não contenha porções de toda a pluralidade de
elementos. Para Anaxágoras essas “sementes”, ou partes divididas, representam a
possibilidade de tudo se transformar em tudo, pois contendo os contrários em sua
essência, qualquer “semente” pode se modificar em qualquer coisa. Porém, para
Anaxágoras ainda existe algo superior, algo que se diferencia dos elementos, apesar de
ser, como eles, imutável e eterno. O νοῦς (nous)144, ou espírito, “é a força que sabe ou
reconhece todas as coisas, que introduz o movimento na massa primitiva, e que tem esse
poder porque não está misturado com nenhuma coisa, mas se encontra sozinho e em si
mesmo”145. Assim, afirma Anaxágoras que “em cada coisa, há uma porção de cada coisa,
exceto no espírito”146.
Dessa forma, para Anaxágoras o νοῦς é infinito e autônomo, existe sozinho, é o
mais puro dos elementos e possui o conhecimento total e o poder sobre tudo. O νοῦς “é
142 EMPÉDOCLES. Fragmento 132. 143 Ibidem, Fragmento 17. 144 Νοῦς, em Anaxágoras, é conhecido como intelecto, mente. É a força motriz que formou o mundo a partir
do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmo. Nesta dissertação compreenderemos o νοῦς, em
Anaxágoras, como espírito. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 145 CASORETTI. op. cit., p.44. 146 ANAXÁGORAS. Fragmento 11. (Tradução: Gerd Bornheim).
46
uma corporeidade sutil e sua ação é de natureza mecânica: move e separa os opostos que
inicialmente estavam juntos. [...] [sua ação] decorre de uma característica que lhe é
peculiar: a imiscibilidade, que lhe garante a pureza”147. Se para Empédocles o Amor e o
Ódio eram as forças que moviam as coisas existentes, para Anaxágoras entra em ação a
simples força motriz intelectual do νοῦς. O que Anaxágoras chama de revolução cósmica
tem no νοῦς seu principal propulsor. No fragmento nº 12 ele diz: “Também sobre toda a
revolução tem o espirito poder, e foi ele quem deu o impulso a esta revolução. E o espirito
ordenou todas as coisas, como deveriam ser e como eram e agora não são, e as que são e
como serão”148.
Assim, o νοῦς interfere na massa homogênea original, onde todas as coisas
estavam juntas e não podiam ser diferenciadas por conta de seu pequeno tamanho, dando-
lhes movimento e distinção. Em sua teoria física da constituição do universo, Anaxágoras
afirma que o νοῦς exerceu apenas uma força motora inicial nessa massa homogênea,
produzindo um movimento rotatório que se expandiu por questões meramente mecânicas
e originou o universo. Como a “velocidade da revolução é imensa [...] o seu efeito sobre
a mistura original é muito poderoso”149.
Ao tentar descrever o νοῦς, Anaxágoras busca algo incorpóreo, assim como seus
predecessores, mas o fato de preferir νοῦς a ψυχὴ evoca no pensamento grego uma noção
de proximidade com o corpo vivo. Sendo corpóreo, o νοῦς “deve o seu poder, em parte,
à sua sutileza, em parte, ao fato de só ele, embora presente na mistura, se manter, todavia,
sem se misturar”150. Decorre desse pensamento que Anaxágoras compreende o νοῦς como
a força geradora do universo e a inteligência como a causa ordenadoras das coisas, pois
esta dispõe a matéria de acordo com as leis da harmonia.
O filósofo pensa ainda que “o espirito tem poder sobre todas as coisas que tem
alma, tanto as maiores quanto as menores”151, assim o Homem tem acesso ao divino em
virtude de suas potências análogas. Por não ser capaz de distinguir a verdade, devido a
fraqueza dos seus sentidos, o Homem está sujeito à ordenação imposta pela estrutura do
universo que o νοῦς gerou. E apesar de não organizar “o cosmos com um olho em direção
147 SOUZA. op. cit., p.38. 148 ANAXÁGORAS. Fragmento 12. 149 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.384. 150 Ibidem, p.391. 151 ANAXÁGORAS. Fragmento 12.
47
ao que é melhor”152, Anaxágoras possui um efeito profundo em Platão, principalmente
com a reivindicação do νοῦς como regente do cosmos.
2.2 A ψυχὴ em Platão
Seguindo o desenvolvimento que o conceito de ψυχὴ adquiriu ao longo dos
séculos, Platão abarca grande parte dessas teorias e cria algo inédito. Desde a ψυχὴ
homérica, destinada ao Άδης, passando pelos ritos catárticos órficos e pitagóricos, até a
possibilidade de imortalidade da ψυχὴ empedocliana, Platão reflete sobre a importância
da ψυχὴ “como um núcleo unificado de comportamento, um representante da totalidade
da pessoa após a morte e um antagonista do corpo”153.
A ψυχὴ para Platão, assim como todo o seu pensamento, não pode ser resumida
em um sistema fechado. Assim como vários aspectos de sua filosofia, Platão moldou o
conceito de ψυχὴ à sua própria maneira de pensar, sofrendo como esta, alterações com o
passar do tempo. Definir o que seja a ψυχὴ, sua origem e suas características, ainda hoje
é de uma complexidade enorme. Assim, para dar conta de explicar algo tão complexo
Platão buscou ajuda nos mitos, pois, “o que, realmente, ela seja, é assunto de todo o ponto
divino, que exigiria largas explanações; mas, irá bem uma imagem em nosso linguajar
humano e de recursos limitados”154.
Dessa forma, Platão compreendeu a ψυχὴ como uma estrutura primordial para o
entendimento não apenas do Homem, mas “por meio da qual, usada como instrumento,
percebemos todo o sensível”155.
2.2.1 A ψυχὴ imortal e tríade
152 SISKO, John. Anaxagoras on Matter, Motion, and Multiple Worlds. Philosophy Compass, John Wiley
& Sons Ltd., vol.5, nº6, pp.443-454, 2010, p.443. (Tradução nossa). 153 KATONA. op. cit., p.39. 154 PLATÃO. Fedro, 246a. Todas as citações do diálogo Fedro fazem referência à: PLATÃO. op. cit., 1975. 155 PLATÃO. Teeteto, 184d. Todas as citações do diálogo Teeteto fazem referência à: PLATÃO. Diálogos:
Teeteto, Crátilo. 3ªed. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 2001.
48
Apesar de, durante certo tempo, julgar que não existiria conflito entre desejo e
intelecto, Platão desenvolve posteriormente uma concepção mais complexa e completa
para a ψυχὴ. Partindo de uma análise minuciosa da dualidade existente entre σῶμα e
ψυχὴ, o filósofo ateniense busca a compreensão do que seja a imortalidade e, por
consequência, expõe toda uma cadeia de pensamentos que o levarão a hierarquizar os
εἴδε156 da ψυχὴ e tornar consistente a sua teoria das Ideias/Formas.
Platão empenhou-se em comprovar que a ψυχὴ era mais do que a antiguidade
havia pensado até então, e através de um dualismo ontológico pensou a realidade como
uma estrutura dividida. Assim, Platão propõe a Glauco: “imagina uma linha cortada em
duas partes desiguais, a qual dividirás, por tua vez, na mesma proporção: a do gênero
visível e a do inteligível”157. Dessa forma, podemos vislumbrar duas estruturas, de um
lado existe o que pertence ao mundo sensível, das aparências, que possui sua realidade
corrompida pela mutabilidade de seus elementos. De outro lado há o mundo das
Ideias/Formas, do inteligível, o único mundo para Platão que pode ser considerado
verdadeiro e imutável. E ao dividir a realidade em duas, Platão expande esse pensamento
e faz dele um instrumento para compreender a verdade da ψυχὴ.
Considerando o Homem como parte do mundo, Platão pensa-o também como um
arranjo de dois elementos. Assim, o Homem é a soma da ψυχὴ com o σῶμα. No Cármides,
Platão afirma que a atenção ao todo (Homem) é primordial, pois que “este é o que mais
cuidados requer, e se esse conjunto não fosse bem, era impossível que suas partes (corpo
e alma) fossem”158. Mas a concepção mais importante e difundida do σῶμα platônico é o
seu aspecto de túmulo da ψυχὴ.
Platão considera o σῶμα uma cripta, como diz no Górgias: “eu próprio já ouvi
certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo”159. Vai
156 Adotamos nesse trabalho a concepção de εἶδος para fazer referência ao que, em outros trabalhos, é
conhecido como “partes” da alma. Consideramos que a palavra “parte” possa invocar o significado de algo
fracionado onde cada parte existe separadamente e de forma independente, sem relação com o todo. Sendo
assim, εἶδος remete a um componente da alma, que existe, relativamente, de forma independente, mas que
não pode ser vista como o todo. É um aspecto da alma sem o qual a alma não seria alma. Cf. LIDELL;
SCOTT. op. cit. 157 PLATÃO. República VI, 509d. 158 PLATÃO. Cármides, 156e. Todas as citações do diálogo Cármides fazem referência à: PLATÃO.
Diálogos: Crátilo, Cármides, Laques, Íon, Menexeno. Tradução, textos complementares e notas: Edson
Bini, Bauru: Edipro, 2011. 159 PLATÃO. Górgias, 493a. Todas as citações do diálogo Górgias fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,
1980.
49
mesmo além, como no Crátilo, onde ao ser perguntado sobre o σῶμα por Hermógenes,
Platão responde, loquazmente:
Este me parece de muitos tipos, se alguém alterar um pouco mais o
sentido. De certo alguns dizem que ele é o túmulo da alma, como se
agora ela estivesse enterrada nele. [...] Entretanto, parece-me que foram
sobretudo os Órficos que estabeleceram este nome, e o deram como
punição da alma, e é para pô-la a salvo que possui este envoltório, à
imagem de uma prisão; e ele é para a alma, tal como ele próprio designa,
um cárcere160.
Assim, considerando passagens como estas é fácil depreender que o σῶμα não
passa de uma prisão da ψυχὴ, algo que a aprisiona e a impede de se libertar e existir
plenamente. Contudo, queremos enfatizar que apesar dos aspectos, aparentemente,
maléficos do σῶμα, Platão também apresenta uma concepção assaz diversa para o
antagonista da ψυχὴ. Portanto, apesar de Platão afirmar, por um lado, ao se referir ao
σῶμα, que
não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade
de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são
outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez,
imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal
ponto ele nos satura que, de fato, como se diz, por sua causa jamais
conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que seja161.
E por outro lado, ao se referir à ψυχὴ, Platão enunciar que esta é mais afeita ao divino e
que por isso é naturalmente feita para governar e ordenar, ao passo que ao σῶμα resta
obedecer e servir; apesar disso, Platão também exprime certa importância para este
cárcere. A ψυχὴ encarnada encontra-se apenas sob uma nova condição, na qual o σῶμα
deverá ser atendido para a manutenção da vida. Após esse elo, a ψυχὴ estará livre para
continuar suas revoluções através da recuperação de suas potencialidades originárias.
Ao buscar explicar uma aproximação entre medicina e oratória, por exemplo,
Platão enuncia a Fedro uma maneira de se analisar a natureza do Homem para que este
160 PLATÃO. Crátilo, 400b-c. Todas as citações do diálogo Crátilo fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,
2011. 161 PLATÃO. Fédon, 66b-c. Todas as citações do diálogo Fédon fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,
1980.
50
seja alvo de conhecimento. Assim, para o σῶμα é necessário atentar à alimentação e aos
remédios “a fim de deixa-lo forte e saudável [...] no caso da alma, por meio do ensino e
de instituições legais, comunicar-lhe convicções e a virtude”162. Tornando, destarte, o
Homem um composto de elementos que, antes de se anularem e se prejudicarem, se
complementam. Da mesma forma, em outro colóquio, Platão afirma, de maneira mais
enfática, qual é a verdadeira relação entre ψυχὴ e σῶμα e a relação destes elementos com
o Homem: “uma coisa é a verdadeira causa, e outra, muito diferente, aquilo sem o que a
causa jamais poderá ser causa”163. Ou seja, para que o Homem compreenda a imortalidade
da sua ψυχὴ, para que ele vislumbre resquícios do mundo das Ideias/Formas através da
sua ψυχὴ enquanto encarnado, é necessário que esta esteja em relação íntima com o σῶμα,
pois apenas no reflexo do mundo do sensível, perceptível com o σῶμα, que o Homem
tem a oportunidade de apreender, com a ψυχὴ, traços do mundo inteligível.
Platão, assim, lança sólidas bases para idealizar uma ψυχὴ imortal. Visto que com
o σῶμα estamos ligados ao mundo dos sentidos e das aparências, entrever indícios do
mundo da verdade, das Formas/Ideias, só pode ser feito pelo seu contrário, a ψυχὴ.
Segundo Platão, ao se referir aos contrários, “enquanto cada um é o que é, recusam-se a
tornar-se e ser ao mesmo tempo o seu contrário, retirando-se ou desaparecendo quando
essa conjuntura se apresenta”164. Platão assegura que a essência da ψυχὴ encontra-se no
auto movimento, ou seja, a ψυχὴ possui dentro de si a capacidade de tirar de si mesmo o
movimento que a torna animada, ao passo que o que não se movimenta por si
necessariamente precisa receber o movimento de fora e por isso é designado inanimado.
Considerando que o σῶμα necessita de vida para poder viver, e que essa vida não
lhe é própria, cabe à ψυχὴ a qualidade de possuir, em si, vida. Por simples arranjo lógico
de contrários, Platão afirma que ao possuir vida a ψυχὴ “nunca poderá aceitar o contrário
daquilo que ela sempre traz consigo”165, sendo a morte o contrário da vida. Seguindo seu
raciocínio, Platão enfatiza que não recebendo a morte, a ψυχὴ é imortal; e por ser imortal
é também indestrutível e assim, imperecível. Concluindo a sua exposição acerca da
imortalidade da ψυχὴ, o argumento versa que ao aproximar-se do Homem a morte, a
162 PLATÃO. Fedro, 270b. 163 PLATÃO. Fédon, 99b. 164 Ibidem, 102e-103a. 165 Ibidem, 105d.
51
ψυχὴ, detentora de vida, se retira do σῶμα. Perece aquilo que é inanimado no Homem, o
σῶμα; liberta-se o que é imortal, a ψυχὴ.
A ψυχὴ imortal ocupa uma posição medular no conjunto da filosofia platônica.
Vale ressaltar que Platão pensa a ψυχὴ com sua preexistência junto ao deuses e que por
desejar “ardentemente alcançar a parte superior”166 entra em conflito com outras ψῡχαί.
De sua queda resulta sua existência intermediária entre os Homens e os Deuses. Ao
libertar-se do σῶμα, a ψυχὴ retorna ao Άδης e “depois de ter o destino merecido e de lá
permanecer o tempo indispensável, outro guia a traz de volta, após numerosos e longos
períodos de tempo”167. Então, novamente, a ψυχὴ contempla o mundo inteligível, e o faz
por ser análogo às Formas/Ideias, ou seja, a ψυχὴ tem a possibilidade de contemplar o
mundo das Formas/Ideias por semelhança ao “divino, imortal, inteligível, de uma só
forma, indissolúvel, sempre no mesmo estado e semelhante a si próprio”168.
Contudo, Platão não se satisfaz com a simples argumentação em prol da
imortalidade da ψυχὴ. É importante para o filósofo a obtenção total da natureza da ψυχὴ
para que todas as suas possibilidades possam ser esgotadas. Dessa forma, Platão busca
ajuda nos mitos para arquitetar a tripartição da ψυχὴ com o fito em demonstrar a
importância dessa estrutura tríade dentro do seu pensamento disjuntivo sobre a ruptura
introduzida entre o sensível e o inteligível.
Ao refletir sobre a ingerência da ψυχὴ no Homem, em suas decisões e
pensamentos, Platão analisa a possibilidade de alguns sentimentos que aparentam
contradição. O filósofo observa o caso da pessoa que sente sede, mas que repele a bebida,
seja por atenção à saúde seja por qualquer outro motivo. Nesse caso o sequioso possui o
desejo, a concupiscência, de beber devido ao sentimento de sede, ao qual Platão chama
de ἐπιθυμητικόν169. Segundo Platão este é o εἶδος da ψυχὴ mais numeroso em suas
definições, estando ligado ao nome de apetitiva “por causa da veemência dos desejos
relacionados com o comer, o beber, o amor e demais apetites do mesmo gênero”170.
Platão também versa sobre uma anedota acerca de Leôncio, filho de Agláion.
Nesta passagem, o filósofo conta que Leôncio, ao passar próximo de cadáveres estendidos
166 PLATÃO. Fedro, 248a. 167 PLATÃO. Fédon, 107e. 168 Ibidem, 80b. 169 ἐπιθυμητικόν se refere ao aspecto concupiscente da ψυχὴ. É o elemento referente ao desejo. Cf. LIDELL;
SCOTT. op. cit. 170 PLATÃO. República IX, 580e.
52
no chão foi tomado de um desejo mórbido de olhá-los, ao mesmo tempo em que sentiu
repugnância que o levava a afastar-se daquele local. Não conseguindo conter o ímpeto
impulsivo correu a olhar os cadáveres gritando: “Eis aí, miseráveis; saciai-vos desse belo
espetáculo!”171. A esse εἶδος intempestivo e irascível Platão chamou de θυμοειδές172. O
filósofo sustenta que as principais características daquele que se deixa governar pelo
θυμοειδές são a cobiça, a cólera, a ambição, o orgulho e a estima às honrarias173.
Dessa forma, ao versar sobre ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές Platão apresenta uma
importante concepção para a tripartição da ψυχὴ, de que o mesmo sujeito não pode fazer
e sofrer ações contrárias referentes ao mesmo objeto ou situação. Por isso, “onde quer
que verifiquemos semelhante fato, podemos concluir que não se trata de um único
princípio, porém de vários”174. Assim, enquanto o sequioso desejava acabar com a sede e
Leôncio cobiçava olhar para os cadáveres, algo muito maior os impedia de executar tais
ações. A este terceiro e mais importante εἶδος da ψυχὴ Platão chamou de λογιστικὸν175.
Sendo esse o elemento mais importante da ψυχὴ, responsável pelo calcular, pelo aprender
e que “se esforça integralmente para atingir a verdade”176, sendo amigo do conhecimento
e da sabedoria. É o εἶδος que comanda a ψυχὴ.
Importante ressaltar, nesse momento, que Platão buscou desenvolver essa
tripartição da ψυχὴ tentando torná-la mais palatável. No diálogo Fedro, Platão engendrou
uma analogia entre a composição da ψυχὴ e uma carruagem puxada por dois cavalos177.
Um dos cavalos é mais dócil e para ser conduzido basta uma palavra ou ordem, o outro
cavalo é mais arisco e teimoso só obedecendo ao uso do chicote. O primeiro cavalo atende
pelo nome de ἐπιθυμητικόν, relacionado à concupiscência, e o segundo pelo nome de
θυμοειδές ou irascível. Ao cocheiro, λογιστικὸν, cabe a racionalidade de dominar e
governar esses εἴδε hierarquicamente inferiores, pois “é exclusivamente por seu
intermédio que a verdade é percebida”178.
171 PLATÃO. República IV, 440a. 172 θυμοειδές faz referência ao aspecto irascível da ψυχὴ. É o elemento referente ao apetite. Cf. LIDELL;
SCOTT. op. cit. 173 PLATÃO. República VIII, 548c; 549a; 550b. 174 PLATÃO. República IV, 436b-c. 175 λογιστικὸν se refere ao caráter racional da ψυχὴ. É o aspecto referente à inteligência, razão. Cf. LIDELL;
SCOTT. op. cit. 176 PLATÃO. República IX, 581b. 177 PLATÃO Fedro, 253d-254b. 178 PLATÃO República VII, 527e.
53
2.2.2 A διάνοια e o mundo do devir
O λογιστικὸν, para Platão, é o εἶδος racional da ψυχὴ, que, serenamente, “reflete
sobre o bem e o mal”179. É através dele que ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές encontrarão
conforto justo, harmônico e livre de sofrimento dentro da ψυχὴ, pois o λογιστικὸν
“encontrará a maneira de satisfazer as necessidades e os requerimentos daqueles com os
quais convive”180. É o aspecto que rege as faculdades de raciocínio e de cálculo e onde a
διάνοια181 se faz presente e atuante. Ao dividir o λογιστικὸν, Platão agora não hierarquiza
esses novos aspectos. Antes, pensa-os como faces de uma mesma forma, onde a διάνοια
é a possibilidade do “diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma”182. A διάνοια,
assim, estabelece a confiança na existência de um mundo suprassensível real, pois é
“exclusivamente por seu intermédio que a verdade é percebida”183.
Retomando uma das mais famosas alegorias de Platão, a história da caverna se
torna um ponto chave como revelação da importância da διάνοια dentro da filosofia
platônica. Os Homens aprisionados no fundo da caverna contemplando as sombras
referem-se aos εἴδε da ψυχὴ, todos aprisionados ao σῶμα, enquanto encarnados, pois,
segundo Platão, “os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o
qual transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-a a acreditar
que tudo o que o corpo diz é verdadeiro”184. Assim, λογιστικὸν, ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές
“amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permanecer”185, ficam presos
ao σῶμα. Contudo, existe algo para Platão que proporciona uma modificação nessa
condição dos εἴδε da ψυχὴ: a educação filosófica. Dessa forma, “a educação não será mais
179 PLATÃO. República IV, 441c. 180 RUGNITZ, Natalia Costa. Estrutura e dinâmica da psique na filosofia platônica da República.
Campinas: UNICAMP, 2012. 143fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2012, p.44. 181 O conceito de διάνοια será utilizado nesta dissertação com o sentido de capacidade de pensamento,
sendo este considerado como um processo mental através do qual o Homem modela sua percepção do
mundo ao redor de si. O pensamento permite que o Homem pense o Ser, permite que ele extrapole as
barreiras impostas pela linguagem e avance além dos sentidos impostos pelo σῶμα e seja a mais importante
ferramenta da ψυχὴ na apreensão do mundo inteligível. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 182 PLATÃO. Sofista, 263e. Todas as citações do diálogo Sofista fazem referência à: PLATÃO. Diálogos:
Banquete, Sofista, Fédon, Político. 1ªed. Tradução: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Difusão Europeia do Livro; Porto Alegre: Editora Globo, 1972. 183 PLATÃO. República VII, 527e. 184 PLATÃO Fédon, 83e. 185 PLATÃO. República VII, 514a.
54
do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira mais fácil e eficiente de
consegui-la”186.
Sendo o λογιστικὸν o aspecto racional e governante da ψυχὴ, este é o único εἶδος
que efetivamente se liberta, e que através da διάνοια empreende a jornada descrita por
Platão até o mundo inteligível.
Porém, vamos começar essa análise pelo fim. Platão assegura que depois de
vislumbrar o mundo das Ideias/Formas, que é aludido pelo mundo exterior da caverna, e
que tem o Sol como a Ideia suprema de Bem, o Homem (que chamaremos a partir de
agora de λογιστικὸν) retorna para a sua morada encarnada ao σῶμα, junto aos demais
εἴδε, ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές, com o conhecimento do mundo inteligível. Por ter sido
apenas ele, λογιστικὸν, a sair do mundo sensível, somente ele tem a lembrança do mundo
supra sensível, e através da διάνοια é “possível a ela (ψυχὴ) rememorar aquelas coisas
justamente que já antes conhecia”187.
Antes, porém, de sair para o mundo das Formas/Ideias, o λογιστικὸν contemplou
o fogo que proporcionava uma luz, e com a διάνοια apreendeu que essa era a luz que, se
lançando sobre as imagens, criava as sombras que antes ele via no fundo da caverna. A
διάνοια entende, assim, que vivia em um mundo de imagens irreais, um mundo de
simulacros, e que se fosse obrigado a designar aquelas imagens pelos seus respectivos
nomes, o λογιστικὸν “ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele
vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam”188. Platão afirma que antes
de se libertar, a ψυχὴ não diferencia conhecimento de δόξα189, visto que ela “é primeiro
gerada sem intelecto cada vez que é aprisionada num corpo mortal”190, e que o menor
contato com elementos exteriores, dos sentidos, nubla o entendimento da διάνοια.
Ao desvelar o mundo da inverdade, a διάνοια compreende que δόξα “consiste em
tomar a imagem de alguma coisa, não pelo que ela é como imagem, mas pela própria
coisa com a qual ela se parece”191, ou seja, se percebe em uma existência falsa, onde as
186 Ibidem, 518d. 187 PLATÃO. Mênon, 81c. Todas as citações do diálogo Mênon fazem referência à: PLATÃO. Mênon.
Texto anotado e estabelecido: John Burnet. Tradução: Maura Iglésias. Rio de janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola,
2001. 188 PLATÃO. República VII, 515d. 189 Δόξα possui o sentido de opinião. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 190 PLATÃO. Timeu, 44b. Todas as citações do diálogo Timeu fazem referência à: PLATÃO. Timeu-Crítias.
1ªed. Introdução e Tradução: Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. 191 PLATÃO. República V, 476c.
55
coisas podem ser verdade ou mentira, uma vez que a δόξα pode ser verdadeira ou falsa.
Sobre esse assunto, assaz importante, Platão teceu alguns comentários que podem
clarificar nossas conjecturas.
O filósofo ateniense assegura que o Homem não deve “aprender e investigar a
partir dos nomes, mas sobretudo das coisas em si”192, visto que ao nomear objetos físicos
e elementos do pensamento, cerceamos a capacidade de pensar além, e incluímos o nome
como atributo da coisa em si. Ao dizer o que a coisa é, pelo nome, imprimimos nela uma
δόξα, que deverá ser a δόξα verdadeira, pelo menos para quem emite tal discurso.
Contudo, essa δόξα pode não ser verdadeira para o interlocutor, o que “se conclui é que
nas opiniões dos homens não há só verdade, porém as duas coisas: verdades e erros”193.
E como o que existe não pode ser uma coisa e seu oposto ao mesmo tempo, depreende-
se que um mundo governado pela δόξα, é um ambiente onde a verdade ainda não está
desvelada por completo e apenas alguns de seus traços são visíveis.
Apesar de parecer incongruente, Platão afirma, por um lado, que a δόξα pode ser
verdadeira ou falsa “justamente nas coisas que sabemos e que percebemos”194, ou seja,
que não pode haver δόξα certa ou errada com relação ao que o Homem nunca soube ou
nunca percebeu; em outra mão, o filósofo assegura que “a verdade das coisas que são está
sempre na nossa alma [...] de modo que aquilo que acontece não saberes agora é
necessário tratares de [...] rememorar”195. Dessa forma, Platão aparenta estar em
contradição, pois se a verdade das coisas está sempre na ψυχὴ do Homem, esta é
conhecida e percebida, e é somente o que se conhece e se percebe que pode ser objeto de
uma δόξα falsa. Todavia, ao proclamar que “a opinião tem por objeto o devir”196, Platão
propõe uma nova perspectiva à dinâmica do λογιστικὸν ao se separar do σῶμα.
Ao considerarmos o feio, o injusto e o pesado, e referenciar um objeto qualquer
com esses atributos, também estaremos dizendo o que esse objeto é bonito, justo e leve.
Assim, Platão afirma que “da translação das coisas, do movimento e da mistura de umas
com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta,
pois em rigor nada é ou existe, tudo devém”197. Dessa forma, um ente que existe e que
192 PLATÃO. Crátilo, 439b. 193 PLATÃO. Teeteto, 170c. 194 Ibidem, 194b. 195 PLATÃO. Mênon, 86b. 196 PLATÃO. República VII, 534a. 197 PLATÃO. Teeteto, 151d-152e.
56
pode ser nomeado pelos sentidos, pode ter atributos opostos, o que significa que há um
movimento ininterrupto de tudo o que o mundo sensível produz. Assim, Platão acredita
que o mundo dos sentidos é imperfeito, pois eternamente mutável e inconstante. Os entes
sensíveis são imperfeitos porque “nunca são exatamente, e sim apenas aproximadamente,
qualquer coisa que digamos que elas são”198. Platão chama então de mundo do devir, da
mudança, do falso, esse mundo onde os entes apenas aproximam-se do que
verdadeiramente são, devido à mutabilidade de suas existências.
Em função da mutabilidade do mundo sensível, Platão afirma a existência de um
mundo inteligível, onde o que existe é imutável. Ao dizer que uma pessoa é bela, grande
e justa, no mundo do devir ela também seria feia, pequena e injusta, mas ao engendrar o
mundo inteligível, Platão introduz um tipo de objeto que torna possível conhecer o que a
beleza, a grandeza e a justiça são nelas mesmas. Essas Formas/Ideias são sempre e
essencialmente belas, grandes e justas, respectivamente. Dessa forma, é no mundo do
devir, dependendo das circunstâncias e das relações com outras coisas, que os entes
possuem essas qualidades e podem, por isso, serem belos e feios, grandes e pequenos,
justos e injustos. No mundo do devir de Platão “um objeto não pode reter ao longo do
tempo nenhuma característica ou qualidade, nem se essa característica for um padrão de
fluxo”199.
Mas ao preocupar-se com a copresença de opostos no mundo do devir, Platão
descortina não apenas a possibilidade de existência do mundo das Formas/Ideias, mas
acima de tudo a possibilidade da ψυχὴ contemplar esse mundo inteligível através da
διάνοια. Assim, retomando a Alegoria da Caverna, quando o λογιστικὸν se liberta do elo
com os outros εἴδε da ψυχὴ, e vê a luz do fogo e as imagens que passavam as suas costas,
a διάνοια compreende que o que se dava no fundo da caverna, que o λογιστικὸν tomava
por realidade, na verdade era um simulacro. Com o esforço correto, esforço que é possível
devido à correta educação enquanto encarnada, a διάνοια consegue rememorar a sua
passagem anterior pelo mundo inteligível e pelo mundo sensível e vislumbrar que o
mundo do devir é apenas uma passagem, uma etapa necessária, para o mundo junto as
Formas/Ideias.
198 FLAKSMAN. op. cit., p.21. 199 Ibidem, p.22.
57
Platão nos fala que a Forma/Ideia da Beleza é o aspecto perfeito para comprovar
essa contemplação. A ψυχὴ que perde as asas e cai da abóbada celeste200, ou ainda, o
λογιστικὸν que após contemplar o mundo supra sensível retorna à caverna para
novamente estar com os outros εἴδε e retornar para o σῶμα201 tem grande dificuldade em
lembrar de sua passagem pelo mundo das Formas/Ideias, principalmente se já tiver os
sentidos corrompidos após encarnada. Contudo enquanto ainda na região superior a ψυχὴ
vislumbra que “somente a Beleza recebeu o privilégio de ser a um tempo encantadora e
de brilho incomparável”202, e é por isso que quando percebe, com os olhos, alguma feição
que evoque a divindade da Beleza, a ψυχὴ sente que antigos e conhecidos sentimentos
novamente afloram. Então, como que transpondo estágios, a ψυχὴ se deixa conduzir: “dos
corpos belos para as belas ações, e das belas ações para os belos conhecimentos, até que
dos belos conhecimentos alcance, finalmente, aquele conhecimento que outra coisa não
é senão o próprio conhecimento do Belo”203, rememorando a Beleza em si, vista com a
διάνοια no mundo das Ideias/Formas.
Assim, a Beleza é o aspecto mais forte, dentro da filosofia platônica, que
comprova que o mundo do devir é importante como estágio de ascensão do pensamento
para contemplar o mundo inteligível das Formas/Ideias. O Homem vive no mundo do
devir, mas pode através da elevação de seu pensamento, tomando “consciência de sua
natureza e de sua composição essencial [...] buscar, através do acentuamento de sua parte
divina”204 identificar-se com as Ideias/Formas e contemplar o mundo inteligível.
200 Conforme a Alegoria do Cocheiro descrita no Fedro. 201 Conforme a Alegoria da Caverna descrita em República VII. 202 PLATÃO. Fedro, 250d-e. 203 PLATÃO. Banquete, 211c-d. Todas as citações do diálogo Banquete fazem referência à: PLATÃO. op.
cit., 1980. 204 JUNIOR, José Provetti. O Dualismo Psyché-Sôma em Platão. Campos dos Goitacazes: UENF, 2007.
124fls. Dissertação (Mestrado em Cognição e Linguagem) – Centro de Ciências do Homem, Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, 2007, p.34.
58
Capítulo 3
A imanência do dever Shakespeariano
3.1 O gênero tragédia e seu legado
O gênero teatral tragédia, como uma forma artística de drama, deriva da rica
tradição poética e religiosa da Grécia Antiga. Segundo Aristóteles, a tragédia surgiu da
improvisação dos autores de ditirambos e se tornou “a imitação de uma ação elevada e
completa, [...] numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas
partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,
provoca a purificação de tais paixões”205. A tragédia, desde sua origem, apresenta o
conflito entre a liberdade e a necessidade. Aquela entendida como liberdade do sujeito e
esta como necessidade objetiva. Contudo, na tragédia grega, não há vencedor ou vencido,
pois que liberdade e necessidade aparecem indiferentes à vitória ou derrota. O que está
em disputa nesse conflito é a inerência da necessidade como instrumento para minar a
própria vontade e a liberdade sendo acometida em seu terreno.
A elaboração poética da tragédia grega “é um fragmento autossuficiente da saga
heroica [...] apresentado por um coro de cidadãos e dois ou três atores, e que se destina a
ser encenado no santuário de Dionísio, como parte do culto público”206. Dessa forma, “a
tragédia surgiu do coro trágico e [...] ela era só coro e nada mais que coro”207 em seus
primórdios. Apesar de se desprender do coro com o desenvolvimento das técnicas teatrais
ao longo dos anos, a tragédia é herdeira da ação do coro, sem a qual “teria se transformado
numa criação poética inteiramente outra”208. Assim, o coro representa, na antiga tragédia
205 ARISTÓTELES. Poética. 3ªed. Tradução: Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2008, p.47. 206 WILAMOWITZ, Ulrich von. Einleitung in die Griechische Tragödie. Berlin: Weidmannsche
Buchhandlung, 1907, p.107. (Tradução nossa). 207 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. 2ªed. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p.52. 208 SCHILLER, Friedrich. A Noiva de Messina. Tradução: Gonçalves Dias. São Paulo: Cosac Naify. 2004,
p.190.
59
grega, uma muralha que a peça ergue à sua volta “a fim de isolar-se do mundo real e de
salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”209.
Contudo, Sófocles, é o primeiro a romper com a predominância do coro na
tragédia210. Em suas peças o coro se torna apenas um observador da trama que se
desenrola à sua frente e os diálogos entre os atores ganha maior vulto no desenvolvimento
da peça. Além disso, Sófocles pode ser considerado também como o “mais humanista dos
tragediógrafos gregos, pois os problemas apresentados pelo autor têm relações profundas
com as questões humanas”211. Inserido em um período onde o Homem grego é um ser
que expressa profundo respeito e obediência pelo soberano e pelo vaticínio dos deuses,
Sófocles não apenas se utiliza das predições e consultas aos oráculos, tão importantes
naquele tempo, mas consegue extrapolar a encenação do cotidiano grego para criar algo
novo. Suas peças inauguram o personagem que decide, que se prostra diante das
determinações dos deuses, entretanto questiona o destino que se revela.
Em Édipo Rei212, o personagem Édipo é um soberano que “sem aceitar ser
marionete dos deuses, ouve sua sentença no oráculo de Apolo, mas a todo custo busca
evitá-la”213, e ao deparar-se com necessidade da ação, angustia-se e sofre com a
consciência da inevitabilidade de ter que decidir. Após tomar conhecimento dos maus
augúrios do oráculo, Édipo foge com o entendimento de contrariar os deuses e não
cumprir o prometido pelo sagrado. E mesmo após o cumprimento das profecias, ele
consegue uma espécie de libertação através do extremo conhecimento de si e de sua
incapacidade de ação diante do destino. Sófocles, dessa forma, enfraquece o sagrado e
enaltece o humano.
Assim sendo, torna-se claro que em suas tragédias, Sófocles oscilava entre o
divino e o mundano, o sagrado e o profano e entre a salvação e o aniquilamento, traços
fundamentais do trágico. Esse aspecto de ambiguidade presente nas peças se estende aos
personagens, que apresentavam, também, harmonia de sentimentos e sensações extremas:
“bem-mal, certo-errado, felicidade-infelicidade, tradição-inovação”214. Esse caráter
209 NIETZSCHE. op. cit., p.54. 210 Além disso, Sófocles introduziu a figura de um terceiro ator principal, chamado tritagonista. 211 LEAL, Tito Barros. Ética entre tragédia e filosofia: as mutações do agir-ético no processo histórico
transitorial dos universos arcaico e clássico na Grécia antiga. Kínesis, Santa Maria: UFSM, vol.2, n°03, pp.
220–237, abril 2010, p. 232. 212 SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução: Domingos Paschoal Cegalla. Rio de Janeiro: Difel, 2000. 213 LEAL. op. cit., p.230. 214 Ibidem, p.233.
60
ambíguo de seus personagens mostra como Sófocles dotou seus personagens dos mais
viscerais atributos humanos, até então nunca vistos em outros autores. “Pois não é o
aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se aniquilamento; não é no
declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no
caminho que tomou justamente para fugir da ruína”215. A tragédia de Sófocles apresenta,
assim, “direta e claramente [...] os conflitos internos da estrutura social de Atenas”216 e
os conflitos inerentes à natureza íntima do Homem.
Mas não foi apenas a tragédia da Grécia Antiga que legou características para o
teatro elisabetano do século XVI, o teatro romano também possui algumas características
que, igualmente, foram reapropriadas posteriormente. Entre os grandes tragediógrafos
romanos citamos Sêneca, pois através de suas tragédias ele transparece a função
pedagógica de seus trabalhos que estariam voltados para a “formação do homem ideal, o
sábio, aquele que seria capaz de controlar as paixões e praticar a virtude, cumprindo assim
o seu papel na sociedade”217. Dotando seus personagens de uma luta interior muito
exacerbada entre a razão e as paixões, Sêneca mostra que o Homem tem livre-arbítrio.
Apesar de se manter temente às divindades, com Sêneca o Homem descobre que apesar
de não controlar o seu destino, é consciente de que suas ações podem fazer o bem e repelir
o mal.
Em Medeia218, a protagonista apresenta essa luta interior e acaba por se tornar o
paradigma do pensamento de Sêneca: ao não conseguir dominar sua angústia, sua raiva e
seu desespero, movida pelo sentimento da fúria e da vingança, ao sabor de uma paixão
desmedida, empreende uma catástrofe sem tamanho, planejando e assassinando até
mesmo os seus inocentes filhos. Dessa forma, o teatro romano se afasta um pouco da
tragédia grega, apesar de manter seus principais aspectos cênicos, como o coro por
exemplo. Em Sêneca, “é o homem o responsável pelos seus atos”219, e não mais os deuses.
A enfermidade causada pela acúmulo de maus sentimentos dentro do Homem o leva à
215 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradução: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004,
p.89. 216 HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p.84. 217 PIRATELI, Marcelo Augusto. As tragédias de Sêneca e seu aspecto educativo. Revista Cesumar -
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Maringá: UniCesumar, vol.13, nº2, pp.257-267, jul./dez.2008,
p.261. 218 SÊNECA. Medeia. 1ªed. Tradução: Ana Alexandra Souza. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e
Humanísticos, 2011. 219 PIRATELI. op. cit., p.261.
61
ruína, invariavelmente o afastando da razão, porém à medida que se aproxima daquelas
coisas que “são lúgubres, bem ordenadas, destemidas, que fluem com corrente uniforme
e harmoniosa, que são despreocupadas e gentilmente adaptadas ao bem público, benéficas
tanto para si quanto para os outros, o homem sábio não desejará nada de baixo”220.
Dessa forma, o modelo de tragédia moderna se moldou através de alguns autores
clássicos, exemplificados em Sófocles e Sêneca. A tragédia sofocliana apresenta um herói
que toma consciência da sua existência e da sua incapacidade diante do destino, bem
como da brevidade de sua vida, e que por isso se afasta do terreno do divino para desvelar
aspectos da humanidade inerente ao Homem. Contudo, são as tragédias de Sêneca que
legaram uma grande herança ao teatro moderno. Ao se desenvolver sobre os alicerces
trágicos senequianos, o teatro moderno, especialmente o elisabetano, modelou-se sobre
“as cores tenebrosas, as aparições pressagiadoras e infaustas de fantasmas, a mania dos
delitos atrozes”221 contidas em Sêneca, além dos personagens com solilóquios cheios de
retórica e de falas meditativas.
Apesar de não ser provável que William Shakespeare leu essas e outras obras
trágicas, principalmente as tragédias de Sófocles ou Sêneca, é certo e verificável que as
bruxas e o espectro de Banquo em Macbeth222, os trovões e a tempestade aterradora em
Rei Lear223 e a aparição fantasmagórica do pai de Hamlet, em Hamlet224, guardam certas
similitudes com as obras sofocliana e senequiana, especialmente esta última. Outro
aspecto de convergência entre as antigas tragédias e as tragédias Shakespearianas é a
caracterização do herói: em ambas existe a exigência de que o herói “seja sempre
consciente em ocasiões essenciais, isto é, quando está sozinho consigo mesmo, contraria
a consciência necessariamente limitada do herói moderno. A consciência aspira sempre à
clareza; uma consciência limitada é uma consciência imperfeita”225. Em ambas a
220 SÊNECA. Moral Essays. Tradução para o inglês: John W. Basore. London: William Heinemann Ltd.,
New York: G.P. Putnam’s Sons, vol.1, 1928, p.73. (Tradução nossa). 221 PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.611. 222 SHAKESPEARE, William. Macbeth. 4ªreimpr. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret,
2011. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Macbeth, Ato, Cena. 223 SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. 2ªed. Tradução: Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Martin
Claret, 2011. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Rei Lear, Ato, Cena. 224 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Anna Amélia de Queiroz; Barbara Heliodora. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2015. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo:
Hamlet, Ato, Cena. 225 ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der Erlõsung. Frankfurt A.Main: J. Kauffmann Verlag, 1921, p.268.
(Tradução nossa).
62
liberdade humana é honrada com a permissibilidade do herói lutar contra o poder superior
do destino. Ao herói trágico antigo e Shakespeariano é dada a liberdade de agir e a força
de aguentar as consequências de seus atos, pois voluntariamente ele suporta “a punição
por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa
liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre”226.
3.2 As tragédias Shakespearianas e o Homem
Apesar de conter elementos da tragédia antiga, Shakespeare molda algo
inteiramente novo. O autor inglês “se esforça para transformar o vingador monomaníaco
do drama senequiano num herói trágico que pode se desenvolver no curso da ação”227. As
tragédias de Shakespeare apresentam uma estrutura que pode ser verificada em suas
principais peças trágicas: a situação do protagonista no início da peça é terrível, contudo
ele não foi o causador de tal situação, ele não é o responsável, mas apenas mais um dos
elementos que sofrem com ações perpetradas por outros personagens. No final, sob o
domínio da consciência do que efetivamente precisa ser feito, o herói se coloca no nível
do vilão.
Shakespeare apresenta características anormais das capacidades mentais
humanas: sonambulismo, alucinações e insanidade mental, contudo essas condições não
são “ações expressivas de caráter”228, ou seja, as condições mentais alteradas eram
consequências dos desdobramentos de outras ações: a loucura de Lear após a renegação
de suas filhas; o sonambulismo de Lady Macbeth após o assassinato do Rei; a alucinação
de Ofélia após o rompimento amoroso com Hamlet. Shakespeare também introduz, em
algumas tragédias, a figura do sobrenatural, que ajuda no desvelamento da verdade e na
consciência do caráter humano dos personagens.
226 SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Briefe über Dogmatismus und Kritizismus. Leipzig: Felix
Meiner, 1914, p.8. (Tradução nossa). 227 MIOLA, Robert. Shakespeare and Classical Tragedy: The influence of Seneca. Oxford: Claredon Press,
1992, p.33. (Tradução nossa). 228 BRADLEY, A. C. Shakespearean Tragedy: Lectures on Hamlet, Othello, King Lear and Macbeth. 2ªed.
London: Macmillan and Co., 1919, p.13. (Tradução nossa).
63
Entretanto, uma das mais importantes características das tragédias
Shakespearianas é inevitabilidade da catástrofe. Apesar de serem conscientes de que as
calamidades são resultado das ações humanas e que não acontecem sem motivação, os
heróis trágicos Shakespearianos admitem que existem circunstâncias que pesam sobre
eles, “o que acaba por sugerir uma cadeia aparentemente inevitável de acontecimentos:
mesmo que as ações cruciais sejam de responsabilidade do herói, elas desencadeiam
consequências e forças que conduzem inevitavelmente à catástrofe final”229.
Em suas tragédias, Shakespeare apresenta problemas filosóficos através da
mistura de emoções extremas. Sentimentos que se apresentam complexos, mesmo se
olhados separadamente, transformam-se em características intrínsecas ao Homem quando
analisadas em conjunto, como amor e ciúme; piedade e raiva; desejo e tristeza. Ao
salientar essas características em seus personagens e dotá-los de embates emocionais tão
heterogêneos, Shakespeare desvela um aspecto de suma importância para que o Homem
se perceba em toda a sua existência.
Apesar de paradoxais, os sentimentos inerentes aos personagens Shakespearianos
apontam para a plenitude e complexidade do Homem. O Homem e tudo o que o cerca e
constitui é importante e “Shakespeare preocupava-se em colocar o homem no palco.
[Pois] para ele o ser humano é quem importava”230.
Uma obra literária se revela, a princípio, com a cultura da sua época de criação,
contudo a obra de Shakespeare não se fecha em seu tempo e a sua grandiosidade está
justamente em ultrapassar a barreira temporal e se colocar de forma universal em suas
interpretações. Assim, com as peças de William Shakespeare “observamos a
transformação sucessiva de toda a realidade – que age sobre suas personagens – em
contexto semântico dos atos, pensamentos e vivências”231, e que passam a ser os atos,
pensamentos e vivências da realidade do Homem.
229 HELIODORA, Barbara. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004, p.127. 230 POLIDÓRIO, Valdomiro. A Representação da Natureza Humana em HAMLET de William
Shakespeare. Revista Travessias. Paraná: UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, vol.3,
nº2, 2009, p.4. 231 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p.404.
64
3.2.1 A loucura e a lucidez
“E o que é a loucura, no fim das contas, senão uma espécie de originalidade
mental? [...] [Pois] a loucura é apenas o uso bizarro e singular dessas faculdades
[intelectuais]”232. Considerando toda a complexidade dos personagens trágicos
Shakespearianos, um importante viés a ser analisado é o da sanidade mental,
principalmente por que a loucura na tragédia Shakespeariana carrega consigo uma carga
de sentimentos complexos e extremos, tal qual ocorre no Homem.
Em Rei Lear, Lear é um rei severo, mas justo. Que mostra o seu amor filial pelas
três filhas e se mostra digno de apreço. Contudo, um homem que se apresenta tão seguro
de si, demonstra fraqueza ao necessitar da confirmação do apreço alheio, principalmente
de suas filhas. “Extremamente hiperbólico, dotado de eloquência insana, Lear sempre
exige mais amor do que lhe pode ser dedicado”233:
Lear - ora dizei-me
qual de vós mais amor nos tem deveras,
por que alargar possamos nossa dádiva
onde contendem natureza e mérito234.
Apesar de amar e desejar ser amado por suas filhas, Lear encontra desprezo e
solidão. O rei sábio e coerente das primeiras cenas cede o lugar para um velho louco; as
longas e quentes noites de verão são suplantadas pela escuridão da noite e pelos tormentos
inebriantes da furiosa tempestade. Essa dicotomia de aspectos cênicos representa a
intensa luta interna pela qual Lear passava, “a solidão, a ingratidão e a percepção da
injustiça cometida contra sua filha caçula o levam à insanidade mental”235:
Lear – Conhece-me ainda alguém? Não, não é Lear.
Andava Lear assim? Falava assim?
232 FERENCZI, Sándor. Obras Completas. Vol.1. São Paulo: Martins Fontes, 1991 APUD PAIVA,
Nunziata Stefania Valenza. Loucura e direito em King Lear de William Shakespeare. Direito, Estado e
Sociedade, Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, nº35, pp.124–134, jul-dez.2009, p.125. 233 BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução: José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000, p.607. 234 Rei Lear, Ato I, Cena I. 235 PAIVA. op. cit., p.126.
65
Onde terá os olhos? Há de fraca
ter a razão e rombos de sentidos.
Estarei acordado? Não. Quem pode
vir-me contar quem em verdade eu seja?236
Se em Lear a loucura se desvela após a luta entre os sentimentos extremos do
amor e do desprezo, em Macbeth a loucura se apodera de Lady Macbeth através do
sonambulismo. O casal Macbeth transpira poder e ganância, mas é Lady Macbeth que
planeja o regicídio e impele o marido a praticá-lo. “O desejo ardente que sentem um pelo
outro é também o desejo pelo trono, desejo [...] contra o tempo e contra a irrefutável
declaração do tempo: ‘passou’”237. O desejo de poder se faz extremo:
Lady Macbeth – O corvo perdeu a voz para grasnar
a entrada fatal do rei aqui sob as minhas ameias.
Espíritos que estais ao labor de ideias
de morte, dessexuai-me aqui. Da crueldade
mais ignóbil enchei-me até a saciedade.
Desde a cabeça aos pés. Fazei-me o sangue espesso.
Bloqueai a passagem e qualquer acesso
da compaixão até mim238.
Indicando uma visão de loucura muito própria de sua época, Shakespeare povoa
a insanidade mental de aspectos inumanos, sobrenaturais. “No mundo povoado pelos
demônios, seres imaginários tenebrosos, o louco entra na barca para um destino
incerto”239, e Lady Macbeth sucumbe diante de seus próprios desejos. Através do
sonambulismo ela perde as suas faculdades mentais, passa a viver em um mundo onde o
terror do assassinato lhe suja as mãos de um sangue que nunca sai, de uma mancha em
sua alma que nenhum tipo de limpeza corporal será capaz de apagar. Novamente, o
paradoxo de sentimentos opostos, que parecem se harmonizar dentro dos personagens, e
que mostram o quanto o Homem está suscetível aos desígnios dos sentidos.
A loucura em Shakespeare fascina por conter toques da realidade. A loucura “é
um saber difícil, inacessível e temível”240, e esse estado mental em Lady Macbeth e,
236 Rei Lear, Ato I, Cena IV. 237 BLOOM. op. cit., p.638. 238 Macbeth, Ato I, Cena V. 239 PAIVA. op. cit., p.127. 240 Ibidem, p.128.
66
principalmente, em Lear mostra que o Homem sofre por ter consciência em demasia.
Apesar de estar envolto em momentos de fúria e desespero, Lear “é a maior figura do
amor que se busca desesperadamente e que é grosseiramente negado jamais posta no
papel ou no palco”241. Sua humana complexidade fica clara quando consideramos que a
verdadeira causa de sua falta de sabedoria e de seu potencial para destruir todos a sua
volta está no extremo amor paternal que ele sente pelas filhas. Em meio a devaneios o rei
tem a percepção do engano e da verdade:
Lear – No dia em que a chuva veio para molhar-me e o vento para me
fazer bater o queixo, e em que o trovão se recusava a obedecer-me, foi
quando as encontrei; foi quando lhes percebi o cheiro. Ide embora; não
têm palavra. Disseram-me que eu era tudo. É mentira!242
Shakespeare faz Lear pensar que jamais fará um gesto memorável “quem, lúcido,
se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos”243, e que tente se manter são
em mundo que se colapsa a sua volta. Nada mais humano do que enlouquecer com a
suposição da sabedoria, pois “o homem normal só percebe parte desse saber, como se
fossem verdadeiras figuras fragmentárias e inquietantes, mas o louco carrega consigo esse
saber por inteiro”244.
3.2.2 O rosto e o retrato
Existe uma subjetividade bidimensional nos vilões Shakespearianos que os
tornam homens “sujeitos às convulsões intelectuais, impacientes com relação a si mesmos
e sombrios, que, em tudo o que fazem, [...] não encontram senão uma breve alegria e um
ardor [...] a seguir a fria esterilidade e o desencanto”245. Essa bidimensionalidade pode
241 BLOOM. op. cit., p.622. 242 Rei Lear, Ato IV, Cena VI. 243 CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
1989, p.138. 244 PAIVA. op. cit., p.128. 245 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2004, p.334.
67
ser verificada no personagem Iago, da peça Otelo246, que para o público revela os seus
planos maléficos, mas que para os outros personagens engendra uma tão bem arquitetada
encenação e “se faz passar por tudo que não é”247. Existe, assim, duas dimensões do
sujeito, uma motivada pela ganância ao poder, que é a verdadeira e que se mostra
escondida, e outra aparente que é falsamente virtuosa, como uma máscara teatral.
Iago – Ao ser dele seguidor, estou seguindo apenas a mim mesmo. Os
céus podem me julgar: eu não sou eu por amor e por dever, mas eu
pareço ser eu por causa de meu peculiar propósito248.
A principal característica de Iago é mesclar uma atividade intelectual intensa com
uma ausência latente de princípios morais. Dizendo o que os homens e as mulheres
querem ouvir, Iago nunca “fala como pensa, nunca age como quer e nunca é como
finge”249, baseando-se em um padrão de sofisticação especulativa. Iago é o exemplo
extremo da capacidade humana de alcançar seus objetivos através das mais torpes
maneiras, indiferente ao seu destino e ao destino de outras pessoas. Não se importando
com os excessos, sofre de um incorrigível fascínio pela vilania, e de uma “atividade
intelectual doentia, de total indiferença ao bem e ao mal”250.
A antítese de Iago é o homem que cultua sua própria figura, que sempre mostra
quem é através de discursos inflamados e saudosistas. Otelo, o general mouro de grandes
conquistas e de grande mérito, sucumbe ante sua mais notável fraqueza: a virilidade.
Shakespeare traz à baila a extrema divisão existente no Homem quando a luta pela
virilidade e pela honra está em jogo. Otelo é derrotado apenas pela suposição de Iago de
que Desdêmona está traindo-o. O ciúme o corrói com uma força avassaladora por ser
causado pelo “pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica, [...] e de maior
ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio
246 SHAKESPEARE, William. Otelo. Tradução: Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2011. A partir
desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Otelo, Ato, Cena. 247 SUSSEKIND, Pedro. A filosofia em Hamlet. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro: Pontifícia
Universidade Católica, nº35, dezembro de 2014, p.15. 248 Otelo, Ato I, Cena I. 249 TAVARES, Enéias Farias. O belo demoníaco na figura do personagem Iago em Otelo de William
Shakespeare. Revista Ideias, Santa Maria: UFSM, nº21, jan-jun.2005, p.39. 250 BLOOM. op. cit., p.537.
68
ego do sujeito”251. Otelo é o personagem que vive feliz como um escravo da grandeza
que cria, preserva e idolatra. Dominado e preenchido pela afetividade que engendra
dentro de si e que supõe que assim também o faz dentro daqueles que o cercam. Para
Shakespeare, as paixões não esperam, “o trágico na vida de grandes homens está,
frequentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semelhantes, mas
na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar”252,
padecendo de seus piores fantasmas.
Macbeth é outro vilão Shakespeariano que carece de identidade própria. Contudo,
o nobre que assassina o rei para tomar-lhe o poder é impelido pelo sobrenatural e por sua
esposa, de modo que a sua máscara é facilmente derrubada. Macbeth a princípio nada
deseja. Mas ao contrário de Lady Macbeth que tudo quer e se desintegra por completo,
Macbeth “se torna cada vez mais assustador, aterrorizando a todos, inclusive a si mesmo,
à medida que se transforma no nada por ele próprio projetado”253. Macbeth não sucumbe
à loucura porque Shakespeare faz dele o mais humano de seus vilões. Macbeth representa
todas as situações onde o Homem prevê o que deseja e teme. Ele sabe que é a mais
assustadora criatura com a qual terá que se confrontar. Macbeth sabe que é mais
aterrorizante do qualquer um que o cerca.
Macbeth – Perceber o que fiz, inda há poucos momentos,
Fora muito melhor que não me conhecesse254.
Macbeth paga com a própria identidade o preço da coroa e do cetro, sob o custo
da própria realidade “e uma vez que sua nova realidade se baseia na ilusão pecaminosa,
ela pode ser sustentada apenas pela intensificação do pecado”255. Apesar de seus
tormentos, Shakespeare dota Macbeth de uma grandeza extraordinária, com “uma
consciência tão aterrorizante em suas advertências e tão irritante em suas censuras”256 que
251 FREUD, Sigmund. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo. In:
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol.15. Tradução: Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p.143. 252 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução: Paulo Cesar de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p.46. 253 BLOOM. op. cit., p.639. 254 Macbeth, Ato II, Cena II. 255 RUOFF, James E. Kierkegaard and Shakespeare. Comparative Literature, Oregon: University of
Oregon, vol.20, nº4, pp.343-354, autumn 1968, p.349. (Tradução nossa). 256 BRADLEY. op. cit., p.21.
69
o leitor Shakespeariano compreende as possibilidades da natureza humana, “pois cada
um de nós faz o impossível para não se ver entregue a si mesmo”257.
3.2.3 A mentira e a verdade
Nenhum personagem de Shakespeare é dotado de tantas nuances e tanta
subjetividade do que o príncipe Hamlet. A complexidade de Hamlet é a complexidade do
próprio Homem. Por isso se faz mister tentar observar todo esse espectro de uma outra
perspectiva. Segundo Nietzsche, é necessário enxergar a tragédia da mesma forma como
esta foi preconizada pelos gregos. Assim, a tragédia grega foi desenvolvida,
principalmente, sob os deuses Apolo e Dionísio. Para Nietzsche,
o impulso artístico dionisíaco, descrito por analogia com a embriaguez,
consiste inicialmente num estado de êxtase, na harmonia de todos os
seres, no esquecimento e na fusão com a natureza, portanto na perda da
individualidade que se revela tão importante para os valores heroicos
da arte grega. Esse impulso se opõe àquele do sonho, que caracteriza
por analogia o apolíneo como um impulso artístico de formação de
imagens, de beleza, de ordenamento258.
Dessa forma, Hamlet se assemelha ao homem dionisíaco pois tão logo a realidade
que o cerca penetra em sua consciência, ele vislumbra a podridão do meio onde está
inserido. Nesse mundo descortinado o homem não é o que parece ser, muito menos o
mundo, assim ele se sente compelido a agir “com a certeza de poder garantir que, mesmo
no final trágico, que já lhe parece determinado, a ordem e a justiça se atualizem”259.
O estudante de Wittenberg, que vive em mundo apolíneo de beleza e ordenamento,
retorna à sua terra natal para o enterro do rei, mas a aparição do fantasma de seu pai
desvelando uma terrível verdade o coloca novamente no mundo real. Hamlet “toma
257 CIORAN. op. cit., p.29. 258 SUSSEKIND, Pedro. Nietzsche leitor de Shakespeare. Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, nº31,
2012, p.183. 259 MENDES, Clarissa Ayres. Hamlet Dionisíaco – Breves considerações sobre Hamlet de Shakespeare na
perspectiva nietzschiana do Nascimento da Tragédia. Ítaca. Rio de Janeiro: UFRJ, nº15, 2010, p.172.
70
conhecimento da existência de uma realidade maior que ignora sua vontade
individual”260, ele começa a descobrir a “discrepância entre a aparência e a realidade e
entre o ideal e o real”261, entre a mentira e a verdade. De forma que uma escolha logo se
apresenta: pode ele levar uma vida passiva em um estado de semiconsciência da realidade,
onde ele tem consciência apenas de si mesmo, ou tornar-se ativo e aceitar todas as
consequências que seguirão esta escolha. Dentro dessa perspectiva, “a essência – o lado
sombrio e aterrador da existência, o horror e o absurdo, a atração do suicídio – se opõe às
ilusões da bela aparência, à ordem, aos limites frágeis”262 das relações humanas.
A situação inicial da qual Hamlet se depara está repleta de dualidade. Sob a
máscara da suposta tristeza pelo enterro do rei encontra-se a felicidade pelas bodas de
casamento da rainha. O regicídio guarda muito mais do que Hamlet pode imaginar, e a
consciência da verdade profunda o torna lúgubre e desconfiado perante todos aqueles que
o cercam. Hamlet deu um mergulho profundo na realidade e na sua existência, mas
precisa guardar para si seus pensamentos apesar de sofrer “pelos pecados dos outros”263.
Para Hamlet, todo mundo a sua volta está representando um papel e a vida é um
teatro. Sua mãe Gertrudes e seu tio, agora rei, Cláudio se tornam paradigmas do tipo de
humano que se deve evitar.
Hamlet – Que obra de arte é o homem, como é nobre na razão, como é
infinito em faculdades e, na forma e no movimento, como é expressivo
e admirável, na ação é como um anjo, em inteligência, como um deus:
a beleza do mundo, o paradigma dos animais. E, no entanto, para mim,
o que é essa quintessência do pó? O homem não me deleita, não, nem a
mulher, embora o seu sorriso pareça dizê-lo264.
Hamlet tenta penetrar na essência da existência, e a sua náusea diante da realidade
está vinculada “ao desejo de descobrir a realidade subjacente às aparências”265. Hamlet
tenta enxergar as máscaras que cada um utiliza para poder retirá-las impiedosamente, para
isso, coloca a sua própria máscara e se finge de louco. A suposta loucura de Hamlet tem
260 Ibidem, p.171. 261 TEKINAY, Ash. From Shakespeare to Kierkegaard: an existential reading of Hamlet. Doğuş
Üniversitesi Dergisi. Istanbul: Boğaziçi University, nº4, 2001, p.117. (Tradução nossa). 262 SUSSEKIND. op. cit., 2012, p.182. 263 RUOFF. op. cit., p.345. 264 Hamlet. Ato II, Cena II. 265 TEKINAY. op. cit., p.118.
71
um objetivo muito claro: ao mostrar que a sanidade lhe falta, Hamlet pretende aprofundar
a sua consciência da realidade através dos atos alheios, além de ser um embuste para as
suas verdadeiras intenções. Essa pseudo-loucura é a sua forma autêntica de se revoltar
contra a inautenticidade do mundo são de Claudio e Polônio, que vivem sob a tutela da
ganância, da ambição e da hipocrisia. Hamlet acaba descobrindo que a sua confiança no
Homem e no mundo está seriamente abalada, e se coloca em dúvida diante de sua posição
de ter que lidar com isso tudo. “Ele sofre com a angústia existente e sente a trágica tensão
entre possibilidade e liberdade para escolher, por um lado, e os fatores limitantes da
condição humana, no outro”266.
Após cinco atos, Hamlet finalmente conclui a sua transformação interior e agora
não mais se importa com o que ele tem que fazer, suas ações a partir desse instante são
baseadas em uma profunda consciência de sua capacidade de levar a termo os seus
desígnios. O príncipe sabe, agora, que “não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece...
[e que] para assim sentir importa ser profundo, abismo, filósofo... [ele finalmente adquiriu
a consciência de que] Todos temos medo na presença da verdade...”267. Hamlet prefere a
morte ao reino da Dinamarca, onde “um usurpador fratricida ocupa o trono, ao lado de
uma mulher dissimulada, a mais inconstante de todas as mulheres, a mãe infiel”268. O
Hamlet filósofo não é aquele que vive em um mundo abstrato, onde o absoluto
conhecimento retesa a ação, mas aquele que conhece exatamente o que tem que fazer para
dar cabo de suas angústias. O conhecimento de si, em Hamlet, é o propulsor das suas
ações.
O drama hamletiano é um drama humano, demasiado humano, pois assim como
Hamlet sabe, ao final da peça, que “se você pode desempacotar seu coração com palavras,
então o que você expressa já está morto dentro de você”269, o Homem também busca
através de uma vida contemplativa se afastar das falácias, uma vez que “morremos em
proporção às palavras que lançamos em torno de nós. [...] E todos nós falamos; nos
traímos, exibimos nosso coração; carrasco do indizível, cada um esforça-se por destruir
266 Ibidem, p.120. 267 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Tradutor: Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior,
2008, p.33. 268 SUSSEKIND. op. cit., 2014, p.20. 269 BLOOM, Harold. Hamlet: Poem Unlimited. New York: Riverhead Books, 2003, p.32. (Tradução
nossa).
72
todos os mistérios, começando pelos seus”270. E por mais que a morte espreite e se faça
presente para grande parte dos personagens, incluindo o próprio príncipe, Hamlet é um
arauto da vida, pois da mesma forma que a mentira quando suplantada desvela a verdade,
a morte de Hamlet o torna senhor da sua existência.
3.3 Shakespeare e o autoconhecimento através do dever
Shakespeare desenvolve dentro de suas tragédias muito mais do que os conflitos
inerentes ao humano segundo as antigas tragédias gregas e romanas, ele expressa as
inquietações modernas. Assim, ao mesmo tempo em que os personagens refletem,
também admiram as paixões impetuosas e sanguinárias. De sua perspectiva distante,
Hamlet “admira melancolicamente a serenidade estóica, possível apenas num mundo
ordenado, e percebe que precisa, ao mesmo tempo, assumir o papel ancestral do vingador
de sangue e jogar o jogo político da corte”271. Dessa forma, a tensão entre sentimentos
opostos, do claro e do escuro, da mentira e da verdade, representam a maneira como
Shakespeare tratou o Homem. Pois, o Homem carrega dentro de si essa tensão entre o
bem e o mal.
Os personagens de Shakespeare estão repletos de ambuiguidades e ambivalências,
mas não se preocupam com a interferência do bem e do mal, pois não são capazes de
estabelecer entre o bem e o mal uma distinção meramente natural. Macbeth enlouquece
ao se deparar com a imagem aterrorizante de si mesmo; Hamlet é um homem inteligente
e sensível que “não pode se afirmar neste mundo e obter um grau viável de
autossuficiência, mas é dominado pela turbulência emocional e pelas loucuras e crimes
de seus semelhantes”272. Em Shakespeare a trágica tensão entre a liberdade e os fatores
limitantes da condição humana estão em perfeita e paradoxal harmonia.
Nas tragédias Shakespearianas a confluência de sentimentos díspares proporciona
novas implicações nas relações humanas. Ao lançar um indivíduo em uma situação
inesperada envolvendo outros indivíduos que carregam suas próprias respostas e emoções
270 CIORAN. op. cit., p.29. 271 SÜSSEKIND. op. cit., 2014, p.18. 272 TEKINAY. op. cit., p.122.
73
singulares, Shakespeare “cria um conflito interno que, por sua vez, abre uma gama
aparentemente infinita de possíveis resoluções e não resoluções”273. Assim, a leitura de
Shakespeare se apresenta como um espelho da realidade humana, onde o Homem
contempla as inconsistências, incoerências, ações impensadas e coincidências
inesperadas que a existência pode proporcionar. O Homem vislumbra que a sua existência
“é a aventura mais considerável e mais estranha que a natureza já conheceu, [e que] é
inevitável que seja também a mais curta; [assim] seu fim é previsível e desejável: [e]
prolongá-la indefinidamente seria indecente”274. Com Shakespeare o Homem inicia um
processo de autoconhecimento, de consciência de sua existência através da compreensão
de que Shakespeare eleva os intrínsecos sentimentos humanos ao local de onde o Homem
apenas pode contemplá-los em sua grandeza e em sua completude. Nessa consciência da
verdade “o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser
[...] [onde] só ele tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o
horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver”275.
Em suas quatro grandes tragédias Shakespeare mostra as tensões e contradições
constitutivas do Homem. Além disso, mostra que essas tensões não são facilmente
resolvidas, mas que são necessárias para que o Homem se identifique e tenha a capacidade
de compreender que essa convergência de opostos dentro de si é a condição essencial para
que ele conheça todos os aspectos do mundo que o cerca. As tragédias Shakespearianas
se tornam, assim, um arcabouço necessário na busca do Homem pela sua verdadeira
essência, pois exibem “o estado real da natureza sublunar, que participa do bem e do mal,
alegria e tristeza, misturada com infinita variedade de proporções e inumeráveis modos
de combinação, expressando o curso do mundo”276.
273 WHITE, R. S. Variable Passions: Shakespeare’s Mixed Emotions In: KAMBASKOVIC, Danijela (ed.).
Conjunctions of Mind, Soul and Body from Plato to the Enlightenment: Studies in the history of philosophy
of mind. Vol.15. New York, London: Springer Dordrecht Heidelberg, 2014, p.132. (Tradução nossa). 274 CIORAN. op. cit., p.143. 275 NIETZSCHE. op. cit., 1992, p.56. 276 JOHNSON, Samuel. Prefácio à Shakespeare. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. São Paulo:
Iluminuras, 1996, p.3.
74
Capítulo 4
Conclusão
4.1 O distanciamento entre Platão e Shakespeare
Um aspecto fundamental do distanciamento entre o dever Shakespeariano e o
devir Platônico está na aparente condenação que o filósofo ateniense faz da arte277 e,
consequentemente, da poesia trágica. Platão não coloca todos os saberes que ele considera
como arte no mesmo nível, apenas separa as artes voltadas para o desenvolvimento do
cidadão e da cidade das práticas que estão voltadas para exercer influências sensíveis nos
corpos, como paixões e desejos. À estas últimas práticas artísticas, o parâmetro de
definição de Platão é a μίμησις278, sendo assim, pintura, poesia e tragédia, por exemplo,
são pensadas “por uma inferioridade ontológica, pelo distanciamento das verdadeiras
realidades, das Ideias, às quais a Beleza, por um movimento inverso, deve reconduzir”279.
Platão, assim, não critica a arte em geral, mas um tipo de arte, além disso, como
poderemos verificar a seguir, a sua principal crítica é acerca do mau uso dessa arte.
Para Platão a arte mimética não se ocupa do discurso que tem a função de dizer a
verdade, assim o objeto poético se torna apenas um reflexo, um εἴδωλον280, dos objetos
sensíveis. Dentro do pensamento platônico um objeto particular só adquire seu estatuto
ontológico na medida em que se relaciona com sua Forma/Ideia, dessa forma, a crítica de
Platão invoca que o produto poético esvazia o objeto empírico de sua substancialidade.
Segundo Platão, “as imagens estão longe de ser o mesmo que aquilo de que são
277 É importante lembrar que o conceito de arte para os gregos antigos não faz referência, exclusiva, ao que
a modernidade cunhou de “belas-artes”. Platão trata a arte, grosso modo, como um tipo de ação baseada
em regras específicas com o objetivo de produzir algo. Assim, pintura e poesia são consideradas arte assim
como a medicina e a política, pois enquanto aquela tem o objetivo de “produzir” saúde, esta tem a
preocupação com o equilíbrio social da cidade. 278 Μίμησις faz referência à imitação que algumas produções artísticas carregam em suas manifestações,
mas também podemos considerar que a palavra significa representação de algo e aqui não há qualquer
sentido depreciativo. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 279 LACOSTE, Jean. A Filosofia da Arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p.17. 280 Εἴδωλον no sentido de imagem refletida. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.
75
imagens”281. Assim, os saberes artísticos voltados para a μίμησις apresentam o Homem
“em ações forçadas ou voluntárias, em decorrência das quais eles se consideram bem-
sucedidos ou malsucedidos, entregando-se, conforme o caso, à dor ou à alegria”282, e não
estão preocupadas com a veracidade daquilo que imitam ou representam.
Ao conversar com o rapsodo Íon, em diálogo homólogo, Platão tenta mostrar
como as encenações dos poetas podem ser corrosivas para os cidadãos. E é o próprio Íon
que revela que diante de sua apresentação, seja de uma poesia patética, seja de um texto
terrível ou assustador, é visível “cada vez que [as pessoas] choram ou lançam olhares
terríveis ou tremem”283 diante de suas palavras. Platão, assim, assegura que certas
composições artísticas, com o fito em se apresentarem apenas como uma imagem
deturpada da realidade284, são como “reiteradas doses de veneno, [o que] resulta causarem
na alma, imperceptivelmente, dano irreparável”285.
Esse dano irreparável de que trata Platão pode ser entendido como o domínio do
ἐπιθυμητικόν sobre o Homem. Segundo o filósofo, esse εἶδος está voltado para os
apetites, para as paixões e os desejos, e é a parte da ψυχὴ que, nas ocorrências infelizes,
o Homem “tenta conter pela força, com sua tendência para saciar a sede de lágrimas e
fartar-se de lamentações [...] [mas] é justamente a que os poetas satisfazem e com a qual
se alegram”286. Platão ainda afirma que uma pessoa dominada pelos apetites onde
“predominam os desejos sobre a razão, [...] se injúria e se insurge contra a porção de si
mesma que a violenta”287.
Após considerar que o objetivo de Platão é fundar, ou antes pensar, uma cidade
ideal onde a razão seja a força motriz de seus cidadãos e que esses sejam guiados pela
justiça e a reta conduta, a Καλλίπολις288, é natural que o filósofo ateniense lance
281 PLATÃO. Crátilo, 432d. 282 PLATÃO. República X, 603c. 283 PLATÃO. Íon, 535e. 284 Cabe ressaltar que Platão sofria pesadas críticas dos comediógrafos, principalmente Aristófanes, e que
talvez essa linguagem esteja carregada de simbolismo, sendo direcionada. É interessante notar as palavras
do próprio Platão que, ao descrever as acusações sofridas por Sócrates, afirma: “‘Sócrates é réu de pesquisar
indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos
outros o mesmo comportamento.’ É mais ou menos isso, pois é o que vós próprios víeis na comédia de
Aristófanes – um Sócrates transportado pela cena, apregoando que caminhava pelo ar e proferindo muitas
outras sandices sobre assuntos de que não entende nada”. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução:
Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1980, 19b-c. 285 PLATÃO. República III, 401c. 286 PLATÃO. República X, 606a. 287 PLATÃO. República IV, 440b. 288 Καλλίπολις é a cidade justa pensada por Platão Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.
76
reprimendas àqueles saberes artísticos que prezem a encenação com o objetivo de
“estragar as pessoas sérias, salvo raríssimas exceções”289, e enganar o público fazendo
suscitar paixões e desejos desmedidos.
Cabe ressaltar que a crítica platônica inclui até mesmo Homero, que a despeito de
possuir todo o respeito de Platão e ser considerado o poeta máximo, é também “o primeiro
dos trágicos”290. A tragédia, assim, assume também uma acepção mimética, sendo
relacionada com as demais artes imitativas que se encontram muito longe da verdade e
“são companheiras, amigas e associadas da porção do nosso íntimo mais afastada da razão
e em que nada se encontra de são e verdadeiro”291. A tragédia Shakespeariana encontra,
dessa forma, o seu ponto de maior distância quando a relacionamos com a filosofia de
Platão. O dever imanente dos sentimentos humanos, como tratado por Shakespeare, se
torna, nessa visão platônica, apenas um simulacro do que realmente é o Homem.
Shakespeare se torna apenas um imitador, uma vez que segundo o pensamento de Platão
as pessoas “que se ocupam com a poesia trágica em versos épicos ou iâmbicos, sem
exceção, são imitadores por excelência”292.
Além disso, Platão reconhece que a poesia mimética corrompe o bom
entendimento dos cidadãos, ao passo que o conhecimento da verdadeira natureza das
coisas pode se tornar um φάρμακον293, um antídoto contra o falso consolo metafísico que
a poesia insiste em destilar nos Homens. É com esse objetivo que, por mais paradoxal que
possa parecer, Platão, ao final do diálogo Banquete, diz poeticamente que Sócrates, como
representante da Filosofia, foi o único a se manter acordado no raiar de um novo dia,
depois de acomodar no leito os sonolentos Agatão, representante da tragédia, e
Aristófanes, representante da comédia. Mostrando que a virtude almejada em sua cidade
ideal é superior à imagem de virtude que as artes miméticas são capazes de produzir.
Dessa forma, Platão salienta que a arte apoiada na μίμησις nada tem a acrescentar
à cidade, e que por isso deve ser regulamentada, pois “o legislador não deveria permitir
que os poetas compusessem da maneira que bem entendem [uma vez que] não seria
provável que eles soubessem que o que dizem poderia ser contrário às leis e injurioso ao
289 PLATÃO. República X, 605c. 290 Ibidem, 607a. 291 Ibidem, 603b. 292 Ibidem, 602b. 293 Φάρμακον aqui se relaciona com o sentido de algo que propicia a cura, não apenas no sentido físico,
mas também no aspecto mental. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.
77
Estado”294. O legislador deve, segundo Platão, considerar os poemas exclusivamente pelo
seu sentido manifesto, uma vez que sua essência ambígua, inclusive nas cenas violentas
e trágicas, levanta a questão irresolúvel sobre o correto significado daquilo que é dito.
Platão ressalta que o perigo da arte mimética se encontra nas possibilidades interpretativas
sobre os jovens, uma vez que estes “não têm capacidade para decidir sobre a presença ou
ausência de ideias ocultas; [assim] as impressões recebidas nessa idade são indeléveis e
dificilmente erradicáveis”295.
Contudo, é importante ressaltar que a valia negativa que Platão atribui a arte
imitativa desvela também o valor que esta possui dentro do contexto histórico da Grécia
Antiga, e que nas palavras de Platão estão contidas circunstâncias materiais e ideais da
sociedade grega, inclusive a eficácia político-pedagógica da arte, a qual não se pode
desconsiderar. Assim, Platão cuida para que a cidade seja protegida do hedonismo e do
“ilusionismo da arte revolucionária de sua época, na qual ele vê uma concepção
estritamente humanista, relativista, próxima dos sofistas”296, não condenando a arte em
si, mas seu mau uso. Como forma de comprovar essa assertiva, é digno de nota o lugar
privilegiado que a música apolínea ocupa no pensamento platônico. Sendo uma arte que
inspira o gosto pela virtude por atingir “fundo na alma o ritmo e a harmonia”297, a música
se torna um “treinamento da alma em excelência”298. Assim, a crítica de Platão deve ser
vista por uma outra perspectiva.
4.2 A aproximação entre Platão e Shakespeare
Em primeiro lugar é importante avaliar que Platão concorda que os sentimentos,
como paixões e desejos, suscitados em poesias trágicas e cômicas andam associados, não
apenas no teatro, mas também “na comédia e na tragédia da vida humana e em mil coisas
294 PLATÃO. Leis IV, 719b. Todas as citações do diálogo Leis terão como referência: PLATO. Laws.
Translate: R. G. Bury. Vol.1, Cambridge: Harvard University Press, London: William Heinemann Ltd.,
1961. (Tradução nossa). 295 PLATÃO. República II, 378d-e. 296 LACOSTE. op. cit., p.13. 297 PLATÃO. República III, 401d. 298 PLATÃO. Leis II, 673a.
78
mais”299, além disso, o uso correto da arte pode servir como ferramenta na educação moral
dos cidadãos, uma vez que pode fornecer traços verdadeiros de aspectos humanos. Dessa
forma, abre-se a possibilidade para que o próprio filósofo ateniense possa se valer de
aspectos artísticos para dar vazão aos seus pensamentos. Ao assumir que a lei e a razão
são as melhores ferramentas para governar uma cidade, ao passo que busca denegrir as
artes miméticas, a atitude de Platão em utilizar recursos poéticos pode ser vista como
contraditória. Contudo, cabe ressaltar que o ambiente citadino ateniense à época de Platão
está permeado de grande efervescência social300, incluindo uma antiga “querela entre a
poesia e a Filosofia”301.
Assim, Platão não se furta de utilizar o diálogo e descrições de lugares e pessoas.
Além disso, dota Sócrates de características bem peculiares que o aproximam de um
poeta. Para Platão o poeta está sob a inspiração das Musas que “lhe inspira odes e outras
modalidade de poesia que, [...] servem de educar seus descendentes”302, e que não é “pela
arte que diz tantas e belas coisas sobre os assuntos que tratam”303, mas sobre o entusiasmo
de uma força divina304. Tornando mais representativo a posição de Sócrates como
personagem da obra de Platão, é notável a sua reputação revelada nas palavras de Mênon,
no diálogo homólogo:
Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia que
nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também outros
a cair em aporia. E agora, está-me parecendo, me enfeitiças e drogas, e
me tens simplesmente sob completo encanto, de tal modo que me
encontro repleto de aporia. E, se também é permitida uma pequena
troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder,
tanto pelo aspecto como pelo mais, à raia elétrica, aquele peixe marinho
achatado. Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca,
quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois
verdadeiramente eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na
boca, e não sei o que te responder305.
299 PLATÃO. Filebo, 50b. Todas as citações do diálogo Filebo terão como referência: PLATÃO. Filebo.
Texto estabelecido e anotado: John Burnet. Tradução, apresentação e notas: Fernando Muniz. Rio de
Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2012. 300 Vale ressaltar que dentro da obra platônica existem diversas passagens que contêm críticas a outras
manifestações, como a retórica, a sofística e a comédia. 301 PLATÃO. República X, 607b. 302 PLATÃO. Fedro, 245a. 303 PLATÃO. Íon, 534b. 304 Θεία δε δύναμις. 305 PLATÃO. Mênon, 79e-80b.
79
Assim, tal qual um poeta, Platão transforma Sócrates em alguém capaz de
contagiar seus ouvintes através do correto domínio das palavras e das ações. Torna-se
significativo atribuir a Platão as mesmas características artísticas dos poetas, pois se
poetas e atores, cômicos e trágicos, encenam uma imagem, por vezes distorcida, da vida
humana como ela é, o teatro de Platão é moral no momento em que busca expor a vida
do Homem como ela deveria ser, mas não é.
A tragédia interdita o julgamento racional e faz prevalecer outros aspectos como
aparências e deformações. Além disso, a aparência “sem a posse da verdade, não permite
distinguir onde está o vício ou onde está a virtude, pois que a realidade só se torna nítida
a partir dessa máscara”306, tornando a tragédia um recurso artístico que pode ser utilizado
para ludibriar o público, mas que também pode ser entendido como um recurso para
expressar virtudes. Assim, apesar de Platão lançar duras críticas contra a poesia mimética,
justamente porque esta está voltada para a distorção das qualidades que definem a virtude,
a tensão constitutiva da tragédia entre liberdade e necessidade se torna o arcabouço
indispensável para que o filósofo ateniense se torne compreensível.
Assim, ao analisar o diálogo Fédon sob esse viés trágico, encontramos muitos
aspectos que o aproximam da tragédia Hamlet, de Shakespeare. Da mesma forma que
Shakespeare atribui ao personagem Hamlet a capacidade de ir além das palavras, uma vez
que seus “vocábulos se incrustam uns nos outros, como se nenhum pudesse alcançar o
equivalente da dilatação interior”307, Platão traz em Sócrates “a imagem do verdadeiro
filósofo, da sua atividade em vida e da sua atitude perante a morte”308, que, igualmente,
extrapola a barreira das palavras e se torna muito mais que apenas atuação, já que Sócrates
tem, assim como Hamlet, a consciência de que sua atuação nada pode fazer para mudar a
essência das coisas.
Em ambos os casos o personagem principal não é culpado pela situação em que
se encontra. Vale lembrar que Hamlet retorna para Elsinor para o enterro do pai e é
informado sobre as núpcias de sua mãe com seu tio; e Sócrates é condenado por um
306 SUSIN, André Luís. Mimesis e tragédia em Platão e Aristóteles. Rio Grande do Sul: Universidade
Federal do Rio Grande de Sul, 2010. 178 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2010, p.41 307 CIORAN. op. cit., p.85. 308 CASERTANO, Giovanni. Alma, morte e imortalidade. Tradução: Maria da Graça Gomes de Pina.
Archai. Coimbra: Annablume Clássica, nº17, pp.137-157, may-aug.2016, p.139.
80
tribunal, apesar de afirmar que “não têm fundamento nenhum essas balelas”309, se
referindo às acusações contra ele. Contudo, mesmo reféns do destino, Hamlet e Sócrates
não fogem diante da situação que se apresenta. A luta silenciosa e muda dos heróis
trágicos, característica das antigas tragédias, cede lugar a um brilhante desenvolvimento
da conversa e da consciência, onde Hamlet e Sócrates morrem voluntariamente, sem
qualquer desafio310 e com uma superioridade inexcedível. Em Hamlet e Fédon, “o herói
sucumbe sob seus próprios atos, sem que lhe seja dado escamotear sua morte por uma
graça sobrenatural”311 e onde a extrema consciência de sua essência efêmera torna
transparente o aspecto horroroso e absurdo do Homem.
Assim, encontramos uma clara aproximação entre a filosofia platônica e a
tragicidade shakespeariana que é potencializada pelo tratamento que ambos fazem da
morte iminente e inevitável. O príncipe Hamlet traz dentro de si o embate entre o tudo e
o nada, entre a plenitude e o vazio. Representando o Homem, Hamlet tem consciência de
que a reflexão o tornou covarde, que o medo do desconhecido o faz suportar
O açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe312.
Mesmo assim, Hamlet se torna senhor de si e sobrepuja seus sentimentos.
Compreende que a morte é a única forma de libertar seu pensamento da austeridade dos
sentimentos. Outrossim, Sócrates tece seu argumento acerca da imortalidade em torno da
ideia de libertação da ψυχὴ. Para Sócrates o verdadeiro conhecimento ocorre quando a
ψυχὴ investiga sozinha a verdade sem as implicações dos sentimentos, ou seja, após a
morte física do σῶμα. Segundo Sócrates, “os que praticam verdadeiramente a Filosofia,
de fato se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor
revelam à ideia da morte”313.
309 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 19d. 310 Cabe ressaltar que apesar de Hamlet lutar com Laertes no final da peça, Hamlet tinha a consciência de
que seu oponente era um esgrimista melhor do que ele. Assim, Hamlet lutou fisicamente, mas com a
consciência de que seria derrotado. O duelo com Laertes deve ser entendido como parte de seu plano de
vingança. 311 CIORAN. op. cit., p.108. 312 Hamlet, Ato III, Cena I. 313 PLATÃO. Fédon, 67e.
81
4.3 Platão e Shakespeare: uma relação dialética
A relação dialética entre Platão e Shakespeare apresenta aspectos bem definidos.
Por um lado, Platão tece críticas contundentes ao mau uso das artes miméticas, uma vez
que um indivíduo nobre e virtuoso governado somente pela razão parece ser um modelo
incapaz de ser representado pela arte, incluindo a poesia, a tragédia e a comédia, tornando
o teatro Shakespeariano um mero produtor de imagens distante da verdade.
Por outro lado, transforma cada um de seus diálogos em uma obra teatral onde
cada personagem é retratado com seu feitio, com suas opiniões, receios e esperanças, e
onde “se põe em cena sobretudo algo que nenhum dos tragediógrafos ou dos
comediógrafos gregos se atrevera a tratar antes de Platão: a filosofia”314. Com o objetivo
de promover uma transformação ética e intelectual em sua época, Platão utiliza a
linguagem artística para reorientar a mentalidade dos cidadãos atenienses. Os diálogos
platônicos devem ser vistos, dessa forma, como uma ação poética persuasiva sobre a
ψυχὴ, chamada por Platão de παιδεία315. Sob essa mesma orientação, o teatro de
Shakespeare apresenta alguns aspectos paidéticos, pois “a vida é representada em sua
totalidade e está exposta de modo direto e hierárquico”316.
Resta-nos explicar como as tragédias de Shakespeare se tornam uma chave
interpretativa para desvelar o mundo do devir pensado por Platão. Para tanto, retornemos
à Alegoria da Caverna.
Platão diz que entre os homens presos no fundo da caverna e o fogo que brilha às
suas costas existe um pequeno muro. Então, ele explica o que são as sombras projetadas
no fundo da caverna ao enfatizar que por esse muro homens carregam “toda a sorte de
utensílios que ultrapassam a altura do muro, e também estátuas e figuras de animais, de
pedra ou de madeira, bem como objetos das mais variadas espécies”317. Configura-se,
assim, que as sombras são reflexos de imagens trazidas por homens de fora da caverna.
314 CASERTANO. op. cit., p.139. 315 Παιδεία no sentido de formação. É a educação que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um
cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento. Cf. LIDELL; SCOTT.
op. cit.; JAEGER, Werner. Paidéia. op. cit., p.147. 316 BOLOGNESI, Mário Fernando. Teatro e Pensamento. Revista Trans/Form/Ação. São Paulo:
Universidade Estadual Paulista (UNESP), nº21-22, pp.53-65, 1998/1999, p.62. 317 PLATÃO. República VII, 515a.
82
Após Platão afirmar que, mesmo solto, o homem teria dificuldade para entender
que aqueles objetos estavam mais próximos da realidade do que as sombras no fundo da
caverna, podemos concluir que a linguagem alegórica utilizada por Platão traz à tona a
proximidade dos objetos carregados acima do muro com o teatro. Sob essa ótica, a
caverna é um lugar onde um grupo de pessoas assiste a um espetáculo de sombras que
parecem agir e falar, tal qual um teatro. Contudo, Platão extrapola a simples encenação e
mostra um teatro que se contempla, que olha para si através do homem que se liberta e
vislumbra as verdadeiras imagens desse teatro. A falsidade daquilo que entorpece o
homem platônico na caverna é a mesma que traz a consciência à Macbeth de que
A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se
empavona e agita por uma hora no palco, sem que seja, após, ouvido; é
uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que
nada significa318.
Ao tratar das artes miméticas, Platão apresenta um objeto que não imita de um
modo neutro a sua verdadeira aparência. Aqui, os artistas “só criam fantasmas, não o
verdadeiro ser”319, e o produto artístico surge como algo “que assume o seu ser como
efeito da atividade do artista”320. De outra forma, os objetos que passam sob o muro da
caverna platônica podem ser analisados como imitação de uma aparência que existe no
mundo e precede o olhar do artista, uma aparência que é constitutiva do próprio objeto
sensível. Assim, os diversos objetos transportados na caverna possuem estreita ligação
com os objetos originais que existem na realidade fora da caverna, na “região
inteligível”321. Platão cria, dessa forma, um nexo necessário entre tais objetos e o mundo
exterior da caverna.
Dessa assertiva surge a dúvida sobre a impossibilidade do artista tornar-se
filósofo, posto que contemplou os seres originais do mundo inteligível dos quais retirou
as imagens transportadas dentro da caverna. Para Platão o simples contato com as
Formas/Ideias não significa a garantia de seu conhecimento e de seu bom uso, assim o
318 SHAKESPEARE. Macbeth, Ato V, Cena V. 319 PLATÃO. República X, 599a. 320 SUSIN. op. cit., p.27. 321 PLATÃO. República VII, 517b.
83
Homem “precisaria [...] habituar-se para poder contemplar o mundo superior”322. É
necessário que a ψυχὴ do Homem se esforce. Esse esforço é descrito na linguagem
alegórica, no árduo caminho que a ψυχὴ passa “para vencer as dificuldades da transição
das trevas para a luz”323, desde sua libertação até a progressiva adaptação dos olhos à
claridade do fogo, primeiramente, e à luz do sol, fora da caverna. Torna-se indispensável,
portanto, que a ψυχὴ, após esse esforço, tenha a capacidade de distinguir entre o simulacro
e a realidade, entre o falso e o real, entre o mundo do devir e o mundo inteligível.
Assim, em sua Alegoria, Platão apresenta a procissão de objetos na caverna como
o recurso através do qual o λογιστικὸν recém liberto da sua prisão junto aos outros εἴδε
da ψυχὴ compreenderá, através da διάνοια, que aquelas imagens são apenas traços do
real, e que essa etapa de desvelamento e compreensão do mundo do devir é conditio sine
qua non para a consciência da existência do mundo das Formas/Ideias. As tragédias de
Shakespeare, enquanto perfeitas imagens da realidade humana, apresentam o
questionamento do mundo, da vida e dos atos humanos a partir da angústia interna que os
sentimentos fazem inundar no ser. Em Shakespeare, o Homem contempla o seu
desmoronamento íntimo através de uma subjetividade portadora das dores do mundo. O
Homem compreende que as suas ações, sentimentos e paixões, em seu eterno movimento
contrastante e tenso, não possuem nenhuma Forma/Ideia imutável que o ampare em sua
trajetória. É essa percepção da vida humana, que a tragédia de Shakespeare proporciona,
que permite à διάνοια a compreensão do mundo devir platônico enquanto ambiente
dominado pelos sentidos, e que possibilita a κίνησις324 necessária da ψυχὴ para atingir o
mundo das Formas/Ideias.
322 Ibidem, 516a. 323 QUEIRÓS, Antônio José de. Os Bastidores da Caverna de Platão (entrelinhas de uma alegoria). O que
nos faz pensar. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, nº24, outubro 2008, p.109. 324 Κίνησις faz referência ao movimento, à agitação da alma. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.
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Glossário
Άδης (Hades) – o local no subterrâneo para onde vão as almas das pessoas mortas (sejam
elas boas ou más), guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, para lá tornarem-se
sombras. É o Mundos dos Mortos. O nome Hades era usado frequentemente para designar
tanto o Mundo dos Mortos como o deus que o governa. Posteriormente, a mitologia grega
provocará mudança nesse conceito, acrescentando os Campos Elísios, lugar de eterna
alegria e felicidade também governado por Hades, oposto ao Tártaro (lugar de eterno
tormento e sofrimento). Nos Campos Elísios, os homens virtuosos repousavam
dignamente após a morte rodeados por paisagens verdes e floridas dançando e se
divertindo noite e dia. O deus Hades, portanto, governa o Hades, que é dividido entre
Tártaro (onde ficam os maus) e Campos Elísios (onde ficam os bons). Com isso, temos
que Hades não é nem um deus bom nem mau, mas um deus justo.
Αλήθεια (alétheia) – verdade. Aquilo que se desvela ou que é desvelado e se mostra em
seu inteiro teor, de forma verdadeira. Literalmente, não-latência, não-esquecimento.
Δαίμων (daímon) – um tipo de ser que se assemelha a uma espécie de espírito que rege o
destino de alguém ou de um lugar. Trata-se do sinal divino que se percebe dentro de si
mesmo em circunstâncias particulares. Um espírito orientador, uma deidade tutelar.
Δῐαίρεσῐς (diaíresis) – uma forma de classificação utilizada
na lógica antiga (especialmente platônica) que serve para sistematizar conceitos e chegar
a definições.
Δῐᾰ́νοιᾰ (diánoia) – capacidade de pensamento, sendo este considerado como um
processo mental através do qual o Homem modela sua percepção do mundo ao redor de
si. O pensamento permite que o Homem pense o Ser, permite que ele extrapole as
barreiras impostas pela linguagem e avance além dos sentidos impostos pelo σῶμα e seja
a mais importante ferramenta da ψυχὴ na apreensão do mundo inteligível.
Δῐόνῡσος (Diónysos) – Deus Grego das festas, do vinho, do lazer e do prazer. Filho
imortal de Zeus e Perséfone, nasce como Zagreu, depois renasce como Dioniso, filho
imortal de Zeus com Semele. O culto Dionisíaco já estava presente na Grécia desde o
século XIV a.C.
Δόξᾰ (dóxa) – opinião.
Εἴδωλον (eídolon) – imagem, representação de algo.
Εἶδος (eidos) – remete a um componente da alma, que existe, relativamente, de forma
independente, mas que não pode ser vista como o todo. É um aspecto da alma sem o qual
95
a alma não seria alma. Faz referência ao que, em outros trabalhos, é conhecido como
“partes” da alma. Consideramos que a palavra “parte” possa invocar o significado de algo
fracionado onde cada parte existe separadamente e de forma independente, sem relação
com o todo.
Ἔκστᾰσῐς (ékstasis) – qualquer deslocamento ou remoção do lugar apropriado e ainda
transe, arrebatamento, ser outro ao mesmo tempo que si próprio.
Ἐπιθυμητικόν (epithimetikón) – aspecto concupiscente da ψυχὴ. É o elemento referente
ao desejo.
Θῡμός (thimós) – o ardor, a coragem. Ele também pode ser traduzido como coração, sede
dos sentimentos, das paixões, dos impulsos involuntários, das decisões, da inteligência.
Θυμοειδές (thimoeidés) – aspecto irascível da ψυχὴ. É o elemento referente ao apetite.
Καλλίπολις (Kallipolis) - cidade ideal onde a razão seja a força motriz de seus cidadãos
e que esses sejam guiados pela justiça e a reta conduta.
Κᾰ́θᾰρσῐς (kátharsis) – purificação.
Κῑ́νησῐς (kínesis) – movimento, agitação da alma.
Λογιστικὸν (logistikón) – caráter racional da ψυχὴ. É o aspecto referente à inteligência.
Λόγος (lógos) – razão, que funciona sempre e em acordo com a qual, mas não por causa
da qual, todas as coisas vêm a ser.
Μίμησις (mímesis) – imitação que algumas produções artísticas carregam em suas
manifestações, mas também podemos considerar que a palavra significa representação de
algo e aqui não há qualquer sentido depreciativo.
Νοῦς (noûs) – conhecido como intelecto, mente. É a força motriz que formou o mundo a
partir do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmo. Nesta dissertação
compreenderemos o νοῦς, em Anaxágoras, como espírito.
Παιδεία (paidéia) – formação. É a educação que dá ao homem o desejo e a ânsia de se
tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como
fundamento.
Σῶμα (sôma) – corpo físico.
Τέχνη (tékhne) – técnica como um conjunto de regras, sistema ou método de fazer algo.
96
Φάρμᾰκον (phármakon) – algo que propicia a cura, não apenas no sentido físico, mas
também no aspecto mental.
Φῠ́σῐς (phísis) – natureza.
Ψῡχή (psikhé) – alma.
97
Apêndice A - Alegoria da Caverna: um jogo didático-filosófico
1.1 Por que Filosofia?
Com a inclusão da Filosofia como disciplina obrigatória nos currículos da
Educação Básica a partir de 2008, a educação nacional ficou diante de uma novidade,
uma vez que a Filosofia como disciplina não obrigatória era pouco utilizada, e de grandes
desafios. Talvez um dos maiores desafios impostos pela nova legislação tenha sido o
aspecto estrutural de funcionamento. Segundo o Censo Escolar de 2014325, apenas 23%
dos docentes que lecionam Filosofia são formados na área, ou seja, a maioria dos
professores que ensinam Filosofia não têm a formação adequada para a atividade.
Considerando apenas esse fator já podemos desvelar uma miríade de outros problemas
relacionados ao ensino de Filosofia que extrapolam as paredes da escola.
Nos últimos anos a educação brasileira tem atravessado um momento de grande
ajuste em sua prática. De um lado, o avanço tecnológico e a busca desenfreada por todo
tipo de inovação, a qualquer preço, seja através das relações humanas, práticas sociais e
atividades culturais. E a educação tradicional326, de outro lado, buscando se adequar às
novas tecnologias de ensino e, principalmente, tentando aliar as práticas pedagógicas a
um novo tipo de aluno. E no meio desse contexto, o professor. Dessa forma, exigências
mais amplas da sociedade tomaram corpo, principalmente “por inovações no sistema
educacional, sobretudo as de cunho metodológico e tecnológico”327.
Definir ou mesmo delimitar o que seriam essas inovações é uma tarefa de extrema
dificuldade. Pois, se por um lado, uma prática pedagógica inovadora pode ser sinônimo
de progresso educacional, essa inovação pode significar uma alteração de sentido na
325 BRASIL. Relatório educação para todos, 2014. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/junho-
2014-pdf/15774-ept-relatorio-06062014/file, acessado em 10/07/2018. 326 O sentido de educação tradicional, no texto, não significa algo velho e ultrapassado, tão pouco algo que
deva se perpetuar no tempo, apenas uma prática que vem sendo utilizada há vários anos e que se tornou
paradigma, parâmetro, ou ainda base, para modalidades de ensino posteriores. 327 MARTINS, Ronei Ximenes; RIBEIRO, Claudia Maria. Mestrado profissional em Educação e inovação
na prática docente. Revista Brasileira de Pós-Graduação, Brasília, vol.10, nº20, pp.423-446, jul.2013,
p.425.
98
prática docente. Assim, levantar a questão da formação dos professores com foco na
inovação do ensino significa pensar na modificação dos ciclos educativos para etapas
mais especializadas para a atuação docente. Em outras palavras, impõe-se a questão de
como tornar a Filosofia mais palatável, mais inteligível, para um aluno que se vê cercado
por inovações tecnológicas e que já não entende por que Filosofia. Um aluno inserido
em uma sociedade
hedonista e psicologista que incita a satisfação imediata das
necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o
florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do
conforto e do lazer. [...] [Onde] as políticas do futuro radiante foram
sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufórico328.
Inevitavelmente, pensar em uma mudança de postura no Ensino de Filosofia
significa pensar um novo olhar para a formação docente. Se no passado a Filosofia era
vista como o terreno da sabedoria e todo aquele formado em sua arte era sábio, dado a
profundidade de seu conhecimento e de suas indagações e respostas, atualmente esse
crédito tem se tornado cada vez mais insípido. A formação do professor de Filosofia
precisa abarcar esse novo contexto e também extrapolar as amarras da licenciatura, uma
vez que
a formação de um professor de filosofia não é a consequência de assistir
a algumas disciplinas pedagógicas ou didáticas que se juntariam em
algum momento com outras mais especificamente filosóficas, mas
corresponde a toda a formação em seu conjunto329.
Nesse sentido, é importante frisar que sérias mudanças precisam ocorrer na
estrutura organizacional dos cursos de formação de professores, uma vez que de nada
serve uma formação universitária ou mesmo pós-graduada, “se o conteúdo dessa
formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes
profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo, etc.”330.
328 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p.61. 329 CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Autêntica,
2009, p.60. 330 DUARTE, Newton. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor. Educação
e Sociedade, Campinas, vol.24, nº83, ago.2003, p.620.
99
Outrossim, apesar da brevidade do mundo atual, que se transmigra para as relações
humanas e também para a praticidade de respostas e objetos, o professor de Filosofia se
torna um baluarte, buscando que a Filosofia não entre no caminho que transforma tudo,
até a educação, em uma espécie de instrumentalismo. A ânsia pelo conhecimento se
mantém viva, pois “de modo mais geral [...] parece evidente que o pôr-se em movimento
do desejo de saber depende invariavelmente do encontro com um interlocutor que o
desafia”331, desejo de saber que ainda se mantém vivo na sociedade atual.
Não se trata, assim, “de adaptar acriticamente os espaços curriculares filosóficos
ao ‘mundo atual’, mas de pensar as condições de adaptação, ou recolocar o lugar que lhes
corresponderá”332. Entretanto, fica a pergunta: Por que Filosofia?
A Filosofia não pode ser entendida como um saber fechado em si mesmo, pois é
uma perspectiva intensa do pensamento, com o fito em problematizar e pensar as questões
advindas das mais diversas origens.
A Filosofia se ocupa na perene busca da verdade do ser do homem, dividido entre
a imanência e a transcendência, entre o mundano e o divino. Pensar filosoficamente é
refletir, voltando o pensamento para e sobre nós mesmos, para e sobre o próprio
pensamento. E na medida em que é um refletir sobre a nossa existência e nosso
pensamento, a Filosofia não apenas é como também contribui para a formação de uma
consciência crítica.
A Filosofia é útil para os que querem conhecer a si mesmos e entender de onde
surgem as ideias que estão em sua mente; para os que têm interesse em questionar os
fundamentos das ciências, da política, da arte, da religião, em suma, para aqueles que
buscam respostas para o questionamento sobre a própria realidade. A Filosofia não se
preocupa em apresentar respostas prontas e definitivas sobre quaisquer questões; contudo,
sugere caminhos possíveis e coerentes: caminhos que podem ser seguidos por qualquer
um, desde que se disponha a utilizar a sua razão. A Filosofia conduz a uma análise crítica
das atitudes e das práticas adotadas na vida de cada um que se coloca diante dela.
Dessa forma, ensinar Filosofia porque esta é a radical reflexão sobre si na busca
da construção de uma identidade, sendo essa a sua principal importância. Com a prática
331 CEPPAS, Filipe. O Ensino de Filosofia como “questão clássica” na tradição do pensamento filosófico.
Revista Educação. Santa Maria, vol.40, nº1, jan-abr.2015, p.57. 332 CERLETTI. op. cit., p.49.
100
da Filosofia o homem é elevado à sua máxima possibilidade de conhecimento, de si e do
mundo que o cerca, abrindo-se, assim, diversas possibilidades para o ensino da Filosofia.
1.2 O texto filosófico
Alguns pensadores333 que se debruçam sobre o ensino de Filosofia concordam e
afirmam que as aulas de filosofia devem utilizar o texto filosófico. Contudo, mesmo
apresentando um consenso sobre sua utilização, o texto filosófico ainda levanta alguns
questionamentos de ordem mais prática: a Filosofia está no texto filosófico? Se um dos
objetivos da Filosofia é desnudar o mundo atual, por que buscar resposta em textos tão
antigos? Onde está o “problema” nos textos filosóficos, e como acha-los? Entre outras
questões.
Apesar de ser inegável a relevância dos textos filosóficos para o ensino de
Filosofia, “o desafio colocado hoje aos que ministram aulas de filosofia no Ensino Médio
é saber usar os textos de filosofia com os estudantes, e tratá-los sob o ponto de vista
filosófico”334. Ainda que tenha uma linguagem, na maioria das vezes, truncada e de difícil
compreensão, o texto filosófico se torna, atualmente, uma espécie de chave “mágica” das
aulas de Filosofia, pois é através do texto clássico que o aluno terá contato com os
diferentes problemas filosóficos e, principalmente, a forma como os filósofos, ao longo
do tempo, trataram esses problemas.
Apesar de se apresentarem sob diferentes formas (diálogos, tratados, resumos,
poemas, aforismos, etc.) os textos filosóficos possuem um elo em comum, que os
transformam em clássicos, e que os tornam consagrados pela tradição: a busca da
universalidade. “Todo texto filosófico tenta mediatizar a relação do particular ao
universal, e o que torna as filosofias contraditórias é o que as aproxima”335. Assim, mesmo
333 SEVERINO (2009), GHEDIN (2009), CUNHA (2009), HORN (2010), OLIVEIRA (2004), COSSUTA
(2001), FOLSCHEID (2006), NUNES (2010), PORTA (2007), RODRIGO (2009). 334 VIEIRA, Wilson José; HORN, Geraldo Balduíno. O sentido e o lugar do texto filosófico nas aulas de
filosofia do Ensino Médio. Revista Digital de Ensino de Filosofia, Santa Maria: Universidade Federal de
Santa Maria, vol.2, nº2, jul-dez.2015, p.56. 335 COSSUTA, F. Elementos para a Leitura dos Textos Filosóficos. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
p.05.
101
tratando de problemas de seu tempo, o texto filosófico deve ser utilizado para resolver,
ou apenas possibilitar o pensamento crítico, sobre problemas enfrentados atualmente,
caracterizando um aporte importante às aulas de Filosofia.
1.3 A influência platônica no ensino de Filosofia
Platão é um dos pensadores ocidentais mais lidos e difundidos de todos os tempos.
Seus diálogos versam sobre grande parte das facetas sociais que vivemos atualmente. A
disciplina Filosofia utiliza muito dos preceitos e das discussões platônicas em sua prática,
assim, a forma como o pensador apresenta a discussão dos conceitos, a maneira como
instiga o pensamento crítico, são algumas das bases que sedimentam a relevância de
Platão para a educação.
Em verdade, Platão foi um dos primeiros pensadores a pensar a educação como
chave transformadora para a construção de uma sociedade melhor. Através de seu
personagem principal, Sócrates, Platão busca enviesar a vida social de aspectos
educacionais. A própria prática socrática é um excelente exemplo da importância que a
didática, como método de ensinar, tem em toda a obra platônica. A educação para Platão
excede a simples formação de cidadãos, pois para o pensador é através da educação que
o cidadão alcança a eficácia de seu autodomínio e de seu autoconhecimento.
Ademais, Platão afirma que “educação não é o que muitos indevidamente
proclamam, quando se dizem capazes de enfiar na alma o conhecimento que nela não
existe”336. Considerando que a prática educacional socrática consiste em, através de
perguntas e respostas, chegar ao conhecimento do que se propõe, buscando no
interlocutor o saber, ou seja, proporcionando o exercício de pensar e refletir sobre o que
pensa e diz, seu método pode ser considerado eficiente, pois ajuda a direcionar as mentes
de seus discípulos para o que lhe parece ser mais correto.
Nesse sentido, existe algo para Platão que proporciona uma modificação na
condição dos εἴδε da ψυχὴ: a educação filosófica. Assim, “a educação [...] é o treinamento
desde a infância na bondade, que faz um homem ansiosamente desejoso de se tornar um
336 PLATÃO. República VII, 518c.
102
cidadão perfeito, entendendo como ambos devem governar e ser governados com
retidão”337.
Dessa forma, alinhado com tudo o que foi exposto até o momento, sobre o ensino
de Filosofia, sobre a utilização dos textos filosóficos e da relevância educacional de
Platão, apresentamos abaixo uma proposta do material didático caracterizado por um jogo
didático/filosófico.
Alegoria da Caverna: um jogo didático/filosófico
1 Introdução
A Alegoria da Caverna, que consta no Livro VII do diálogo República, é uma das
passagens mais relevantes da filosofia de Platão. A história possui uma fecundidade “que
a mantém sempre atual influenciando sucessivas gerações, ao longo de séculos, nas mais
diversas áreas”338. Utilizar a Alegoria da Caverna no ensino de Filosofia significa
proporcionar ao aluno um dos textos filosóficos mais emblemáticos da história ocidental.
Rico em beleza de detalhes, profundo na apresentação de seu problema filosófico,
a alegoria da caverna platônica é a metáfora mais poderosa e reveladora
oferecida pela filosofia. Esta metáfora fala da condição humana e do
lugar da filosofia nele. Mais ainda, ele nos fala sobre o que a filosofia
pode tornar possível, modificando essa condição, melhorando-a339.
O uso da Alegoria da Caverna encontra respaldo na atualidade, pois sua discussão
acerca da verdade, da diferença entre o que é real e o que é irreal, do mundo das sombras
e do mundo iluminado pela verdade, se reflete na própria ascese do conhecimento diante
337 PLATÃO. Leis I, 643e. 338 MATOS, Marcio Ivo Magalhães. Alegoria da Caverna: O Humanismo do Retorno. Relatório de estágio.
Portugal: Universidade do Porto, 2012, p.41. 339 OTERO BELLO, Edison. El pensador en la caverna. Chile: Universidad de Chile, Facultad de Ciencias
Sociales, 1997, p.3 (Tradução nossa).
103
do oceano informacional que rodeia o ser humano atualmente. Assim, o jogo
didático/filosófico proposto alinha-se com novas propostas de ensino que buscam
entrecruzar o cotidiano do aluno com o material didático, pois
os conceitos de Platão, e a sua representação particular de nossa
situação neste mundo em sua Alegoria da Caverna, são refletidos hoje
na cultura pop moderna, incluindo música, TV, literatura e cinema.
Argumentos científicos contemporâneos e inquéritos filosóficos
também podem ser vistos em relação à alegoria. [...] A visão de mundo
atual dos ocidentais e a visão de mundo de Platão, embora separadas
por quase dois milênios, têm muitas semelhanças convincentes340.
2 Objetivo
O objetivo do material didático é proporcionar um espaço de debate filosófico
sobre o conteúdo relacionado à Alegoria da Caverna, apresentando uma introdução aos
conceitos de verdade e de pensamento dentro da filosofia platônica. O principal foco é
analisar a Alegoria da Caverna sob o prisma da verdade e do pensamento, incluindo a
valorização da Filosofia como ferramenta de mudança de postura diante da realidade e do
senso comum.
Além disso, esses objetivos estão relacionados com uma das estruturas
curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a saber: “compreender [...] a
abrangência, singularidade e importância da Filosofia [...] e, por extensão, os possíveis
lugares do filosofar na vida por vir”341.
Entretanto, é essencial ressaltar que todos os conceitos, e todos os objetivos
relacionados aos conceitos, estão associados à filosofia platônica no concernente à ascese
do conhecimento, ou seja, à forma como Platão apresenta a possibilidade de
desenvolvimento do pensamento do Homem através da mudança de direção que a
educação e, principalmente, a Filosofia proporcionam na busca do conhecimento e da
verdade.
340 HAYMOND, Bryce. A modern worldview from Plato’s Cave. United States: Brigham Young
University, 2005, p.3 (Tradução nossa). 341 BRASIL, Base Nacional Comum Curricular, Brasília: MEC, 2016, p.648.
104
Os conceitos sugeridos neste produto didático seguem o estabelecido nas
Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia do Parâmetro Curricular
Nacional (PCN) para o Ensino Médio, quais sejam: “ler textos filosóficos de modo
significativo. [...] Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e
mudando de posição face a argumentos mais consistentes”342.
3 Jogo
História do jogo: Após a queda de um meteoro no Planeta Terra, você é o único
responsável por levar para uma caverna segura 5 pessoas que serão responsáveis por dar
continuidade na espécie humana. Contudo, você deve escolher 5 dentre as 10 pessoas
listadas, baseado nas informações fornecidas sobre cada um.
O quadro que será utilizado pelos alunos está dividido em 4 colunas: a primeira
com a numeração de 1 a 10; a segunda coluna com a descrição da personalidade; a terceira
coluna com o espaço para que o aluno marque a sua escolha; e a quarta coluna com o
espaço para que o aluno preencha com os pontos obtidos.
A dinâmica do jogo consiste no aluno ler as descrições das personalidades e
escolher aquelas que no seu julgamento se aproximam do objetivo de preservar a
humanidade. Após esse momento o professor revela quais são as personalidades
referentes às descrições informando os valores referentes a cada um. Ganha o aluno que
tiver feito mais pontos positivos. O material didático completo encontra-se no Anexo I.
O resultado do jogo mostrará como o Homem é induzido a decisões por
simulacros da realidade e que a educação filosófica é a ferramenta através da qual o
Homem pode se libertar dos grilhões do senso comum e contemplar as verdadeiras
Formas/Ideias que, no texto platônico, estão fora da caverna. Como introdução ao tema
da Alegoria da Caverna, esse jogo busca mostrar ao aluno o que são as sombras descritas
por Platão como representantes do mundo do devir. Dessa forma, o foco avaliativo do
material didático é proporcionar uma reflexão sobre o que é a verdade e o pensamento.
342 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Anexo IV – Ciências
Humanas e suas tecnologias, Brasília: MEC/SEF, 1997, p.64.
105
Anexo I – Alegoria da Caverna: jogo didático/filosófico
Material do aluno
Contexto: Após a queda de um meteoro no Planeta Terra, você é o único responsável por
levar para uma caverna segura 5 pessoas que serão responsáveis por dar continuidade na
espécie humana. Contudo, você deve escolher 5 dentre as 10 pessoas listadas, baseado
nas informações fornecidas sobre cada um.
Descrição Assinale sua
escolha
Pontuação
obtida
1 Pensador aristocrata, nutria relações homossexuais e
mantinha uma escola para rapazes.
2 Político, estudante de artes, retirou o seu país da pobreza
devolvendo emprego e dignidade à população. Em sua
autobiografia queria tornar realidade seu sonho de ver
seu povo novamente livre.
3 Guerreiro que lutou bravamente contra um império
opressor e sanguinário. Seu objetivo era trazer paz para
seu povo.
4 Religiosa que mantinha uma fundação em péssimas
condições de higiene e contribuiu para inúmeras mortes.
Seu interesse primário era a conversão religiosa de
pessoas à beira da morte.
5 Líder político e religioso, egresso da classe média alta,
estudou economia e se tornou ativista do movimento
que pretendia tirar seu povo do domínio de um império
global.
6 Músico filho de pai alcoólatra e mãe doente, ficou surdo
com o tempo, além de ser rabugento e colérico. Teve
inúmeras crises depressivas e tentativas de suicídio.
7 Pesquisador que teve dificuldades na escola. Não se
dava bem com seus filhos e vivia sob um contrato de
relação com sua esposa, que era também sua prima.
8 Líder político que lançou os fundamentos econômicos,
tecnológicos e culturais que modernizaram seu país.
Transformou seu país de uma ultrapassada sociedade
agrária em uma grande potência mundial.
9 Imperador que se destacou principalmente na
diplomacia e no comércio. Promoveu a construção de
diversos teatros e promoveu jogos e provas atléticas.
10 Artista volúvel e inconstante com muitas obras
inacabadas. Nunca foi um exemplo de força de vontade
ou rigidez de caráter. Quando jovem foi acusado de
atentado ao pudor.
Total
106
Material do professor
Personalidade Descrição da personalidade e pontos referentes
1 Platão Filósofo e matemático grego, autor de diversos
diálogos filosóficos e fundador da primeira
instituição de educação superior do mundo
ocidental. Platão ajudou a construir os alicerces
da filosofia natural, da ciência e da filosofia
ocidental. Pontos: +50
2 Hitler Ditador do Reich Alemão, foi o principal
instigador da Segunda Guerra Mundial e foi
figura central do Holocausto. Com a sua anuência
estima-se que 11 milhões de pessoas morreram
em câmaras de gás, de fome, de doenças ou de
maus tratos em campos de concentração. Pontos:
-50
3 Átila, o huno Rei dos hunos, lançou-se furiosamente sobre a
Europa em uma campanha expansionista que lhe
renderia a alcunha de “Flagelo de Deus”. Sob sua
liderança, os hunos pilharam e extorquiram o
Império Romano do Oriente, aterrorizaram as
planícies europeias, escravizaram outros povos
bárbaros e deram sua contribuição à queda do
decadente Império Romano do Ocidente. Pontos:
-50
4 Madre Teresa de Calcutá Religiosa católica naturalizada indiana cujo
trabalho fundamental era ajudar na erradicação da
fome e amenizar o sofrimento de pobres e
doentes. Pontos: +50
5 Osama Bin Laden Líder e fundador da al-Qaeda,
organização terrorista à qual são atribuídos vários
atentados contra alvos civis e militares dos
Estados Unidos e seus aliados, dentre os quais
os ataques de 11 de setembro de 2001 que
mataram centenas de pessoas. Pontos: -50
6 Beethoven Compositor alemão considerado um dos pilares
da música ocidental pelo incontestável
desenvolvimento, tanto da linguagem como do
conteúdo musical demonstrado nas suas obras. É
um dos compositores mais respeitados e mais
influentes de todos os tempos. Pontos: +50
7 Einstein Físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da
relatividade geral, um dos pilares da física
moderna e da mecânica quântica. Considerado o
cientista mais importante do século XX. Pontos:
+50
8 Mao Tse Tung Ditador chinês que causou grave fome e danos a
cultura, sociedade e economia da China com seus
107
programas sociais e políticos. Estima-se que
diante da fome severa, dos suicídios em massa e
das perseguições políticas, entre 40 e 70 milhões
de pessoas pereceram sob seu regime. Pontos:-50
9 Nero Imperador Romano associado habitualmente à
tirania e à extravagância. É recordado por uma
série de execuções sistemáticas, incluindo a da
sua própria mãe e a do seu meio-irmão. É
atribuído a ele o grande incêndio que destruiu
Roma no ano de 64. Além disso era um
implacável perseguidor dos cristãos. Pontos: -50
10 Leonardo da Vinci É considerado um dos maiores pintores de todos
os tempos e é possivelmente a pessoa dotada de
talentos mais diversos a ter vivido. Se destacou
como cientista, matemático, engenheiro, inventor,
anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico,
poeta e músico. Além de ser conhecido como o
precursor da aviação e da balística. Pontos: +50
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