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DEVER OU DEVIR: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SHAKESPEARE E PLATÃO Gabriel Cornelio Moura Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia e Ensino, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia Orientador: Roberto Cesar Zarco Câmara Rio de Janeiro 2018

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DEVER OU DEVIR: UMA RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE SHAKESPEARE E

PLATÃO

Gabriel Cornelio Moura

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Filosofia e Ensino, do Centro

Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow

da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Filosofia

Orientador: Roberto Cesar Zarco Câmara

Rio de Janeiro

2018

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Rio de Janeiro

2018

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CEFET/RJ – Sistema de Bibliotecas / Biblioteca Campus Nova Friburgo

Elaborada pela bibliotecária Cristina Rodrigues Alves CRB7/5932

M929t Moura, Gabriel Cornelio.

Dever ou Devir: uma relação dialética entre Shakespeare e Platão /

Gabriel Cornelio Moura. — 2018.

107f.; apêndice e anexo ; enc.

Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação Tecnológica

Celso Suckow da Fonseca, 2018.

Bibliografia: f. 84-93.

Orientador: Roberto Cesar Zarco Câmara.

1. Filosofia. 2. Shakespeare. 3. Platão. 4. Devir (Filosofia). I Câmara

Roberto Cesar Zarco (orient.) II. Título.

CDD 100

CDD 658.404

CDD 658.47

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DEDICATÓRIA

“Dedicado às flores mais lindas do meu jardim:

Danielle, Júlia e Sofia”

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AGRADECIMENTOS

Em função desta pesquisa tive o prazer de compartilhar dos saberes de inúmeras

pessoas que direta e indiretamente são responsáveis por essa dissertação. Um

agradecimento especial para os professores Eduardo Gatto, Rafael Barbosa, Maurício

Castanheira, Filipe Pinto e Marcelo Senna que transformaram o meu olhar sobre a

Filosofia.

Agradeço à coordenadora do PPFEN Taís Pereira pela generosidade na prestação de

informações.

Agradeço ao meu amigo e companheiro das longas viagens, Rafael Guimarães.

Agradeço ao meu amigo e orientador Professor Roberto Zarco pelo altruísmo em

compartilhar um pouco de seu vasto conhecimento e por nortear de forma

fundamental esse trabalho.

Agradeço à minha esposa e às minhas filhas pelas horas de paciência e de

compreensão. Bem como pelo apoio incondicional no longo caminho percorrido até a

defesa desta dissertação.

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EPÍGRAFE

Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?

PLATÃO, Górgias, 492e

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RESUMO

Dever ou Devir: Uma relação dialética entre Shakespeare e Platão

Ao desvelar o mundo do devir, Platão identifica uma estrutura baseada na

mutabilidade e nos sentidos e por isso falsa. Entende, assim, que o mundo do devir é

necessário ao Homem para que este possa alcançar o mundo das Ideias/Formas. Por

outro lado, as tragédias shakespearianas tratam dos mais íntimos sentimentos humanos,

como raiva, vingança e ganância, sempre coniventes com a noção de dever, de

obrigação diante de alguma situação imanente. O Homem compreende que as suas

ações, sentimentos e paixões, em seu eterno movimento contrastante e tenso, não

possuem nenhuma Forma/Ideia imutável que o ampare em sua trajetória. É essa

percepção da vida humana, que a tragédia de Shakespeare proporciona. Dessa forma, a

dissertação analisará como a busca pelo mundo inteligível através do entendimento do

mundo do devir e a ideia de dever como um primeiro passo para o Homem conhecer-se,

guardam entre si relações dialéticas, ora paradoxais ora mais próximas do que

aparentam.

Palavras-chave: Platão; Shakespeare; Devir

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ABSTRACT

Duty or Becoming: A Dialectical Relationship between Shakespeare

and Plato

In unveiling the world of becoming, Plato identifies a structure based on

mutability and senses and therefore false. He understands, therefore, that the world of

becoming is necessary for Man to reach the world of Ideas/Forms. On the other hand,

Shakespearean tragedies deal with the most intimate human feelings, such as anger,

revenge and greed, always conniving with the notion of duty, obligation in the face of

some immanent situation. Man understands that his actions, feelings and passions, in

theirs eternal contrasting and tense movement, have no immutable Form/Idea that

supports him in his trajectory. It is this perception of human life that the tragedy of

Shakespeare provides. In this way, the dissertation will analyze how the search for the

intelligible world, through the understanding of the world of becoming and the idea of

duty as a first step for the Man to know himself, keep among themselves dialectical

relations, sometimes paradoxical now closer than they appear.

Keywords: Plato; Shakespeare; Becoming

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Sumário

1 Introdução....................................................................................................... 11

1.1 Cronologia da Platonis Opera........................................................................ 11

1.2 Diálogos platônicos........................................................................................ 18

1.2.1 Fédon.............................................................................................................. 19

1.2.2 Fedro.............................................................................................................. 20

1.2.3 República........................................................................................................ 22

1.2.4 Teeteto............................................................................................................ 25

1.2.5 Outros diálogos............................................................................................... 26

1.3 Tragédias shakespearianas............................................................................. 26

2 Da ψυχὴ à διάνοια: o devir para Platão.......................................................... 28

2.1 A Ψυχὴ de Homero a Platão........................................................................... 28

2.1.1 Homero........................................................................................................... 28

2.1.2 Thales de Mileto............................................................................................. 30

2.1.3 Pitágoras de Samos......................................................................................... 32

2.1.4 Heráclito de Éfeso.......................................................................................... 37

2.1.5 Parmênides de Eléia....................................................................................... 40

2.1.6 Empédocles de Agrigento.............................................................................. 42

2.1.7 Anaxágoras de Clazomena............................................................................. 45

2.2 A ψυχὴ em Platão........................................................................................... 47

2.2.1 A ψυχὴ imortal e tríade.................................................................................. 47

2.2.2 A διάνοια e o mundo do devir........................................................................ 53

3 A imanência do dever Shakespeariano........................................................... 58

3.1 O gênero tragédia e seu legado....................................................................... 58

3.2 As tragédias Shakespearianas e o Homem..................................................... 62

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3.2.1 A loucura e a lucidez...................................................................................... 64

3.2.2 O rosto e o retrato........................................................................................... 66

3.2.3 A mentira e a verdade..................................................................................... 69

3.3 Shakespeare e o autoconhecimento através do dever..................................... 72

4 Conclusão....................................................................................................... 74

4.1 O distanciamento entre Platão e Shakespeare................................................ 74

4.2 A aproximação entre Platão e Shakespeare.................................................... 77

4.3 Platão e Shakespeare: uma relação dialética.................................................. 81

5 Referências..................................................................................................... 84

6 Glossário......................................................................................................... 94

7 Apêndice A..................................................................................................... 97

8 Anexo I........................................................................................................... 105

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Capítulo 1

Introdução

A presente dissertação tem como objetivo apresentar uma relação dialética entre

o devir de Platão e o dever de Shakespeare. Ao desvelar o mundo do devir, Platão

identifica uma estrutura baseada na mutabilidade e nos sentidos e por isso falsa. Entende,

assim, que o mundo do devir é necessário ao Homem para que este possa alcançar o

mundo das Ideias/Formas. Por outro lado, as tragédias shakespearianas tratam dos mais

íntimos sentimentos humanos, como raiva, vingança e ganância, sempre coniventes com

a noção de dever, de obrigação diante de alguma situação imanente.

Dessa forma, a dissertação analisará como a busca pelo mundo inteligível através

do entendimento do mundo do devir e a ideia de dever como um primeiro passo para o

Homem conhecer-se, guardam entre si relações dialéticas, ora paradoxais ora mais

próximas do que aparentam.

1.1 Cronologia da Platonis Opera

A importância de Platão para a humanidade tem sido demonstrada há muito

tempo, seja pelas suas contribuições a diversos campos do conhecimento, seja pelo seu

próprio pensamento que nos foi legado através de séculos de análises e interpretações

acerca de sua vasta obra. Como acontece com todos os grandes nomes da humanidade, a

obra de Platão é alvo de intensos debates sobre as mais variadas esferas, sendo uma delas

a querela acerca da cronologia dos diálogos platônicos.

Porém, antes de adentrar na altercação acerca da cronologia, cabe aqui fazer uma

breve introdução sobre um assunto também de grande relevância para o entendimento da

obra platônica. Existe uma outra discussão sobre a forma “correta” de ler e compreender

os diálogos. Essa contenda apresenta duas interpretações: de um lado o que se chama de

visão unitarista, de outro uma visão desenvolvimentista.

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Os adeptos da primeira visão, chamados unitaristas, entendem que os diálogos de

Platão só podem ser compreendidos “dentro de uma ligação filosófica com as demais

obras do autor […] [pressupondo] desde o primeiro instante, uma unidade espiritual que

nelas se vai desentranhando gradualmente”1. Um grande expoente dessa visão é

Schleiermacher2. Para ele, os primeiros diálogos apresentam as bases das discussões dos

diálogos posteriores. Dessa forma, supõe-se a existe de uma ordenação e de uma

sequência natural e necessária entre os diálogos para revelar “que as diversas questões

apresentadas por Platão obedecem uma ordem lógica de desenvolvimento e exposição”3.

Ordem essa que avança em direção a completa apresentação de um sistema esboçado

desde o início.

A tese de Schleiermacher se tornou um marco nas interpretações da obra platônica

na antiguidade. Contudo, não se pode deixar de notar que a visão unitarista apresenta

falhas estruturais de compreensão dos diálogos platônicos. A primeira delas é ver o

diálogo como algo isolado de uma conjuntura de produção, ou seja, ver o autor Platão

distante ou até mesmo estanque do cidadão ateniense que se relacionava com filósofos e

políticos e tinha grande capacidade de reflexão. Outra crítica é a suposição de que Platão

manteve uma linha de pensamento durante toda a sua vida, e de que seus primeiros

escritos já continham um sistema filosófico fechado, esquecendo que Platão “não

raramente parece se contradizer”4. Há ainda a falta de referência a eventos históricos e

políticos que ajudaram, de sobremaneira, Platão a escrever seus diálogos.

Assim, a visão unitarista se apresenta como simples ponto de início para

compreender uma visão desenvolvimentista. Essa interpretação considera que Platão

passou por diversas situações, internas e externas, que o ajudaram a moldar sua filosofia

e que demonstram o desenvolvimento do pensamento do autor. Seguindo essa linha de

interpretação, a organização dos diálogos serve para “identificar o posicionamento final

de Platão acerca destes temas e os momentos em que uma tese é abandonada e substituída

1 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 6ªed. São Paulo: Editora WMF Martins

Fontes, 2013, p.602. 2 Principalmente sua obra: Introduction to the Dialogues of Plato. Translated: William Dobson. Cambridge,

The University Press, 1836. 3 MATOSO, Renato. As origens do paradigma desenvolvimentista de interpretação dos diálogos de Platão.

Archai, Brasília: Universidade de Brasília, nº18, set-dez 2016, p.82. 4 ROWE, Christopher. Interpretando Platão. In: BENSON, Hugh (org.). Platão. Tradução: Vera Porto

Carrero, Porto Alegre: Artmed, 2011, p.37.

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por outra”5. Essa organização necessária para a compreensão da obra de Platão é

conseguida através da data de composição dos diálogos, legando à cronologia um papel

fundamental para o entendimento de todo o Corpus Platonicus.

Contudo, a visão desenvolvimentista também suscita críticas. Em primeiro lugar,

parece ser improvável que Platão inicie o abandono dos pressupostos socráticos nos

diálogos da maturidade, mas continue a utilizar Sócrates como personagem principal;

uma segunda crítica se deve justamente à ordenação dos diálogos em três grupos

herméticos, estipulando uma importância desmesurada à cronologia.

Muitos estudiosos já se debruçaram sobre o tema, e continuam fazendo-o6. Grosso

modo, uma visão mais tradicional7, para não dizer paradigmática, sobre a cronologia das

obras de Platão tende a dividir os trabalhos em 3 grandes grupos: diálogos socráticos ou

da juventude, diálogos da maturidade e diálogos da senectude ou da velhice. Essa divisão

apresenta os diálogos através de uma suposta chave interpretativa chamada Sócrates.

Assim, os diálogos do grupo “da juventude” seriam as obras feitas sobre a extrema

influência socrática, onde Platão apenas dava vazão aos ensinamentos do mestre. Os

diálogos “da maturidade” apresentam um Platão mais autoral, mais dono de sua própria

filosofia, porém ainda mantendo pequenos vínculos com o pensamento socrático;

segundo especialistas é nessa fase da vida que Platão cria os principais pressupostos de

seu pensamento metafísico. E nos escritos “da velhice” Sócrates é apenas um figurante.

Platão com controle sobre o que escreve inicia um processo de contestar sua própria

filosofia. Vale ressaltar que há problemas sérios nessa ordenação dos diálogos, pois “a

divisão em grupos é ela própria incerta e sujeita a controvérsias”8.

Contudo, para além dessa visão esquemática fechada, outras formas de definir a

cronologia do Corpus Platonicus têm sido consideradas. Entre elas, as que mais se

destacam, são: histórico-evolutiva; crítica literária; considerações filosóficas; eventos

históricos e análise estilométrica. Apesar disso, ainda existem sérias divergências entre

os estudiosos sobre a cronologia correta. Apresentaremos abaixo, em linhas gerais, as

principais discussões que pretendem atingir uma “cronologia platônica perfeita”.

5 MATOSO. op. cit., p.80. 6 Cf. Field (1967), Stefanini (1932/35), Ross (1951), Crombie (1962/63), Guthrie (1975), Vlastos (1991),

Vlastos (1994), Kahn (1996), Thesleff (1982), Brandwood (1976), Brandwood (1990) e Ledger (1989). 7 Visão estabelecida pelos estudiosos do século XIX que praticamente se tornou uma unanimidade no século

XX. 8 ROWE. op. cit., p.37.

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Karl Friedrich Hermann9 iniciou os estudos da corrente histórico-evolutiva. Nesta

linha interpretativa, os acontecimentos da vida de Platão tiveram grande influência sobre

seus escritos. Assim, os primeiros diálogos teriam sido escritos com Sócrates ainda vivo.

Por exemplo, o diálogo Protágoras “tem um tom tão otimista e alegre que é difícil

acreditar que ele pode ter sido composto depois de uma catástrofe como a morte de

Sócrates foi para Platão”10. Após o julgamento e a condenação de Sócrates, é sabido

através de outros autores que Platão e alguns discípulos de Sócrates buscaram refúgio em

Mégara. Hermann reconhece, então, traços de teorias megárias e eleatas no grupo de

diálogos que formam o grupo intermediário, como Teeteto, Crátilo e Parmênides. E para

o último período de vida de Platão, Hermann entende que o grupo formado por República,

Timeu e Leis expõe “um conjunto de teses que formam um sistema filosófico mais

completo e compreensivo”11.

Porém, a interpretação histórico-evolutiva considera que Platão deliberadamente

modificou sua forma de escrever após incidentes ocorridos em sua vida. O exame mais

detalhado dessa corrente de interpretação revela outro erro primordial: as virtudes tratadas

nos diálogos, conhecidos como “socráticos”, ou seja, do período da juventude platônica,

são consideradas como investigações éticas e colocam esses primeiros diálogos em uma

fase puramente ética do pensamento de Platão. “A valentia, a prudência e a piedade são

as virtudes examinadas nos diálogos menores e formam o objeto de cada uma dessas

conversações”12, contudo, ao analisarmos o diálogo Protágoras e o Livro I da República,

vemos claramente que o objetivo de Platão era traçar um paralelo entre cada virtude e a

arte política. Dessa forma, reconhece-se que “tudo o que desde o primeiro instante ele

tem em mente não é outra coisa senão o Estado”13.

As considerações de caráter literário dos trabalhos platônicos são outra forma de

tentar apresentar uma cronologia adequada. Porém, esta se mostra muito superficial,

tratando os diálogos como textos fechados em si, sem relação com as demais obras. A

criação de epítetos como “maturidade de estilo” e “poder artístico” não fornecem uma

9 HERMANN, K. F. Geschichte und System der Platonischen Philosophie. Vol.1. Heidelberg: C.F. Winter,

1839. 10 LONBORG, Sven. The Chronology of the Platonic Dialogues. Theoria, Sweden: Wiley-Blackwell, vol.5,

pp.141-160, 1939, p.146. (Tradução nossa). 11 MATOSO. op. cit., p.87. 12 JAEGER. op. cit., p.603. 13 Ibidem, p.605.

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base muito sólida e confiável para distinções cronológicas, como afirma Guthrie: “a única

característica literária que pode ser atribuída a Platão sem qualificação é a

versatilidade”14.

Considerar os temas filosóficos para definir uma cronologia correta é o que

pretende essa corrente de interpretação. Os argumentos de Charles Kahn15 nessa esfera

apresentam a circularidade a que esse tipo de método de pesquisa é propenso. As

considerações sobre sequência filosófica dos diálogos “não podem ser usadas para

estabelecer uma cronologia correta se essas afirmações dependerem de pressupostos

cronológicos”16.

Já a utilização de eventos históricos encontra alguns obstáculos intransponíveis,

como o fato de que ao citar um evento histórico em um diálogo, Platão pode estar distante

do evento e apenas citá-lo para compor o texto, fazendo uma referência a um evento do

passado, o que não implica que tal evento seja de sua geração. De outra forma, a

proximidade temporal, caso exista, com o evento histórico mostra apenas quando Platão

finalizou o texto. Sobre esse aspecto é importante ressaltar que alguns autores acreditam

que Platão não seguia uma ordem cronológica para escrever alguns diálogos. Por

exemplo: no Fedro, as formas de persuasão e sedução “derivam dos anos 380 [a.C.] [...]

mas a crítica da escrita em prosa na última parte, e várias referências ao passar para a

dialética, as formas, a cosmologia e a psicologia sugerem os últimos anos dos 370

[a.C.]”17. Assim, Platão pode citar eventos próximos a ele ocorridos em duas décadas, o

que abre a possibilidade para importantes divergências cronológicas.

Dentre os métodos mais utilizados atualmente a estilometria se apresenta como

um campo bem vasto de estudos. A estilometria pretende, através da ocorrência de certos

tipos de palavras, identificar estilos de escrita, criando grupos situados cronologicamente.

Por exemplo, Constantin Ritter

mostrou por meio de estatísticas, que certas palavras e construções

comuns ao primeiro período, apareciam cada vez mais raramente no

14 GUTHRIE. W. K. C. A History of Greek Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1975

APUD HOWLAND, Jacob. Re-Reading Plato: The Problem of Platonic Chronology. Phoenix, Toronto:

Trinity College, vol.45, nº3, pp.189-214, 1991, p.205. (Tradução nossa). 15 KAHN, Charles. Plato and the Socratic Dialogues: The Philosophical Use of a Literary Form.

Cambridge: Cambridge University Press, 1996. 16 HOWLAND. op. cit., p.205. 17 THESLEFF, Holger. Platonic Chronology. Phronesis, Netherlands: Brill, vol.34, nº1, 1989, p.19.

(Tradução nossa).

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segundo e desapareciam no terceiro, e como, por outro lado, palavras e

construções que não se encontraram no primeiro período, apareceram

de tempos em tempos no segundo e completamente no terceiro18.

Nesse sentido, Dittemberger19, ao analisar a expressão τί μήν20, nos fragmentos de

Epicarmo e Sophron, concluiu que essa expressão era um coloquialismo de Siracusa.

Portanto, a aparição dessa expressão nos diálogos comprova que estes só foram escritos

após a primeira viagem de Platão à Siracusa, por volta de 388 a.C.. Assim, supostamente,

diálogos como República, Fedro, Leis, Teeteto, Parmênides e Sofista já apresentariam

uma datação aproximada. Nesse caso, críticos apontam para o fato de que Banquete e

Timeu são comprovadamente dessa mesma época e não possuem a expressão τί μήν,

ratificando as falhas nesse aspecto de interpretação.

Os estudiosos que utilizaram a estilometria para consolidar uma cronologia21

apresentam um consenso com relação aos últimos diálogos, contudo, a maneira que se

aproximam dos supostos diálogos aporéticos, ou socráticos, essa concordância

desaparece e dá lugar a uma verdadeira colcha de retalhos de interpretações.

Considerando essas disparidades, é aceito atualmente que “a relação estilométrica entre

os dois primeiros grupos de diálogos nunca ficou estabelecida de maneira precisa, sendo

esta a principal limitação do método estilométrico”22.

O método estilométrico repousa sobre uma suposta evolução de estilo. E um

exemplo dessa suposta evolução está no uso do hiato23. Assim, Platão utiliza os hiatos

nos diálogos socráticos, como no Fedro, mas evita em obras notadamente da velhice, ou

seja, há uma evolução na escrita de Platão que sugere uma medida temporal para essa

evolução. Nesse sentido, Janell afirma que Platão estava preocupado com o uso do hiato

apenas nos seus últimos seis diálogos (Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis) nos

18 RITTER, Constantin. The essence of Plato's philosophy. New York: Russell & Russell, 1968 APUD

LONBORG. op. cit., pp.142-143. 19 DITTEMBERGER, W. Spachliche Kriterien fur die Chronoloyie der platonischen Dialoge. Hermes,

Stuttgart: Franz Steiner Verlag, nº15, pp. 321‑345, 1881. 20 Traduzida por Sim, porque não!, ou, Sim, é claro! 21 Blass (1874), Brandwood (1990), Campbell (1867), Dittemberger (1881), Guthrie (1975), Lutoslawski

(1897), Ritter (1910). 22 MATOSO. op. cit., p.99. 23 O hiato consiste na sucessão imediata de duas vogais em palavras separadas. Para evitar este tipo de

sucessão, que constantemente surge na formação e inflexão das palavras, diversos recursos podem ser

empregados: a crase, a elisão e a aphaeresis, além da escolha vocabular. Cf. SMYTH, H. W. Greek

Grammar. Cambridge: Harvard University Press, 1920, p.18.

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quais, “[de acordo com] seu novo estilo de escrita isocrateano ele evitou cuidadosamente

um certo hiato, ou seja, aqueles definidos como ‘censuráveis’”24.

Dessa forma, para tirar conclusões sobre a cronologia dos diálogos seguindo a

estilometria, “o investigador […] deve subscrever a hipótese geral da evolução estilística

e é obrigado, além disso, a pressupor a existência de uma regra ou princípio específico

suficiente para explicar essas diferenças”25. Contudo, aceitar esses pressupostos significa

desconsiderar que as mudanças estilísticas podem fazer parte de requisitos particulares

do contexto onde estão inseridas. Assim, o uso da estilometria implica a subordinação da

capacidade de entender o caráter e a complexidade de cada diálogo como uma conversa

viva e incompleta, que se integraliza nas múltiplas conexões entre essas conversas e uma

τέχνη26 calculada, semelhante à διαιρεσις27.

Ademais a todos esses métodos, outros autores ainda supõem outras

possibilidades relevantes para interpretar uma suposta cronologia das obras platônicas.

Um exemplo ilustrativo pode ser visto em Holger Thesleff. Ao considerar que a sociedade

grega antiga não tinha a escrita como uma de suas principais preocupações e ocupações,

Thesleff defende que Platão e seu círculo interno de amigos e alunos “sempre

consideraram as discussões orais como uma parte mais essencial do filosofar do que a

produção de textos escritos”28. Assim, muitos diálogos escritos no tempo da Academia

são, na verdade, transcrições feitas por amigos e alunos próximos das aulas ministradas

por Platão. Outra tese do autor diz que esses trabalhos que procediam da Academia tinham

dois públicos bem definidos, e que eles não devem

ser lidos como tratados filosóficos explícitos expondo a posição

filosófica de Platão no momento da escrita, mas, na maioria dos casos,

como dramas de prosa com uma função dupla: principalmente, como

memorandos e exercícios intelectuais para o iniciado [tratado

esotérico]; e, secundariamente, como introdução de tópicos acadêmicos

24 JANELL, Gualtherus; JANELL, Walther. Quaestiones Platonicae. Berlin: Nobel Press, 1901, p.272.

(Tradução nossa). 25 HOWLAND. op. cit., p.208. 26 Τέχνη está referenciando a palavra técnica como um conjunto de regras, sistema ou método de fazer algo.

Cf. LIDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Disponível em:

[http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0057]. 27 Διαιρεσις como uma forma de classificação utilizada na lógica antiga (especialmente platônica) que

serve para sistematizar conceitos e chegar a definições. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 28 THESLEFF. op. cit., 1989, p.23.

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e modos de pensamento para os não iniciados [protrépticos

exotéricos]29.

Dessa forma, diante da miríade de possíveis interpretações acerca da cronologia

platônica, e de suas recorrentes refutações e críticas, entendemos que a organização

cronológica dos diálogos platônicos é irrelevante para buscar a compreensão do

pensamento e da filosofia de Platão. Estes se encontram acima de qualquer debate sobre

cronologia para fazer sentido e ter relevância. Defendemos nesta dissertação o ponto de

vista de Miller30 e Griswold31, que “contradizem claramente a visão padrão”32, ao não

fazer grandes distinções cronológicas entre os diálogos da juventude, da maturidade e da

velhice. Tornando a Platonis Opera mais fluida e aberta. Concluímos, junto com

Howland, que “enquanto insistimos em trazer distinções cronológicas para o estudo dos

diálogos, os textos que confrontamos continuarão a refletir os compromissos de esquemas

interpretativos extrínsecos”33.

1.2 Diálogos platônicos

A dissertação que ora se apresenta tem como um de seus objetivos apresentar

discussões presentes em alguns dos diálogos de Platão sobre corpo e alma e analisar como

o pensamento de Platão sobre essa dualidade o levou a conceber sua filosofia das

Ideias/Formas. Além disso, as concepções platônicas sobre a alma serão extrapoladas

para constatar que o mundo sensível, que Platão chama de mundo do devir, é

extremamente importante para que o Homem tenha soslaios do mundo inteligível das

Ideias/Formas. Para tanto, alguns diálogos foram selecionados do Corpus Platonicus por

conterem discussões filosóficas sobre temas caros ao presente trabalho, como a Teoria

das Ideias/Formas e a compreensão da alma imortal e tripartite. Estes diálogos são

29 Ibidem. 30 MILLER, Mitchell. The Philosopher in Plato's Statesman. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers,

1980. 31 GRISWOLD, Charles. Philosophy, Education, and Courage in Plato's Laches. Interpretation, Waco:

Baylor University, vol.14, nº2-3, pp.177-193, 1986. 32 HOWLAND. op. cit., p.213. 33 Ibidem, p.214.

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considerados como as obras mais importantes e “de mais perfeito acabamento literário”34

de Platão, principalmente porque são obras de um período de crescimento da Academia

e “do fortalecimento de seu prestígio no vasto âmbito da cultura grega”35. Ademais, nestes

diálogos Platão desenvolve ideias próprias, extrapolando muito dos princípios formulados

por Sócrates. Para tanto, faz-se necessário uma breve apresentação dos diálogos que serão

largamente utilizados. São eles: Fédon, Fedro, República e Teeteto.

1.2.1 Fédon

O diálogo Fédon tem a pretensão de elevar a memória de Sócrates e mostrar este

em meio a seus concidadãos. Platão tenta fazer, no Fédon, uma defesa de Sócrates sub-

repticiamente, e apresenta um filósofo que instaura a coragem e a determinação diante de

seus momentos finais “proclamando num consenso impressionante a superioridade do

filósofo sobre seus contemporâneos”36. O diálogo vai muito além da simples defesa da

imortalidade da alma, assim Platão evita apresentar argumentos que estabeleçam uma

doutrina fechada sobe o assunto. Consideramos que nada se afasta mais do pensamento

socrático do que supor que Platão teria usado argumentos de total segurança para

comprovar a imortalidade da alma. Na verdade, Sócrates deixa em aberto tais

pensamentos ao explicitar que havia uma vida melhor à alma após esta ser libertada da

prisão do corpo, “condição ideal para atingir o verdadeiro conhecimento da ideia do Bem

em si mesmo, sem as indefectíveis turvações condicionadas pelos sentidos”37.

Platão não está presente nos últimos momentos de Sócrates, mas pretende

apresentar fielmente o relato de Fédon, dando vazão, talvez, às suas próprias intenções e

pensamentos. Também não diz em que local aconteceu o encontro entre Fédon e

Equécrates, supondo qualquer lugar, tanto a ágora ateniense ou um de seus muitos

ginásios quanto à beira de um riacho fora dos muros da cidade, tal como no Fedro. O

relato é solene, mas ao mesmo tempo natural, fruto da inventividade e astúcia literária de

34 NUNES, Carlos Alberto. Marginalia Platônica. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973, p.35. 35 Ibidem, p.241. 36 Ibidem, p.240. 37 Ibidem, p.243.

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Platão. Sócrates busca a razão, insiste na perene busca da verdade, até o fim. O diálogo

Fédon é “um relato emocionante do último dia de Sócrates, de seus argumentos sobre a

imortalidade da alma e da devastação de seus amigos no momento de sua morte”38.

É um diálogo de extrema importância dentro do Corpus Platonicus por se

vislumbrar nele toda uma importante discussão sobre imortalidade da alma e

reminiscência, que liga a alma às Ideias/Formas justificando o conhecimento destas pelo

homem; teoria dos contrários e a própria teoria das Ideias/Formas. Platão coloca na boca

do personagem Sócrates uma de suas concepções mais importantes: “são indiferentes

nossos atos: [...] o que importa em nossa conduta é a intenção com que fazemos alguma

coisa”39.

1.2.2 Fedro

O diálogo Fedro é considerado, por alguns estudiosos40, como a primeira obra de

Platão. Por outro lado, o momento de sua escrita está envolto em algumas querelas41.

Acima das discussões cronológicas com base em estilos literários, talvez um dos motivos

para esse intenso debate seja a grande beleza do diálogo. Esse encanto faz com que

aqueles que pretendam começar os estudos sobre Platão, comecem pelo mais belo de

todos. Ademais, neste diálogo apresenta-se uma súmula de importantes pontos do

pensamento filosófico de Platão, como a tripartição e a “imortalidade da alma,

38 MCCABE, Mary Margareth. A forma e os diálogos platônicos In: BENSON. op. cit., p.76. 39 NUNES, Carlos Alberto. Introdução. In: PLATÃO. Diálogos: Protágoras, Górgias, Banquete, Fédon.

Vol.III-IV. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 1980, p.22. 40 Talvez o mais importante autor a analisar o Fedro por esse viés seja Schleiermacher. Para ele o Fedro é

o ponto de partida para compreender os objetivos finais visados pela obra de Platão como escritor e pelos

seus métodos educativos. Cf. SCHLEIERMACHER, Platos Stellung in Aufbau der Griechischen Bildung.

Berlin: de Gruyter, 1928, p.21. 41 Apesar de não defendermos qualquer viés interpretativo baseado na cronologia, o principal debate sobre

a posição do diálogo dentro da Obra Platônica está na perspectiva da análise estilométrica. Alguns aspectos

de sedução e persuasão envolvidos nas falas de Sócrates, bem como o jogo com a retórica derivam da

década de 380 a.C.; porém a segunda parte do diálogo escrita em prosa e várias referências à dialética,

forma e cosmologia sugerem que esta foi escrita na década de 370 a.C. Cf. THESLEFF. op. cit., 1982.

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reminiscência e a apreciação do valor de Eros e da poesia no comportamento humano”42,

além de versar sobre a preexistência e a palingenesia das almas.

É um diálogo único, pois se passa fora dos muros de Atenas. Fedro e Sócrates

buscam um lugar aprazível para conversar sobre um discurso de Lísias sobre Eros. Platão

faz com que Sócrates se encontre com Fedro, tido como padrão de beleza helênica, “numa

radiosa tarde de verão”43, junto à relva e a um aprazível riacho. Criando um cenário

idílico, propício para receber elevações à Eros, Fedro é, sem dúvida, “o mais fascinante

diálogo de Platão, num verdadeiro desafio à argúcia dos comentadores de todos os

tempos”44. Mesmo podendo ser dividido em duas partes estanques, a primeira com as

exortações sobre Eros “que se erguem a um tom ditirâmbico”45 e a segunda com um

debate sobre a verdadeira eloquência na escrita, Platão escreve sobre a sua postura com a

retórica o tempo todo.

Tamanha disparidade entre o Sócrates citadino e o Sócrates do Fedro, supõe que

Platão tenha outras intenções com o diálogo, além dos objetivos paidéticos. O pensador

grego, mais que apresentar argumentos para comprovar a imortalidade da alma,

surpreende ao apresentar uma supremacia da alma sobre o corpo sustentada por sólidas

formulações filosóficas, como a reminiscência da alma, que se apresenta como uma

consequência da visão direta das Ideias/Formas. Inclusive, afirma que apenas poetas e

filósofos “são os seres de alma mais bem aquinhoada quanto à capacidade de captar o

reflexo das imagens celestes que ela contemplou noutra existência no reino das ideias”46.

Provavelmente alguns trechos do diálogo foram escritos após Fédon e República, pois

também aqui a Teoria das Ideias/Formas está em estado acabado, atingindo a sua melhor

expressão formal. O diálogo pode parecer uma forma de exaltação ao Amor que se

alimenta na contemplação da ideia de Beleza, mas também é “um livro de combate, com

endereço declarado e o fito de desmoralizar as composições dos retóricos do seu tempo e

de apontar o rumo certo para o bom aprendizado da arte de escrever”47.

42 NUNES, Carlos Alberto. Introdução, In: PLATÃO. Diálogos: Fedro, Cartas, Primeiro Alcibíades. Vol.5.

Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 1975, p.8. 43 Esse é o feliz título de um capítulo: Ein Glücklicher Sommertag, sobre o diálogo Fedro, da grande obra

de Wilamowitz, Platon. Vol.1, Berlim: Weidmannsche Buchhandlung, 1920. 44 NUNES. op. cit., 1975, p.15. 45 JAEGER. op. cit., p.1271. 46 NUNES. op. cit., 1975, p.23. 47 Ibidem, p.21.

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1.2.3 República

O problema do Estado é o principal problema que orienta o pensamento de Platão

e por isso grande parte dos seus escritos anteriores convergem para a República, fazendo

deste diálogo sua obra central. Uma das acepções é que existe um claro desenvolvimento

da teoria moral de Platão, que rejeita certas doutrinas socráticas dos diálogos da juventude

e das obras da maturidade, culminando na República48.

Importante frisar que as diversas tentativas de apreciar a República não levavam

em consideração que o objetivo precípuo de Platão era “pôr a descoberto o próprio

processo do conhecimento”49. Pois, no pensamento platônico, a construção do

conhecimento constitui “uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade: a

episteme é fruto de inteligência e de amor”50.

O dinamismo de Platão está em demonstrar, através da República, que o Estado

versa sobre a alma do Homem, por isso a importância atribuída ao Homem na construção

do melhor Estado. É importante sopesar que o conceito de justiça, e a sua função dentro

no Estado perfeito,

é uma imagem reflexa da teoria de Platão sobre a alma e as suas partes,

a qual se projeta, ampliada, na concepção que ele tem do Estado e das

suas classes. Platão faz o Estado surgir diante dos nossos olhos a partir

dos elementos mais simples que o integram51.

Sem depreciar os 10 livros que compõem essa obra fascinante, e peça chave para

o entendimento do pensamento platônico, a presente dissertação, além de utilizar os

Livros II, III,IV, V, VI, VIII, IX e X, esmiuçará o Livro VII, por se tratar de um tema voltado

para a importância das “ciências” abstratas, e por conter em sua Alegoria da Caverna um

arcabouço importante para o entendimento didático dos temas relevantes para este

trabalho.

48 Cf. IRWIN, Terence. Plato's Moral Theory: The Early and Middle Dialogues. Oxford, 1977 APUD

HOWLAND. op. cit., p.212. 49 JAEGER. op. cit., p.749. 50 PESSANHA, José Américo Motta. Introdução, In: PLATÃO. Diálogos. Coleção: Os Pensadores. Seleção

de textos: José Américo Motta Pessanha. Tradução e notas: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João

Cruz Costa, 5ªed., São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.30. 51 JAEGER. op. cit., p.769.

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A Alegoria da Caverna dramatiza o desenvolvimento do conhecimento. Um

prisioneiro das sombras que vai aos poucos tendo contato com reflexos luminosos até

desenvolver e aperfeiçoar o olhar para a luz, num movimento dialético entre escuridão e

claridade, mas que extrapassa esse entendimento e que manifesta uma dialética também

entre corpo e alma. “A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o

símbolo do caminho da alma em direção ao mundo inteligível”52, e a contemplação da

Ideia do Bem é o último estágio da região do conhecimento, é a imagem do Sol para

Platão.

Diversas são as possibilidades de interpretação53 dessa alegoria54, mas a

República, como um todo, tem um caráter político, e sobre esse viés também pode ser

interpretada:

Aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da realidade é o que

pode e deve governar para libertar os outros prisioneiros das sombras:

é o filósofo-político, aquele que faz de sua sabedoria um instrumento

de libertação de consciências e de justiça social, aquele que faz da

procura da verdade uma arte de desprestidigitação, um

desilusionismo55.

Uma interpretação nossa da Alegoria da Caverna, e que balizará este estudo, diz

respeito à ascese da alma. Importante ressaltar que a alma será entendida em seu estado

tríade, onde o aspecto racional terá prevalência. Assim, representada pelo prisioneiro da

caverna, a alma está presa ao corpo. E assim como o ser humano está voltado para o fundo

da caverna e tem apenas a experiência daquilo que é falso ou enganoso, pois não passa de

um simulacro da realidade, a alma também se prende ao corpo e fica intensamente sob os

augúrios dos sentidos, verdadeiras correntes para a alma.

52 Ibidem, p.885. 53 Uma possiblidade de interpretação da Alegoria da Caverna é feita por Martin Heidegger. Para o pensador

alemão a gradação pela qual o homem passa de dentro da caverna para a contemplação das coisas em si

fora da prisão cavernosa é o caminho da gradação que a Verdade passa para se apresentar em seu caráter

desvelado. Para Heidegger, as transições entre os diversos cenários da Alegoria da Caverna são o não-dito

de Platão, onde este não-dito é todo o arcabouço do pensamento platônico sobre a Verdade. Cf.

HEIDEGGER, Martin. Teoria platônica da verdade. In: Marcas do Caminho. Tradução: Enio Paulo

Giachini e Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2008. 54Outra possibilidade de interpretação interessante está ligada diretamente ao Banquete. O desenvolvimento

do homem durante a Alegoria da Caverna assume uma concepção de ascese erótica. Eros desempenha um

papel de intermediário em relação aos sentimentos e às emoções. Ele comanda a subida, por via da atração

que a beleza dos corpos exerce sobre os sentidos, e remete, afinal, à contemplação do Belo em si. Cf.

PLATÃO. op. cit., 1991, p.29. 55 Ibidem.

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Contudo, ao desprender-se da prisão, que o corpo impõe, através da educação

filosófica, a alma lentamente volta a atentar para os reflexos das coisas como elas

realmente são ainda encarnada. Então, em um longo esforço de desprendimento dos

sentidos, a alma volta a contemplar o mundo das Ideias/Formas. Neste reino invisível e

eterno, a alma alcança o conhecimento puro, que é a Ideia do Bem. Sobrepujando a

simples contemplação, a alma conclui que o Bem é a causa de tudo o que existe de belo

e justo no mundo, que é o conhecimento necessário a todo aquele que deseja viver com

retidão e agir racionalmente tanto na vida privada quanto na vida pública.

À Filosofia cabe ser exatamente o impulsor para que a alma, educada

filosoficamente, ao se libertar do corpo possa contemplar o Bem, incidindo sobre o

verdadeiro filósofo a correção e a consciência do melhor caminho para alcançar, ainda

em vida, a lisura que permitirá a consecução desse objetivo de passar do temporal ao

eterno.

Porém, antes de delimitar sua viagem ao mundo do inteligível apenas ao terreno

das Ideias/Formas, a alma adquiri o poder de retornar novamente à prisão do corpo.

Porém, agora, com os conhecimentos de tal mundo metafísico, a alma tenciona contribuir

para o desenvolvimento do corpo. Dessa forma, a teoria da reminiscência platônica é

justamente o conhecimento que a alma carrega consigo do mundo das Ideias/Formas e

que pode ser acessado pelo homem, a partir do momento em que este se coloca na posição

de buscar esse conhecimento constituído em si próprio. Sócrates, no diálogo Mênon,

explicita essa capacidade de relembrar os conhecimentos obtidos em outros momentos da

alma, ao dizer que “todos temos a verdade dentro de nós mesmos e que esta verdade pode

vir à luz por meio de seu questionamento crítico”56.

A utilização de uma alegoria para demonstrar, ou ainda tornar inteligível, o

pensamento, mostra que Platão busca outras ferramentas que não somente a retórica ou a

dialética, para se fazer entender. Com uma grande expertise, Platão alcança o seu objetivo

com o uso do sentido figurado: consegue fazer com que seu pensamento seja apreendido,

e possibilita que diversas interpretações se coadunem com seu pensamento. Novamente,

aqui, sua capacidade literária se alia à sua filosofia na consecução de seus objetivos.

56 BENSON. op. cit., p.66.

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1.2.4 Teeteto

Este diálogo aparentemente se posta à parte, se considerado com os outros

trabalhos referenciados acima. É uma obra considerada aporética, onde a questão

principal que motiva o diálogo é uma pergunta simples: o que é o conhecimento? Mas

que ao final, após visitar inúmeras respostas de Teeteto, até mesmo Sócrates não sabe

responder a questão. Sem dúvida “é um dos mais instigantes diálogos de Platão. [..] segue

uma lógica férrea e visa um público arguto nos problemas filosóficos”57.

No Teeteto, Platão apresenta o método socrático em estado cristalino. Coloca no

personagem Sócrates a coordenação da técnica da maiêutica, onde supõe que o

conhecimento já está intrínseco ao Homem e através do método dialético de discursos, a

verdade deve ser alcançada, e não apenas o melhor argumento. Para Platão o

conhecimento imanente do Homem, que será acessado através da rememoração, foi

adquirido quando a alma estava no mundo das Formas/Ideias. Assim, a teoria da

reminiscência está, mesmo que de forma velada, presente neste colóquio.

Outro aspecto importante presente no Teeteto é a discussão entre o que seja

opinião e conhecimento. Platão inicialmente refuta a possibilidade de opinião acerca

daquilo que não se conhece ou percebe, e afirma que por mais que a opinião seja falsa,

ela necessariamente está baseada naquilo que o Homem sabe ou percebe. O filósofo

mostra ainda que a verdade e o erro das opiniões estão diretamente ligados ao movimento

incessante que os objetos que devém apresentam. Dessa forma, Platão busca

“esclarecimentos e distinções, começando por examinar e criticar a assimilação entre

sensação e aparência, a equivalência entre sensação e opinião, e a identificação entre

sensação e conhecimento”58.

Contudo, o mais importante aspecto presente no diálogo é a exposição de uma

doutrina “secreta” que Platão afirma estar de acordo com Heráclito e Empédocles.

Segundo essa doutrina, nenhuma coisa é una em si mesma e quando aparece de modo

57 ZENI, Eleandro Luis. Conhecimento e Linguagem: um estudo do Teeteto de Platão. Santa Maria:

Universidade Federal de Santa Maria, 2012. 92 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de

Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2012, p.11. 58 FLAKSMAN, Ana. Ser, aparecer e devir: Heráclito no Teeteto de Platão. Anais De Filosofia Clássica,

Rio de Janeiro: Unirio, vol.8, nº16, 2014, p.13.

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determinado também aparece de modo oposto, o que decorre que nada pode ser

determinado com justeza pelo nome ou outra denominação. Assim, Platão postula “o

movimento e a mudança das coisas ao longo do tempo como a origem de tudo o que

erroneamente supomos ser, mas que na verdade não é, e sim devém”59. E estando dentro

desse estado de constante mudança, que o mundo do devir proporciona, os objetos

sensíveis não mostram a verdade e o conhecimento é impossível.

1.2.5 Outros diálogos

Além dos diálogos citados, outros colóquios serão visitados por conterem trechos

importantes para o debate que esta dissertação pretende suscitar. Pensamentos sobre a

relação corpo x alma; sobre a importância da reminiscência como comprovação da

transmigração da alma e a apresentação da Ideia/Forma da Beleza como o aspecto do

mundo inteligível visível com a alma encarnada, são algumas das questões levantadas e

logradas neste trabalho. Os diálogos são: Cármides, Górgias, Crátilo, Sofista, Mênon,

Timeu, Banquete, Íon, Apologia, Leis e Filebo.

1.3 Tragédias Shakespearianas

Além disso, buscar-se-á uma analogia entre Filosofia e Arte ao apresentar as

referentes questões filosóficas dentro de uma perspectiva literária especificamente nas

obras trágicas de William Shakespeare. Sendo assim, outro objetivo que se coloca é

apresentar uma relação dialética entre o pensamento platônico sobre o mundo do devir e

a compreensão e entendimento shakespeariano sobre os sentimentos humanos, ou seja

sobre o dever do Homem diante de situações imanentes.

Dentro da antologia de William Shakespeare podemos identificar 3 grandes eixos

temáticos, se considerarmos apenas as peças. Existem as peças históricas, tanto referentes

59 Ibidem, p.18.

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à história da Inglaterra quanto à de Roma; as comédias; e as tragédias. Para o que esta

dissertação propõe, uma análise sobre como Shakespeare tratou os sentimentos mais

próprios do ser humano, as quatro grandes tragédias, Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth,

mostram que Shakespeare ultrapassa a estrutura de uma peça trágica e, em última análise,

apresentam ao Homem novas perspectivas sobre os seus íntimos sentimentos.

Em Macbeth Shakespeare apresenta a ganância pelo poder; em Rei Lear, a

loucura; em Otelo, a inveja; e em Hamlet, a vingança. Todos esses sentimentos revelam

os aspectos mais íntimos do Homem sem que este se encerre naqueles. Shakespeare alça

tais sentimentos em bastiões, de onde os Homens apenas podem contemplar sua própria

natureza. São sentimentos imanentes, que fazem o Homem ser o que é: imperfeito. Ao

desvestir o Homem dessa forma, Shakespeare expõe o que de mais próprio se insere no

gênero humano. Desenvolve, assim, o pensamento de que o autoconhecimento do

Homem passa invariavelmente pela análise profunda de suas particularidades.

As quatro tragédias citadas mostrarão como podemos pensar a descoberta e a

consciência de viver no mundo do devir de Platão através da chave interpretativa

shakespeariana de autoconhecimento do Homem através da investigação de seus

sentimentos imanentes.

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Capítulo 2

Da ψυχὴ à διάνοια: o devir para Platão

2.1 A Ψυχὴ de Homero a Platão

Antes de dissertar sobre as particularidades que a ψυχὴ adquire com os trabalhos

de Platão, cabe ressaltar uma certa trajetória que o termo ψυχὴ passou para chegar ao

século IV a.C. com o significado que entendemos por alma. É importante refletir que de

tempos homéricos aos dias de Platão, a alma adquire um aspecto central na compreensão

da estrutura da realidade e do conhecimento. Diversos conceitos são formulados ao longo

desse período para dar conta da miríade de possibilidades acerca da natureza da alma e

sua estreita relação com o corpo.

2.1.1 Homero

Começamos por Homero pois este, segundo Platão, “foi o educador da Hélade [...]

que entende dos problemas da educação e das relações humanas”60. Na Grécia arcaica, a

palavra σῶμα (sôma) ainda não era empregada para designar “corpo” como entendemos

atualmente, este era um aglomerado de membros e músculos representado pela graça e

pelo ritmo dos movimentos e pela exuberância de sua força. Da mesma forma, a palavra

ψυχὴ (psyché) fazia referência a algo que existia na natureza do Homem e que no

momento da morte abandonava o σῶμα e vagava pelas sombrias regiões do Άδης

(Hades)61 como uma sombra sem consistência.

60 PLATÃO. República X, 606e. Todas as citações do diálogo República terão como referência: PLATÃO.

A República. Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3ªed. Belém: Editora UFPA, 2000. 61 Άδης (Hades) é o local no subterrâneo para onde vão as almas das pessoas mortas (sejam elas boas ou

más), guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, para lá tornarem-se Sombras. É o Mundos dos Mortos.

O nome Hades era usado frequentemente para designar tanto o Mundo dos Mortos como o deus que o

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Compartilhando uma visão comum a outras culturas anteriores62, Homero acredita

que o Homem vivo possui duas existências63 dentro de si. Assim, a ψυχὴ se torna um

“outro”, ou “duplo”, que tem a sua existência comprovada, para Homero, nos sonhos,

quando além de participar de outros ambientes e situações esse “duplo” se envolve com

outros “duplos”. Criando a ideia de existência contínua, Homero apresenta ao Homem

vivo que a morte é mais que um nada, é o início de um novo caminho de existência. Esse

ineditismo homérico relacionado à ψυχὴ refletirá, a partir de então, por toda a história

grega.

Homero não especifica uma função para a ψυχὴ durante a vida do Homem. É no

post-vidae que o aedo apresenta suas características. Ao se dirigir ao Άδης, a ψυχὴ possui

uma forma semelhante ao Homem em vida, podendo por isso ser reconhecida por todo

aquele que lhe for conhecido. É o caso de Aquiles que encontra Pátroclo junto a diversas

almas no Άδης: “a psyché sobrevém-lhe do mísero Pátroclo, símil a ele no talhe, na voz

e nos olhos, nas vestes”64. Contudo, a ψυχὴ, no Άδης, não possui consciência, não

conserva o sopro vital, que Homero chama de θῡμός (thymós)65. Assim, o Homem quando

morre se vê privado de tudo, “tem o poder do movimento, mas é desprovido de propósito;

tem uma voz, mas apenas a de um chiado; é fumaça, cintilante, de natureza vaporosa”66,

sobressaindo apenas a ψυχὴ.

É importante sopesar que o sofrimento após a morte do Homem, a desesperança

homérica diante dessa visão sombria, é o resultado da indivisibilidade entre vida, corpo

físico e pessoa. A vida, em Homero, é indissociável do corpo e a existência se resume à

governa. Posteriormente, a mitologia grega provocará mudança nesse conceito, acrescentando os Campos

Elísios, lugar de eterna alegria e felicidade também governado por Hades, oposto ao Tártaro (lugar de eterno

tormento e sofrimento). Nos Campos Elísios, os homens virtuosos repousavam dignamente após a morte

rodeados por paisagens verdes e floridas dançando e se divertindo noite e dia. O deus Hades, portanto,

governa o Hades, que é dividido entre Tártaro (onde ficam os maus) e Campos Elísios (onde ficam os bons).

Com isso, temos que Hades não é nem um deus bom nem mau, mas um deus justo. Cf. SISSA, Giulia;

DETIENNE, Marcel. Os deuses gregos. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; KERÉNYI, Karl. Os

deuses gregos. Tradução: Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1998. No entanto, Homero é quem

apresenta o primeiro conceito: no Hades bons e maus são apenas sombras. Cf. HOMERO, Ilíada. Tradução:

Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2003. 62 Anterior se refere ao que ocorreu ou se desenvolveu antes no tempo cronológico, sem qualquer sentido

que possa diminuir perspectivas precedentes. 63 σῶμα e ψυχὴ compreendidos como unidades ontológicas. 64 HOMERO. Ilíada, XXIII, vv.66-68. (Tradução: Haroldo de Campos). 65 θῡμός é o ardor, a coragem. Ele também pode ser traduzido como coração, sede dos sentimentos, das

paixões, dos impulsos involuntários, das decisões, da inteligência. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 66 KATONA, Gabor. The Evolution of the Concept of Psyche from Homer to Aristotle. Journal of

Theoretical and Philosophical Psychology, Washington: Princeton University, vol.22, nº1, 2002, pp.33-34.

(Tradução nossa).

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vida corpórea e física. Não existe a redução do Homem a um núcleo permanente que o

representaria. Para Homero, a vida após a morte é significada pela existência contínua,

não há a imortalidade da alma como um núcleo imaterial. A importância da associação

entre existência e corpo é asseverada no Mito do Transporte (Translation)67 na Odisseia,

onde alguns heróis recebem a imortalidade e são enviados para as Ilhas Sagradas. Essa

imortalidade é concedida através desse transporte, no sentido de levar algo de um lado

para outro, que se torna, assim, um surgimento instantâneo para uma nova forma de

existência sem a mediação de uma ideia de alma.

“A imortalidade no sentido homérico não é a imortalidade de uma ‘alma’ capaz

de sobreviver à morte do corpo, mas o transporte de toda a pessoa para um novo modo de

existência compartilhado com deuses”68. Todo Homem continua vivendo em uma nova

existência, pois, para Homero, a crença na convivência inseparável entre alma e corpo é

o sustentáculo para erigir uma imagem mais consoladora e mais reconfortante para a vida

depois da morte, do Homem homérico, pois “humanizando os deuses e afastando o temor

dos mortos, as epopeias homéricas descrevem um mundo luminoso no qual os valores da

vida presente são exaltados”69.

A ψυχὴ ainda não possui uma estrita ligação com o conceito posterior de alma,

mas inicia-se em Homero um processo que assim culminará, através da ideia de existência

contínua, que representa, ainda, um avanço no “processo de racionalização e laicização

da cultura, que conduzirá à visão filosófica e científica de um universo governado pela

razão”70.

2.1.2 Tales de Mileto

67 Translation possui o sentido etimológico de uma movimentação ou remoção de um lugar para outro, um

transporte, transferência Cf. ONLINE ETYMOLOGY DICTIONARY, disponível em:

[http://www.etymonline.com/index.php]. 68 KATONA. op. cit., p.35. (Tradução nossa). 69 SOUZA, José Cavalgante de. Os Pré-Socráticos: Fragmentos, Doxografia e Comentários. Coleção: Os

Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultura, 1996, p.12. 70 Ibidem.

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Tales de Mileto, conhecido por suas proezas nos campos da astronomia e da

matemática, é também considerado como um dos primeiros filósofos. Apesar de seu

modo de pensar parecer elementar71, Tales foi um dos primeiros pensadores a abandonar

as formulações míticas e desenvolver a mentalidade de reformular e corrigir teses

fechadas em si, além de propor “uma nova visão de mundo cuja base racional fica

evidenciada na medida mesma em que ela é capaz de progredir, ser repensada e

substituída”72.

Com isso, Tales acredita que o mundo possui um poder de movimento e de

transformação, que por suas variações e tamanhos, não é apenas humano, mas possui

aspectos divinos que representam algo que permanece além do tempo de existência

corpórea. Dessa forma, imbuído das ideias de movimento e mudança, Tales será o

primeiro pensador pré-socrático a tentar elaborar uma teoria para a ψυχὴ. Esta se

apresenta como uma força capaz não apenas de mover-se, mas também de mover outras

coisas, ou seja, uma força cinética.

O caráter divino que Tales relaciona com a ψυχὴ pode ser comprovado pela

afirmação de Aristóteles: “outros [pensadores] dizem que a alma está misturada com a

totalidade do universo daí, provavelmente, Tales ter julgado que tudo está cheio de

deuses”73. Essa onipresença de deuses representa, para Tales, que o mundo não precisa

de explicações particulares, visto que possuía certo modo de existência, e passava, por

isso, por transformações espontâneas. O exemplo utilizado por Tales está relacionado

com a φύσις (physis)74, para ele árvores, rios e até mesmo pedras possuíam espíritos

animados capazes de proporcionar movimento, comprovando a ideia de que “o mundo

como um todo estava [...] de certo modo penetrado de uma força vital que, devido ao seu

alcance e persistência, podia naturalmente ser chamada divina”75.

Assim, o aspecto divino da ψυχὴ deu razão a outra teoria atribuída a Tales.

Segundo Aristóteles, “parece que também Tales, ao avaliar pelo que se conta, considerava

a alma como algo de cinético, se é que ele disse que a pedra [de Magnésia] possui alma

71 Elementar pois Tales utiliza os elementos para buscar a apreensão da estrutura do cosmos. 72 SOUZA. op. cit., p.19. 73 ARISTÓTELES. De anima, 411a. In: BARNES, Jonathan. Aristotle: Complete Works. Princeton:

Princeton University Press, 1991. (Tradução nossa). 74 Φύσις será apresentada neste trabalho com o sentido de natureza. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 75 KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos – História crítica com seleção

de textos. 7ªed. Tradução: Carlos Alberto Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p.97.

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pelo fato de deslocar o ferro”76. Assim, Tales assegura que o fato do imã conseguir

deslocar o ferro, significa que o imã possui uma ψυχὴ própria, capaz de mover-se e mover

outras coisas. Da mesma forma, o Homem ao movimentar-se é considerado com vida e

com uma ψυχὴ ativa, mas quando perde os sentidos é como se tivesse sido abandonado

pela ψυχὴ; para Tales, se o Homem morre é porque ficou permanentemente sem contato

com a ψυχὴ. Fazendo referência à concepção homérica, para Tales a ψυχὴ, ao estar

dissociada do σῶμα, “desce ao Hades, soltando gritos estridentes”77.

Portanto, a concepção de Tales, assim como de seus contemporâneos, é retratar a

ψυχὴ do Homem como algo essencialmente conectado, ou mesmo sendo parte, “de uma

ordem ou elemento cósmico maior”78. Para Tales a ψυχὴ não está inscrita apenas ao

corpo, mas ainda não se apresenta como uma substância imaterial totalmente

independente. Para ele, a ψυχὴ está “constantemente sob influência de elementos de fora

(éter, fogo ou ar)”79, o que abriu caminho para pensadores como Pitágoras de Samos e

Heráclito de Éfeso demonstrarem a importância da ψυχὴ no conhecimento da estrutura

do cosmos.

2.1.3 Pitágoras de Samos

Apesar de não ter deixado qualquer obra escrita, Pitágoras de Samos legou

inúmeros pensamentos que somente muito tempo depois se tornaram objeto de atenção.

Por isso, o que se conhece de sua doutrina está baseado nessas produções textuais

posteriores, não sendo possível, assim, extrapolar o terreno das conjecturas e suposições.

De todo modo, a Pitágoras é atribuída a introdução de algumas crenças na Grécia antiga,

incluindo sua afirmação de que “a alma, em primeiro lugar, era imortal e, depois, se

transferia a outras espécies de seres vivos, e, além disso, que o que havia acontecido em

alguma ocasião, em certos âmbitos temporais, ocorreria novamente”80. Contudo, a falta

76 ARISTÓTELES. op. cit., 405a. 77 KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. op. cit., p.94. 78 KATONA. op. cit., p.38. 79 Ibidem. 80 PORFIRIO. Vida de Pitágoras; Argonáuticas Órficas; Himnos Órficos. Introdução, tradução e notas

Miguel Periago Lorente, Madri: Editorial Gredos, 1987, p.35.

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de qualquer relato escrito torna necessário uma apreciação mais detalhada das origens da

doutrina pitagórica.

Com o despontar das religiões dos mistérios entre os séculos VI e V a.C., surgem

inúmeras indagações referentes à origem, substância, trajetória e razão de ser da alma

humana. A imortalidade se apresenta, assim, como conceito central a ser desvelado pela

nova racionalidade grega. Examinando o ritual praticado em nome de Dioniso81, “onde a

ideia da morte se mesclava com todas as manifestações da vida, [e que] suscitou a ideia

do sacrifício expiatório, da purificação através da qual a alma se desprende dos laços do

corpo e vive uma vida divina”82, inferimos que o renascimento do culto Dionisíaco marca

o início da construção da ideia de imortalidade da ψυχὴ, como veremos adiante em

Pitágoras.

O culto a Dioniso era uma celebração sagrada onde através do ἔκστασις

(ékstasis)83 os adeptos aos rituais tinham uma experiência supra corpórea que

proporcionava uma sensação de vida fora do corpo físico, uma separação completa da

alma com o corpo. Esse estado de ἔκστασις era uma busca pela superação dos próprios

limites da condição humana com o objetivo de alcançar a liberdade e conseguir a

aproximação a Dioniso. Assim, a ψυχὴ em ἔκστασις é livre, e o σῶμα se torna um cárcere

opressor, um obstáculo que impede que o Homem possa elevar-se “acima do nível normal

de sua consciência limitada e cotidiana, e [que] poderia elevá-lo a uma condição de visão

e conhecimento ilimitados”84.

Contudo, o ritual a Dioniso ainda não “preconiza a fuga para fora do mundo, não

prega a renúncia nem pretende proporcionar às almas, por um tipo de vida ascético, o

acesso à imortalidade”85, ele propõe a abertura de um novo caminho para que os homens

se encontrem nas múltiplas figuras do outro que surgem. Contudo, outro movimento

81 Dioniso (Διόνυσος) era o Deus Grego das festas, do vinho, do lazer e do prazer. Filho imortal de Zeus e

Perséfone, nasce como Zagreu, depois renasce como Dioniso, filho imortal de Zeus com Semele. O culto

Dionisíaco já estava presente na Grécia desde o século XIV a.C. Cf. BRANDÃO, Junito de Souza.

Mitologia grega. Vol.2, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 115-117. 82 WERNER, Charles. La Philosophie Grecque. Paris: Ed. Payot, 1972, p.22. (Tradução nossa). 83 ἔκστασις em seu sentido etimológico de qualquer deslocamento ou remoção do lugar apropriado e ainda

transe, arrebatamento, ser outro ao mesmo tempo que si próprio. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 84 ROHDE, Erwin. Psyché: La idea del alma y la inmortalidade entre los griegos. Tradução: Wenceslao

Roces. México: Fondo de Cultura Econômica – FCE, 1983, p.291. 85 VERNANT, J.P. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p.80.

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doutrinal mítico-poético vinculado especificamente a Dioniso surge como catalisador

dessas ideias, ainda embrionárias, sobre a imortalidade da alma: o Orfismo.

A doutrina Órfica assevera que o Homem é um ser dual, ou seja, que o Homem

possui uma natureza dupla, composta do bem e do mal, uma parte mortal e outra imortal.

Essa teoria surge da interpretação do mito de nascimento de Dioniso, onde Zeus, senhor

do cosmo e dos deuses, se apaixonou por Perséfone e desse amor nasceu Zagreu, o

primeiro Dioniso. Sabendo que sua mulher, Hera, pretendia matar Zagreu, Zeus confiou

a segurança deste ao Deus Apolo. Ao descobrir seu esconderijo, Hera mandou os Titãs

raptarem e matarem Zagreu. Os Titãs, então, fizeram-no em pedaços e o devoraram, mas

Zeus conseguiu salvar o coração de seu filho e o comeu, além de fulminar os Titãs com

um raio. Das cinzas dos Titãs nasceu a raça humana, mas o coração de Zagreu/Dioniso

ficou com Zeus86.

Os homens carregam consigo a culpa pelo desmembramento do corpo de Dioniso,

mas, purificando-se da falta ancestral pelos ritos e pelo tipo de vida

órficos, abstendo-se de toda carne para evitar a impureza desse

sacrifício cruento que a cidade santifica mas que lembra, para os

órficos, o monstruoso festim dos Titãs, cada Homem, tendo guardado

em si uma parcela de Dioniso, pode, também, retomar à unidade

perdida, reencontrar o deus e recuperar no além uma vida de época

áurea87.

O Orfismo apregoava, assim, uma série de rituais de purificação, ou κάθαρσις

(katharsis), para que a ψυχὴ, após a separação do σῶμα, não caísse nas águas do

esquecimento, λήθη (léthe), e se esquecesse do que havia sido transmitido pelo divino. A

ascensão junto a Dioniso se dava através de inúmeras transmigrações e os rituais órficos

intentavam purificar a ψυχὴ para que esta transpusesse o ciclo de nascimentos o mais

rápido e pura possível para alcançar a liberdade e, consequentemente, a imortalidade. A

purificação da ψυχὴ como objetivo final é a principal diferença entre esse movimento e

os demais que também cultuavam Dioniso.

Nos rituais purificadores, os órficos, através das técnicas de ἔκστασις,

experimentavam a presença de um ser divino alheio à vida terrestre, uma ψυχὴ que não

86 Cf. BRANDÃO. op. cit.; SISSA; DETIENNE. op. cit.; KERÉNYI. op. cit. 87 VERNANT. op. cit., pp.83-84.

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seria mais como em Homero, “uma sombra sem força, um reflexo inconsistente”88 sem

atividade ou esperança, mas um δαίμων (daimon)89, um elemento aparentado com o

divino que, por ter essa origem, deve tomar consciência de si mesma e tem o destino de

estar eternamente junto ao divino após a morte. Essa diferença substancial com a ψυχὴ

homérica, coloca o Orfismo como precursor direto “da ideia da natureza divina da alma

ou espírito de Platão e Aristóteles”90.

Contudo, para além das concepções de transmigração e dos rituais de purificação

da ψυχὴ, a doutrina Órfica sobressaiu-se notadamente por desenvolver um entendimento

da ψυχὴ como uma unidade da vida e do espírito, e também por conceber essa ψυχὴ

“como um ser espiritual por seu próprio direito, totalmente independente do corpóreo”91.

O Homem começou a se sentir responsável pelo destino de sua ψυχὴ, que na perspectiva

Órfico-Dionisíaca, é a verdadeira essência do Homem.

Dessa forma, é do coração da doutrina Órfica que Pitágoras retira sua própria

doutrina. Porém, algumas distinções claras entre o Pitagorismo e o Orfismo sedimentarão

o caminho para compreender o pensamento de Pitágoras em sua totalidade. Apesar de

coincidirem em remeterem o sentido da existência a um terreno ultra corpóreo e a

atribuírem à κάθαρσις (katharsis)92 um papel central para libertar as almas do ciclo de

reencarnações para fazê-las se unirem ao divino, Orfismo e Pitagorismo diferenciam-se

quanto aos instrumentos de purificação e quanto às formas de atingir a purificação da

alma.

A primeira diferença nítida se encontra no fato de que os órficos apoiavam a

autoridade de sua doutrina em textos escritos, à medida que os pitagóricos não faziam da

escrita uma prática. A outra diferença, mais acentuada, diz respeito às formas de

purificação, no Orfismo a purificação da alma era alcançada através das “celebrações e

práticas religiosas dos sagrados mistérios”93, nas quais a alma se elevaria ao divino. Em

88 Ibidem, p.87. 89 Δαίμων é um tipo de ser que se assemelha a uma espécie de espírito que rege o destino de alguém ou de

um lugar. Trata-se do sinal divino que se percebe dentro de si mesmo em circunstâncias particulares. Um

espírito orientador, uma deidade tutelar. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 90 JAEGER, Werner. La Teologia de los primeiros filosofos griegos. Tradução: José Gaos. México: Fondo

de Cultura Economica, 1952, p.91. (Tradução nossa). 91 Ibidem, p.88. 92 Κάθαρσις no sentido de purificação. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 93 CASORETTI, Anna Maria. A origem da alma: do Orfismo a Platão. São Paulo: Universidade

Presbiteriana Mackenzie, 2010. 76 fls. Monografia (Bacharelado em Filosofia) - Curso de Filosofia,

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010, p.50.

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contrapartida, a doutrina de Pitágoras confiava, quase que inteiramente, na ciência,

através do desenvolvimento de ideias sobre os números.

O número seria o princípio do conhecimento porque ordena e organiza

a realidade ao engendrar as coisas como unidade e diversidade de

proporções inteligíveis. O número torna as coisas discerníveis umas em

relação às outras e as torna concordantes com a alma, concórdia que

decorre do fato de que a alma também é número. Assim, as coisas e a

alma são comensuráveis (proporcionais) porque possuem a mesma

medida comum ou o mesmo lógos: são feitas da mesma phýsis.

Conhecer é, pois, encontrar a unidade de alguma coisa e o princípio de

sua mudança. O número é o que produz a unidade e a diversidade das

coisas, permitindo, desta maneira, que sejam conhecíveis por nossa

alma. A alma é, pois, o elo de união entre os dois mundos, aquela à qual

é permitido participar de duas realidades, seja do princípio de unidade,

seja do princípio de mudança94.

Pitágoras entendia a totalidade dos números como uma unidade. E essa unidade

era, por consequência, também a totalidade das coisas visíveis e invisíveis. A ψυχὴ era

assemelhada à harmonia, conquanto que ambas eram, na verdade, a concordância de

muitos elementos discordantes. E, como à harmonia, cabia à ψυχὴ proporcionar essa

consonância entre elementos distintos, induzindo os elementos superiores à dominação

dos elementos inferiores95. Dessa forma, a purificação da ψυχὴ é resultado de um trabalho

intelectual “que descobre uma estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma

semelhante ao cosmo, em harmonia, proporção e beleza”96.

No Pitagorismo a ψυχὴ tem um importante papel a desempenhar, e purificá-la

torna-se assunto de primeira grandeza para os pitagóricos. Assim, a busca e a prática de

uma vida virtuosa, aliada à sabedoria, seriam prerrogativas para a purificação da ψυχὴ.

Pitágoras elabora, então, a teoria da metempsicose, que seria a única maneira de

proporcionar a libertação da ψυχὴ, e fazer com que esta pudesse entrar em contato com o

mundo supra sensível, a esfera da estrutura numérica do cosmos97. Na teoria da

metempsicose pitagórica, a ψυχὴ é levada a reencarnar diversas vezes, não apenas em

94 Ibidem, p.48. 95 Esse aspecto de elementos discordantes na ψυχὴ será objeto de análise no Mito do Cocheiro, ou Carro

Alado, no diálogo Fedro, de Platão. 96 SOUZA. op. cit., p.22. 97 A ψυχὴ como elo de união entre o mundo físico e o metafísico será desenvolvida posteriormente por

Platão.

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existências antropomórficas, mas inclusive em formas animais, para purgar uma culpa

originária.

Dessa forma, analisando os preceitos da doutrina pitagórica, é crível ver como

Pitágoras promoveu a expansão do conceito de ψυχὴ na Grécia antiga. Entre outras coisas,

estava em jogo a preocupação “com a existência contínua da pessoa após a morte”98. Para

o Pitagorismo a ψυχὴ é imortal, ou seja, preexiste ao σῶμα e continua a existir após a

morte deste. Dessa forma, outra concepção pitagórica foi desenvolvida, a concordância

de contrários99. Pois a ψυχὴ, de natureza divina, e portanto imortal, se une ao σῶμα, de

natureza mortal e corruptível, como uma espécie de punição e com o objetivo de expiar

sua culpa. O Homem, assim, não deve viver em função de seu σῶμα ou de seus sentidos,

visto ser este um cárcere, deve, contudo, viver para sua ψυχὴ, a única que pode

proporcionar um caminho para um mundo junto ao divino.

Pitágoras, dessa forma, é o primeiro a apontar para a imortalidade da alma na

filosofia antiga. Ele também é o primeiro a tentar penetrar nas raízes das coisas e

desenvolver a ideia de que a verdadeira realidade não está nas coisas materiais, corpóreas,

mas sim na ψυχὴ e em sua essência imortal. Muitos aspectos do Pitagorismo estão

presentes em Platão, entre eles, “o fato da alma se revelar semelhante aos seres que vivem

no mundo superior, contendo em si uma centelha da essência divina”100 permitindo que a

ψυχὴ transite tanto pelo mundo material quanto pelo mundo das realidades eternas.

Estabelecendo, assim, as bases para o desenvolvimento de uma filosofia das

Ideias/Formas.

2.1.4 Heráclito de Éfeso

Heráclito de Éfeso buscou uma compreensão mais profunda para a ψυχὴ. Ao

desenvolver seu pensamento, Heráclito concluiu que para se conhecer a estrutura do

cosmos era necessário desvendar os mistérios e a natureza da ψυχὴ. Assim, era

98 LORENZ, Hendrik. Ancient Theories of Soul. Stanford Encyclopedia of Philosophy, Stanford: Stanford

University, 2009, p.8. (Tradução nossa). 99 Que será largamente utilizada por Platão e será conhecida como Teoria dos Contrários. 100 CASORETTI. op. cit., p.50.

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imprescindível conhecer a natureza da parte para chegar ao conhecimento do todo, parte

que possuía a mesma essência e estava sob as mesmas leis do todo. “Assim, conhecer

deixa de ser somente pensar e passa a envolver, também, uma sabedoria prática ligada à

prudência, isto é, um agir que se fundamenta na sabedoria e na virtude”101.

Uma revolução heraclítica diz respeito à corporificação da ψυχὴ. Para Heráclito

não haviam grandes problemas nas relações entre σῶμα e ψυχὴ, “a alma do Homem,

ferida alguma parte do corpo, apressadamente acode, quase indignada pela lesão do corpo,

ao qual está ligada firme e harmoniosamente”102. Seguindo claramente as tradições Órfica

e Pitagórica, Heráclito proclama: “o que aguarda os homens após a morte, não é nem o

que esperam nem o que imaginam”103. Contudo, Heráclito deu intensa importância a outro

aspecto importante da ψυχὴ: sua constituição. No pensamento heraclítico não há

diferença radical entre σῶμα e ψυχὴ, sua diferença consiste apenas no grau de

composição, como finura e mobilidade.

Sendo a constituição corpórea a principal diferença entre σῶμα e ψυχὴ, Heráclito

coligiu a importância em se desvendar a natureza da ψυχὴ. Assim, a ψυχὴ é ígnea104, e

por isso, “está intimamente unida à Natureza cujo elemento fundamental é o fogo”105.

Assim, pela primeira vez, a estrutura da ψυχὴ foi relacionada não apenas com o σῶμα,

mas com o mundo como um todo, onde a ψυχὴ desempenha “um certo papel no grande

ciclo da mudança natural”106. Heráclito reconhece que “uma alma seca é mais sábia e

melhor”107, e que apesar de ter sua origem na umidade, a ψυχὴ úmida encontra-se

diminuída em sua capacidade, sem discernimento ou força física.

Contudo, a ψυχὴ sendo parte do fogo cósmico, mas tendo sua origem na umidade

e ainda sendo constituída pelo ar, apresenta um paradoxo de existência que será explicado

101 Ibidem, p.39. 102 HERÁCLITO. Fragmento 67a. Todos as citações dos fragmentos dos filósofos pré-socráticos terão

como referência: BORNHEIM, Gerd A. Os Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1967. 103 Ibidem, Fragmento 27. 104 Ígnea como aquilo que tem as qualidades do fogo. Quando Heráclito diz que a alma é fogo, ele não está

falando a linguagem da física moderna, mas está inserindo a alma do homem no ciclo dos elementos

cósmicos. Enquanto vida, ela se torna água (sêmen reprodutor) e terra (corpo da mulher). Na morte, o corpo

se evapora e, quando incinerado, volta a ser fogo, por isso para as almas é morte tornar-se água. Cf.

HERÁCLITO. Fragmento 36. Também segue esse pensamento: RAMNOUX, Clémence. Héraclite ou

L’homme entre les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1959. (Tradução nossa). 105 ROCHA, Zeferino. Psyché: Os caminhos do acontecer psíquico na Grécia Antiga. Revista Latino-

Americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo: Associação Universitária de Pesquisa em

Psicopatologia Fundamental, vol.4, nº2, pp.67-91, jun.2001, p.75. 106 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.212. 107 HERÁCLITO. Fragmento 118.

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por Heráclito de forma inédita até o momento. Assim, existe uma constituição anímica

formada pelos três elementos, mas a ψυχὴ será tanto mais racional quanto mais prevalecer

as medidas do fogo sobre as medidas de água e ar. Por conseguinte, outra importante

peculiaridade do pensamento heraclítico se apresenta, pois o cosmos, no seu constante

vir-a-ser, resulta de uma grande luta de contrários, e uma vez que “tudo se faz por

contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”108.

A cosmologia heraclítica apregoa que o cosmos está em constante movimento,

“que todos os entes se encontram em movimento”109, ou seja, que todas as coisas que são

não permanecem imóveis, fixas, estáveis, mas se movem, sem cessar e sem exceção. Esta

intensa movimentação cria tensão, principalmente entre as coisas contrárias110, e da

tensão entre os opostos nasce a harmonia do mundo. Para Heráclito, cada contrário nasce

de seu contrário e faz nascer o seu contrário111. Essa harmonia que resulta da tensão entre

contrários é entendida por Heráclito como uma unidade de tensões opostas, e que o λόγος

(lógos)112 é precisamente a unidade profunda que as coisas opostas ocultam e sugerem,

assim, “os contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa

unidade”113. Heráclito afirma, em alguns de seu fragmentos, essa íntima relação entre

ψυχὴ e λόγος, assim, segundo o filósofo, “mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais

encontra [remos] os limites da alma, tão profundo é o seu Logos”114, pois “à alma pertence

o Logos, que se aumenta a si próprio”115.

Ao considerar que fogo e água, contrários em suas essências, proporcionam a

harmonia necessária à ψυχὴ, também conjecturamos que esses elementos não se

manifestam uniformemente por muito tempo. Heráclito diz que quando isso ocorre o

resultado é a morte. Para o pensador, a morte para as almas significa “transformar-se em

água; para a água, morrer é transformar-se em terra. Da terra, contudo, forma-se a água,

e da água a alma”116. Contudo, essa transformação em água também ocorre com a ψυχὴ

108 Ibidem, Fragmento 8. 109 ARISTÓTELES. op. cit., 405a. 110 Essa perspectiva de contrários não pode ser entendida ao modo como a moderna gramática possibilita a

dimensão de contrários como opostos, antagônicos. 111 Importante notar que este é o mesmo argumento defendido por Sócrates no diálogo Fédon. 112 λόγος será usado no sentido de razão. Razão que funciona sempre e em acordo com a qual, mas não por

causa da qual, todas as coisas vêm a ser. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 113 SOUZA. op. cit., pp.30-31. 114 HERÁCLITO. Fragmento 45. 115 Ibidem, Fragmento 115. 116 Ibidem, Fragmento 36.

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que busca apenas o prazer, por isso o Homem deve extinguir o desregramento. Segundo

Heráclito, “lutar contra os desejos é difícil. Pois o que exige a compra da alma”117, ou

seja, “tudo aquilo em que o desejo de nosso coração insiste, ele compra ao preço da vida,

isto é, do fogo que há em nós”118.

Apesar do Homem ainda não estar no centro da reflexão filosófica, com Heráclito

a estrutura da ψυχὴ e o ciclo da vida e da morte passam a se inserir no estudo mais

aprofundado do cosmos. Explicando a ψυχὴ como uma parte da substância cósmica,

Heráclito “diz ser a alma imortal, pois após a sua separação do corpo volta à alma

universal, ao homogêneo”119. Em Heráclito, a ψυχὴ se encontra em estado de poder

deslocar-se para todas as partes do corpo que dela necessitem e de ter limites que não

podem ser alcançados. Analisando, sob o prisma heraclítico, a filosofia platônica,

concluímos que a capacidade de auto crescimento da ψυχὴ, assim como a presença de um

λόγος que assegura uma consistência interior durante a vida, além da apresentação da

ψυχὴ como princípio de vida, inteligibilidade e afetividade, são os principais elementos

que Platão usará em suas teorias acerca da ψυχὴ. Platão utilizará a ideia heraclítica de

arco para explicar o caminho que a ψυχὴ percorre até o mundo metafísico, um “arco [que]

tem por nome a vida, e por obra, a morte”120.

2.1.5 Parmênides de Eléia

Parmênides de Eléia preconizou o estudo do Ser. Apesar de ter sido ensinado por

discípulos diretos de Pitágoras, suas concepções, ao final, acabaram por se afastar dos

preceitos pitagóricos. Apesar disso, seu pensamento apresenta íntimas relações com a

natureza da ψυχὴ.

Parmênides desde sempre formulou uma ideia para a imortalidade da ψυχὴ. Para

ele “a alma imortal que pode existir separada do corpo e visitar o outro mundo é a alma

117 Ibidem, Fragmento 85. 118 BURNET, John. A Aurora da Filosofia Grega. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora

Contraponto, 2006, p.166. 119 BORNHEIM. op. cit., p.45. 120 HERÁCLITO. Fragmento 48.

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racional, em oposição aos sentidos e paixões que residem no corpo perecível”121. Assim,

a alma racional, capaz de existir separada do corpo, é responsável pelo pensamento e

mantém, por isso, estreita relação com o Ser, “pois pensar e Ser é o mesmo”122.

Parmênides desenvolveu seu pensamento através da ideia de unidade. Para ele o

devir é sempre movimento, uma mudança qualitativa e quantitativa. Assim, o movimento

é o terreno da aparência e da opinião, pois sempre que as coisas mudam de aparência,

mudam também as opiniões, por isso “o devir é a aparência mutável, é o não-ser123”124.

Parmênides não busca explicar o mundo da multiplicidade e do movimento, ele pretende

mostrar onde os homens erram ao colocar a dualidade em vez do Uno, ou seja, substituem

o que persiste sem mudanças pelo eterno movimento. Assim, Parmênides se aproxima da

conceituação da Verdade como algo com origem divina.

Parmênides apresenta a Verdade como algo incompatível com a multiplicidade e

o eterno movimento do devir. Para o filósofo existe “um abismo intransponível entre o

reino da Verdade atemporal e metafísica e a confusão de qualidades mutáveis que os

sentidos e as opiniões dos mortais tomam erradamente por realidade”125. Assim, ao

defender a imutabilidade, imobilidade e a unidade, Parmênides recusa a noção de que os

sentidos pudessem levar à Verdade, considerando que os sentidos percebem as coisas

móveis e mutáveis, e rejeita a racionalidade do movimento e da multiplicidade, rompendo

claramente com o senso comum da época e com as doutrinas filosóficas em curso,

inclusive o Pitagorismo.

O Ser, em Parmênides, é eterno. Essa é a sua Verdade, “oposto à aparência e a

todas as enganosas opiniões dos mortais”126. O que é, é único, pois além do que é, apenas

o que não é pode existir. Atribuir existência ao que não é, além de impensável é

impossível. Assim, o Ser, necessariamente, é “eterno, imóvel, finito, imutável, pleno,

contínuo, homogêneo e indivisível”127, não tem passado nem futuro, não possui começo

nem mesmo um fim, “não sendo gerado, é também imperecível; possui, com efeito, uma

121 CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: As Origens do Pensamento Filosófico Grego. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, p.194. 122 PARMÊNIDES. Fragmento 3. (Tradução: Gerd Bornheim). 123 O devir como não-ser está sendo utilizado seguindo um conceito da tradição que assim também

preconiza. 124 CASORETTI. op. cit., p.40. 125 CORNFORD. op. cit., p.195. 126 JAEGER. op. cit., p.97. 127 SOUZA. op. cit., p.27.

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estrutura inteira, inabalável e sem meta; jamais foi nem será, pois é, no instante presente,

todo inteiro, uno, continuo”128. Assim, podemos inferir a concepção de imortalidade da

ψυχὴ, em Parmênides, como algo afeito ao Ser, imutável, eterno e divino. Nas palavras

do filósofo: “Pouco me importa por onde eu comece, pois para lá sempre voltarei

novamente”129.

2.1.6 Empédocles de Agrigento

O pensamento de Empédocles de Agrigento está atravessado por diversas teorias

e ideias que foram desenvolvidas antes dele. De Homero a Heráclito, incluindo Órficos e

Pitagóricos, todas essas doutrinas tiveram grande importância para Empédocles no

momento de formular suas próprias concepções. Podemos ver nos fragmentos desse

pensador uma das primeiras manifestações para colocar o ser humano no centro das

análises filosóficas acerca da ψυχὴ.

Do pensamento homérico Empédocles se aproxima ao descrever a origem e o

destino da ψυχὴ. Através dos fragmentos intitulados Purificações, nos quais o filósofo

discursa sobre a queda do Homem de um lugar original e as práticas que são necessárias

para sua reabilitação, Empédocles afirma que a verdadeira existência se prolonga para

antes do nascimento e para depois da morte. Segundo ele, “não há nascimento para

nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte funesta, mas somente composição

e dissociação dos elementos compostos: nascimento não é mais do que um nome usado

pelos homens”130. Tal qual em Homero, onde a ψυχὴ é levada ao Άδης, no pensamento

empedocliano a ψυχὴ se dirige a um lugar de suplícios no qual se encontram reunidas

outras ψυχαί que também para lá haviam sido lançadas pela divindade, que “de criaturas

vivas fez mortas, mudando as suas formas”131. Contudo, extrapolando a alegoria do Άδης

homérico, para Empédocles a ψυχὴ percorre um caminho muito mais profundo e com

uma realidade muito mais íntima. De lá, as ψυχαί são conduzidas para uma caverna onde

128 PARMÊNIDES. Fragmento 8. 129 Ibidem, Fragmento 5. 130 EMPÉDOCLES. Fragmento 8. (Tradução: Gerd Bornheim). 131 Ibidem, Fragmento 125.

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são revestidas “de um estranho manto de carne”132 e submetidas às forças contrárias que

regem a existência.

Essas forças contrárias que regem a existência, para Empédocles, são o Amor e o

Ódio133. Assim como Heráclito, Empédocles acredita na força gerada através do

movimento de forças contrárias. Dessa forma, predominando o Amor, os elementos se

recolhem em unidade, ao passo que sob o domínio do Ódio, separam-se. No influxo entre

Amor e Ódio nascem as coisas. “E esta constante mudança jamais cessa: as vezes todas

as coisas unem-se pelo amor, outras, separam-se novamente na discórdia do ódio”134. Da

caverna, de onde a ψυχὴ aguarda o revestimento carnal para voltar à corporeidade, diz

Empédocles:

O triste lugar, onde a Morte e a Cólera, e a multidão dos outros males e

doenças esgotantes, a podridão e o que dela flui, perambulam na

obscuridade sobre os campos de Ate. Lá estavam Ctônia e Helíope, cuja

vista se estende ao longe, a Discórdia sangrenta e a Harmonia de olhar

severo, a Beleza e a Feiura, a Pressa e a Lentidão, a amável Verdade e

a Incerteza de negros olhos. E o Crescimento e a Decrepitude, o Sono e

a Vigília, o Movimento e o Repouso, o Esplendor coroado e a Baixeza,

o Silêncio e a Loquacidade135.

Assim, comandadas pelas forças cósmicas do Amor e do Ódio, essas formas de

energia, contrárias entre si, permitem à ψυχὴ, através da potência gerada de seus

movimentos, retornar à esfera terrestre. Para Empédocles, o retorno da ψυχὴ ao mundo

dos males terrestres está cercado de atenção. O Homem, desse momento, não guarda

nenhuma consciência, mas a ψυχὴ, ao reconhecer “sua conexão com uma existência

anterior e melhor [e ver] muito além do alcance da consciência individual”136, se

manifesta, segundo o pensamento empedocliano, no choro do recém-nascido, que

representa a dor do contato da ψυχὴ com o mundo terrestre. Esse mito escatológico realça

a convicção de Empédocles sobre “a miserável condição da existência humana, [assim

132 Ibidem, Fragmento 126. 133 Faz-se necessário uma abstração dos conceitos humanos de amor e ódio para compreender a real

dimensão do pensamento de Empédocles. Quando Empédocles fala de amor e ódio ele faz referência a

formas de energia, ou ainda forças cósmicas. Podemos ainda usar os termos agregação e desagregação. 134 EMPÉDOCLES. Fragmento 17. 135 Ibidem, Fragmentos 121, 122 e 123. 136 JAEGER. op. cit., p.149.

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como dá] o maior realce possível à ideia de que a vida se enquadra em mais do que as

simples dimensões humanas de espaço e tempo”137.

Outra característica importante do pensamento empedocliano é a contraposição ao

pensamento de Parmênides, e que de certa forma segue a mesma direção dos preceitos

pitagóricos, de que o Homem não pode se afirmar como tal sem o auxílio da linguagem

e das experiências dos sentidos. O pensador altera a concepção parmenídica de Verdade,

como algo de uso exclusivo da razão, e declara que a ἀλήθεια138 “não é mais a revelação

de uma verdade absoluta, porém uma verdade proporcional à medida humana”139. A partir

de então, a evidência procurada é a clareza racional que resulta dos dados fornecidos pelos

sentidos.

Seguindo a tradição Órfica, Empédocles afirma que a ψυχὴ preexiste ao σῶμα e

que passa por inúmeras transmigrações para se afeiçoar ao divino, com isso, ele assegura

que além da “certeza mística do parentesco essencial da alma com o Divino, [...] [há

também] a consciência de que por algum grande pecado ele é condenado e relegado longe

de sua origem divina”140. Por conseguinte, em seu caminho para a divinização, o Homem

deve permanecer humano enquanto corporificado, assim a “compreensão humana é tanto

mais perfeita quanto mais próxima da unidade”141, ou seja, do divino.

Outra aproximação com o Orfismo está em conceber a ψυχὴ como um δαίμων.

Empédocles afirma uma afinidade do Homem com o divino, que proporciona àquele,

enquanto possuidor de um δαίμων, a possibilidade de usufruir de uma existência

incorpórea através das sucessivas transmigrações. Essas transmigrações garantiriam ao

Homem ascender pelos reinos da criação através das melhores formas de encarnação

possível. Identificando, assim, um ciclo de existência da ψυχὴ dentro de um esquema

cósmico.

Dessa forma, Empédocles de Agrigento está elencado como um dos primeiros

filósofos a pensar o Homem enquanto sujeito consciente de sua divindade. Para o

pensador “bem-aventurado o Homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina;

137 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.332. 138 ἀλήθεια se apresenta nesta dissertação como verdade, aquilo que se desvela ou que é desvelado e se

mostra em seu inteiro teor, de forma verdadeira. Literalmente, não-latência, não-esquecimento. Cf.

LIDELL; SCOTT. op. cit. 139 SOUZA. op. cit., p.34. 140 JAEGER. op. cit., p.146. 141 PESSANHA, José Américo Motta. Empédocles e a Democracia. Revista Kléos. Rio de Janeiro: UFRJ,

vol.7-8, nº7-8, pp.97-182, jul.2003–jun.2004, p.163.

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desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses”142. E o aspecto divino no

Homem é a ψυχὴ, pois é esta que, ciclicamente, acessa o divino antes de retornar à

corporeidade. Afirma Empédocles tacitamente: “é impossível que algo possa ser gerado

do que não é, e jamais se realizou nem se ouviu dizer que o que é seja exterminado; o que

é, sempre estará lá, onde foi colocado por cada um”143. Seus fragmentos corroboram a

concepção de imortalidade da ψυχὴ, tão cara a Platão posteriormente.

2.1.7 Anaxágoras de Clazomena

Para Empédocles, ao se dividir um corpo humano até as menores partes, sempre

sobrariam os quatro elementos fundamentais que compõem todas as coisas, incluindo o

corpo do ser humano. Contudo, a concepção de Anaxágoras de Clazomena se apresenta

de forma oposta. Para o filósofo, por mais que se divida todas as coisas, nunca se chegará

a qualquer parte, por menor que seja, que não contenha porções de toda a pluralidade de

elementos. Para Anaxágoras essas “sementes”, ou partes divididas, representam a

possibilidade de tudo se transformar em tudo, pois contendo os contrários em sua

essência, qualquer “semente” pode se modificar em qualquer coisa. Porém, para

Anaxágoras ainda existe algo superior, algo que se diferencia dos elementos, apesar de

ser, como eles, imutável e eterno. O νοῦς (nous)144, ou espírito, “é a força que sabe ou

reconhece todas as coisas, que introduz o movimento na massa primitiva, e que tem esse

poder porque não está misturado com nenhuma coisa, mas se encontra sozinho e em si

mesmo”145. Assim, afirma Anaxágoras que “em cada coisa, há uma porção de cada coisa,

exceto no espírito”146.

Dessa forma, para Anaxágoras o νοῦς é infinito e autônomo, existe sozinho, é o

mais puro dos elementos e possui o conhecimento total e o poder sobre tudo. O νοῦς “é

142 EMPÉDOCLES. Fragmento 132. 143 Ibidem, Fragmento 17. 144 Νοῦς, em Anaxágoras, é conhecido como intelecto, mente. É a força motriz que formou o mundo a partir

do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmo. Nesta dissertação compreenderemos o νοῦς, em

Anaxágoras, como espírito. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 145 CASORETTI. op. cit., p.44. 146 ANAXÁGORAS. Fragmento 11. (Tradução: Gerd Bornheim).

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uma corporeidade sutil e sua ação é de natureza mecânica: move e separa os opostos que

inicialmente estavam juntos. [...] [sua ação] decorre de uma característica que lhe é

peculiar: a imiscibilidade, que lhe garante a pureza”147. Se para Empédocles o Amor e o

Ódio eram as forças que moviam as coisas existentes, para Anaxágoras entra em ação a

simples força motriz intelectual do νοῦς. O que Anaxágoras chama de revolução cósmica

tem no νοῦς seu principal propulsor. No fragmento nº 12 ele diz: “Também sobre toda a

revolução tem o espirito poder, e foi ele quem deu o impulso a esta revolução. E o espirito

ordenou todas as coisas, como deveriam ser e como eram e agora não são, e as que são e

como serão”148.

Assim, o νοῦς interfere na massa homogênea original, onde todas as coisas

estavam juntas e não podiam ser diferenciadas por conta de seu pequeno tamanho, dando-

lhes movimento e distinção. Em sua teoria física da constituição do universo, Anaxágoras

afirma que o νοῦς exerceu apenas uma força motora inicial nessa massa homogênea,

produzindo um movimento rotatório que se expandiu por questões meramente mecânicas

e originou o universo. Como a “velocidade da revolução é imensa [...] o seu efeito sobre

a mistura original é muito poderoso”149.

Ao tentar descrever o νοῦς, Anaxágoras busca algo incorpóreo, assim como seus

predecessores, mas o fato de preferir νοῦς a ψυχὴ evoca no pensamento grego uma noção

de proximidade com o corpo vivo. Sendo corpóreo, o νοῦς “deve o seu poder, em parte,

à sua sutileza, em parte, ao fato de só ele, embora presente na mistura, se manter, todavia,

sem se misturar”150. Decorre desse pensamento que Anaxágoras compreende o νοῦς como

a força geradora do universo e a inteligência como a causa ordenadoras das coisas, pois

esta dispõe a matéria de acordo com as leis da harmonia.

O filósofo pensa ainda que “o espirito tem poder sobre todas as coisas que tem

alma, tanto as maiores quanto as menores”151, assim o Homem tem acesso ao divino em

virtude de suas potências análogas. Por não ser capaz de distinguir a verdade, devido a

fraqueza dos seus sentidos, o Homem está sujeito à ordenação imposta pela estrutura do

universo que o νοῦς gerou. E apesar de não organizar “o cosmos com um olho em direção

147 SOUZA. op. cit., p.38. 148 ANAXÁGORAS. Fragmento 12. 149 KIRK; RAVEN; SCHOFIELD. op. cit., p.384. 150 Ibidem, p.391. 151 ANAXÁGORAS. Fragmento 12.

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ao que é melhor”152, Anaxágoras possui um efeito profundo em Platão, principalmente

com a reivindicação do νοῦς como regente do cosmos.

2.2 A ψυχὴ em Platão

Seguindo o desenvolvimento que o conceito de ψυχὴ adquiriu ao longo dos

séculos, Platão abarca grande parte dessas teorias e cria algo inédito. Desde a ψυχὴ

homérica, destinada ao Άδης, passando pelos ritos catárticos órficos e pitagóricos, até a

possibilidade de imortalidade da ψυχὴ empedocliana, Platão reflete sobre a importância

da ψυχὴ “como um núcleo unificado de comportamento, um representante da totalidade

da pessoa após a morte e um antagonista do corpo”153.

A ψυχὴ para Platão, assim como todo o seu pensamento, não pode ser resumida

em um sistema fechado. Assim como vários aspectos de sua filosofia, Platão moldou o

conceito de ψυχὴ à sua própria maneira de pensar, sofrendo como esta, alterações com o

passar do tempo. Definir o que seja a ψυχὴ, sua origem e suas características, ainda hoje

é de uma complexidade enorme. Assim, para dar conta de explicar algo tão complexo

Platão buscou ajuda nos mitos, pois, “o que, realmente, ela seja, é assunto de todo o ponto

divino, que exigiria largas explanações; mas, irá bem uma imagem em nosso linguajar

humano e de recursos limitados”154.

Dessa forma, Platão compreendeu a ψυχὴ como uma estrutura primordial para o

entendimento não apenas do Homem, mas “por meio da qual, usada como instrumento,

percebemos todo o sensível”155.

2.2.1 A ψυχὴ imortal e tríade

152 SISKO, John. Anaxagoras on Matter, Motion, and Multiple Worlds. Philosophy Compass, John Wiley

& Sons Ltd., vol.5, nº6, pp.443-454, 2010, p.443. (Tradução nossa). 153 KATONA. op. cit., p.39. 154 PLATÃO. Fedro, 246a. Todas as citações do diálogo Fedro fazem referência à: PLATÃO. op. cit., 1975. 155 PLATÃO. Teeteto, 184d. Todas as citações do diálogo Teeteto fazem referência à: PLATÃO. Diálogos:

Teeteto, Crátilo. 3ªed. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora UFPA, 2001.

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Apesar de, durante certo tempo, julgar que não existiria conflito entre desejo e

intelecto, Platão desenvolve posteriormente uma concepção mais complexa e completa

para a ψυχὴ. Partindo de uma análise minuciosa da dualidade existente entre σῶμα e

ψυχὴ, o filósofo ateniense busca a compreensão do que seja a imortalidade e, por

consequência, expõe toda uma cadeia de pensamentos que o levarão a hierarquizar os

εἴδε156 da ψυχὴ e tornar consistente a sua teoria das Ideias/Formas.

Platão empenhou-se em comprovar que a ψυχὴ era mais do que a antiguidade

havia pensado até então, e através de um dualismo ontológico pensou a realidade como

uma estrutura dividida. Assim, Platão propõe a Glauco: “imagina uma linha cortada em

duas partes desiguais, a qual dividirás, por tua vez, na mesma proporção: a do gênero

visível e a do inteligível”157. Dessa forma, podemos vislumbrar duas estruturas, de um

lado existe o que pertence ao mundo sensível, das aparências, que possui sua realidade

corrompida pela mutabilidade de seus elementos. De outro lado há o mundo das

Ideias/Formas, do inteligível, o único mundo para Platão que pode ser considerado

verdadeiro e imutável. E ao dividir a realidade em duas, Platão expande esse pensamento

e faz dele um instrumento para compreender a verdade da ψυχὴ.

Considerando o Homem como parte do mundo, Platão pensa-o também como um

arranjo de dois elementos. Assim, o Homem é a soma da ψυχὴ com o σῶμα. No Cármides,

Platão afirma que a atenção ao todo (Homem) é primordial, pois que “este é o que mais

cuidados requer, e se esse conjunto não fosse bem, era impossível que suas partes (corpo

e alma) fossem”158. Mas a concepção mais importante e difundida do σῶμα platônico é o

seu aspecto de túmulo da ψυχὴ.

Platão considera o σῶμα uma cripta, como diz no Górgias: “eu próprio já ouvi

certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo”159. Vai

156 Adotamos nesse trabalho a concepção de εἶδος para fazer referência ao que, em outros trabalhos, é

conhecido como “partes” da alma. Consideramos que a palavra “parte” possa invocar o significado de algo

fracionado onde cada parte existe separadamente e de forma independente, sem relação com o todo. Sendo

assim, εἶδος remete a um componente da alma, que existe, relativamente, de forma independente, mas que

não pode ser vista como o todo. É um aspecto da alma sem o qual a alma não seria alma. Cf. LIDELL;

SCOTT. op. cit. 157 PLATÃO. República VI, 509d. 158 PLATÃO. Cármides, 156e. Todas as citações do diálogo Cármides fazem referência à: PLATÃO.

Diálogos: Crátilo, Cármides, Laques, Íon, Menexeno. Tradução, textos complementares e notas: Edson

Bini, Bauru: Edipro, 2011. 159 PLATÃO. Górgias, 493a. Todas as citações do diálogo Górgias fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,

1980.

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mesmo além, como no Crátilo, onde ao ser perguntado sobre o σῶμα por Hermógenes,

Platão responde, loquazmente:

Este me parece de muitos tipos, se alguém alterar um pouco mais o

sentido. De certo alguns dizem que ele é o túmulo da alma, como se

agora ela estivesse enterrada nele. [...] Entretanto, parece-me que foram

sobretudo os Órficos que estabeleceram este nome, e o deram como

punição da alma, e é para pô-la a salvo que possui este envoltório, à

imagem de uma prisão; e ele é para a alma, tal como ele próprio designa,

um cárcere160.

Assim, considerando passagens como estas é fácil depreender que o σῶμα não

passa de uma prisão da ψυχὴ, algo que a aprisiona e a impede de se libertar e existir

plenamente. Contudo, queremos enfatizar que apesar dos aspectos, aparentemente,

maléficos do σῶμα, Platão também apresenta uma concepção assaz diversa para o

antagonista da ψυχὴ. Portanto, apesar de Platão afirmar, por um lado, ao se referir ao

σῶμα, que

não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade

de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são

outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez,

imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal

ponto ele nos satura que, de fato, como se diz, por sua causa jamais

conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que seja161.

E por outro lado, ao se referir à ψυχὴ, Platão enunciar que esta é mais afeita ao divino e

que por isso é naturalmente feita para governar e ordenar, ao passo que ao σῶμα resta

obedecer e servir; apesar disso, Platão também exprime certa importância para este

cárcere. A ψυχὴ encarnada encontra-se apenas sob uma nova condição, na qual o σῶμα

deverá ser atendido para a manutenção da vida. Após esse elo, a ψυχὴ estará livre para

continuar suas revoluções através da recuperação de suas potencialidades originárias.

Ao buscar explicar uma aproximação entre medicina e oratória, por exemplo,

Platão enuncia a Fedro uma maneira de se analisar a natureza do Homem para que este

160 PLATÃO. Crátilo, 400b-c. Todas as citações do diálogo Crátilo fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,

2011. 161 PLATÃO. Fédon, 66b-c. Todas as citações do diálogo Fédon fazem referência à: PLATÃO. op. cit.,

1980.

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seja alvo de conhecimento. Assim, para o σῶμα é necessário atentar à alimentação e aos

remédios “a fim de deixa-lo forte e saudável [...] no caso da alma, por meio do ensino e

de instituições legais, comunicar-lhe convicções e a virtude”162. Tornando, destarte, o

Homem um composto de elementos que, antes de se anularem e se prejudicarem, se

complementam. Da mesma forma, em outro colóquio, Platão afirma, de maneira mais

enfática, qual é a verdadeira relação entre ψυχὴ e σῶμα e a relação destes elementos com

o Homem: “uma coisa é a verdadeira causa, e outra, muito diferente, aquilo sem o que a

causa jamais poderá ser causa”163. Ou seja, para que o Homem compreenda a imortalidade

da sua ψυχὴ, para que ele vislumbre resquícios do mundo das Ideias/Formas através da

sua ψυχὴ enquanto encarnado, é necessário que esta esteja em relação íntima com o σῶμα,

pois apenas no reflexo do mundo do sensível, perceptível com o σῶμα, que o Homem

tem a oportunidade de apreender, com a ψυχὴ, traços do mundo inteligível.

Platão, assim, lança sólidas bases para idealizar uma ψυχὴ imortal. Visto que com

o σῶμα estamos ligados ao mundo dos sentidos e das aparências, entrever indícios do

mundo da verdade, das Formas/Ideias, só pode ser feito pelo seu contrário, a ψυχὴ.

Segundo Platão, ao se referir aos contrários, “enquanto cada um é o que é, recusam-se a

tornar-se e ser ao mesmo tempo o seu contrário, retirando-se ou desaparecendo quando

essa conjuntura se apresenta”164. Platão assegura que a essência da ψυχὴ encontra-se no

auto movimento, ou seja, a ψυχὴ possui dentro de si a capacidade de tirar de si mesmo o

movimento que a torna animada, ao passo que o que não se movimenta por si

necessariamente precisa receber o movimento de fora e por isso é designado inanimado.

Considerando que o σῶμα necessita de vida para poder viver, e que essa vida não

lhe é própria, cabe à ψυχὴ a qualidade de possuir, em si, vida. Por simples arranjo lógico

de contrários, Platão afirma que ao possuir vida a ψυχὴ “nunca poderá aceitar o contrário

daquilo que ela sempre traz consigo”165, sendo a morte o contrário da vida. Seguindo seu

raciocínio, Platão enfatiza que não recebendo a morte, a ψυχὴ é imortal; e por ser imortal

é também indestrutível e assim, imperecível. Concluindo a sua exposição acerca da

imortalidade da ψυχὴ, o argumento versa que ao aproximar-se do Homem a morte, a

162 PLATÃO. Fedro, 270b. 163 PLATÃO. Fédon, 99b. 164 Ibidem, 102e-103a. 165 Ibidem, 105d.

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ψυχὴ, detentora de vida, se retira do σῶμα. Perece aquilo que é inanimado no Homem, o

σῶμα; liberta-se o que é imortal, a ψυχὴ.

A ψυχὴ imortal ocupa uma posição medular no conjunto da filosofia platônica.

Vale ressaltar que Platão pensa a ψυχὴ com sua preexistência junto ao deuses e que por

desejar “ardentemente alcançar a parte superior”166 entra em conflito com outras ψῡχαί.

De sua queda resulta sua existência intermediária entre os Homens e os Deuses. Ao

libertar-se do σῶμα, a ψυχὴ retorna ao Άδης e “depois de ter o destino merecido e de lá

permanecer o tempo indispensável, outro guia a traz de volta, após numerosos e longos

períodos de tempo”167. Então, novamente, a ψυχὴ contempla o mundo inteligível, e o faz

por ser análogo às Formas/Ideias, ou seja, a ψυχὴ tem a possibilidade de contemplar o

mundo das Formas/Ideias por semelhança ao “divino, imortal, inteligível, de uma só

forma, indissolúvel, sempre no mesmo estado e semelhante a si próprio”168.

Contudo, Platão não se satisfaz com a simples argumentação em prol da

imortalidade da ψυχὴ. É importante para o filósofo a obtenção total da natureza da ψυχὴ

para que todas as suas possibilidades possam ser esgotadas. Dessa forma, Platão busca

ajuda nos mitos para arquitetar a tripartição da ψυχὴ com o fito em demonstrar a

importância dessa estrutura tríade dentro do seu pensamento disjuntivo sobre a ruptura

introduzida entre o sensível e o inteligível.

Ao refletir sobre a ingerência da ψυχὴ no Homem, em suas decisões e

pensamentos, Platão analisa a possibilidade de alguns sentimentos que aparentam

contradição. O filósofo observa o caso da pessoa que sente sede, mas que repele a bebida,

seja por atenção à saúde seja por qualquer outro motivo. Nesse caso o sequioso possui o

desejo, a concupiscência, de beber devido ao sentimento de sede, ao qual Platão chama

de ἐπιθυμητικόν169. Segundo Platão este é o εἶδος da ψυχὴ mais numeroso em suas

definições, estando ligado ao nome de apetitiva “por causa da veemência dos desejos

relacionados com o comer, o beber, o amor e demais apetites do mesmo gênero”170.

Platão também versa sobre uma anedota acerca de Leôncio, filho de Agláion.

Nesta passagem, o filósofo conta que Leôncio, ao passar próximo de cadáveres estendidos

166 PLATÃO. Fedro, 248a. 167 PLATÃO. Fédon, 107e. 168 Ibidem, 80b. 169 ἐπιθυμητικόν se refere ao aspecto concupiscente da ψυχὴ. É o elemento referente ao desejo. Cf. LIDELL;

SCOTT. op. cit. 170 PLATÃO. República IX, 580e.

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no chão foi tomado de um desejo mórbido de olhá-los, ao mesmo tempo em que sentiu

repugnância que o levava a afastar-se daquele local. Não conseguindo conter o ímpeto

impulsivo correu a olhar os cadáveres gritando: “Eis aí, miseráveis; saciai-vos desse belo

espetáculo!”171. A esse εἶδος intempestivo e irascível Platão chamou de θυμοειδές172. O

filósofo sustenta que as principais características daquele que se deixa governar pelo

θυμοειδές são a cobiça, a cólera, a ambição, o orgulho e a estima às honrarias173.

Dessa forma, ao versar sobre ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές Platão apresenta uma

importante concepção para a tripartição da ψυχὴ, de que o mesmo sujeito não pode fazer

e sofrer ações contrárias referentes ao mesmo objeto ou situação. Por isso, “onde quer

que verifiquemos semelhante fato, podemos concluir que não se trata de um único

princípio, porém de vários”174. Assim, enquanto o sequioso desejava acabar com a sede e

Leôncio cobiçava olhar para os cadáveres, algo muito maior os impedia de executar tais

ações. A este terceiro e mais importante εἶδος da ψυχὴ Platão chamou de λογιστικὸν175.

Sendo esse o elemento mais importante da ψυχὴ, responsável pelo calcular, pelo aprender

e que “se esforça integralmente para atingir a verdade”176, sendo amigo do conhecimento

e da sabedoria. É o εἶδος que comanda a ψυχὴ.

Importante ressaltar, nesse momento, que Platão buscou desenvolver essa

tripartição da ψυχὴ tentando torná-la mais palatável. No diálogo Fedro, Platão engendrou

uma analogia entre a composição da ψυχὴ e uma carruagem puxada por dois cavalos177.

Um dos cavalos é mais dócil e para ser conduzido basta uma palavra ou ordem, o outro

cavalo é mais arisco e teimoso só obedecendo ao uso do chicote. O primeiro cavalo atende

pelo nome de ἐπιθυμητικόν, relacionado à concupiscência, e o segundo pelo nome de

θυμοειδές ou irascível. Ao cocheiro, λογιστικὸν, cabe a racionalidade de dominar e

governar esses εἴδε hierarquicamente inferiores, pois “é exclusivamente por seu

intermédio que a verdade é percebida”178.

171 PLATÃO. República IV, 440a. 172 θυμοειδές faz referência ao aspecto irascível da ψυχὴ. É o elemento referente ao apetite. Cf. LIDELL;

SCOTT. op. cit. 173 PLATÃO. República VIII, 548c; 549a; 550b. 174 PLATÃO. República IV, 436b-c. 175 λογιστικὸν se refere ao caráter racional da ψυχὴ. É o aspecto referente à inteligência, razão. Cf. LIDELL;

SCOTT. op. cit. 176 PLATÃO. República IX, 581b. 177 PLATÃO Fedro, 253d-254b. 178 PLATÃO República VII, 527e.

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2.2.2 A διάνοια e o mundo do devir

O λογιστικὸν, para Platão, é o εἶδος racional da ψυχὴ, que, serenamente, “reflete

sobre o bem e o mal”179. É através dele que ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές encontrarão

conforto justo, harmônico e livre de sofrimento dentro da ψυχὴ, pois o λογιστικὸν

“encontrará a maneira de satisfazer as necessidades e os requerimentos daqueles com os

quais convive”180. É o aspecto que rege as faculdades de raciocínio e de cálculo e onde a

διάνοια181 se faz presente e atuante. Ao dividir o λογιστικὸν, Platão agora não hierarquiza

esses novos aspectos. Antes, pensa-os como faces de uma mesma forma, onde a διάνοια

é a possibilidade do “diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma”182. A διάνοια,

assim, estabelece a confiança na existência de um mundo suprassensível real, pois é

“exclusivamente por seu intermédio que a verdade é percebida”183.

Retomando uma das mais famosas alegorias de Platão, a história da caverna se

torna um ponto chave como revelação da importância da διάνοια dentro da filosofia

platônica. Os Homens aprisionados no fundo da caverna contemplando as sombras

referem-se aos εἴδε da ψυχὴ, todos aprisionados ao σῶμα, enquanto encarnados, pois,

segundo Platão, “os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o

qual transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-a a acreditar

que tudo o que o corpo diz é verdadeiro”184. Assim, λογιστικὸν, ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές

“amarrados com cadeias, de forma que são forçados a ali permanecer”185, ficam presos

ao σῶμα. Contudo, existe algo para Platão que proporciona uma modificação nessa

condição dos εἴδε da ψυχὴ: a educação filosófica. Dessa forma, “a educação não será mais

179 PLATÃO. República IV, 441c. 180 RUGNITZ, Natalia Costa. Estrutura e dinâmica da psique na filosofia platônica da República.

Campinas: UNICAMP, 2012. 143fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2012, p.44. 181 O conceito de διάνοια será utilizado nesta dissertação com o sentido de capacidade de pensamento,

sendo este considerado como um processo mental através do qual o Homem modela sua percepção do

mundo ao redor de si. O pensamento permite que o Homem pense o Ser, permite que ele extrapole as

barreiras impostas pela linguagem e avance além dos sentidos impostos pelo σῶμα e seja a mais importante

ferramenta da ψυχὴ na apreensão do mundo inteligível. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 182 PLATÃO. Sofista, 263e. Todas as citações do diálogo Sofista fazem referência à: PLATÃO. Diálogos:

Banquete, Sofista, Fédon, Político. 1ªed. Tradução: José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz

Costa. São Paulo: Difusão Europeia do Livro; Porto Alegre: Editora Globo, 1972. 183 PLATÃO. República VII, 527e. 184 PLATÃO Fédon, 83e. 185 PLATÃO. República VII, 514a.

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do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira mais fácil e eficiente de

consegui-la”186.

Sendo o λογιστικὸν o aspecto racional e governante da ψυχὴ, este é o único εἶδος

que efetivamente se liberta, e que através da διάνοια empreende a jornada descrita por

Platão até o mundo inteligível.

Porém, vamos começar essa análise pelo fim. Platão assegura que depois de

vislumbrar o mundo das Ideias/Formas, que é aludido pelo mundo exterior da caverna, e

que tem o Sol como a Ideia suprema de Bem, o Homem (que chamaremos a partir de

agora de λογιστικὸν) retorna para a sua morada encarnada ao σῶμα, junto aos demais

εἴδε, ἐπιθυμητικόν e θυμοειδές, com o conhecimento do mundo inteligível. Por ter sido

apenas ele, λογιστικὸν, a sair do mundo sensível, somente ele tem a lembrança do mundo

supra sensível, e através da διάνοια é “possível a ela (ψυχὴ) rememorar aquelas coisas

justamente que já antes conhecia”187.

Antes, porém, de sair para o mundo das Formas/Ideias, o λογιστικὸν contemplou

o fogo que proporcionava uma luz, e com a διάνοια apreendeu que essa era a luz que, se

lançando sobre as imagens, criava as sombras que antes ele via no fundo da caverna. A

διάνοια entende, assim, que vivia em um mundo de imagens irreais, um mundo de

simulacros, e que se fosse obrigado a designar aquelas imagens pelos seus respectivos

nomes, o λογιστικὸν “ficaria atrapalhado e imaginaria ser mais verdadeiro tudo o que ele

vira até então do que quanto naquele instante lhe mostravam”188. Platão afirma que antes

de se libertar, a ψυχὴ não diferencia conhecimento de δόξα189, visto que ela “é primeiro

gerada sem intelecto cada vez que é aprisionada num corpo mortal”190, e que o menor

contato com elementos exteriores, dos sentidos, nubla o entendimento da διάνοια.

Ao desvelar o mundo da inverdade, a διάνοια compreende que δόξα “consiste em

tomar a imagem de alguma coisa, não pelo que ela é como imagem, mas pela própria

coisa com a qual ela se parece”191, ou seja, se percebe em uma existência falsa, onde as

186 Ibidem, 518d. 187 PLATÃO. Mênon, 81c. Todas as citações do diálogo Mênon fazem referência à: PLATÃO. Mênon.

Texto anotado e estabelecido: John Burnet. Tradução: Maura Iglésias. Rio de janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola,

2001. 188 PLATÃO. República VII, 515d. 189 Δόξα possui o sentido de opinião. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 190 PLATÃO. Timeu, 44b. Todas as citações do diálogo Timeu fazem referência à: PLATÃO. Timeu-Crítias.

1ªed. Introdução e Tradução: Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011. 191 PLATÃO. República V, 476c.

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coisas podem ser verdade ou mentira, uma vez que a δόξα pode ser verdadeira ou falsa.

Sobre esse assunto, assaz importante, Platão teceu alguns comentários que podem

clarificar nossas conjecturas.

O filósofo ateniense assegura que o Homem não deve “aprender e investigar a

partir dos nomes, mas sobretudo das coisas em si”192, visto que ao nomear objetos físicos

e elementos do pensamento, cerceamos a capacidade de pensar além, e incluímos o nome

como atributo da coisa em si. Ao dizer o que a coisa é, pelo nome, imprimimos nela uma

δόξα, que deverá ser a δόξα verdadeira, pelo menos para quem emite tal discurso.

Contudo, essa δόξα pode não ser verdadeira para o interlocutor, o que “se conclui é que

nas opiniões dos homens não há só verdade, porém as duas coisas: verdades e erros”193.

E como o que existe não pode ser uma coisa e seu oposto ao mesmo tempo, depreende-

se que um mundo governado pela δόξα, é um ambiente onde a verdade ainda não está

desvelada por completo e apenas alguns de seus traços são visíveis.

Apesar de parecer incongruente, Platão afirma, por um lado, que a δόξα pode ser

verdadeira ou falsa “justamente nas coisas que sabemos e que percebemos”194, ou seja,

que não pode haver δόξα certa ou errada com relação ao que o Homem nunca soube ou

nunca percebeu; em outra mão, o filósofo assegura que “a verdade das coisas que são está

sempre na nossa alma [...] de modo que aquilo que acontece não saberes agora é

necessário tratares de [...] rememorar”195. Dessa forma, Platão aparenta estar em

contradição, pois se a verdade das coisas está sempre na ψυχὴ do Homem, esta é

conhecida e percebida, e é somente o que se conhece e se percebe que pode ser objeto de

uma δόξα falsa. Todavia, ao proclamar que “a opinião tem por objeto o devir”196, Platão

propõe uma nova perspectiva à dinâmica do λογιστικὸν ao se separar do σῶμα.

Ao considerarmos o feio, o injusto e o pesado, e referenciar um objeto qualquer

com esses atributos, também estaremos dizendo o que esse objeto é bonito, justo e leve.

Assim, Platão afirma que “da translação das coisas, do movimento e da mistura de umas

com as outras é que se forma tudo o que dizemos existir, sem usarmos a expressão correta,

pois em rigor nada é ou existe, tudo devém”197. Dessa forma, um ente que existe e que

192 PLATÃO. Crátilo, 439b. 193 PLATÃO. Teeteto, 170c. 194 Ibidem, 194b. 195 PLATÃO. Mênon, 86b. 196 PLATÃO. República VII, 534a. 197 PLATÃO. Teeteto, 151d-152e.

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pode ser nomeado pelos sentidos, pode ter atributos opostos, o que significa que há um

movimento ininterrupto de tudo o que o mundo sensível produz. Assim, Platão acredita

que o mundo dos sentidos é imperfeito, pois eternamente mutável e inconstante. Os entes

sensíveis são imperfeitos porque “nunca são exatamente, e sim apenas aproximadamente,

qualquer coisa que digamos que elas são”198. Platão chama então de mundo do devir, da

mudança, do falso, esse mundo onde os entes apenas aproximam-se do que

verdadeiramente são, devido à mutabilidade de suas existências.

Em função da mutabilidade do mundo sensível, Platão afirma a existência de um

mundo inteligível, onde o que existe é imutável. Ao dizer que uma pessoa é bela, grande

e justa, no mundo do devir ela também seria feia, pequena e injusta, mas ao engendrar o

mundo inteligível, Platão introduz um tipo de objeto que torna possível conhecer o que a

beleza, a grandeza e a justiça são nelas mesmas. Essas Formas/Ideias são sempre e

essencialmente belas, grandes e justas, respectivamente. Dessa forma, é no mundo do

devir, dependendo das circunstâncias e das relações com outras coisas, que os entes

possuem essas qualidades e podem, por isso, serem belos e feios, grandes e pequenos,

justos e injustos. No mundo do devir de Platão “um objeto não pode reter ao longo do

tempo nenhuma característica ou qualidade, nem se essa característica for um padrão de

fluxo”199.

Mas ao preocupar-se com a copresença de opostos no mundo do devir, Platão

descortina não apenas a possibilidade de existência do mundo das Formas/Ideias, mas

acima de tudo a possibilidade da ψυχὴ contemplar esse mundo inteligível através da

διάνοια. Assim, retomando a Alegoria da Caverna, quando o λογιστικὸν se liberta do elo

com os outros εἴδε da ψυχὴ, e vê a luz do fogo e as imagens que passavam as suas costas,

a διάνοια compreende que o que se dava no fundo da caverna, que o λογιστικὸν tomava

por realidade, na verdade era um simulacro. Com o esforço correto, esforço que é possível

devido à correta educação enquanto encarnada, a διάνοια consegue rememorar a sua

passagem anterior pelo mundo inteligível e pelo mundo sensível e vislumbrar que o

mundo do devir é apenas uma passagem, uma etapa necessária, para o mundo junto as

Formas/Ideias.

198 FLAKSMAN. op. cit., p.21. 199 Ibidem, p.22.

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Platão nos fala que a Forma/Ideia da Beleza é o aspecto perfeito para comprovar

essa contemplação. A ψυχὴ que perde as asas e cai da abóbada celeste200, ou ainda, o

λογιστικὸν que após contemplar o mundo supra sensível retorna à caverna para

novamente estar com os outros εἴδε e retornar para o σῶμα201 tem grande dificuldade em

lembrar de sua passagem pelo mundo das Formas/Ideias, principalmente se já tiver os

sentidos corrompidos após encarnada. Contudo enquanto ainda na região superior a ψυχὴ

vislumbra que “somente a Beleza recebeu o privilégio de ser a um tempo encantadora e

de brilho incomparável”202, e é por isso que quando percebe, com os olhos, alguma feição

que evoque a divindade da Beleza, a ψυχὴ sente que antigos e conhecidos sentimentos

novamente afloram. Então, como que transpondo estágios, a ψυχὴ se deixa conduzir: “dos

corpos belos para as belas ações, e das belas ações para os belos conhecimentos, até que

dos belos conhecimentos alcance, finalmente, aquele conhecimento que outra coisa não

é senão o próprio conhecimento do Belo”203, rememorando a Beleza em si, vista com a

διάνοια no mundo das Ideias/Formas.

Assim, a Beleza é o aspecto mais forte, dentro da filosofia platônica, que

comprova que o mundo do devir é importante como estágio de ascensão do pensamento

para contemplar o mundo inteligível das Formas/Ideias. O Homem vive no mundo do

devir, mas pode através da elevação de seu pensamento, tomando “consciência de sua

natureza e de sua composição essencial [...] buscar, através do acentuamento de sua parte

divina”204 identificar-se com as Ideias/Formas e contemplar o mundo inteligível.

200 Conforme a Alegoria do Cocheiro descrita no Fedro. 201 Conforme a Alegoria da Caverna descrita em República VII. 202 PLATÃO. Fedro, 250d-e. 203 PLATÃO. Banquete, 211c-d. Todas as citações do diálogo Banquete fazem referência à: PLATÃO. op.

cit., 1980. 204 JUNIOR, José Provetti. O Dualismo Psyché-Sôma em Platão. Campos dos Goitacazes: UENF, 2007.

124fls. Dissertação (Mestrado em Cognição e Linguagem) – Centro de Ciências do Homem, Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, 2007, p.34.

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Capítulo 3

A imanência do dever Shakespeariano

3.1 O gênero tragédia e seu legado

O gênero teatral tragédia, como uma forma artística de drama, deriva da rica

tradição poética e religiosa da Grécia Antiga. Segundo Aristóteles, a tragédia surgiu da

improvisação dos autores de ditirambos e se tornou “a imitação de uma ação elevada e

completa, [...] numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas

partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor,

provoca a purificação de tais paixões”205. A tragédia, desde sua origem, apresenta o

conflito entre a liberdade e a necessidade. Aquela entendida como liberdade do sujeito e

esta como necessidade objetiva. Contudo, na tragédia grega, não há vencedor ou vencido,

pois que liberdade e necessidade aparecem indiferentes à vitória ou derrota. O que está

em disputa nesse conflito é a inerência da necessidade como instrumento para minar a

própria vontade e a liberdade sendo acometida em seu terreno.

A elaboração poética da tragédia grega “é um fragmento autossuficiente da saga

heroica [...] apresentado por um coro de cidadãos e dois ou três atores, e que se destina a

ser encenado no santuário de Dionísio, como parte do culto público”206. Dessa forma, “a

tragédia surgiu do coro trágico e [...] ela era só coro e nada mais que coro”207 em seus

primórdios. Apesar de se desprender do coro com o desenvolvimento das técnicas teatrais

ao longo dos anos, a tragédia é herdeira da ação do coro, sem a qual “teria se transformado

numa criação poética inteiramente outra”208. Assim, o coro representa, na antiga tragédia

205 ARISTÓTELES. Poética. 3ªed. Tradução: Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2008, p.47. 206 WILAMOWITZ, Ulrich von. Einleitung in die Griechische Tragödie. Berlin: Weidmannsche

Buchhandlung, 1907, p.107. (Tradução nossa). 207 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. 2ªed. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, p.52. 208 SCHILLER, Friedrich. A Noiva de Messina. Tradução: Gonçalves Dias. São Paulo: Cosac Naify. 2004,

p.190.

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grega, uma muralha que a peça ergue à sua volta “a fim de isolar-se do mundo real e de

salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”209.

Contudo, Sófocles, é o primeiro a romper com a predominância do coro na

tragédia210. Em suas peças o coro se torna apenas um observador da trama que se

desenrola à sua frente e os diálogos entre os atores ganha maior vulto no desenvolvimento

da peça. Além disso, Sófocles pode ser considerado também como o “mais humanista dos

tragediógrafos gregos, pois os problemas apresentados pelo autor têm relações profundas

com as questões humanas”211. Inserido em um período onde o Homem grego é um ser

que expressa profundo respeito e obediência pelo soberano e pelo vaticínio dos deuses,

Sófocles não apenas se utiliza das predições e consultas aos oráculos, tão importantes

naquele tempo, mas consegue extrapolar a encenação do cotidiano grego para criar algo

novo. Suas peças inauguram o personagem que decide, que se prostra diante das

determinações dos deuses, entretanto questiona o destino que se revela.

Em Édipo Rei212, o personagem Édipo é um soberano que “sem aceitar ser

marionete dos deuses, ouve sua sentença no oráculo de Apolo, mas a todo custo busca

evitá-la”213, e ao deparar-se com necessidade da ação, angustia-se e sofre com a

consciência da inevitabilidade de ter que decidir. Após tomar conhecimento dos maus

augúrios do oráculo, Édipo foge com o entendimento de contrariar os deuses e não

cumprir o prometido pelo sagrado. E mesmo após o cumprimento das profecias, ele

consegue uma espécie de libertação através do extremo conhecimento de si e de sua

incapacidade de ação diante do destino. Sófocles, dessa forma, enfraquece o sagrado e

enaltece o humano.

Assim sendo, torna-se claro que em suas tragédias, Sófocles oscilava entre o

divino e o mundano, o sagrado e o profano e entre a salvação e o aniquilamento, traços

fundamentais do trágico. Esse aspecto de ambiguidade presente nas peças se estende aos

personagens, que apresentavam, também, harmonia de sentimentos e sensações extremas:

“bem-mal, certo-errado, felicidade-infelicidade, tradição-inovação”214. Esse caráter

209 NIETZSCHE. op. cit., p.54. 210 Além disso, Sófocles introduziu a figura de um terceiro ator principal, chamado tritagonista. 211 LEAL, Tito Barros. Ética entre tragédia e filosofia: as mutações do agir-ético no processo histórico

transitorial dos universos arcaico e clássico na Grécia antiga. Kínesis, Santa Maria: UFSM, vol.2, n°03, pp.

220–237, abril 2010, p. 232. 212 SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução: Domingos Paschoal Cegalla. Rio de Janeiro: Difel, 2000. 213 LEAL. op. cit., p.230. 214 Ibidem, p.233.

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ambíguo de seus personagens mostra como Sófocles dotou seus personagens dos mais

viscerais atributos humanos, até então nunca vistos em outros autores. “Pois não é o

aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se aniquilamento; não é no

declínio do herói que se cumpre a tragicidade, mas no fato de o homem sucumbir no

caminho que tomou justamente para fugir da ruína”215. A tragédia de Sófocles apresenta,

assim, “direta e claramente [...] os conflitos internos da estrutura social de Atenas”216 e

os conflitos inerentes à natureza íntima do Homem.

Mas não foi apenas a tragédia da Grécia Antiga que legou características para o

teatro elisabetano do século XVI, o teatro romano também possui algumas características

que, igualmente, foram reapropriadas posteriormente. Entre os grandes tragediógrafos

romanos citamos Sêneca, pois através de suas tragédias ele transparece a função

pedagógica de seus trabalhos que estariam voltados para a “formação do homem ideal, o

sábio, aquele que seria capaz de controlar as paixões e praticar a virtude, cumprindo assim

o seu papel na sociedade”217. Dotando seus personagens de uma luta interior muito

exacerbada entre a razão e as paixões, Sêneca mostra que o Homem tem livre-arbítrio.

Apesar de se manter temente às divindades, com Sêneca o Homem descobre que apesar

de não controlar o seu destino, é consciente de que suas ações podem fazer o bem e repelir

o mal.

Em Medeia218, a protagonista apresenta essa luta interior e acaba por se tornar o

paradigma do pensamento de Sêneca: ao não conseguir dominar sua angústia, sua raiva e

seu desespero, movida pelo sentimento da fúria e da vingança, ao sabor de uma paixão

desmedida, empreende uma catástrofe sem tamanho, planejando e assassinando até

mesmo os seus inocentes filhos. Dessa forma, o teatro romano se afasta um pouco da

tragédia grega, apesar de manter seus principais aspectos cênicos, como o coro por

exemplo. Em Sêneca, “é o homem o responsável pelos seus atos”219, e não mais os deuses.

A enfermidade causada pela acúmulo de maus sentimentos dentro do Homem o leva à

215 SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Tradução: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004,

p.89. 216 HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins

Fontes, 2003, p.84. 217 PIRATELI, Marcelo Augusto. As tragédias de Sêneca e seu aspecto educativo. Revista Cesumar -

Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Maringá: UniCesumar, vol.13, nº2, pp.257-267, jul./dez.2008,

p.261. 218 SÊNECA. Medeia. 1ªed. Tradução: Ana Alexandra Souza. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e

Humanísticos, 2011. 219 PIRATELI. op. cit., p.261.

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ruína, invariavelmente o afastando da razão, porém à medida que se aproxima daquelas

coisas que “são lúgubres, bem ordenadas, destemidas, que fluem com corrente uniforme

e harmoniosa, que são despreocupadas e gentilmente adaptadas ao bem público, benéficas

tanto para si quanto para os outros, o homem sábio não desejará nada de baixo”220.

Dessa forma, o modelo de tragédia moderna se moldou através de alguns autores

clássicos, exemplificados em Sófocles e Sêneca. A tragédia sofocliana apresenta um herói

que toma consciência da sua existência e da sua incapacidade diante do destino, bem

como da brevidade de sua vida, e que por isso se afasta do terreno do divino para desvelar

aspectos da humanidade inerente ao Homem. Contudo, são as tragédias de Sêneca que

legaram uma grande herança ao teatro moderno. Ao se desenvolver sobre os alicerces

trágicos senequianos, o teatro moderno, especialmente o elisabetano, modelou-se sobre

“as cores tenebrosas, as aparições pressagiadoras e infaustas de fantasmas, a mania dos

delitos atrozes”221 contidas em Sêneca, além dos personagens com solilóquios cheios de

retórica e de falas meditativas.

Apesar de não ser provável que William Shakespeare leu essas e outras obras

trágicas, principalmente as tragédias de Sófocles ou Sêneca, é certo e verificável que as

bruxas e o espectro de Banquo em Macbeth222, os trovões e a tempestade aterradora em

Rei Lear223 e a aparição fantasmagórica do pai de Hamlet, em Hamlet224, guardam certas

similitudes com as obras sofocliana e senequiana, especialmente esta última. Outro

aspecto de convergência entre as antigas tragédias e as tragédias Shakespearianas é a

caracterização do herói: em ambas existe a exigência de que o herói “seja sempre

consciente em ocasiões essenciais, isto é, quando está sozinho consigo mesmo, contraria

a consciência necessariamente limitada do herói moderno. A consciência aspira sempre à

clareza; uma consciência limitada é uma consciência imperfeita”225. Em ambas a

220 SÊNECA. Moral Essays. Tradução para o inglês: John W. Basore. London: William Heinemann Ltd.,

New York: G.P. Putnam’s Sons, vol.1, 1928, p.73. (Tradução nossa). 221 PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p.611. 222 SHAKESPEARE, William. Macbeth. 4ªreimpr. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret,

2011. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Macbeth, Ato, Cena. 223 SHAKESPEARE, William. O Rei Lear. 2ªed. Tradução: Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Martin

Claret, 2011. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Rei Lear, Ato, Cena. 224 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Anna Amélia de Queiroz; Barbara Heliodora. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2015. A partir desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo:

Hamlet, Ato, Cena. 225 ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der Erlõsung. Frankfurt A.Main: J. Kauffmann Verlag, 1921, p.268.

(Tradução nossa).

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liberdade humana é honrada com a permissibilidade do herói lutar contra o poder superior

do destino. Ao herói trágico antigo e Shakespeariano é dada a liberdade de agir e a força

de aguentar as consequências de seus atos, pois voluntariamente ele suporta “a punição

por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa

liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre”226.

3.2 As tragédias Shakespearianas e o Homem

Apesar de conter elementos da tragédia antiga, Shakespeare molda algo

inteiramente novo. O autor inglês “se esforça para transformar o vingador monomaníaco

do drama senequiano num herói trágico que pode se desenvolver no curso da ação”227. As

tragédias de Shakespeare apresentam uma estrutura que pode ser verificada em suas

principais peças trágicas: a situação do protagonista no início da peça é terrível, contudo

ele não foi o causador de tal situação, ele não é o responsável, mas apenas mais um dos

elementos que sofrem com ações perpetradas por outros personagens. No final, sob o

domínio da consciência do que efetivamente precisa ser feito, o herói se coloca no nível

do vilão.

Shakespeare apresenta características anormais das capacidades mentais

humanas: sonambulismo, alucinações e insanidade mental, contudo essas condições não

são “ações expressivas de caráter”228, ou seja, as condições mentais alteradas eram

consequências dos desdobramentos de outras ações: a loucura de Lear após a renegação

de suas filhas; o sonambulismo de Lady Macbeth após o assassinato do Rei; a alucinação

de Ofélia após o rompimento amoroso com Hamlet. Shakespeare também introduz, em

algumas tragédias, a figura do sobrenatural, que ajuda no desvelamento da verdade e na

consciência do caráter humano dos personagens.

226 SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Briefe über Dogmatismus und Kritizismus. Leipzig: Felix

Meiner, 1914, p.8. (Tradução nossa). 227 MIOLA, Robert. Shakespeare and Classical Tragedy: The influence of Seneca. Oxford: Claredon Press,

1992, p.33. (Tradução nossa). 228 BRADLEY, A. C. Shakespearean Tragedy: Lectures on Hamlet, Othello, King Lear and Macbeth. 2ªed.

London: Macmillan and Co., 1919, p.13. (Tradução nossa).

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Entretanto, uma das mais importantes características das tragédias

Shakespearianas é inevitabilidade da catástrofe. Apesar de serem conscientes de que as

calamidades são resultado das ações humanas e que não acontecem sem motivação, os

heróis trágicos Shakespearianos admitem que existem circunstâncias que pesam sobre

eles, “o que acaba por sugerir uma cadeia aparentemente inevitável de acontecimentos:

mesmo que as ações cruciais sejam de responsabilidade do herói, elas desencadeiam

consequências e forças que conduzem inevitavelmente à catástrofe final”229.

Em suas tragédias, Shakespeare apresenta problemas filosóficos através da

mistura de emoções extremas. Sentimentos que se apresentam complexos, mesmo se

olhados separadamente, transformam-se em características intrínsecas ao Homem quando

analisadas em conjunto, como amor e ciúme; piedade e raiva; desejo e tristeza. Ao

salientar essas características em seus personagens e dotá-los de embates emocionais tão

heterogêneos, Shakespeare desvela um aspecto de suma importância para que o Homem

se perceba em toda a sua existência.

Apesar de paradoxais, os sentimentos inerentes aos personagens Shakespearianos

apontam para a plenitude e complexidade do Homem. O Homem e tudo o que o cerca e

constitui é importante e “Shakespeare preocupava-se em colocar o homem no palco.

[Pois] para ele o ser humano é quem importava”230.

Uma obra literária se revela, a princípio, com a cultura da sua época de criação,

contudo a obra de Shakespeare não se fecha em seu tempo e a sua grandiosidade está

justamente em ultrapassar a barreira temporal e se colocar de forma universal em suas

interpretações. Assim, com as peças de William Shakespeare “observamos a

transformação sucessiva de toda a realidade – que age sobre suas personagens – em

contexto semântico dos atos, pensamentos e vivências”231, e que passam a ser os atos,

pensamentos e vivências da realidade do Homem.

229 HELIODORA, Barbara. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004, p.127. 230 POLIDÓRIO, Valdomiro. A Representação da Natureza Humana em HAMLET de William

Shakespeare. Revista Travessias. Paraná: UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, vol.3,

nº2, 2009, p.4. 231 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, p.404.

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3.2.1 A loucura e a lucidez

“E o que é a loucura, no fim das contas, senão uma espécie de originalidade

mental? [...] [Pois] a loucura é apenas o uso bizarro e singular dessas faculdades

[intelectuais]”232. Considerando toda a complexidade dos personagens trágicos

Shakespearianos, um importante viés a ser analisado é o da sanidade mental,

principalmente por que a loucura na tragédia Shakespeariana carrega consigo uma carga

de sentimentos complexos e extremos, tal qual ocorre no Homem.

Em Rei Lear, Lear é um rei severo, mas justo. Que mostra o seu amor filial pelas

três filhas e se mostra digno de apreço. Contudo, um homem que se apresenta tão seguro

de si, demonstra fraqueza ao necessitar da confirmação do apreço alheio, principalmente

de suas filhas. “Extremamente hiperbólico, dotado de eloquência insana, Lear sempre

exige mais amor do que lhe pode ser dedicado”233:

Lear - ora dizei-me

qual de vós mais amor nos tem deveras,

por que alargar possamos nossa dádiva

onde contendem natureza e mérito234.

Apesar de amar e desejar ser amado por suas filhas, Lear encontra desprezo e

solidão. O rei sábio e coerente das primeiras cenas cede o lugar para um velho louco; as

longas e quentes noites de verão são suplantadas pela escuridão da noite e pelos tormentos

inebriantes da furiosa tempestade. Essa dicotomia de aspectos cênicos representa a

intensa luta interna pela qual Lear passava, “a solidão, a ingratidão e a percepção da

injustiça cometida contra sua filha caçula o levam à insanidade mental”235:

Lear – Conhece-me ainda alguém? Não, não é Lear.

Andava Lear assim? Falava assim?

232 FERENCZI, Sándor. Obras Completas. Vol.1. São Paulo: Martins Fontes, 1991 APUD PAIVA,

Nunziata Stefania Valenza. Loucura e direito em King Lear de William Shakespeare. Direito, Estado e

Sociedade, Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, nº35, pp.124–134, jul-dez.2009, p.125. 233 BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução: José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro:

Objetiva, 2000, p.607. 234 Rei Lear, Ato I, Cena I. 235 PAIVA. op. cit., p.126.

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Onde terá os olhos? Há de fraca

ter a razão e rombos de sentidos.

Estarei acordado? Não. Quem pode

vir-me contar quem em verdade eu seja?236

Se em Lear a loucura se desvela após a luta entre os sentimentos extremos do

amor e do desprezo, em Macbeth a loucura se apodera de Lady Macbeth através do

sonambulismo. O casal Macbeth transpira poder e ganância, mas é Lady Macbeth que

planeja o regicídio e impele o marido a praticá-lo. “O desejo ardente que sentem um pelo

outro é também o desejo pelo trono, desejo [...] contra o tempo e contra a irrefutável

declaração do tempo: ‘passou’”237. O desejo de poder se faz extremo:

Lady Macbeth – O corvo perdeu a voz para grasnar

a entrada fatal do rei aqui sob as minhas ameias.

Espíritos que estais ao labor de ideias

de morte, dessexuai-me aqui. Da crueldade

mais ignóbil enchei-me até a saciedade.

Desde a cabeça aos pés. Fazei-me o sangue espesso.

Bloqueai a passagem e qualquer acesso

da compaixão até mim238.

Indicando uma visão de loucura muito própria de sua época, Shakespeare povoa

a insanidade mental de aspectos inumanos, sobrenaturais. “No mundo povoado pelos

demônios, seres imaginários tenebrosos, o louco entra na barca para um destino

incerto”239, e Lady Macbeth sucumbe diante de seus próprios desejos. Através do

sonambulismo ela perde as suas faculdades mentais, passa a viver em um mundo onde o

terror do assassinato lhe suja as mãos de um sangue que nunca sai, de uma mancha em

sua alma que nenhum tipo de limpeza corporal será capaz de apagar. Novamente, o

paradoxo de sentimentos opostos, que parecem se harmonizar dentro dos personagens, e

que mostram o quanto o Homem está suscetível aos desígnios dos sentidos.

A loucura em Shakespeare fascina por conter toques da realidade. A loucura “é

um saber difícil, inacessível e temível”240, e esse estado mental em Lady Macbeth e,

236 Rei Lear, Ato I, Cena IV. 237 BLOOM. op. cit., p.638. 238 Macbeth, Ato I, Cena V. 239 PAIVA. op. cit., p.127. 240 Ibidem, p.128.

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principalmente, em Lear mostra que o Homem sofre por ter consciência em demasia.

Apesar de estar envolto em momentos de fúria e desespero, Lear “é a maior figura do

amor que se busca desesperadamente e que é grosseiramente negado jamais posta no

papel ou no palco”241. Sua humana complexidade fica clara quando consideramos que a

verdadeira causa de sua falta de sabedoria e de seu potencial para destruir todos a sua

volta está no extremo amor paternal que ele sente pelas filhas. Em meio a devaneios o rei

tem a percepção do engano e da verdade:

Lear – No dia em que a chuva veio para molhar-me e o vento para me

fazer bater o queixo, e em que o trovão se recusava a obedecer-me, foi

quando as encontrei; foi quando lhes percebi o cheiro. Ide embora; não

têm palavra. Disseram-me que eu era tudo. É mentira!242

Shakespeare faz Lear pensar que jamais fará um gesto memorável “quem, lúcido,

se compreenda, se explique, se justifique e domine seus atos”243, e que tente se manter são

em mundo que se colapsa a sua volta. Nada mais humano do que enlouquecer com a

suposição da sabedoria, pois “o homem normal só percebe parte desse saber, como se

fossem verdadeiras figuras fragmentárias e inquietantes, mas o louco carrega consigo esse

saber por inteiro”244.

3.2.2 O rosto e o retrato

Existe uma subjetividade bidimensional nos vilões Shakespearianos que os

tornam homens “sujeitos às convulsões intelectuais, impacientes com relação a si mesmos

e sombrios, que, em tudo o que fazem, [...] não encontram senão uma breve alegria e um

ardor [...] a seguir a fria esterilidade e o desencanto”245. Essa bidimensionalidade pode

241 BLOOM. op. cit., p.622. 242 Rei Lear, Ato IV, Cena VI. 243 CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Tradução: José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,

1989, p.138. 244 PAIVA. op. cit., p.128. 245 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,

2004, p.334.

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ser verificada no personagem Iago, da peça Otelo246, que para o público revela os seus

planos maléficos, mas que para os outros personagens engendra uma tão bem arquitetada

encenação e “se faz passar por tudo que não é”247. Existe, assim, duas dimensões do

sujeito, uma motivada pela ganância ao poder, que é a verdadeira e que se mostra

escondida, e outra aparente que é falsamente virtuosa, como uma máscara teatral.

Iago – Ao ser dele seguidor, estou seguindo apenas a mim mesmo. Os

céus podem me julgar: eu não sou eu por amor e por dever, mas eu

pareço ser eu por causa de meu peculiar propósito248.

A principal característica de Iago é mesclar uma atividade intelectual intensa com

uma ausência latente de princípios morais. Dizendo o que os homens e as mulheres

querem ouvir, Iago nunca “fala como pensa, nunca age como quer e nunca é como

finge”249, baseando-se em um padrão de sofisticação especulativa. Iago é o exemplo

extremo da capacidade humana de alcançar seus objetivos através das mais torpes

maneiras, indiferente ao seu destino e ao destino de outras pessoas. Não se importando

com os excessos, sofre de um incorrigível fascínio pela vilania, e de uma “atividade

intelectual doentia, de total indiferença ao bem e ao mal”250.

A antítese de Iago é o homem que cultua sua própria figura, que sempre mostra

quem é através de discursos inflamados e saudosistas. Otelo, o general mouro de grandes

conquistas e de grande mérito, sucumbe ante sua mais notável fraqueza: a virilidade.

Shakespeare traz à baila a extrema divisão existente no Homem quando a luta pela

virilidade e pela honra está em jogo. Otelo é derrotado apenas pela suposição de Iago de

que Desdêmona está traindo-o. O ciúme o corrói com uma força avassaladora por ser

causado pelo “pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica, [...] e de maior

ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio

246 SHAKESPEARE, William. Otelo. Tradução: Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2011. A partir

desse ponto todas as citações dessa peça estarão neste modelo: Otelo, Ato, Cena. 247 SUSSEKIND, Pedro. A filosofia em Hamlet. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro: Pontifícia

Universidade Católica, nº35, dezembro de 2014, p.15. 248 Otelo, Ato I, Cena I. 249 TAVARES, Enéias Farias. O belo demoníaco na figura do personagem Iago em Otelo de William

Shakespeare. Revista Ideias, Santa Maria: UFSM, nº21, jan-jun.2005, p.39. 250 BLOOM. op. cit., p.537.

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ego do sujeito”251. Otelo é o personagem que vive feliz como um escravo da grandeza

que cria, preserva e idolatra. Dominado e preenchido pela afetividade que engendra

dentro de si e que supõe que assim também o faz dentro daqueles que o cercam. Para

Shakespeare, as paixões não esperam, “o trágico na vida de grandes homens está,

frequentemente, não no seu conflito com a época e a baixeza de seus semelhantes, mas

na sua incapacidade de adiar por um ou dois anos a sua obra; eles não sabem esperar”252,

padecendo de seus piores fantasmas.

Macbeth é outro vilão Shakespeariano que carece de identidade própria. Contudo,

o nobre que assassina o rei para tomar-lhe o poder é impelido pelo sobrenatural e por sua

esposa, de modo que a sua máscara é facilmente derrubada. Macbeth a princípio nada

deseja. Mas ao contrário de Lady Macbeth que tudo quer e se desintegra por completo,

Macbeth “se torna cada vez mais assustador, aterrorizando a todos, inclusive a si mesmo,

à medida que se transforma no nada por ele próprio projetado”253. Macbeth não sucumbe

à loucura porque Shakespeare faz dele o mais humano de seus vilões. Macbeth representa

todas as situações onde o Homem prevê o que deseja e teme. Ele sabe que é a mais

assustadora criatura com a qual terá que se confrontar. Macbeth sabe que é mais

aterrorizante do qualquer um que o cerca.

Macbeth – Perceber o que fiz, inda há poucos momentos,

Fora muito melhor que não me conhecesse254.

Macbeth paga com a própria identidade o preço da coroa e do cetro, sob o custo

da própria realidade “e uma vez que sua nova realidade se baseia na ilusão pecaminosa,

ela pode ser sustentada apenas pela intensificação do pecado”255. Apesar de seus

tormentos, Shakespeare dota Macbeth de uma grandeza extraordinária, com “uma

consciência tão aterrorizante em suas advertências e tão irritante em suas censuras”256 que

251 FREUD, Sigmund. Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo. In:

FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol.15. Tradução: Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das

Letras, 2011, p.143. 252 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução: Paulo Cesar de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000, p.46. 253 BLOOM. op. cit., p.639. 254 Macbeth, Ato II, Cena II. 255 RUOFF, James E. Kierkegaard and Shakespeare. Comparative Literature, Oregon: University of

Oregon, vol.20, nº4, pp.343-354, autumn 1968, p.349. (Tradução nossa). 256 BRADLEY. op. cit., p.21.

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o leitor Shakespeariano compreende as possibilidades da natureza humana, “pois cada

um de nós faz o impossível para não se ver entregue a si mesmo”257.

3.2.3 A mentira e a verdade

Nenhum personagem de Shakespeare é dotado de tantas nuances e tanta

subjetividade do que o príncipe Hamlet. A complexidade de Hamlet é a complexidade do

próprio Homem. Por isso se faz mister tentar observar todo esse espectro de uma outra

perspectiva. Segundo Nietzsche, é necessário enxergar a tragédia da mesma forma como

esta foi preconizada pelos gregos. Assim, a tragédia grega foi desenvolvida,

principalmente, sob os deuses Apolo e Dionísio. Para Nietzsche,

o impulso artístico dionisíaco, descrito por analogia com a embriaguez,

consiste inicialmente num estado de êxtase, na harmonia de todos os

seres, no esquecimento e na fusão com a natureza, portanto na perda da

individualidade que se revela tão importante para os valores heroicos

da arte grega. Esse impulso se opõe àquele do sonho, que caracteriza

por analogia o apolíneo como um impulso artístico de formação de

imagens, de beleza, de ordenamento258.

Dessa forma, Hamlet se assemelha ao homem dionisíaco pois tão logo a realidade

que o cerca penetra em sua consciência, ele vislumbra a podridão do meio onde está

inserido. Nesse mundo descortinado o homem não é o que parece ser, muito menos o

mundo, assim ele se sente compelido a agir “com a certeza de poder garantir que, mesmo

no final trágico, que já lhe parece determinado, a ordem e a justiça se atualizem”259.

O estudante de Wittenberg, que vive em mundo apolíneo de beleza e ordenamento,

retorna à sua terra natal para o enterro do rei, mas a aparição do fantasma de seu pai

desvelando uma terrível verdade o coloca novamente no mundo real. Hamlet “toma

257 CIORAN. op. cit., p.29. 258 SUSSEKIND, Pedro. Nietzsche leitor de Shakespeare. Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, nº31,

2012, p.183. 259 MENDES, Clarissa Ayres. Hamlet Dionisíaco – Breves considerações sobre Hamlet de Shakespeare na

perspectiva nietzschiana do Nascimento da Tragédia. Ítaca. Rio de Janeiro: UFRJ, nº15, 2010, p.172.

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conhecimento da existência de uma realidade maior que ignora sua vontade

individual”260, ele começa a descobrir a “discrepância entre a aparência e a realidade e

entre o ideal e o real”261, entre a mentira e a verdade. De forma que uma escolha logo se

apresenta: pode ele levar uma vida passiva em um estado de semiconsciência da realidade,

onde ele tem consciência apenas de si mesmo, ou tornar-se ativo e aceitar todas as

consequências que seguirão esta escolha. Dentro dessa perspectiva, “a essência – o lado

sombrio e aterrador da existência, o horror e o absurdo, a atração do suicídio – se opõe às

ilusões da bela aparência, à ordem, aos limites frágeis”262 das relações humanas.

A situação inicial da qual Hamlet se depara está repleta de dualidade. Sob a

máscara da suposta tristeza pelo enterro do rei encontra-se a felicidade pelas bodas de

casamento da rainha. O regicídio guarda muito mais do que Hamlet pode imaginar, e a

consciência da verdade profunda o torna lúgubre e desconfiado perante todos aqueles que

o cercam. Hamlet deu um mergulho profundo na realidade e na sua existência, mas

precisa guardar para si seus pensamentos apesar de sofrer “pelos pecados dos outros”263.

Para Hamlet, todo mundo a sua volta está representando um papel e a vida é um

teatro. Sua mãe Gertrudes e seu tio, agora rei, Cláudio se tornam paradigmas do tipo de

humano que se deve evitar.

Hamlet – Que obra de arte é o homem, como é nobre na razão, como é

infinito em faculdades e, na forma e no movimento, como é expressivo

e admirável, na ação é como um anjo, em inteligência, como um deus:

a beleza do mundo, o paradigma dos animais. E, no entanto, para mim,

o que é essa quintessência do pó? O homem não me deleita, não, nem a

mulher, embora o seu sorriso pareça dizê-lo264.

Hamlet tenta penetrar na essência da existência, e a sua náusea diante da realidade

está vinculada “ao desejo de descobrir a realidade subjacente às aparências”265. Hamlet

tenta enxergar as máscaras que cada um utiliza para poder retirá-las impiedosamente, para

isso, coloca a sua própria máscara e se finge de louco. A suposta loucura de Hamlet tem

260 Ibidem, p.171. 261 TEKINAY, Ash. From Shakespeare to Kierkegaard: an existential reading of Hamlet. Doğuş

Üniversitesi Dergisi. Istanbul: Boğaziçi University, nº4, 2001, p.117. (Tradução nossa). 262 SUSSEKIND. op. cit., 2012, p.182. 263 RUOFF. op. cit., p.345. 264 Hamlet. Ato II, Cena II. 265 TEKINAY. op. cit., p.118.

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um objetivo muito claro: ao mostrar que a sanidade lhe falta, Hamlet pretende aprofundar

a sua consciência da realidade através dos atos alheios, além de ser um embuste para as

suas verdadeiras intenções. Essa pseudo-loucura é a sua forma autêntica de se revoltar

contra a inautenticidade do mundo são de Claudio e Polônio, que vivem sob a tutela da

ganância, da ambição e da hipocrisia. Hamlet acaba descobrindo que a sua confiança no

Homem e no mundo está seriamente abalada, e se coloca em dúvida diante de sua posição

de ter que lidar com isso tudo. “Ele sofre com a angústia existente e sente a trágica tensão

entre possibilidade e liberdade para escolher, por um lado, e os fatores limitantes da

condição humana, no outro”266.

Após cinco atos, Hamlet finalmente conclui a sua transformação interior e agora

não mais se importa com o que ele tem que fazer, suas ações a partir desse instante são

baseadas em uma profunda consciência de sua capacidade de levar a termo os seus

desígnios. O príncipe sabe, agora, que “não é a dúvida, mas a certeza que enlouquece...

[e que] para assim sentir importa ser profundo, abismo, filósofo... [ele finalmente adquiriu

a consciência de que] Todos temos medo na presença da verdade...”267. Hamlet prefere a

morte ao reino da Dinamarca, onde “um usurpador fratricida ocupa o trono, ao lado de

uma mulher dissimulada, a mais inconstante de todas as mulheres, a mãe infiel”268. O

Hamlet filósofo não é aquele que vive em um mundo abstrato, onde o absoluto

conhecimento retesa a ação, mas aquele que conhece exatamente o que tem que fazer para

dar cabo de suas angústias. O conhecimento de si, em Hamlet, é o propulsor das suas

ações.

O drama hamletiano é um drama humano, demasiado humano, pois assim como

Hamlet sabe, ao final da peça, que “se você pode desempacotar seu coração com palavras,

então o que você expressa já está morto dentro de você”269, o Homem também busca

através de uma vida contemplativa se afastar das falácias, uma vez que “morremos em

proporção às palavras que lançamos em torno de nós. [...] E todos nós falamos; nos

traímos, exibimos nosso coração; carrasco do indizível, cada um esforça-se por destruir

266 Ibidem, p.120. 267 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Tradutor: Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior,

2008, p.33. 268 SUSSEKIND. op. cit., 2014, p.20. 269 BLOOM, Harold. Hamlet: Poem Unlimited. New York: Riverhead Books, 2003, p.32. (Tradução

nossa).

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todos os mistérios, começando pelos seus”270. E por mais que a morte espreite e se faça

presente para grande parte dos personagens, incluindo o próprio príncipe, Hamlet é um

arauto da vida, pois da mesma forma que a mentira quando suplantada desvela a verdade,

a morte de Hamlet o torna senhor da sua existência.

3.3 Shakespeare e o autoconhecimento através do dever

Shakespeare desenvolve dentro de suas tragédias muito mais do que os conflitos

inerentes ao humano segundo as antigas tragédias gregas e romanas, ele expressa as

inquietações modernas. Assim, ao mesmo tempo em que os personagens refletem,

também admiram as paixões impetuosas e sanguinárias. De sua perspectiva distante,

Hamlet “admira melancolicamente a serenidade estóica, possível apenas num mundo

ordenado, e percebe que precisa, ao mesmo tempo, assumir o papel ancestral do vingador

de sangue e jogar o jogo político da corte”271. Dessa forma, a tensão entre sentimentos

opostos, do claro e do escuro, da mentira e da verdade, representam a maneira como

Shakespeare tratou o Homem. Pois, o Homem carrega dentro de si essa tensão entre o

bem e o mal.

Os personagens de Shakespeare estão repletos de ambuiguidades e ambivalências,

mas não se preocupam com a interferência do bem e do mal, pois não são capazes de

estabelecer entre o bem e o mal uma distinção meramente natural. Macbeth enlouquece

ao se deparar com a imagem aterrorizante de si mesmo; Hamlet é um homem inteligente

e sensível que “não pode se afirmar neste mundo e obter um grau viável de

autossuficiência, mas é dominado pela turbulência emocional e pelas loucuras e crimes

de seus semelhantes”272. Em Shakespeare a trágica tensão entre a liberdade e os fatores

limitantes da condição humana estão em perfeita e paradoxal harmonia.

Nas tragédias Shakespearianas a confluência de sentimentos díspares proporciona

novas implicações nas relações humanas. Ao lançar um indivíduo em uma situação

inesperada envolvendo outros indivíduos que carregam suas próprias respostas e emoções

270 CIORAN. op. cit., p.29. 271 SÜSSEKIND. op. cit., 2014, p.18. 272 TEKINAY. op. cit., p.122.

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singulares, Shakespeare “cria um conflito interno que, por sua vez, abre uma gama

aparentemente infinita de possíveis resoluções e não resoluções”273. Assim, a leitura de

Shakespeare se apresenta como um espelho da realidade humana, onde o Homem

contempla as inconsistências, incoerências, ações impensadas e coincidências

inesperadas que a existência pode proporcionar. O Homem vislumbra que a sua existência

“é a aventura mais considerável e mais estranha que a natureza já conheceu, [e que] é

inevitável que seja também a mais curta; [assim] seu fim é previsível e desejável: [e]

prolongá-la indefinidamente seria indecente”274. Com Shakespeare o Homem inicia um

processo de autoconhecimento, de consciência de sua existência através da compreensão

de que Shakespeare eleva os intrínsecos sentimentos humanos ao local de onde o Homem

apenas pode contemplá-los em sua grandeza e em sua completude. Nessa consciência da

verdade “o homem vê agora, por toda parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser

[...] [onde] só ele tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o

horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver”275.

Em suas quatro grandes tragédias Shakespeare mostra as tensões e contradições

constitutivas do Homem. Além disso, mostra que essas tensões não são facilmente

resolvidas, mas que são necessárias para que o Homem se identifique e tenha a capacidade

de compreender que essa convergência de opostos dentro de si é a condição essencial para

que ele conheça todos os aspectos do mundo que o cerca. As tragédias Shakespearianas

se tornam, assim, um arcabouço necessário na busca do Homem pela sua verdadeira

essência, pois exibem “o estado real da natureza sublunar, que participa do bem e do mal,

alegria e tristeza, misturada com infinita variedade de proporções e inumeráveis modos

de combinação, expressando o curso do mundo”276.

273 WHITE, R. S. Variable Passions: Shakespeare’s Mixed Emotions In: KAMBASKOVIC, Danijela (ed.).

Conjunctions of Mind, Soul and Body from Plato to the Enlightenment: Studies in the history of philosophy

of mind. Vol.15. New York, London: Springer Dordrecht Heidelberg, 2014, p.132. (Tradução nossa). 274 CIORAN. op. cit., p.143. 275 NIETZSCHE. op. cit., 1992, p.56. 276 JOHNSON, Samuel. Prefácio à Shakespeare. Tradução: Enid Abreu Dobránszky. São Paulo:

Iluminuras, 1996, p.3.

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Capítulo 4

Conclusão

4.1 O distanciamento entre Platão e Shakespeare

Um aspecto fundamental do distanciamento entre o dever Shakespeariano e o

devir Platônico está na aparente condenação que o filósofo ateniense faz da arte277 e,

consequentemente, da poesia trágica. Platão não coloca todos os saberes que ele considera

como arte no mesmo nível, apenas separa as artes voltadas para o desenvolvimento do

cidadão e da cidade das práticas que estão voltadas para exercer influências sensíveis nos

corpos, como paixões e desejos. À estas últimas práticas artísticas, o parâmetro de

definição de Platão é a μίμησις278, sendo assim, pintura, poesia e tragédia, por exemplo,

são pensadas “por uma inferioridade ontológica, pelo distanciamento das verdadeiras

realidades, das Ideias, às quais a Beleza, por um movimento inverso, deve reconduzir”279.

Platão, assim, não critica a arte em geral, mas um tipo de arte, além disso, como

poderemos verificar a seguir, a sua principal crítica é acerca do mau uso dessa arte.

Para Platão a arte mimética não se ocupa do discurso que tem a função de dizer a

verdade, assim o objeto poético se torna apenas um reflexo, um εἴδωλον280, dos objetos

sensíveis. Dentro do pensamento platônico um objeto particular só adquire seu estatuto

ontológico na medida em que se relaciona com sua Forma/Ideia, dessa forma, a crítica de

Platão invoca que o produto poético esvazia o objeto empírico de sua substancialidade.

Segundo Platão, “as imagens estão longe de ser o mesmo que aquilo de que são

277 É importante lembrar que o conceito de arte para os gregos antigos não faz referência, exclusiva, ao que

a modernidade cunhou de “belas-artes”. Platão trata a arte, grosso modo, como um tipo de ação baseada

em regras específicas com o objetivo de produzir algo. Assim, pintura e poesia são consideradas arte assim

como a medicina e a política, pois enquanto aquela tem o objetivo de “produzir” saúde, esta tem a

preocupação com o equilíbrio social da cidade. 278 Μίμησις faz referência à imitação que algumas produções artísticas carregam em suas manifestações,

mas também podemos considerar que a palavra significa representação de algo e aqui não há qualquer

sentido depreciativo. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit. 279 LACOSTE, Jean. A Filosofia da Arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p.17. 280 Εἴδωλον no sentido de imagem refletida. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.

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imagens”281. Assim, os saberes artísticos voltados para a μίμησις apresentam o Homem

“em ações forçadas ou voluntárias, em decorrência das quais eles se consideram bem-

sucedidos ou malsucedidos, entregando-se, conforme o caso, à dor ou à alegria”282, e não

estão preocupadas com a veracidade daquilo que imitam ou representam.

Ao conversar com o rapsodo Íon, em diálogo homólogo, Platão tenta mostrar

como as encenações dos poetas podem ser corrosivas para os cidadãos. E é o próprio Íon

que revela que diante de sua apresentação, seja de uma poesia patética, seja de um texto

terrível ou assustador, é visível “cada vez que [as pessoas] choram ou lançam olhares

terríveis ou tremem”283 diante de suas palavras. Platão, assim, assegura que certas

composições artísticas, com o fito em se apresentarem apenas como uma imagem

deturpada da realidade284, são como “reiteradas doses de veneno, [o que] resulta causarem

na alma, imperceptivelmente, dano irreparável”285.

Esse dano irreparável de que trata Platão pode ser entendido como o domínio do

ἐπιθυμητικόν sobre o Homem. Segundo o filósofo, esse εἶδος está voltado para os

apetites, para as paixões e os desejos, e é a parte da ψυχὴ que, nas ocorrências infelizes,

o Homem “tenta conter pela força, com sua tendência para saciar a sede de lágrimas e

fartar-se de lamentações [...] [mas] é justamente a que os poetas satisfazem e com a qual

se alegram”286. Platão ainda afirma que uma pessoa dominada pelos apetites onde

“predominam os desejos sobre a razão, [...] se injúria e se insurge contra a porção de si

mesma que a violenta”287.

Após considerar que o objetivo de Platão é fundar, ou antes pensar, uma cidade

ideal onde a razão seja a força motriz de seus cidadãos e que esses sejam guiados pela

justiça e a reta conduta, a Καλλίπολις288, é natural que o filósofo ateniense lance

281 PLATÃO. Crátilo, 432d. 282 PLATÃO. República X, 603c. 283 PLATÃO. Íon, 535e. 284 Cabe ressaltar que Platão sofria pesadas críticas dos comediógrafos, principalmente Aristófanes, e que

talvez essa linguagem esteja carregada de simbolismo, sendo direcionada. É interessante notar as palavras

do próprio Platão que, ao descrever as acusações sofridas por Sócrates, afirma: “‘Sócrates é réu de pesquisar

indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos

outros o mesmo comportamento.’ É mais ou menos isso, pois é o que vós próprios víeis na comédia de

Aristófanes – um Sócrates transportado pela cena, apregoando que caminhava pelo ar e proferindo muitas

outras sandices sobre assuntos de que não entende nada”. Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução:

Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1980, 19b-c. 285 PLATÃO. República III, 401c. 286 PLATÃO. República X, 606a. 287 PLATÃO. República IV, 440b. 288 Καλλίπολις é a cidade justa pensada por Platão Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.

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reprimendas àqueles saberes artísticos que prezem a encenação com o objetivo de

“estragar as pessoas sérias, salvo raríssimas exceções”289, e enganar o público fazendo

suscitar paixões e desejos desmedidos.

Cabe ressaltar que a crítica platônica inclui até mesmo Homero, que a despeito de

possuir todo o respeito de Platão e ser considerado o poeta máximo, é também “o primeiro

dos trágicos”290. A tragédia, assim, assume também uma acepção mimética, sendo

relacionada com as demais artes imitativas que se encontram muito longe da verdade e

“são companheiras, amigas e associadas da porção do nosso íntimo mais afastada da razão

e em que nada se encontra de são e verdadeiro”291. A tragédia Shakespeariana encontra,

dessa forma, o seu ponto de maior distância quando a relacionamos com a filosofia de

Platão. O dever imanente dos sentimentos humanos, como tratado por Shakespeare, se

torna, nessa visão platônica, apenas um simulacro do que realmente é o Homem.

Shakespeare se torna apenas um imitador, uma vez que segundo o pensamento de Platão

as pessoas “que se ocupam com a poesia trágica em versos épicos ou iâmbicos, sem

exceção, são imitadores por excelência”292.

Além disso, Platão reconhece que a poesia mimética corrompe o bom

entendimento dos cidadãos, ao passo que o conhecimento da verdadeira natureza das

coisas pode se tornar um φάρμακον293, um antídoto contra o falso consolo metafísico que

a poesia insiste em destilar nos Homens. É com esse objetivo que, por mais paradoxal que

possa parecer, Platão, ao final do diálogo Banquete, diz poeticamente que Sócrates, como

representante da Filosofia, foi o único a se manter acordado no raiar de um novo dia,

depois de acomodar no leito os sonolentos Agatão, representante da tragédia, e

Aristófanes, representante da comédia. Mostrando que a virtude almejada em sua cidade

ideal é superior à imagem de virtude que as artes miméticas são capazes de produzir.

Dessa forma, Platão salienta que a arte apoiada na μίμησις nada tem a acrescentar

à cidade, e que por isso deve ser regulamentada, pois “o legislador não deveria permitir

que os poetas compusessem da maneira que bem entendem [uma vez que] não seria

provável que eles soubessem que o que dizem poderia ser contrário às leis e injurioso ao

289 PLATÃO. República X, 605c. 290 Ibidem, 607a. 291 Ibidem, 603b. 292 Ibidem, 602b. 293 Φάρμακον aqui se relaciona com o sentido de algo que propicia a cura, não apenas no sentido físico,

mas também no aspecto mental. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.

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Estado”294. O legislador deve, segundo Platão, considerar os poemas exclusivamente pelo

seu sentido manifesto, uma vez que sua essência ambígua, inclusive nas cenas violentas

e trágicas, levanta a questão irresolúvel sobre o correto significado daquilo que é dito.

Platão ressalta que o perigo da arte mimética se encontra nas possibilidades interpretativas

sobre os jovens, uma vez que estes “não têm capacidade para decidir sobre a presença ou

ausência de ideias ocultas; [assim] as impressões recebidas nessa idade são indeléveis e

dificilmente erradicáveis”295.

Contudo, é importante ressaltar que a valia negativa que Platão atribui a arte

imitativa desvela também o valor que esta possui dentro do contexto histórico da Grécia

Antiga, e que nas palavras de Platão estão contidas circunstâncias materiais e ideais da

sociedade grega, inclusive a eficácia político-pedagógica da arte, a qual não se pode

desconsiderar. Assim, Platão cuida para que a cidade seja protegida do hedonismo e do

“ilusionismo da arte revolucionária de sua época, na qual ele vê uma concepção

estritamente humanista, relativista, próxima dos sofistas”296, não condenando a arte em

si, mas seu mau uso. Como forma de comprovar essa assertiva, é digno de nota o lugar

privilegiado que a música apolínea ocupa no pensamento platônico. Sendo uma arte que

inspira o gosto pela virtude por atingir “fundo na alma o ritmo e a harmonia”297, a música

se torna um “treinamento da alma em excelência”298. Assim, a crítica de Platão deve ser

vista por uma outra perspectiva.

4.2 A aproximação entre Platão e Shakespeare

Em primeiro lugar é importante avaliar que Platão concorda que os sentimentos,

como paixões e desejos, suscitados em poesias trágicas e cômicas andam associados, não

apenas no teatro, mas também “na comédia e na tragédia da vida humana e em mil coisas

294 PLATÃO. Leis IV, 719b. Todas as citações do diálogo Leis terão como referência: PLATO. Laws.

Translate: R. G. Bury. Vol.1, Cambridge: Harvard University Press, London: William Heinemann Ltd.,

1961. (Tradução nossa). 295 PLATÃO. República II, 378d-e. 296 LACOSTE. op. cit., p.13. 297 PLATÃO. República III, 401d. 298 PLATÃO. Leis II, 673a.

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mais”299, além disso, o uso correto da arte pode servir como ferramenta na educação moral

dos cidadãos, uma vez que pode fornecer traços verdadeiros de aspectos humanos. Dessa

forma, abre-se a possibilidade para que o próprio filósofo ateniense possa se valer de

aspectos artísticos para dar vazão aos seus pensamentos. Ao assumir que a lei e a razão

são as melhores ferramentas para governar uma cidade, ao passo que busca denegrir as

artes miméticas, a atitude de Platão em utilizar recursos poéticos pode ser vista como

contraditória. Contudo, cabe ressaltar que o ambiente citadino ateniense à época de Platão

está permeado de grande efervescência social300, incluindo uma antiga “querela entre a

poesia e a Filosofia”301.

Assim, Platão não se furta de utilizar o diálogo e descrições de lugares e pessoas.

Além disso, dota Sócrates de características bem peculiares que o aproximam de um

poeta. Para Platão o poeta está sob a inspiração das Musas que “lhe inspira odes e outras

modalidade de poesia que, [...] servem de educar seus descendentes”302, e que não é “pela

arte que diz tantas e belas coisas sobre os assuntos que tratam”303, mas sobre o entusiasmo

de uma força divina304. Tornando mais representativo a posição de Sócrates como

personagem da obra de Platão, é notável a sua reputação revelada nas palavras de Mênon,

no diálogo homólogo:

Sócrates, mesmo antes de estabelecer relações contigo, já ouvia que

nada fazes senão caíres tu mesmo em aporia, e levares também outros

a cair em aporia. E agora, está-me parecendo, me enfeitiças e drogas, e

me tens simplesmente sob completo encanto, de tal modo que me

encontro repleto de aporia. E, se também é permitida uma pequena

troça, tu me pareces, inteiramente, ser semelhante, a mais não poder,

tanto pelo aspecto como pelo mais, à raia elétrica, aquele peixe marinho

achatado. Pois tanto ela entorpece quem dela se aproxima e a toca,

quanto tu pareces ter-me feito agora algo desse tipo. Pois

verdadeiramente eu, de minha parte, estou entorpecido, na alma e na

boca, e não sei o que te responder305.

299 PLATÃO. Filebo, 50b. Todas as citações do diálogo Filebo terão como referência: PLATÃO. Filebo.

Texto estabelecido e anotado: John Burnet. Tradução, apresentação e notas: Fernando Muniz. Rio de

Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2012. 300 Vale ressaltar que dentro da obra platônica existem diversas passagens que contêm críticas a outras

manifestações, como a retórica, a sofística e a comédia. 301 PLATÃO. República X, 607b. 302 PLATÃO. Fedro, 245a. 303 PLATÃO. Íon, 534b. 304 Θεία δε δύναμις. 305 PLATÃO. Mênon, 79e-80b.

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Assim, tal qual um poeta, Platão transforma Sócrates em alguém capaz de

contagiar seus ouvintes através do correto domínio das palavras e das ações. Torna-se

significativo atribuir a Platão as mesmas características artísticas dos poetas, pois se

poetas e atores, cômicos e trágicos, encenam uma imagem, por vezes distorcida, da vida

humana como ela é, o teatro de Platão é moral no momento em que busca expor a vida

do Homem como ela deveria ser, mas não é.

A tragédia interdita o julgamento racional e faz prevalecer outros aspectos como

aparências e deformações. Além disso, a aparência “sem a posse da verdade, não permite

distinguir onde está o vício ou onde está a virtude, pois que a realidade só se torna nítida

a partir dessa máscara”306, tornando a tragédia um recurso artístico que pode ser utilizado

para ludibriar o público, mas que também pode ser entendido como um recurso para

expressar virtudes. Assim, apesar de Platão lançar duras críticas contra a poesia mimética,

justamente porque esta está voltada para a distorção das qualidades que definem a virtude,

a tensão constitutiva da tragédia entre liberdade e necessidade se torna o arcabouço

indispensável para que o filósofo ateniense se torne compreensível.

Assim, ao analisar o diálogo Fédon sob esse viés trágico, encontramos muitos

aspectos que o aproximam da tragédia Hamlet, de Shakespeare. Da mesma forma que

Shakespeare atribui ao personagem Hamlet a capacidade de ir além das palavras, uma vez

que seus “vocábulos se incrustam uns nos outros, como se nenhum pudesse alcançar o

equivalente da dilatação interior”307, Platão traz em Sócrates “a imagem do verdadeiro

filósofo, da sua atividade em vida e da sua atitude perante a morte”308, que, igualmente,

extrapola a barreira das palavras e se torna muito mais que apenas atuação, já que Sócrates

tem, assim como Hamlet, a consciência de que sua atuação nada pode fazer para mudar a

essência das coisas.

Em ambos os casos o personagem principal não é culpado pela situação em que

se encontra. Vale lembrar que Hamlet retorna para Elsinor para o enterro do pai e é

informado sobre as núpcias de sua mãe com seu tio; e Sócrates é condenado por um

306 SUSIN, André Luís. Mimesis e tragédia em Platão e Aristóteles. Rio Grande do Sul: Universidade

Federal do Rio Grande de Sul, 2010. 178 fls. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-

Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2010, p.41 307 CIORAN. op. cit., p.85. 308 CASERTANO, Giovanni. Alma, morte e imortalidade. Tradução: Maria da Graça Gomes de Pina.

Archai. Coimbra: Annablume Clássica, nº17, pp.137-157, may-aug.2016, p.139.

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tribunal, apesar de afirmar que “não têm fundamento nenhum essas balelas”309, se

referindo às acusações contra ele. Contudo, mesmo reféns do destino, Hamlet e Sócrates

não fogem diante da situação que se apresenta. A luta silenciosa e muda dos heróis

trágicos, característica das antigas tragédias, cede lugar a um brilhante desenvolvimento

da conversa e da consciência, onde Hamlet e Sócrates morrem voluntariamente, sem

qualquer desafio310 e com uma superioridade inexcedível. Em Hamlet e Fédon, “o herói

sucumbe sob seus próprios atos, sem que lhe seja dado escamotear sua morte por uma

graça sobrenatural”311 e onde a extrema consciência de sua essência efêmera torna

transparente o aspecto horroroso e absurdo do Homem.

Assim, encontramos uma clara aproximação entre a filosofia platônica e a

tragicidade shakespeariana que é potencializada pelo tratamento que ambos fazem da

morte iminente e inevitável. O príncipe Hamlet traz dentro de si o embate entre o tudo e

o nada, entre a plenitude e o vazio. Representando o Homem, Hamlet tem consciência de

que a reflexão o tornou covarde, que o medo do desconhecido o faz suportar

O açoite e os insultos do mundo,

A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,

As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,

A prepotência do mando, e o achincalhe312.

Mesmo assim, Hamlet se torna senhor de si e sobrepuja seus sentimentos.

Compreende que a morte é a única forma de libertar seu pensamento da austeridade dos

sentimentos. Outrossim, Sócrates tece seu argumento acerca da imortalidade em torno da

ideia de libertação da ψυχὴ. Para Sócrates o verdadeiro conhecimento ocorre quando a

ψυχὴ investiga sozinha a verdade sem as implicações dos sentimentos, ou seja, após a

morte física do σῶμα. Segundo Sócrates, “os que praticam verdadeiramente a Filosofia,

de fato se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor

revelam à ideia da morte”313.

309 PLATÃO. Apologia de Sócrates, 19d. 310 Cabe ressaltar que apesar de Hamlet lutar com Laertes no final da peça, Hamlet tinha a consciência de

que seu oponente era um esgrimista melhor do que ele. Assim, Hamlet lutou fisicamente, mas com a

consciência de que seria derrotado. O duelo com Laertes deve ser entendido como parte de seu plano de

vingança. 311 CIORAN. op. cit., p.108. 312 Hamlet, Ato III, Cena I. 313 PLATÃO. Fédon, 67e.

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4.3 Platão e Shakespeare: uma relação dialética

A relação dialética entre Platão e Shakespeare apresenta aspectos bem definidos.

Por um lado, Platão tece críticas contundentes ao mau uso das artes miméticas, uma vez

que um indivíduo nobre e virtuoso governado somente pela razão parece ser um modelo

incapaz de ser representado pela arte, incluindo a poesia, a tragédia e a comédia, tornando

o teatro Shakespeariano um mero produtor de imagens distante da verdade.

Por outro lado, transforma cada um de seus diálogos em uma obra teatral onde

cada personagem é retratado com seu feitio, com suas opiniões, receios e esperanças, e

onde “se põe em cena sobretudo algo que nenhum dos tragediógrafos ou dos

comediógrafos gregos se atrevera a tratar antes de Platão: a filosofia”314. Com o objetivo

de promover uma transformação ética e intelectual em sua época, Platão utiliza a

linguagem artística para reorientar a mentalidade dos cidadãos atenienses. Os diálogos

platônicos devem ser vistos, dessa forma, como uma ação poética persuasiva sobre a

ψυχὴ, chamada por Platão de παιδεία315. Sob essa mesma orientação, o teatro de

Shakespeare apresenta alguns aspectos paidéticos, pois “a vida é representada em sua

totalidade e está exposta de modo direto e hierárquico”316.

Resta-nos explicar como as tragédias de Shakespeare se tornam uma chave

interpretativa para desvelar o mundo do devir pensado por Platão. Para tanto, retornemos

à Alegoria da Caverna.

Platão diz que entre os homens presos no fundo da caverna e o fogo que brilha às

suas costas existe um pequeno muro. Então, ele explica o que são as sombras projetadas

no fundo da caverna ao enfatizar que por esse muro homens carregam “toda a sorte de

utensílios que ultrapassam a altura do muro, e também estátuas e figuras de animais, de

pedra ou de madeira, bem como objetos das mais variadas espécies”317. Configura-se,

assim, que as sombras são reflexos de imagens trazidas por homens de fora da caverna.

314 CASERTANO. op. cit., p.139. 315 Παιδεία no sentido de formação. É a educação que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um

cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento. Cf. LIDELL; SCOTT.

op. cit.; JAEGER, Werner. Paidéia. op. cit., p.147. 316 BOLOGNESI, Mário Fernando. Teatro e Pensamento. Revista Trans/Form/Ação. São Paulo:

Universidade Estadual Paulista (UNESP), nº21-22, pp.53-65, 1998/1999, p.62. 317 PLATÃO. República VII, 515a.

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Após Platão afirmar que, mesmo solto, o homem teria dificuldade para entender

que aqueles objetos estavam mais próximos da realidade do que as sombras no fundo da

caverna, podemos concluir que a linguagem alegórica utilizada por Platão traz à tona a

proximidade dos objetos carregados acima do muro com o teatro. Sob essa ótica, a

caverna é um lugar onde um grupo de pessoas assiste a um espetáculo de sombras que

parecem agir e falar, tal qual um teatro. Contudo, Platão extrapola a simples encenação e

mostra um teatro que se contempla, que olha para si através do homem que se liberta e

vislumbra as verdadeiras imagens desse teatro. A falsidade daquilo que entorpece o

homem platônico na caverna é a mesma que traz a consciência à Macbeth de que

A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico que se

empavona e agita por uma hora no palco, sem que seja, após, ouvido; é

uma história contada por idiotas, cheia de fúria e muita barulheira, que

nada significa318.

Ao tratar das artes miméticas, Platão apresenta um objeto que não imita de um

modo neutro a sua verdadeira aparência. Aqui, os artistas “só criam fantasmas, não o

verdadeiro ser”319, e o produto artístico surge como algo “que assume o seu ser como

efeito da atividade do artista”320. De outra forma, os objetos que passam sob o muro da

caverna platônica podem ser analisados como imitação de uma aparência que existe no

mundo e precede o olhar do artista, uma aparência que é constitutiva do próprio objeto

sensível. Assim, os diversos objetos transportados na caverna possuem estreita ligação

com os objetos originais que existem na realidade fora da caverna, na “região

inteligível”321. Platão cria, dessa forma, um nexo necessário entre tais objetos e o mundo

exterior da caverna.

Dessa assertiva surge a dúvida sobre a impossibilidade do artista tornar-se

filósofo, posto que contemplou os seres originais do mundo inteligível dos quais retirou

as imagens transportadas dentro da caverna. Para Platão o simples contato com as

Formas/Ideias não significa a garantia de seu conhecimento e de seu bom uso, assim o

318 SHAKESPEARE. Macbeth, Ato V, Cena V. 319 PLATÃO. República X, 599a. 320 SUSIN. op. cit., p.27. 321 PLATÃO. República VII, 517b.

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Homem “precisaria [...] habituar-se para poder contemplar o mundo superior”322. É

necessário que a ψυχὴ do Homem se esforce. Esse esforço é descrito na linguagem

alegórica, no árduo caminho que a ψυχὴ passa “para vencer as dificuldades da transição

das trevas para a luz”323, desde sua libertação até a progressiva adaptação dos olhos à

claridade do fogo, primeiramente, e à luz do sol, fora da caverna. Torna-se indispensável,

portanto, que a ψυχὴ, após esse esforço, tenha a capacidade de distinguir entre o simulacro

e a realidade, entre o falso e o real, entre o mundo do devir e o mundo inteligível.

Assim, em sua Alegoria, Platão apresenta a procissão de objetos na caverna como

o recurso através do qual o λογιστικὸν recém liberto da sua prisão junto aos outros εἴδε

da ψυχὴ compreenderá, através da διάνοια, que aquelas imagens são apenas traços do

real, e que essa etapa de desvelamento e compreensão do mundo do devir é conditio sine

qua non para a consciência da existência do mundo das Formas/Ideias. As tragédias de

Shakespeare, enquanto perfeitas imagens da realidade humana, apresentam o

questionamento do mundo, da vida e dos atos humanos a partir da angústia interna que os

sentimentos fazem inundar no ser. Em Shakespeare, o Homem contempla o seu

desmoronamento íntimo através de uma subjetividade portadora das dores do mundo. O

Homem compreende que as suas ações, sentimentos e paixões, em seu eterno movimento

contrastante e tenso, não possuem nenhuma Forma/Ideia imutável que o ampare em sua

trajetória. É essa percepção da vida humana, que a tragédia de Shakespeare proporciona,

que permite à διάνοια a compreensão do mundo devir platônico enquanto ambiente

dominado pelos sentidos, e que possibilita a κίνησις324 necessária da ψυχὴ para atingir o

mundo das Formas/Ideias.

322 Ibidem, 516a. 323 QUEIRÓS, Antônio José de. Os Bastidores da Caverna de Platão (entrelinhas de uma alegoria). O que

nos faz pensar. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, nº24, outubro 2008, p.109. 324 Κίνησις faz referência ao movimento, à agitação da alma. Cf. LIDELL; SCOTT. op. cit.

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Weidmannsche Buchhandlung, 1907;

__________________________. Platon. Vol.1, Berlim: Weidmannsche Buchhandlung,

1920;

ZENI, Eleandro Luis. Conhecimento e Linguagem: um estudo do Teeteto de Platão. Santa

Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2012. 92 fls. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa

Maria, Santa Maria, 2012.

Dicionários on-line

LIDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Disponível em:

[http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0057];

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ONLINE ETYMOLOGY DICTIONARY, disponível em: [http://www.etymonline.com/

index.php].

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Glossário

Άδης (Hades) – o local no subterrâneo para onde vão as almas das pessoas mortas (sejam

elas boas ou más), guiadas por Hermes, o emissário dos deuses, para lá tornarem-se

sombras. É o Mundos dos Mortos. O nome Hades era usado frequentemente para designar

tanto o Mundo dos Mortos como o deus que o governa. Posteriormente, a mitologia grega

provocará mudança nesse conceito, acrescentando os Campos Elísios, lugar de eterna

alegria e felicidade também governado por Hades, oposto ao Tártaro (lugar de eterno

tormento e sofrimento). Nos Campos Elísios, os homens virtuosos repousavam

dignamente após a morte rodeados por paisagens verdes e floridas dançando e se

divertindo noite e dia. O deus Hades, portanto, governa o Hades, que é dividido entre

Tártaro (onde ficam os maus) e Campos Elísios (onde ficam os bons). Com isso, temos

que Hades não é nem um deus bom nem mau, mas um deus justo.

Αλήθεια (alétheia) – verdade. Aquilo que se desvela ou que é desvelado e se mostra em

seu inteiro teor, de forma verdadeira. Literalmente, não-latência, não-esquecimento.

Δαίμων (daímon) – um tipo de ser que se assemelha a uma espécie de espírito que rege o

destino de alguém ou de um lugar. Trata-se do sinal divino que se percebe dentro de si

mesmo em circunstâncias particulares. Um espírito orientador, uma deidade tutelar.

Δῐαίρεσῐς (diaíresis) – uma forma de classificação utilizada

na lógica antiga (especialmente platônica) que serve para sistematizar conceitos e chegar

a definições.

Δῐᾰ́νοιᾰ (diánoia) – capacidade de pensamento, sendo este considerado como um

processo mental através do qual o Homem modela sua percepção do mundo ao redor de

si. O pensamento permite que o Homem pense o Ser, permite que ele extrapole as

barreiras impostas pela linguagem e avance além dos sentidos impostos pelo σῶμα e seja

a mais importante ferramenta da ψυχὴ na apreensão do mundo inteligível.

Δῐόνῡσος (Diónysos) – Deus Grego das festas, do vinho, do lazer e do prazer. Filho

imortal de Zeus e Perséfone, nasce como Zagreu, depois renasce como Dioniso, filho

imortal de Zeus com Semele. O culto Dionisíaco já estava presente na Grécia desde o

século XIV a.C.

Δόξᾰ (dóxa) – opinião.

Εἴδωλον (eídolon) – imagem, representação de algo.

Εἶδος (eidos) – remete a um componente da alma, que existe, relativamente, de forma

independente, mas que não pode ser vista como o todo. É um aspecto da alma sem o qual

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a alma não seria alma. Faz referência ao que, em outros trabalhos, é conhecido como

“partes” da alma. Consideramos que a palavra “parte” possa invocar o significado de algo

fracionado onde cada parte existe separadamente e de forma independente, sem relação

com o todo.

Ἔκστᾰσῐς (ékstasis) – qualquer deslocamento ou remoção do lugar apropriado e ainda

transe, arrebatamento, ser outro ao mesmo tempo que si próprio.

Ἐπιθυμητικόν (epithimetikón) – aspecto concupiscente da ψυχὴ. É o elemento referente

ao desejo.

Θῡμός (thimós) – o ardor, a coragem. Ele também pode ser traduzido como coração, sede

dos sentimentos, das paixões, dos impulsos involuntários, das decisões, da inteligência.

Θυμοειδές (thimoeidés) – aspecto irascível da ψυχὴ. É o elemento referente ao apetite.

Καλλίπολις (Kallipolis) - cidade ideal onde a razão seja a força motriz de seus cidadãos

e que esses sejam guiados pela justiça e a reta conduta.

Κᾰ́θᾰρσῐς (kátharsis) – purificação.

Κῑ́νησῐς (kínesis) – movimento, agitação da alma.

Λογιστικὸν (logistikón) – caráter racional da ψυχὴ. É o aspecto referente à inteligência.

Λόγος (lógos) – razão, que funciona sempre e em acordo com a qual, mas não por causa

da qual, todas as coisas vêm a ser.

Μίμησις (mímesis) – imitação que algumas produções artísticas carregam em suas

manifestações, mas também podemos considerar que a palavra significa representação de

algo e aqui não há qualquer sentido depreciativo.

Νοῦς (noûs) – conhecido como intelecto, mente. É a força motriz que formou o mundo a

partir do caos original, iniciando o desenvolvimento do cosmo. Nesta dissertação

compreenderemos o νοῦς, em Anaxágoras, como espírito.

Παιδεία (paidéia) – formação. É a educação que dá ao homem o desejo e a ânsia de se

tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como

fundamento.

Σῶμα (sôma) – corpo físico.

Τέχνη (tékhne) – técnica como um conjunto de regras, sistema ou método de fazer algo.

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Φάρμᾰκον (phármakon) – algo que propicia a cura, não apenas no sentido físico, mas

também no aspecto mental.

Φῠ́σῐς (phísis) – natureza.

Ψῡχή (psikhé) – alma.

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Apêndice A - Alegoria da Caverna: um jogo didático-filosófico

1.1 Por que Filosofia?

Com a inclusão da Filosofia como disciplina obrigatória nos currículos da

Educação Básica a partir de 2008, a educação nacional ficou diante de uma novidade,

uma vez que a Filosofia como disciplina não obrigatória era pouco utilizada, e de grandes

desafios. Talvez um dos maiores desafios impostos pela nova legislação tenha sido o

aspecto estrutural de funcionamento. Segundo o Censo Escolar de 2014325, apenas 23%

dos docentes que lecionam Filosofia são formados na área, ou seja, a maioria dos

professores que ensinam Filosofia não têm a formação adequada para a atividade.

Considerando apenas esse fator já podemos desvelar uma miríade de outros problemas

relacionados ao ensino de Filosofia que extrapolam as paredes da escola.

Nos últimos anos a educação brasileira tem atravessado um momento de grande

ajuste em sua prática. De um lado, o avanço tecnológico e a busca desenfreada por todo

tipo de inovação, a qualquer preço, seja através das relações humanas, práticas sociais e

atividades culturais. E a educação tradicional326, de outro lado, buscando se adequar às

novas tecnologias de ensino e, principalmente, tentando aliar as práticas pedagógicas a

um novo tipo de aluno. E no meio desse contexto, o professor. Dessa forma, exigências

mais amplas da sociedade tomaram corpo, principalmente “por inovações no sistema

educacional, sobretudo as de cunho metodológico e tecnológico”327.

Definir ou mesmo delimitar o que seriam essas inovações é uma tarefa de extrema

dificuldade. Pois, se por um lado, uma prática pedagógica inovadora pode ser sinônimo

de progresso educacional, essa inovação pode significar uma alteração de sentido na

325 BRASIL. Relatório educação para todos, 2014. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/junho-

2014-pdf/15774-ept-relatorio-06062014/file, acessado em 10/07/2018. 326 O sentido de educação tradicional, no texto, não significa algo velho e ultrapassado, tão pouco algo que

deva se perpetuar no tempo, apenas uma prática que vem sendo utilizada há vários anos e que se tornou

paradigma, parâmetro, ou ainda base, para modalidades de ensino posteriores. 327 MARTINS, Ronei Ximenes; RIBEIRO, Claudia Maria. Mestrado profissional em Educação e inovação

na prática docente. Revista Brasileira de Pós-Graduação, Brasília, vol.10, nº20, pp.423-446, jul.2013,

p.425.

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prática docente. Assim, levantar a questão da formação dos professores com foco na

inovação do ensino significa pensar na modificação dos ciclos educativos para etapas

mais especializadas para a atuação docente. Em outras palavras, impõe-se a questão de

como tornar a Filosofia mais palatável, mais inteligível, para um aluno que se vê cercado

por inovações tecnológicas e que já não entende por que Filosofia. Um aluno inserido

em uma sociedade

hedonista e psicologista que incita a satisfação imediata das

necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o

florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do

conforto e do lazer. [...] [Onde] as políticas do futuro radiante foram

sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufórico328.

Inevitavelmente, pensar em uma mudança de postura no Ensino de Filosofia

significa pensar um novo olhar para a formação docente. Se no passado a Filosofia era

vista como o terreno da sabedoria e todo aquele formado em sua arte era sábio, dado a

profundidade de seu conhecimento e de suas indagações e respostas, atualmente esse

crédito tem se tornado cada vez mais insípido. A formação do professor de Filosofia

precisa abarcar esse novo contexto e também extrapolar as amarras da licenciatura, uma

vez que

a formação de um professor de filosofia não é a consequência de assistir

a algumas disciplinas pedagógicas ou didáticas que se juntariam em

algum momento com outras mais especificamente filosóficas, mas

corresponde a toda a formação em seu conjunto329.

Nesse sentido, é importante frisar que sérias mudanças precisam ocorrer na

estrutura organizacional dos cursos de formação de professores, uma vez que de nada

serve uma formação universitária ou mesmo pós-graduada, “se o conteúdo dessa

formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes

profissionais, de caráter tácito, pessoal, particularizado, subjetivo, etc.”330.

328 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p.61. 329 CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Autêntica,

2009, p.60. 330 DUARTE, Newton. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor. Educação

e Sociedade, Campinas, vol.24, nº83, ago.2003, p.620.

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Outrossim, apesar da brevidade do mundo atual, que se transmigra para as relações

humanas e também para a praticidade de respostas e objetos, o professor de Filosofia se

torna um baluarte, buscando que a Filosofia não entre no caminho que transforma tudo,

até a educação, em uma espécie de instrumentalismo. A ânsia pelo conhecimento se

mantém viva, pois “de modo mais geral [...] parece evidente que o pôr-se em movimento

do desejo de saber depende invariavelmente do encontro com um interlocutor que o

desafia”331, desejo de saber que ainda se mantém vivo na sociedade atual.

Não se trata, assim, “de adaptar acriticamente os espaços curriculares filosóficos

ao ‘mundo atual’, mas de pensar as condições de adaptação, ou recolocar o lugar que lhes

corresponderá”332. Entretanto, fica a pergunta: Por que Filosofia?

A Filosofia não pode ser entendida como um saber fechado em si mesmo, pois é

uma perspectiva intensa do pensamento, com o fito em problematizar e pensar as questões

advindas das mais diversas origens.

A Filosofia se ocupa na perene busca da verdade do ser do homem, dividido entre

a imanência e a transcendência, entre o mundano e o divino. Pensar filosoficamente é

refletir, voltando o pensamento para e sobre nós mesmos, para e sobre o próprio

pensamento. E na medida em que é um refletir sobre a nossa existência e nosso

pensamento, a Filosofia não apenas é como também contribui para a formação de uma

consciência crítica.

A Filosofia é útil para os que querem conhecer a si mesmos e entender de onde

surgem as ideias que estão em sua mente; para os que têm interesse em questionar os

fundamentos das ciências, da política, da arte, da religião, em suma, para aqueles que

buscam respostas para o questionamento sobre a própria realidade. A Filosofia não se

preocupa em apresentar respostas prontas e definitivas sobre quaisquer questões; contudo,

sugere caminhos possíveis e coerentes: caminhos que podem ser seguidos por qualquer

um, desde que se disponha a utilizar a sua razão. A Filosofia conduz a uma análise crítica

das atitudes e das práticas adotadas na vida de cada um que se coloca diante dela.

Dessa forma, ensinar Filosofia porque esta é a radical reflexão sobre si na busca

da construção de uma identidade, sendo essa a sua principal importância. Com a prática

331 CEPPAS, Filipe. O Ensino de Filosofia como “questão clássica” na tradição do pensamento filosófico.

Revista Educação. Santa Maria, vol.40, nº1, jan-abr.2015, p.57. 332 CERLETTI. op. cit., p.49.

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da Filosofia o homem é elevado à sua máxima possibilidade de conhecimento, de si e do

mundo que o cerca, abrindo-se, assim, diversas possibilidades para o ensino da Filosofia.

1.2 O texto filosófico

Alguns pensadores333 que se debruçam sobre o ensino de Filosofia concordam e

afirmam que as aulas de filosofia devem utilizar o texto filosófico. Contudo, mesmo

apresentando um consenso sobre sua utilização, o texto filosófico ainda levanta alguns

questionamentos de ordem mais prática: a Filosofia está no texto filosófico? Se um dos

objetivos da Filosofia é desnudar o mundo atual, por que buscar resposta em textos tão

antigos? Onde está o “problema” nos textos filosóficos, e como acha-los? Entre outras

questões.

Apesar de ser inegável a relevância dos textos filosóficos para o ensino de

Filosofia, “o desafio colocado hoje aos que ministram aulas de filosofia no Ensino Médio

é saber usar os textos de filosofia com os estudantes, e tratá-los sob o ponto de vista

filosófico”334. Ainda que tenha uma linguagem, na maioria das vezes, truncada e de difícil

compreensão, o texto filosófico se torna, atualmente, uma espécie de chave “mágica” das

aulas de Filosofia, pois é através do texto clássico que o aluno terá contato com os

diferentes problemas filosóficos e, principalmente, a forma como os filósofos, ao longo

do tempo, trataram esses problemas.

Apesar de se apresentarem sob diferentes formas (diálogos, tratados, resumos,

poemas, aforismos, etc.) os textos filosóficos possuem um elo em comum, que os

transformam em clássicos, e que os tornam consagrados pela tradição: a busca da

universalidade. “Todo texto filosófico tenta mediatizar a relação do particular ao

universal, e o que torna as filosofias contraditórias é o que as aproxima”335. Assim, mesmo

333 SEVERINO (2009), GHEDIN (2009), CUNHA (2009), HORN (2010), OLIVEIRA (2004), COSSUTA

(2001), FOLSCHEID (2006), NUNES (2010), PORTA (2007), RODRIGO (2009). 334 VIEIRA, Wilson José; HORN, Geraldo Balduíno. O sentido e o lugar do texto filosófico nas aulas de

filosofia do Ensino Médio. Revista Digital de Ensino de Filosofia, Santa Maria: Universidade Federal de

Santa Maria, vol.2, nº2, jul-dez.2015, p.56. 335 COSSUTA, F. Elementos para a Leitura dos Textos Filosóficos. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2001,

p.05.

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tratando de problemas de seu tempo, o texto filosófico deve ser utilizado para resolver,

ou apenas possibilitar o pensamento crítico, sobre problemas enfrentados atualmente,

caracterizando um aporte importante às aulas de Filosofia.

1.3 A influência platônica no ensino de Filosofia

Platão é um dos pensadores ocidentais mais lidos e difundidos de todos os tempos.

Seus diálogos versam sobre grande parte das facetas sociais que vivemos atualmente. A

disciplina Filosofia utiliza muito dos preceitos e das discussões platônicas em sua prática,

assim, a forma como o pensador apresenta a discussão dos conceitos, a maneira como

instiga o pensamento crítico, são algumas das bases que sedimentam a relevância de

Platão para a educação.

Em verdade, Platão foi um dos primeiros pensadores a pensar a educação como

chave transformadora para a construção de uma sociedade melhor. Através de seu

personagem principal, Sócrates, Platão busca enviesar a vida social de aspectos

educacionais. A própria prática socrática é um excelente exemplo da importância que a

didática, como método de ensinar, tem em toda a obra platônica. A educação para Platão

excede a simples formação de cidadãos, pois para o pensador é através da educação que

o cidadão alcança a eficácia de seu autodomínio e de seu autoconhecimento.

Ademais, Platão afirma que “educação não é o que muitos indevidamente

proclamam, quando se dizem capazes de enfiar na alma o conhecimento que nela não

existe”336. Considerando que a prática educacional socrática consiste em, através de

perguntas e respostas, chegar ao conhecimento do que se propõe, buscando no

interlocutor o saber, ou seja, proporcionando o exercício de pensar e refletir sobre o que

pensa e diz, seu método pode ser considerado eficiente, pois ajuda a direcionar as mentes

de seus discípulos para o que lhe parece ser mais correto.

Nesse sentido, existe algo para Platão que proporciona uma modificação na

condição dos εἴδε da ψυχὴ: a educação filosófica. Assim, “a educação [...] é o treinamento

desde a infância na bondade, que faz um homem ansiosamente desejoso de se tornar um

336 PLATÃO. República VII, 518c.

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cidadão perfeito, entendendo como ambos devem governar e ser governados com

retidão”337.

Dessa forma, alinhado com tudo o que foi exposto até o momento, sobre o ensino

de Filosofia, sobre a utilização dos textos filosóficos e da relevância educacional de

Platão, apresentamos abaixo uma proposta do material didático caracterizado por um jogo

didático/filosófico.

Alegoria da Caverna: um jogo didático/filosófico

1 Introdução

A Alegoria da Caverna, que consta no Livro VII do diálogo República, é uma das

passagens mais relevantes da filosofia de Platão. A história possui uma fecundidade “que

a mantém sempre atual influenciando sucessivas gerações, ao longo de séculos, nas mais

diversas áreas”338. Utilizar a Alegoria da Caverna no ensino de Filosofia significa

proporcionar ao aluno um dos textos filosóficos mais emblemáticos da história ocidental.

Rico em beleza de detalhes, profundo na apresentação de seu problema filosófico,

a alegoria da caverna platônica é a metáfora mais poderosa e reveladora

oferecida pela filosofia. Esta metáfora fala da condição humana e do

lugar da filosofia nele. Mais ainda, ele nos fala sobre o que a filosofia

pode tornar possível, modificando essa condição, melhorando-a339.

O uso da Alegoria da Caverna encontra respaldo na atualidade, pois sua discussão

acerca da verdade, da diferença entre o que é real e o que é irreal, do mundo das sombras

e do mundo iluminado pela verdade, se reflete na própria ascese do conhecimento diante

337 PLATÃO. Leis I, 643e. 338 MATOS, Marcio Ivo Magalhães. Alegoria da Caverna: O Humanismo do Retorno. Relatório de estágio.

Portugal: Universidade do Porto, 2012, p.41. 339 OTERO BELLO, Edison. El pensador en la caverna. Chile: Universidad de Chile, Facultad de Ciencias

Sociales, 1997, p.3 (Tradução nossa).

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do oceano informacional que rodeia o ser humano atualmente. Assim, o jogo

didático/filosófico proposto alinha-se com novas propostas de ensino que buscam

entrecruzar o cotidiano do aluno com o material didático, pois

os conceitos de Platão, e a sua representação particular de nossa

situação neste mundo em sua Alegoria da Caverna, são refletidos hoje

na cultura pop moderna, incluindo música, TV, literatura e cinema.

Argumentos científicos contemporâneos e inquéritos filosóficos

também podem ser vistos em relação à alegoria. [...] A visão de mundo

atual dos ocidentais e a visão de mundo de Platão, embora separadas

por quase dois milênios, têm muitas semelhanças convincentes340.

2 Objetivo

O objetivo do material didático é proporcionar um espaço de debate filosófico

sobre o conteúdo relacionado à Alegoria da Caverna, apresentando uma introdução aos

conceitos de verdade e de pensamento dentro da filosofia platônica. O principal foco é

analisar a Alegoria da Caverna sob o prisma da verdade e do pensamento, incluindo a

valorização da Filosofia como ferramenta de mudança de postura diante da realidade e do

senso comum.

Além disso, esses objetivos estão relacionados com uma das estruturas

curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a saber: “compreender [...] a

abrangência, singularidade e importância da Filosofia [...] e, por extensão, os possíveis

lugares do filosofar na vida por vir”341.

Entretanto, é essencial ressaltar que todos os conceitos, e todos os objetivos

relacionados aos conceitos, estão associados à filosofia platônica no concernente à ascese

do conhecimento, ou seja, à forma como Platão apresenta a possibilidade de

desenvolvimento do pensamento do Homem através da mudança de direção que a

educação e, principalmente, a Filosofia proporcionam na busca do conhecimento e da

verdade.

340 HAYMOND, Bryce. A modern worldview from Plato’s Cave. United States: Brigham Young

University, 2005, p.3 (Tradução nossa). 341 BRASIL, Base Nacional Comum Curricular, Brasília: MEC, 2016, p.648.

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Os conceitos sugeridos neste produto didático seguem o estabelecido nas

Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia do Parâmetro Curricular

Nacional (PCN) para o Ensino Médio, quais sejam: “ler textos filosóficos de modo

significativo. [...] Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e

mudando de posição face a argumentos mais consistentes”342.

3 Jogo

História do jogo: Após a queda de um meteoro no Planeta Terra, você é o único

responsável por levar para uma caverna segura 5 pessoas que serão responsáveis por dar

continuidade na espécie humana. Contudo, você deve escolher 5 dentre as 10 pessoas

listadas, baseado nas informações fornecidas sobre cada um.

O quadro que será utilizado pelos alunos está dividido em 4 colunas: a primeira

com a numeração de 1 a 10; a segunda coluna com a descrição da personalidade; a terceira

coluna com o espaço para que o aluno marque a sua escolha; e a quarta coluna com o

espaço para que o aluno preencha com os pontos obtidos.

A dinâmica do jogo consiste no aluno ler as descrições das personalidades e

escolher aquelas que no seu julgamento se aproximam do objetivo de preservar a

humanidade. Após esse momento o professor revela quais são as personalidades

referentes às descrições informando os valores referentes a cada um. Ganha o aluno que

tiver feito mais pontos positivos. O material didático completo encontra-se no Anexo I.

O resultado do jogo mostrará como o Homem é induzido a decisões por

simulacros da realidade e que a educação filosófica é a ferramenta através da qual o

Homem pode se libertar dos grilhões do senso comum e contemplar as verdadeiras

Formas/Ideias que, no texto platônico, estão fora da caverna. Como introdução ao tema

da Alegoria da Caverna, esse jogo busca mostrar ao aluno o que são as sombras descritas

por Platão como representantes do mundo do devir. Dessa forma, o foco avaliativo do

material didático é proporcionar uma reflexão sobre o que é a verdade e o pensamento.

342 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Anexo IV – Ciências

Humanas e suas tecnologias, Brasília: MEC/SEF, 1997, p.64.

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Anexo I – Alegoria da Caverna: jogo didático/filosófico

Material do aluno

Contexto: Após a queda de um meteoro no Planeta Terra, você é o único responsável por

levar para uma caverna segura 5 pessoas que serão responsáveis por dar continuidade na

espécie humana. Contudo, você deve escolher 5 dentre as 10 pessoas listadas, baseado

nas informações fornecidas sobre cada um.

Descrição Assinale sua

escolha

Pontuação

obtida

1 Pensador aristocrata, nutria relações homossexuais e

mantinha uma escola para rapazes.

2 Político, estudante de artes, retirou o seu país da pobreza

devolvendo emprego e dignidade à população. Em sua

autobiografia queria tornar realidade seu sonho de ver

seu povo novamente livre.

3 Guerreiro que lutou bravamente contra um império

opressor e sanguinário. Seu objetivo era trazer paz para

seu povo.

4 Religiosa que mantinha uma fundação em péssimas

condições de higiene e contribuiu para inúmeras mortes.

Seu interesse primário era a conversão religiosa de

pessoas à beira da morte.

5 Líder político e religioso, egresso da classe média alta,

estudou economia e se tornou ativista do movimento

que pretendia tirar seu povo do domínio de um império

global.

6 Músico filho de pai alcoólatra e mãe doente, ficou surdo

com o tempo, além de ser rabugento e colérico. Teve

inúmeras crises depressivas e tentativas de suicídio.

7 Pesquisador que teve dificuldades na escola. Não se

dava bem com seus filhos e vivia sob um contrato de

relação com sua esposa, que era também sua prima.

8 Líder político que lançou os fundamentos econômicos,

tecnológicos e culturais que modernizaram seu país.

Transformou seu país de uma ultrapassada sociedade

agrária em uma grande potência mundial.

9 Imperador que se destacou principalmente na

diplomacia e no comércio. Promoveu a construção de

diversos teatros e promoveu jogos e provas atléticas.

10 Artista volúvel e inconstante com muitas obras

inacabadas. Nunca foi um exemplo de força de vontade

ou rigidez de caráter. Quando jovem foi acusado de

atentado ao pudor.

Total

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106

Material do professor

Personalidade Descrição da personalidade e pontos referentes

1 Platão Filósofo e matemático grego, autor de diversos

diálogos filosóficos e fundador da primeira

instituição de educação superior do mundo

ocidental. Platão ajudou a construir os alicerces

da filosofia natural, da ciência e da filosofia

ocidental. Pontos: +50

2 Hitler Ditador do Reich Alemão, foi o principal

instigador da Segunda Guerra Mundial e foi

figura central do Holocausto. Com a sua anuência

estima-se que 11 milhões de pessoas morreram

em câmaras de gás, de fome, de doenças ou de

maus tratos em campos de concentração. Pontos:

-50

3 Átila, o huno Rei dos hunos, lançou-se furiosamente sobre a

Europa em uma campanha expansionista que lhe

renderia a alcunha de “Flagelo de Deus”. Sob sua

liderança, os hunos pilharam e extorquiram o

Império Romano do Oriente, aterrorizaram as

planícies europeias, escravizaram outros povos

bárbaros e deram sua contribuição à queda do

decadente Império Romano do Ocidente. Pontos:

-50

4 Madre Teresa de Calcutá Religiosa católica naturalizada indiana cujo

trabalho fundamental era ajudar na erradicação da

fome e amenizar o sofrimento de pobres e

doentes. Pontos: +50

5 Osama Bin Laden Líder e fundador da al-Qaeda,

organização terrorista à qual são atribuídos vários

atentados contra alvos civis e militares dos

Estados Unidos e seus aliados, dentre os quais

os ataques de 11 de setembro de 2001 que

mataram centenas de pessoas. Pontos: -50

6 Beethoven Compositor alemão considerado um dos pilares

da música ocidental pelo incontestável

desenvolvimento, tanto da linguagem como do

conteúdo musical demonstrado nas suas obras. É

um dos compositores mais respeitados e mais

influentes de todos os tempos. Pontos: +50

7 Einstein Físico teórico alemão que desenvolveu a teoria da

relatividade geral, um dos pilares da física

moderna e da mecânica quântica. Considerado o

cientista mais importante do século XX. Pontos:

+50

8 Mao Tse Tung Ditador chinês que causou grave fome e danos a

cultura, sociedade e economia da China com seus

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programas sociais e políticos. Estima-se que

diante da fome severa, dos suicídios em massa e

das perseguições políticas, entre 40 e 70 milhões

de pessoas pereceram sob seu regime. Pontos:-50

9 Nero Imperador Romano associado habitualmente à

tirania e à extravagância. É recordado por uma

série de execuções sistemáticas, incluindo a da

sua própria mãe e a do seu meio-irmão. É

atribuído a ele o grande incêndio que destruiu

Roma no ano de 64. Além disso era um

implacável perseguidor dos cristãos. Pontos: -50

10 Leonardo da Vinci É considerado um dos maiores pintores de todos

os tempos e é possivelmente a pessoa dotada de

talentos mais diversos a ter vivido. Se destacou

como cientista, matemático, engenheiro, inventor,

anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico,

poeta e músico. Além de ser conhecido como o

precursor da aviação e da balística. Pontos: +50