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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Disciplina: Perspectivas Contemporâneas do Direito à Educação.
Professor: Romualdo Luiz Portela de Oliveira
Aluna: Mariana Beatriz Mataluna
Número USP: 5459391.
Trabalho Final
Introdução O presente trabalho tem por objetivo estudar o direito à educação, tendo em
vista a questão de ampliação dos direitos de cidadania sob o Estado Democrático.
Sendo as normas jurídicas uma fonte primaria fundamental para a
abordagem das relações sociedade-educação-Estado, propomos a análise do
processo de elaboração do capítulo sobre o direito à educação estabelecido na
Constituição Federal de 1988. Posteriormente, tentamos levantar questões sobre
os instrumentos que garantem a efetivação do mencionado direito.
Como suporte teórico, primeiramente, apresentamos a tese de Thomas H.
Marshall para conhecer o desenvolvimento da cidadania em Inglaterra, percurso
que segundo autores (Cury, Baía Horta, Fávero, 1996) coincide com o caminho
dos direitos sociais, inscritos em Constituições Federais no Brasil. Recuperamos,
em seguida, o contraposto estabelecido por Turner às idéias de Marshall, além de
incluir a visão de Canivez sobre a formação do cidadão.
E por fim, apresentamos as considerações finais sobre a distância entre o
direito à educação declarado na Lei e o direito realmente efetivado no Brasil.
A ampliação dos direitos de cidadania sob o Estado Democrático capitalista: a questão do direito à educação.
1. A ampliação dos direitos sob o Estado Democrático capitalista
a) Teses de Marshall: direitos civis, políticos e sociais. O trabalho de Marshall apresenta-se como uma referência essencial na
análise da cidadania, definida, para ele, como o conjunto de direitos e deveres que
vinculam o indivíduo ao pleno pertencimento a uma sociedade.
Thomas H. Marshall em sua clássica obra, Classes Sociais e Cidadania,
distingue três partes ou elementos da cidadania: a civil, a política e a social. A seu
juízo, cada um destes elementos se desenvolveram em separado, a ponto de
identificar, para a Inglaterra, o século XVIII como o século da cidadania civil, o
século XIX como o da cidadania política e o século XX o da social. Segundo
Marshall:
A história dos direitos civis em seu período de formação é
caracterizada pela adição gradativa de novos direitos a um status
já existente e que pertencia a todos os membros adultos da
comunidade – ou talvez se devesse dizer a todos os homens, pois
o status das mulheres ou, pelo menos, das mulheres casadas era,
em certos aspectos importantes, peculiar. Esse caráter
democrático ou universal do status se originou naturalmente do
fato de que era essencialmente o status de liberdade e, na
Inglaterra do século XVII, todos os homens eram livres. (Marshall,
1967, p.68)
Segundo esse autor, o elemento civil é composto pelos direitos necessários
à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e
fé -, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça.
Este último difere dos outros porque é o direito de defender e afirmar todos os
direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento
processual. Isto nos mostra que as instituições mais inteiramente associadas com
os direitos civis são os tribunais de justiça1 (Marshall, 1967, p. 63).
Os direitos políticos se seguiram aos civis, e a ampliação deles foi uma das
principais características do século XIX.
A história dos direitos políticos difere tanto no tempo como no
caráter. O período de formação começou, como afirmei, no inicio
do século XIX, quando os direitos civis ligados ao status de
liberdade já haviam conquistado substância suficiente para
justificar que se fale de um status geral de cidadania. E, quando
começou, consistiu não na criação de novos direitos para
enriquecer o status já gozado por todos, mas na doação de velhos
direitos a novos setores da população. No século XVIII, os direitos
políticos eram deficientes não em conteúdo, mas na distribuição –
deficientes, isto é, pelos padrões de cidadania democrática.
(Marshall, 1967, p 69).
Está claro que, se sustentarmos que, no século XIX, a cidadania na forma
de direitos civis era universal, os direitos políticos não estavam incluídos nos
direitos da cidadania.
Segundo Marshall, por elemento político deve-se entender o direito de
participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo
investido de autoridade político ou como um eleitor dos membros de tal organismo
(MARSHALL, 1967, p.63). Esse novo elemento inclui o direito ao voto e
participação política, direito de participar de maneira ativa ou passiva, direta ou
delegada, no processo de tomada de decisões políticas. As instituições
correspondentes são o parlamento e conselhos do Governo local. Cabe lembrar
que a consecução do sufrágio universal foi relativamente recente e supõe uma
difícil conquista dos movimentos sociais, tanto do movimento operário como das
1 Seria interessante lembrar a crítica de Marx, em O Capital, ao direito burguês de liberdade de estabelecimento de contratos entre iguais, na medida em que para este autor, no capitalismo, os contratos entre patrões e empregados, apararentemente estabelecidos entre iguais, representariam, na verdade, o contrato entre desiguais.
organizações feministas A cidadania política se refere à possibilidade de participar
no exercício do poder político, direito que nas sociedades contemporâneas se
expressa por meio do sufrágio universal.
No século XX, surge o último elemento da cidadania, o social, que se refere
a tudo o que engloba o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança
e o direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser
civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. Em outras
palavras, inclui direito à saúde, à moradia, ao emprego, à educação. As
instituições mais intimamente ligadas a ele são o sistema educacional e os
serviços sociais.
Após termos traçado, em linhas gerais, o desenvolvimento da cidadania na
Inglaterra até o século XX, focaremos, em seguida, nossa atenção na análise do
direito à educação, que é, segundo Marshall, “o direito dos direitos”.
O desenvolvimento da educação primária, pública, gratuita e obrigatória em
fins do século XIX foi o primeiro passo decisivo no estabelecimento dos direitos
sociais da cidadania durante o século XX. Segundo Marshall:
O Estado teria de fazer algum uso de sua força de coerção, caso
seus ideais devessem ser realizados. Deve obrigar as crianças a
freqüentarem a escola porque o ignorante não pode apreciar e,
portanto, escolher livremente as boas coisas que diferenciam a
vida de cavalheiros daquela das classes operárias. (Marshall,
1967, p. 60).
A obrigatoriedade da educação se justifica com base no argumento de que a
livre escolha é um direito exclusivo das mentes maduras, que as crianças estão
naturalmente sujeitas à disciplina, e que não se pode confiar que os pais farão
aquilo que melhor atenda aos interesses dos filhos. Há, neste caso, um direito
individual combinado a um dever público de exercer o direito.
Tornou-se cada vez mais notório, com o passar do século XIX, que a
democracia política necessitava de um eleitorado educado e de que a produção
cientifica se ressentia de técnicos e trabalhadores qualificados.
De acordo com Marshall, a cidadania define um status de igualdade em
termos de direitos e deveres entre os membros de uma comunidade. Esse
princípio igualitário e comunitário entra em conflito com o sistema de desigualdade
das classes. Trata-se de dois princípios opostos que se dão no mesmo terreno. Na
sociedade capitalista, a separação da esfera econômica da esfera política faz
possível a expansão dos princípios opostos de classe e cidadania. Chegado a
este ponto, a questão é explicar como o desenvolvimento e o crescimento da
cidadania coincide historicamente com o desenvolvimento do capitalismo que,
essencialmente, é um sistema de desigualdade. Em outras palavras, que é o que
possibilitou que estes sistemas se convertam em aliados em lugar de
antagonistas.
Marshall conclui que, por intermédio da educação em suas relações com a
estrutura ocupacional, a cidadania opera como um instrumento de estratificação
social. O status adquirido por meio da educação acompanha o indivíduo por toda
a vida com o rótulo de legitimidade, porque foi conferido por uma instituição
destinada a dar aos cidadãos seus justos direitos.
A idéia de Marshall que mais capitalismo geraria mais direitos é uma questão
discutível na atualidade, pois com a crise do Estado de Bem Estar e a ascensão
do neoliberalismo, vivencia-se um capitalismo que provoca uma diminuição de
direitos dos cidadãos. Por isso, devemos analisar com mais cuidado as
proposições de Marshall.
b) O contraponto de Turner às teses de Marshall. Bryan S. Turner (2001) discute os elementos de cidadania propostos por
Marshall, argumentando que as condições econômicas e sociais posteriores ao
Consenso Britânico de pós-guerra sobre o Estado de Bem Estar provocaram
transformações sociais e econômicas que afetaram os direitos e sua concepção.
Como é claramente observável, a inovação tecnológica e a globalização
transformaram a natureza do trabalho, da guerra e das relações sociais; dessa
forma, Turner propõe que sejam acrescidos novos direitos globais às três formas
de direitos identificados por Marshall: o direito a um ambiente sem danos, à cultura
e à terra aborígine e à identidade étnica. Enquanto os direitos de cidadania,
discutidos por Marshall, tentaram proteger os indivíduos das mudanças do
mercado, o novo regime de direitos globais tentam resguardar os seres humanos
das conseqüências negativas do crescimento econômico, da tecnologia e
principalmente, as gerações futuras dos efeitos da degradação ambiental
Por outro lado, o autor considera o papel das associações voluntárias nas
estratégias do terceiro setor como fontes de coesão social em sociedades onde o
capital social está em declínio e argumenta que o setor voluntário estaria
crescendo com uma lógica de acumulação econômica. Com a erosão da
cidadania nacional, as três formas de direitos de Marshall (legal, política e social)
estariam sendo substituídas por direitos globais, denominados de ambiental,
aborígine e cultural.
Segundo Turner, as organizações não-governamentais (ONG’s) teriam maior
capacidade de atender as demandas da população, dado seu caráter menos
burocrático e mais próximo das necessidades populares, sendo uma forma de
superar a redução do peso do Estado na provisão de serviços. Mas é preciso ter
cuidado com essa visão, pois não se pode justificar a retração do Estado em áreas
de garantia da eqüidade através da ação das ONG’s.
Ou seja, Turner retoma a questão da cidadania, buscando atualizá-la em um
contexto distinto daquele elaborado por Marshall, a Inglaterra da década de 1960.
c) A perspectiva de cidadania e a formação do cidadão de Patrice Canivez
No seu livro “Educar ao cidadão”? Canivez define a cidadania como o
pertencimento a um Estado, pois dá ao individuo um status jurídico, ao qual se
ligam direitos e deveres particulares. Esse status depende das leis próprias de
cada Estado, e podemos afirmar que há tantos tipos de cidadãos quantos tipos de
Estado. Então, o problema da cidadania não seria apenas um problema jurídico ou
constitucional, mas colocaria a questão do modo de inserção do indivíduo em sua
comunidade, assim como a de sua relação com o poder político.
Seria preciso resolver a aparente contradição entre os direitos civis e
políticos, de um lado, e os direitos sociais, de outro.
Os direitos civis são liberdades que o Estado garante a todo
homem, seja ele cidadão ou não: igualdade perante a lei,
segurança, proteção contra o poder arbitrário, propriedade,
liberdade de consciência e de opinião. Os direitos políticos
conferem um poder ao individuo considerado cidadão: participação
na elaboração da vontade geral, isto é, da lei, direito de aceitar o
imposto. Mas comportam também direitos, como a livre
comunicação das idéias, que são abertos a todos. Direitos sociais
são os que não se contentam em limitar o poder do Estado mas
que dele exigem prestações: direito ao trabalho, à educação, a um
mínimo de conforto material, etc. Eles aparecem como tais na
Declaração dos Direitos Humanos de 1793 (art.21 e 22). Cada
uma dessas duas categorias de direitos supõe uma concepção
diferente de Estado. Os direitos civis e políticos referem-se a uma
forma de Estado “liberal”: o poder garante o jogo das liberdades,
intervém o menos possível na vida social. Ao contrário, os direitos
sociais implicam uma intervenção do Estado na atividade
econômica e social. Será pois preciso escolher entre os direitos
humanos? (Canivez, 1990, p.82-83)
Os direitos civis e políticos exigem de fato que todos os cidadãos gozem
das mesmas liberdades. Os direitos sociais exigem a redução da desigualdade
das situações. (Canivez, 1990, p. 89)
Os direitos civis e políticos permitem defender a liberdade individual diante
do Estado. Os direitos sociais supõem, ao contrário, que o Estado se ocupe
ativamente dos indivíduos, o que implica um acréscimo de poder, que pode
prejudicar as liberdades.
É possível afirmar, porém, que não há oposição real entre os dois tipos de
direitos. Em primeiro lugar, porque reconhecer no outro a qualidade de sujeito
enquanto ser racional é reconhecer-lhe ipso facto o direito à educação. Porque é a
educação que lhe permite tornar-se o que é: um ser que pensa, fala e se
comunica. Um dos direitos fundamentais de qualquer homem, junto com a
liberdade, é o de ter os meios intelectuais desta. Todos devem poder usufruir o
ensino que dá a cada um a possibilidade de desenvolver suas aptidões, de
adquirir conhecimentos e “luzes” que o tornem apto a assumir seu status de
sujeito e a fazer escolhas sensatas. É essa a análise de Condorcet, bem antes da
constituição “liberal” de 1791. Os direitos humanos, diz Condorcet num relatório
sobre a Instrução Pública apresentado à Assambleia Legislativa francesa em abril
de 1792, permanecerão direitos puramente formais se não se firmarem na base da
igualdade efetiva dos indivíduos em relação à educação e à instrução. Ora, tal
exigência leva ao reconhecimento dos direitos sociais em geral (o direito à
segurança social, a um mínimo de recursos, etc), porque o desenvolvimento da
pessoa e a autonomia do sujeito supõem um mínimo de conforto material e de
segurança. Direitos sociais e igualdade perante a educação e o saber estão, aliás,
estreitamente associados.
A educação só é concretamente possível e tem sentido se os indivíduos
desfrutarem do mínimo de conforto e de tempo livre que lhes permita tirar proveito
disso. Os professores conhecem os limites de sua ação junto aos alunos que
vivem nas piores condições. Por conseguinte, a educação, para ter eficácia, supõe
direitos sociais. O respeito à pessoa está na base dos dois tipos de direitos.
(Canivez, 1990, p. 89)
Em segundo lugar, os direitos sociais não são um perigo somente porque
aumentam a ameaça do poder estatal em relação ao individuo. Há uma visão
ultraliberal corrente que associa qualquer ação do Estado como uma ameaça à
liberdade do indivíduo. Seria, pois, necessário agarrar-se aos direitos-liberdades
que traçam a fronteira entre os indivíduos e o Estado. Argumento abstrato, porque
identifica arbitrariamente o Estado com o aparelho administrativo ou com a
burocracia. Ora, se o Estado for concebido como a organização da comunidade
toda numa diversidade de instituições, puderíamos considerar que toda forma de
Estado não é necessariamente uma ameaça para a liberdade individual. Tudo
depende da maneira como o Estado está organizado, do equilíbrio das
instituições. O problema não está em defender o individuo contra o Estado, mas
em defender uma forma particular de Estado, o que se chama habitualmente de
Estado de Direito. (Canivez, 1990, p. 91)
2. O papel da educação na conformação dos direitos de cidadania.
A inserção do direito à educação no conceito de cidadania.
A Educação, como Marshall reconheceu quando a apontou como um objeto
apropriado de ação por parte do Estado, é um serviço de um tipo único. É fácil
afirmar-se que o reconhecimento do direito das crianças à educação não afeta o
status da cidadania mais do que o reconhecimento do direito das crianças à
proteção contra o excesso de trabalho e maquinaria perigosa, simplesmente
porque as crianças, por definição, não podem ser cidadãos. Mas tal afirmativa é
enganosa. A educação das crianças está diretamente relacionada com a
cidadania, e, quando o Estado garante que todas as crianças
serão educadas, este tem em mente, sem sombra de duvida, as
exigências e a natureza da cidadania. Está tentando estimular o
desenvolvimento de cidadãos em formação. O direito à educação
é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da
educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva.
Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da
criança freqüentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto
ter sido educado. E, nesse ponto, não há nenhum conflito com os
direitos civis do modo pelo qual são interpretados numa época de
individualismos. Pois os direitos civis se destinam a serem
utilizados por pessoas inteligentes e de bom senso que
aprenderam a ler e escrever. A educação é um pré-requisito
necessário da liberdade civil. (Marshall, 1967, p.73)
Quanto mais arraigada a convicção de que a educação é capaz de peneirar
o material humano em seus primeiros anos de vida, tanto maior a mobilidade
verificada nesses anos e, conseqüentemente, tanto maior a limitação a partir de
então (Marshall, 1967, p.100). O ser humano possui sua máxima potencialidade
de vir a ser algo nos seus primeiros anos de vida, devendo estes então ser
aproveitados para sua educação adequada, ou seja, aquela que vise seu
desenvolvimento enquanto sujeito.
O direito do cidadão nesse processo de seleção e mobilidade é o direito à
igualdade de oportunidade. Seu objetivo é eliminar o privilegio hereditário.
Basicamente, é o direito de todos de mostrar e desenvolver diferenças ou
desigualdades, o direito igual de ser reconhecido como desigual. Nos estágios
iniciais do estabelecimento de tal sistema, o efeito maior reside, é lógico, na
revelação de igualdades latentes – permitir que o jovem desprovido de recursos
mostre que é tão capaz quanto o rico. Mas o resultado final é uma estrutura de
status desiguais distribuídos, de modo razoável, a habilidades desiguais. A
igualdade de oportunidades é oferecida a todas as crianças quando de seu
ingresso nas escolas primárias, mas em idade ainda tenra é usualmente dividida
em três grupos – avançado, médio e atrasado. Já a esta altura, a oportunidade
começa a ficar desigual, e as alternativas, limitadas (Marshall, 1967, p.100)
Nos deparamos, então, com o problema do tipo de educação que desejamos.
Porque a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação
ao saber e à sua formação. Qual o tipo de educação do cidadão assim definido?
Essa educação não pode mais simplesmente consistir numa informação ou
instrução que permita ao indivíduo, enquanto governado, ter conhecimento de
seus direitos e deveres, para a eles conformar-se com escrúpulo e inteligência.
Deve fornecer-lhe, além dessa informação, uma educação que corresponda à sua
posição de governante potencial (Canivez, 1990, p.31)
Em uma democracia, a escola deve educar cidadãos ativos. Não deve
orientar as preferências partidárias, mas deve dar-lhes a cultura e o gosto pela
discussão, que lhes permitirão compreender os problemas, as políticas
pretendidas, e debater sobre isso (Canivez, 1990, p.156). A cidadania ativa
repousa em uma educação da faculdade de julgar. O cidadão deve saber pensar,
ultrapassar a mera expressão de seus interesses particulares, aceder a um ponto
de vista universal, encarar os problemas considerando o interesse da comunidade
em seu conjunto. A educação dos cidadãos ativos deve, pois, oferecer os meios –
a informação e o método-, o gosto e o hábito da participação na discussão.
(Canivez, 1990, p.162).
Mas é possível conciliar tais aspirações com a dura realidade da reprodução
das relações de produção capitalistas? O sistema educacional implementado
pelos Estados Democráticos realmente foi capaz de atuar no sentido de
desenvolvimento das potencialidades do ser humano, em um contexto de
crescente alienação total da vida?
Para Sader, vivemos, na atualidade, um “novo analfabetismo” das massas,
aquele no qual somos capazes de explicar, mas não de aprender (Sader, 2005, p.
17), o que é típico, por exemplo, do discurso dos técnicos e economistas.
Segundo Mezáros (2005, p. 35), as soluções para a educação devem ser
essenciais, envolvendo a totalidade das práticas educacionais da sociedade
estabelecida, e não apenas formais, legitimadoras da situação em que vivemos e
da hierarquia social existente.
Dessa forma, devemos analisar como a educação é tratada na lei para
descobrirmos se, a partir desse instrumento, ela possa cumprir seu papel histórico
de emancipação, ou se, na verdade, trata-se de mais um instrumento de
legitimação da sociedade estabelecida em bases de desigualdade.
Análise do direito à educação na Constituição Federal de 1988
O caminho dos direitos sociais, inscritos em Constituições Federais do Brasil,
parece ter certa similitude com aquelas etapas sinalizadas por Marshall (1967) em
relação à Europa. É óbvio que não se pode afirmar uma linearidade cronológica
entre situações histórico- sociais que reservam para si peculiaridade própria. Mas,
dada a similitude dos direitos em questão e dada uma certa afinidade na sanção
dos mesmos, é viável registrar um certo paralelismo entre elas. E é no interior
deste caminho que se situa a educação como um direito que vai sendo aos
poucos absorvido pelas constituições federais, até atingir na Emenda
Constitucional de 1969 o status de “direito de todos e dever do Estado”. (Cury,
Baía Horta, Fávero, 1996, p.5)
A sanção da Constituição Federal de 1988 se deu em um contexto de
redemocratização da sociedade brasileira, após vinte anos de regime autoritário.
Para analisar este processo nacional, vale a pena recuperar as condições que,
segundo Eric Weil, é necessário que estejam presentes para o bom
funcionamento das democracias modernas. A primeira consiste em considerar a
cada cidadão além de um participante, de direito, do debate político, um
governante em potencial. O que significa que, de fato, nenhum cidadão está
excluído, a priori, do exercício das funções governamentais, pois cada um pode
tomar parte nas decisões, aceder a responsabilidades fazendo valer a pertinência
de suas idéias, garantindo, portanto, a preservação da diversidade e da liberdade
de pontos de vista, garantia de que o povo (e o Estado) não perderá o contato
com a realidade.
A segunda diz que Estado será tão mais democrático nos fatos quanto mais
os cidadãos participarem da discussão e se manifestarem através dos jornais,
sindicatos, partidos, etc, assim como julgarem do ponto de vista de quem governa,
pensarem os problemas em sua complexidade e em função do interesse geral. A
decisão não resulta, então, de um único projeto, mas da escolha entre diferentes
projetos possíveis. Essa elaboração em comum dos projetos de ação torna
possível um julgamento público correto. Este é, ao mesmo tempo, a determinação
das finalidades e dos meios de ação, dos princípios e de suas conseqüências
práticas. Será tanto mais correto quanto mais adaptado estiver à realidade da
situação, e essa situação só se revela pela linguagem, no e pelo debate público
(Canivez, 1990, p. 114)
Sem ânimo de exagerar, poderíamos dizer que ambas condições estiveram
presentes no processo de elaboração do novo estatuto jurídico no Brasil em 1988,
pois dita elaboração inovou em relação aos mecanismos de participação. O
contexto da restauração democrática estimulou a mobilização popular que punha
esperanças renovadas em uma constituição democrática e aberta a sua
participação.
Da mesma forma que houve ênfase na participação popular, houve,
simultaneamente, a inclusão de formas de participação política inéditas, como o
instituto da iniciativa popular, o plebiscito e o referendo. Formas de participação
direta que, de certo modo, correspondem à garantia dos direitos sociais e que
significam uma via para ampliar o acesso a novas formas de poder, que possuem
origem na própria soberania popular.
Nesse sentido, a Constituinte de 1987-88 incorporou a participação da
sociedade civil organizada através de consulta a entidades coletivas
representativas de interesses diversificados, além de se incluir a discussão a partir
de projetos possíveis (progressistas, conservadores, etc).
Pinheiro sintetiza, assim, os conflitos e negociações em torno dos projetos
conservadores e progressistas que desencadeou o capítulo sobre a educação na
Constituição:
Por conter tendências conflitantes, a Constituição pode ser
reforçada pelos governantes tanto pelo seu lado conservador
quanto pelo lado progressista. Na parte da educação encontrou,
como as demais constituições, uma solução conciliatória para o
conflito entre o público e o privado. Com isso, não resolveu o
conflito, mas o incorporou-o (Pinheiro, 1996, p.284)
Por outro lado, Pilatti lembra que:
O excessivo tempo de duração dos trabalhos constituintes esgotou
os recursos materiais de mobilização dos setores populares,
determinando enorme vantagem, em termos de presença física,
dos setores conservadores na etapa final (1996, p 297)
A pesar deste complexo e tortuoso processo, pela primeira vez, a
Constituição foi promulgada em um clima de democracia, e a Nação legitimava
suas normas através de um processo constituinte.
O grau de participação da sociedade civil na elaboração da
Constituição de 1988 traduziu esta concepção ascendente e,
talvez por isso, ela seja reinventora de novos direitos sociais, aí
compreendida a própria educação. Ela inclui novos direitos a fim
de possibilitar uma situação de maior participação para aqueles
que foram historicamente excluídos do acesso aos bens sociais.
Prova disso é a introdução de direitos coletivos, a proclamação
enfática da igualdade através da dura declaração contra todas as
formas de discriminação e o acolhimento dos direitos das minorias
(Cury, Baía Horta, Fávero, 1996, p. 26-7)
Ou seja, o produto resultante desse processo foi um texto constitucional
bastante enfático nos direitos coletivos e sociais, que desde logo seria
problematizado na efetiva garantia dos mesmos.
O direito à educação como direito de todos e dever do Estado está
incorporado na Constituição Federal de 1988, mas os dados educacionais indicam
que muito deve ser feito para se alcançar o que está garantido legalmente.
Fato que evidencia que o problema do Brasil, não é precisamente a
declaração dos direitos, senão a efetivação dos mesmos, situação que põe à
mostra a diferença entre direitos declarados e efetivados.
Lei X realidade: o direito à educação é um fato consolidado no Brasil?
Segundo a filósofa Marilena Chauí:
A prática de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que
não é um fato óbvio para todos os homens que eles são
portadores de direitos e, por outro lado, significa que não é
um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por
todos. A declaração de direitos inscreve os direitos no social
e no político, afirma a sua origem social e política e se
apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos,
exigindo o consentimento social e político. (Chauí, 1989,
p.12)
Marshall (1967, p.96) admite que um mínimo de direitos legalmente
reconhecidos pode ser concedido, mas o que interessa ao cidadão é a
superestrutura das expectativas legitimas. Pode ser razoavelmente fácil fazer com
que toda criança, até certa idade, passe um certo número de horas na escola.
Contudo é muito mais difícil satisfazer as expectativas de que a educação deveria
estar a cargo de professores treinados e ser dada em classes de tamanho
adequado. E, assim, verificamos que a legislação, ao invés de ser o fator decisivo
que faça com que a política entre em efeito imediato, adquire, cada vez mais, o
caráter de uma declaração de política que, segundo se espera, entrará em vigor
algum dia.
Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 representa um avanço em
relação a vários direitos, mas sua efetivação ainda está aquém do que se poderia
exigir. Nesta perspectiva, agora a questão é como garantir estes direitos, protegê-
los e efetivá-los é a decorrência histórica necessária, embora não fatal, das
pressões que os geraram.
No Brasil os direitos sociais, incluindo o direito à educação, garantidos na
CF de 1988 sofreram interferência nos anos 90 do século passado, não somente
com relação à sua concretização, mas também em sua declaração, como se
analisará posteriormente, dado o momento histórico de reconfiguração do papel
do Estado, o que tornou a ampliação da realização dos direitos ainda mais difícil.
Como alerta Pilatti:
Em princípio e como regra, no meu entender, os movimentos
populares acabaram seduzidos pela ilusão juridicista da
consagração retórica de direitos substantivos, deixando em
segundo plano a previsão de instrumentos de efetivação (Pilatti,
1996, p.299).
Ora, como proteger um direito?
Sem dúvida, há mecanismos diretos de pressão, como paralisações ou
manifestações, mas são necessários meios mais permanentes de vigilância e de
cobrança de direitos sociais. Como alerta Comparato: “É preciso dizer que a
realização dos direitos humanos a estas prestações sociais fundamentais poderá
ser reforçada com a instituição de meios judiciários adequados”. (Comparato,
1989, p. 98).
Assim, no caso da educação, cumpre assinalar que a sociedade pode,
contra os abusos ou a omissão do Estado, fazer valer, por exemplo, o mandato de
injunção, dado que a simples regra jurídica despida de poder é ineficaz para
impedir o abuso (Idem, p. 99).
De posse destas prerrogativas, a sociedade civil pode postar-se contra o
abuso ou omissão do poder estatal. Estas prerrogativas, como contrapoderes, se
ligam tanto à faculdade de estatuir, quanto à faculdade de impedir: “A faculdade
de estatuir corresponde ao poder de ditar normas ou de dar ordens. A faculdade
de impedir, ao poder de aprovar ou vetar normas ou ordens dadas” (Idem, p. 99-
100).
Ora, o mandato de injunção compõe, com o conjunto de outros
instrumentos legais já postos pela Constituição, uma via altamente sugestiva,
através da qual a sociedade civil organizada possa educar o educador, estatuindo
ou impedindo suas ações. Neste caso, a sociedade civil não educa apenas o
Estado–Educador no sentido de conduzi-lo a realizar aqueles direitos que, nos
limites constitucionais, efetivam a igualdade de funcionamento entre os cidadãos.
Ela também se educa como fonte de poder e pode, reciprocamente, ser
reeducada pelo Estado. Cobra-se, nesta medida, o que é dever do Estado em
suas funções e ao mesmo tempo controla-se o abuso de poder. (Cury, Baía Horta,
Fávero, 1996, p 28-29)
Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado –
e, portanto, com o objetivo de limitar esse poder -, os direitos sociais exigem, para
a sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente
verbal à proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos direitos
do Estado (Bobbio, 1992, p. 72; Cury, Baía Horta, Fávero, 1996, p.29).
A escola, de fato, contribui enormemente para a instituição da cidadania. A
educação dos cidadãos supõe uma informação, um mínimo conhecimento do
sistema jurídico e das instituições: o indivíduo deve, para os atos mais corriqueiros
da vida, conhecer os princípios e leis que fixam seus direitos e deveres e distinguir
os casos em que se aplicam. Supõe também o exercício do julgamento, sobretudo
porque a lei não pode definir explicitamente o dever do cidadão na totalidade dos
casos. Ela lhe deixa uma margem relativa de apreciação, e cada um deve possuir
o mínimo de “sabedoria prática” para determinar, nas circunstancias particulares
em que se encontra, o que convém fazer. Esse conhecimento das instituições e a
faculdade de julgar devem também dar a cada um a possibilidade de orientar-se
na vida social. Devem permitir ao individuo que antecipe o comportamento do
outro, na medida em que é conforme às leis e que preveja as conseqüências de
seus próprios atos. (Canivez, 1990, p.33)
O registro da educação como direito da cidadania e dever do Estado, a
imputação que acompanha tal registro como direito público subjetivo e o
acionamento do mandato de injunção, entre outros instrumentos legais, podem
cooperar para garantir que o Estado universalize a educação básica e para que se
possa controlar abusos que vierem a ser perpetrados pelo poder estatal. Segundo
Bobbio (1992, p. 75):
Não existe atualmente nenhuma carta de direitos que não
reconheça o direito à instrução – crescente, de resto, de sociedade
para sociedade – primeiro, elementar, depois secundária, e pouco
a pouco até mesmo universitária. Não me consta que, nas mais
conhecidas descrições do estado de natureza, esse direito fosse
mencionado. A verdade é que esse direito não fora posto no
estado de natureza porque não emergira na sociedade da época
em que nasceram as doutrinas jusnaturalistas, quando as
exigências fundamentais que partiam daquelas sociedades para
chegarem aos poderosos da Terra eram principalmente exigências
de liberdade em face das igrejas e dos Estados, e não ainda de
outros bens, como o da instrução, que somente uma sociedade
mais evoluída econômica e socialmente poderia expressar.
O direito à educação como direito de todos e dever do Estado está
incorporado na legislação brasileira na Constituição Federal de 1988 (CF/88), e na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei nº 9.394 de 1996 (LDB/96), mas os
dados educacionais indicam que muito deve ser feito para se alcançar o que está
garantido legalmente.
A prioridade do Estado na garantia do dever de educar é reafirmada no artigo
205 da CF: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.
E no art. 227 da CF/88, compreendido no Título VIII,que diz:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, CF/88, art. 227).
O dever do Estado para com a educação está definido no art. 208 da
CF/88, em versão original, com as seguintes garantias:
I- ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a
ele não tiveram acesso na idade própria;
II- progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino
médio;
III- atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV- atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis
anos de idade;
V- acesso aos níveis elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
VI- oferta de ensino noturno regular, adequando às condições do
educando;
VII- atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de
programas suplementares de material didático escolar,
transporte, alimentação e assistência à saúde. (BRASIL, CF/88,
art. 208).
A ambigüidade entre instituições responsáveis pela obrigatoriedade da
educação, (Estado ou família), talvez explique por que se levou tanto tempo para
que a educação fosse reconhecida como direito público subjetivo. Como se sabe,
tal direito diz do poder de ação que a pessoa possui de proteger ou defender um
bem considerado inalienável e ao mesmo tempo legalmente reconhecido. Daí
decorre a faculdade, por parte da pessoa, de exigir a defesa ou proteção do
mesmo direito da parte do sujeito responsável. Se havia normas do Código Penal
para assegurar esta proteção incriminando à família, o mesmo não existia, até
1988, em relação ao Estado, a fim de possibilitar ao indivíduo o uso de
mecanismos jurídicos correspondentes ao direito declarado (Cury, Baía Horta,
Fávero, 1996, p 25)
Mas, ao mesmo tempo, o direito subjetivo tem sua face pública, na medida
em que expressa o reconhecimento de um direito que tem a ver com o interesse
coletivo, e isto de tal modo que nele esteja implicado o próprio interesse do
Estado. Esta coação social permitiria, finalmente, que o direito de um sujeito se
realizasse como um direito a um objeto determinado, tendo agora à mão
instrumentos jurídicos para fazê-lo valor. (Cury, Baía Horta, Fávero, 1996, p 26).
Este trânsito não foi fácil ou tranqüilo e a inserção do direito público
subjetivo, como suporte da declaração universal do direito à educação, que só se
impõe a partir da Constituição Federal de 1988, ainda guarda uma história e
aguarda quem possa desvendá-la.
Mas a assunção da educação como direito público subjetivo amplia a
dimensão democrática da educação, sobretudo quando toda ela é declarada,
exigida e protegida para todo o ensino fundamental e em todo o território nacional.
Isto, sem dúvida, pode cooperar com a universalização do direito à educação
fundamental e gratuita. O direito público subjetivo auxilia e traz um instrumento
jurídico institucional capaz de transformar este direito num caminho real de
efetivação de uma democracia educacional.
Ao analisar as Constituições brasileiras no que diz respeito à declaração do
Direito à Educação, concluí-se que a Carta Constitucional de 1988 representa um
salto de qualidade relativamente à legislação anterior, deslocando o debate da
efetivação deste direito, da esfera jurídica para a esfera da luta social; isto porque,
através da maior precisão da redação e detalhamento de tal declaração,
suprimiram-se os obstáculos legais formais à universalização do ensino
fundamental para todos e em todas as idades, introduzindo-se, explicitamente, até
mesmo, os instrumentos jurídicos para a sua efetivação (Oliveira, 1995, p 9).
Mas dado o avanço na Constituição, porque não se conseguiu, até o
momento, passados cerca de 17 anos da sua promulgação, uma efetivação da
letra constitucional no plano do real?
A tal ponto a nova Constituição refletiu avanços nos direitos sociais que,
antes mesmo da sua promulgação, as oligarquias já desencadeavam contra ela
uma campanha de desmoralização (Pilatti, 1996, p.297-8). Por outro lado, os
movimentos populares acabaram seduzidos pela ilusão juridicista da consagração
retórica dos direitos substantivos, deixando em segundo plano a previsão de
instrumentos de sua efetivação. Segundo Pilatti (1996, p. 298-9), a batalha real
não se esgota na consagração de direitos e princípios, mas começa realmente
com eles, passando necessariamente pela estruturação de uma instrumentalidade
tal que permita a cobrança de sua implementação. As propostas progressistas
sobre a educação ilustram a priorização dos aspectos substantivos em detrimento
dos aspectos procedimentais, ou seja, da previsão de instrumentos, inclusive de
atuação perante o Poder Judiciário, para garantir o exercício dos direitos
consagrados. É claro que a definição da educação como direito público subjetivo
facilita a luta pela garantia de seu exercício, mas ficam aqui as indagações: em
que medida houve preocupação com essas questões instrumentais? Em que
medida a mobilização setorial relativa à educação considerou importante a luta,
por exemplo, pelo mandado de injunção? Na fase final da Constituinte, as
negociações foram globais, produzindo conseqüências intertemáticas, concessões
sobre um tema ocasionado a preservação de conquistas em outro, e nem sempre
a mobilização setorial progressista estava atenta para as mudanças de última
hora, de importância estratégica fundamental (Pilatti, 1996, p.298-9).
Finalmente, uma preocupação de mérito, que diz respeito a um dos
objetivos da educação segundo o próprio texto constitucional: a formação para a
cidadania, mas foi desconsiderada a necessidade de se garantir a inclusão, nos
currículos do ensino fundamental, da Carta de Direitos constitucionalmente
consagrada. Só poderemos contar com cidadãos ativos na medida em que
tenhamos garantido o acesso dos cidadãos ao conhecimento dos direitos
individuais, coletivos, políticos sociais e culturais que o ordenamento supremo
consagra. E o lócus adequado para tanto é a escola, como visto anteriormente no
presente trabalho. Através do ensino dos Direitos Fundamentais no ensino
fundamental, com os cuidados necessários para que isto não degenere em
manipulação ideológica, seria possível enfrentar o monopólio privado de
veiculação de valores egoísticos e radicalmente individualizantes que hoje
contribuem para liquidar com os laços de solidariedade (Pilatti, 1996, p.301).
Dessa forma, segundo Pilatti (1996, p. 301-2), as oligarquias dominantes,
no trabalho sistemático de crítica à nova Constituição, pretenderam evitar a
formação do chamado “sentimento constitucional”, essa relação subjetiva de
identificação entre a maioria cidadã e o ordenamento democrático vocacionado
para protegê-la, que permite o conhecimento e, a partir daí, a efetiva utilização da
Constituição como instrumento de combate em favor da cidadania. Daí a
importância de garantir, desde a escola, o acesso ao conhecimento dos direitos
constitucionais.
Por outro lado, não podemos imaginar que a escola sozinha possa mudar a
sociedade, nem que as leis possam mudar, por decreto, nosso sistema
educacional, sem recursos e meios adequados. As contradições vividas pela
educação são as contradições vividas pela sociedade em que vivemos: a
privatização crescente da vida, as desigualdades de oportunidades, a crescente
ignorância em meio a uma avalanche de informações etc. Mas, como educadores,
devemos tomar uma posição e acreditarmos que a educação pode contribuir para
a emancipação humana. Para isso, como escreveu Mezáros, é necessária uma
reformulação essencial na educação, não apenas na educação formal, mas na
educação do cotidiano e da cidadania.
Os instrumentos formais existem, como visto no presente trabalho. Cabe
aos educadores lutar pela sua efetivação.
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.72.
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? – Campinas: Papirus, 1990.
CHAUI, Marilena. “Direitos humanos e medo”. In Ribeiro Fester, A.C. (org) Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989, p.29 COMPARATO, Fabio Konder., “Direitos Humanos e Estado” . in Ribeiro Fester, A.C. (org) Direitos humanos e ... São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 98.
CURY, Carlos Roberto Jamil; HORTA, José Silverio Bahia; FAVERO, Osmar. “A
relação Educação – Sociedade- Estado pela mediação jurídico–constitucional”. In
FÁVERO, Osmar. A Educação nas constituintes brasileiras 1823-1988.
Campinas/São Paulo: Autores Associados, 1996. pg. 5 -30
MARSHALL, Thomas Humphrey. Política Social - Rio de Janeiro: Zahar, 1967
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital – São Paulo: Boitempo
Editorial, 2005.
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Educação e Cidadania: o Direito à educação na
Constituição de 1.998 da República Federativa do Brasil. Tese de Doutoramento.
São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1995.
PILATTI, A. “Comentários ao texto de Maria Francisca Pinheiro”. In, FÁVERO,
Osmar. A Educação nas constituintes brasileiras 1823-1988 –Campinas/São
Paulo: Autores Associados, 1996. pg 293-302.
TURNER, Bryan. S. “The erosion of citizenship”. British Journal of Sociology, 52
(2): 189-209, 2001.
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