EDITORIAL - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre · 2016-12-03 · ... já que não...

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EDITORIAL

“Em toda obra viva o pensamento não se dissocia da linguagem que ela inventa para se pensar”.

Jean Rousset, crítico da Escola de Genebra e contemporâneo de Lacan,formula assim um ponto fundamental na relação entre a escrita, a fic-ção e o estilo, trabalho do deixar-se tomar na linguagem. Do estilo, Freud observa que, muito tempo antes do surgimento da

psicanálise, um crítico de arte russo (que se verificou italiano) produziu umaverdadeira revolução nas galerias de arte, no que dizia respeito ao reconheci-mento de uma autoria na pintura: ele não se guiava pela classificação daimpressão de conjunto, indo, ao contrário, na importância do detalhe, dofragmento. O formato das unhas, o lóbulo da orelha, a auréola dos santos, ostraços que os copistas poderiam descuidar, mas não o artista. Ali, se decan-tava o estilo.

Freud chama a atenção para a afinidade que encontra entre esse pro-cedimento, na arte, e a psicanálise, na prática da escuta do inconsciente(tema que Carlo Ginzburg desenvolve em seu “Mitos, emblemas e sinais”) –ambas produzindo passagens na articulação dos traços aparentemente pou-co relevantes, descuidados. Traços e restos. A forma pela qual se diz, setransmite algo da experiência na narrativa sob transferência, operação deinvenção discursiva, nos concerne enquanto psicanalistas.

Atravessamos, neste Correio, um percurso inspirado pelo efeito deficções que permitiram abrir interrogações sobre o inventar-se em análise.Continuamos o debate, agora em junho, com o Relendo Freud: como pensarhoje as “Construções em análise” freudianas, seguindo o fio de trabalho des-te ano que nos reúne em torno de narrativa e psicanálise.

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JORNADA INTERNA DA APPOA“TRANSMISSÃO E FORMAÇÃO”

Neste mês de maio, dia 14, pudemos compartilhar um importantemomento de trabalho sobre um tema que se mostrou fundamental. Pelasintensas discussões levantadas como efeito da apresentação dos trabalhos,a reflexão sobre a transmissão e formação analítica possibilitou tanto areatualização de alguns pontos como a renovação de interrogantes.

Convocados pelo tema, muitos colegas da APPOA e freqüentadoresdo ensino participaram da jornada, tendo sido aberta uma sala com telãopara que o interesse ampliado tivesse seu lugar.

Na abertura da jornada, Alfredo Jerusalinsky lembra das três condi-ções para a formação do psicanalista, apontadas por Freud: a análise pes-soal, a formação teórica e a supervisão. Outros trabalhos também se debru-çaram sobre esse “tripé” que sustenta a formação, destacando-se duas ques-tões: de um lado o lugar da instituição analítica na formação e, de outro, aretomada da importância da supervisão no trabalho do psicanalista. Paratrabalhar a questão da responsabilidade do psicanalista, Alfredo retoma oprincípio ético enunciado por Lacan de que quando uma prática não se sus-tenta numa ética, se sustenta no poder.

Durante a manhã, outros três trabalhos foram apresentados.Otávio Nunes situa historicamente a discussão sobre o tema da trans-

missão e formação dentro da APPOA. Lembra a Jornada sobre “A formaçãodo psicanalista” e retoma a discussão sobre o momento em que uma de-manda de análise se transforma em desejo de analista e o lugar do analistaque escuta essa questão.

Volnei Dassoler retoma o dito de Lacan de que o analista “autori-za-se por si mesmo”, mas salienta que isso se dá a partir de outros. Apartir dessa questão, trabalha sobre o lugar da instituição psicanalítica esua função na passagem de um analisante à analista. De um lado, te-mos o tempo da formação de cada um; de outro, a questão da nominaçãode um analista pela instituição psicanalítica. Sublinha que a participa-

ção em uma instituição psicanalítica se dá pela escolha e responsabilidadede cada um.

O lugar da supervisão no “tripé” da formação de um analista é retoma-do na fala de Ieda Prates da Silva. Além dos elementos que traz de suaexperiência, faz um percorrido por alguns autores, para marcar a possibilida-de de que, em uma supervisão, há um deslocamento na escuta, um sentidonovo na ordem significante, mantendo aberta a escuta das formações doinconsciente.

Durante o debate, foram propostas diversas questões.Discutiu-se o lugar da supervisão, já que é comum que alguém procu-

re supervisão quando não sabe mais o que fazer. Porém, há o risco de “sa-ber” demais o que se está fazendo e é aí que uma supervisão tem sua fun-ção.

Ainda no debate, foi abordada a questão da responsabilidade de cadaum com o desejo que sustenta sua prática, colocando diante do outro seufazer, já que não se tem garantias de que o desejo do analista esteja presen-te de uma vez por todas. Aí surge a função da instituição analítica, quepossibilita múltiplos lugares e diversas formas desde as quais o desejo deanalista possa se colocar em uma formação continuada. Nesse sentido, sefaz presente a possibilidade de invenção constante da APPOA, nesses 15anos de existência, e a importância da instituição possibilitar o trabalho enão ser freio às produções.

À tarde, Carla Cumiotto traz, a partir de sua experiência na universida-de, a questão de a psicanálise ser tomada apenas como teoria e não em suapossibilidade de escuta. Percorre os caminhos que vão do conhecimento aosaber e do ensino à formação. Nesse sentido, Siloé Rey aborda as interse-ções entre a psicanálise e a universidade quanto à formação e transmissãoanalíticas, levantando questões a respeito da singularidade de cada cidadena circulação da psicanálise pela universidade e pela instituição psicanalíti-ca.

Denise Quintão aponta diversos interrogantes com os quais o analistatêm que lidar ao trabalhar em instituições, seja na saúde mental, ensino ou

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de outro caráter, nas quais trabalha junto à profissionais das mais diversasáreas e formações.

Finalizando os trabalhos, Clara Hohendorff relata sua experiência comopsicanalista em relação à mídia. Esse é um campo desafiante pelo que trazde novidade, já que as questões do encontro entre a psicanálise e a mídiaestão se abrindo em uma interlocução ainda recente.

No encerramento da Jornada, que reabriu tão variadas e densas ques-tões, Lucia Serrano Pereira destaca a função do “Cartel do Interior”,organizador deste evento, dentro da APPOA. Nesta jornada e também emoutros momentos, este cartel vem levantando temas do interior da psicanáli-se, abrindo-os à interlocução, produzindo grandes efeitos no “exterior”.

Deborah Nagel Pinho

JORNADA DO PERCURSO DE ESCOLA VI

“QUANDO A PRÁXIS FAZ QUESTÃO:CARTOGRAFIAS DE UM PERCURSO”

Tentar responder nossa questão nos constitui como sujeitos. Ao lon-go desses três anos de Percurso de Escola deixamo-nos interrogar pelaPsicanálise no tempo da própria tecitura desse percurso. Reunindo práxisdiversas, cada um foi conduzido pelo fio do seu desejo, um “fio de Ariadne”,permitindo que nos perdêssemos para, então, nos encontrarmos.

Enfim, mais um percurso finaliza uma etapa. Hoje, retomamos o fio dameada em testemunhos que não trazem respostas, mas bagagem para odesenho de um mapa que aponte para novos percursos, certamente diferen-tes daqueles que trilharíamos se não tivéssemos por aqui passado.

Convidamos a que nos acompanhem nessa Jornada!

PROGRAMASábado, 02 de julho de 2005MANHÃ - 9 horas - ABERTURA

Cultura e Desamparo: com a palavra, os GóticosMartha Lacerda LemosReflexões sobre a constituição do sujeito psíquicoLisiane Machado de OliveiraDebatedor: Carlos Henrique KesslerIntervalo10h30minPara compreender o autismo a partir do referencial da Psicanálise:uma investigação teóricaMaria Odete GarzieraDelimitando fronteiras: corpo, subjetivação e palavraElaini Alves GonçalvesDebatedor: Gerson Smiech Pinho

TARDE - 14h30minClínica das psicoses no ambulatório público: uma clínica do sujeitoGiselda da Silveira EndresDesdobramentos do olhar: considerações na clínica da psicoseClaudia Martins MarquesanEscritos sobre a EscritaGiovana Cavalcanti SerafiniDebatedora: Rosane Monteiro RamalhoIntervalo16h30minUma clínica que convoca à invenção: a fotografia como dispositivode tratamentoThoya Lindner MosenaEscolarização de crianças com uma estruturação psíquica precária -impasses e possibilidadesRenata Gonçalves ProsdocimiDebatedora: Simone Moschen Rickes18h - ENCERRAMENTOCoquetel de Confraternização

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MACHADO DE ASSIS NA CULTURAPSICANÁLISE E LITERATURA

 Data: 30 de Junho, quinta-feira, 20 horasLocal: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country – Av. Túlio de Rose, 80Loja 302)Palestrantes: Eneas de Souza e Flavio Azevedo.Tema: “Memórias póstumas de Brás Cubas”

O ciclo de debates “Machado de Assis na Cultura” prossegue estemês com uma das obras fundamentais da nossa literatura: “Memórias pós-tumas de Brás Cubas”, cujo narrador “um autor defunto” inaugura a série deromances definitivos do “Bruxo do Cosme Velho”. Para iniciar as discussõesnosso colega Eneas de Souza estará abordando “O momento crucial deBrás Cubas”; seguido pelas observações críticas e literárias do professorFlavio Azevedo a respeito do romance.

 Realização: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Li-vraria Cultura e Pós-Graduação em Letras da UFRGS

Segundo semestre: confirmadas a participação de Abrão Slavutsky,Ana Costa, Flávio Loureiro Chaves, Marieta Rodrigues e Sergio Fischer.

ESTUDOS PSICANALITICOS SOBRE GRUPOS

Este grupo visa a criação de um espaço de estudo e reflexão paraaqueles que desejem iniciar ou que já estejam envolvidos no trabalho comgrupos e instituições.

A periodicidade será mensal. A cada encontro haverá um texto base,sobre o qual o coordenador fará uma explanação. A seguir se trabalhará emgrupo operativo, cuja tarefa será a discussão do texto, à luz da pratica decada participante.

Os encontros ocorrerão na sede da APPOA, a partir de agosto, noprimeiro sábado de cada mês, das 10 às 12 horas.

Textos de referência:Primeiro encontro: Zito Lema, V. Conversaciones con Enrique Pichon

Rivière sobre el arte y la locura. Buenos Aires: Ediciones Cinco, 1986.Segundo encontro: Sartre, J.P.Cuestiones de Método. In Critica de la

razón dialéctica. Tomo I. Buenos Aires: Editorial Losada, 1995.Terceiro encontro: Broide, J. Texto de qualificação para a tese de dou-

torado. A psicanálise nas situações sociais críticas. A violência que se aba-te sobre a juventude das perifierias. Programa de Psicologia Social da PUC-SP. Núcleo de Psicanálise e Sociedade, 2004.

Quarto encontro: Pichon Rivière, E. Tratamento de grupos familiares:psicoterapia coletiva. Transferencia e contratransferencia na situação grupal.In O Processo Grupal, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.

Pichon Rivière, E. Picasso y el inconsciente . In el Proceso Creador.Del psicoanálisis a la psicología social. Tomo III. Buenos Aires: EdicionesNueva Visión, 1987.

Quinto encontro: Fernández, A. M. El Campo Grupal. Notas para unagenealogia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2002.

SEMINÁRIO“O DIVÃ E A TELA - CINEMA E PSICANÁLISE”

Data - 8 de Junho, quarta-feira, 19h30min.Filme: “A cidade dos sonhos”Diretor: David LynchCoordenação: Eneas de Souza e Robson Pereira

 Depois de discutir dois clássicos, e suas questões para a psicanáli-se, o seminário “O divã e a tela” coloca em cena um “cult” contemporâneo:“A cidade dos sonhos”, do diretor David Lynch. Filme cujo único efeito quenão provoca é a indiferença do expectador. As articulações que poderemosfazer a respeito do ato cinematográfico e do ato analítico, passando porconceitos como inconsciente, real e suas implicações com a arte e a morte,são alguns dos tópicos em pauta.

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UMA CHINELA TURCA – NARRATIVA,PASSAGENS E A OUTRA CENA

Lucia Serrano Pereira

O bacharel Duarte termina de dar o laço na gravata. É noite, o ano é1850. Passa de nove horas, ele prepara-se para ir ver no baile, “osmais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis que

esse nosso clima, avaro deles, produzira.” (p. 295)Nesse momento é interrompido, é anunciada a chegada do Major Lopo

Alves. O major era um dos maiores chatos de seu tempo, mas amigo ecompanheiro de exército de seu finado pai. Não tinha como não recebê-lo.

Duarte se preparava para o encontro com Cecília, namoro de recémuma semana:

“Seu coração, deixando-se prender entre duas valsas, confiou aosolhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontual-mente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favo-rável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a ca-minho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as coisas não era deadmirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igre-ja.” (p.295)

Duarte enfiou um chambre, encontra o major na sala com um rolo depapel embaixo do braço, olhos no ar, totalmente alheio à sua chegada.

– Vai sair? Pergunta o major, – mas ainda é cedo, não? Nove e meia.O major brinca com o rapaz, se dá conta de que os preparativos são para obaile, mas não dá a mínima, o que quer é contar sua novidade.

“Dou-lhe uma notícia que você não espera. Saiba que eu fiz... fiz umdrama.“ (p. 295)

Um drama! Repete o jovem. O major explica que desde criança sofriadesses achaques literários, o serviço militar não o curou. “A doença” voltouagora com força. Duarte faz os votos de sucesso e triunfo nessa estréia,quer se desvencilhar logo, quando vê o major “trêmulo de bem-aventurança”

CONVERGÊNCIA

Entre os dias 05, 06, 07 e 08 de maio, Salvador sediou mais umareunião da “Convergência – Movimento lacaniano para uma psicanálisefreudiana”. A reunião, organizada pelos colegas do Colégio de Psicanáliseda Bahia, contou com a presença da maioria das instituições brasileirasintegrantes do movimento, propiciando um importante momento de trabalho.Nos dois primeiros dias do encontro, representantes das instituições lá pre-sentes compartilharam suas questões com os demais. O trabalho se situou,sobretudo, em torno do eixo convocante: o tema da “Análise terminável ouinterminável”. Foram discutidas questões como a supervisão, a constituiçãode cartéis, relações com a universidade e das instituições analíticas entre si.Em um segundo momento de trabalho, os membros das instituições apre-sentaram trabalhos, em torno desse mesmo tema, mas em uma jornadaaberta à participação da comunidade. Com um número expressivo na audi-ência, os trabalhos trouxeram ao debate assuntos como o fim de análise, aformação do analista e o passe.

No próximo ano, o encontro ocorrerá em Recife, com a organizaçãodos colegas da Intersecções Psicanalíticas do Brasil. O tema convocanteserá “Identidade e identificações”.

Maria Cristina Poli

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“– Pouca coisa: um furto. O senhor é acusado de haver subtraído umachinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela, Mashá chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.” (p. 297-298) É sar-cástico.

A chinela turca:A chinela, segundo o policial, vale muitos contos de réis, é ornada

com diamantes, singularmente preciosa. A dona a comprou de um judeu,em uma viagem ao Egito.

Mas o que importa é que foi roubada e a denúncia é contra Duarte,que não teve tempo de concluir nada, já na rua estava um carro, o colocampara dentro e o carro sai em disparada.

“– Ah! Ah! Disse o homem do carro. Como que então pensava quepodia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças loiras, casar tal-vez com elas...e rir ainda por cima do gênero humano.” (p.298)

Meia torção:Neste ponto nos encontramos por primeira vez com um inusitado na

narrativa que poderíamos até então ter como linear. Como é que o policialpoderia saber do desejo íntimo de Duarte sobre a moça? E essa relaçãomoça/chinela?

Aqui, algo vira, na narrativa.Os policiais que, na verdade, não são da polícia, conduzem Duarte de

olhos vendados ao interior de uma casa por uma infinidade de corredores eescadas. Quando pode tirar a venda, encontra-se em uma sala, bronzes,espelhos, tapetes, opulência e elegância.

“... a tal chinela era já agora mais que problemática...” (p. 300)Duarte parece achar, então, uma explicação nova e definitiva. “A chi-

nela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília que eleroubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival.” (p. 300)

Nesse momento entra na sala um padre, atravessa a sala, sai poroutra porta. Ele a essa altura não entende mais nada. É levado a outra sala,onde um homem velho o espera. Ele diz que o roubo da chinela foi apenasum pretexto para o que o vai acontecer ali. A chinela não foi roubada, não

desdobrando o rolo que trazia consigo e pedindo que o jovem, inteligente elido, opinasse sobre a qualidade de sua obra.

Isso vai depressa, disse o major, sei o que são os rapazes e os bailes.Mas o que faz é convidar o jovem para se instalarem no gabinete

Para Duarte era indiferente o lugar do suplício e o algoz não queriatestemunhas. Consulta o relógio com melancolia, nove horas e cinqüentaminutos... Lopo Alves ao pé da mesa e Duarte afundado na poltrona de mar-roquim, decidido a não falar nada para ir depressa com a coisa.

O drama:O drama era dividido em sete quadros. “Não havia nada de novo na-

quelas cento e oitenta páginas, a não ser a letra do autor” (p.296), no maiseram os lances do romantismo mais desgrenhado.

Logo no primeiro quadro uma criança seqüestrada,... “um envenena-mento, dois embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivosnão menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da mortede um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso noquinto, e matar o tirano no sétimo.” (p. 296 –297)

No segundo quadro havia ainda a morte da menina, já com dezesseteanos, “um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testa-mento”. (p. 297)

Onze horas quando termina o segundo quadro, Duarte morto de cóle-ra. Impossível ir ao baile, se o major morresse ali mesmo seria um benefícioda Providência. Quando os “olhos carnais” do jovem viam a grenha do major,brilhavam em seu espírito os fios de ouro dos cabelos de Cecília, seus olhos,ouvia mentalmente a música, os passos no salão... O tempo voava, já derameia noite, o baile estava perdido.

De repente, vê o major enrolando o manuscrito, cravando em si unsolhos odientos e maus e saindo arrebatadamente do gabinete. Perplexo,Duarte ouve o passo colérico do dramaturgo na calçada.

Minutos depois, o moleque vem anunciar ao bacharel nova visita, entraum policial, vem em função da denúncia de um delito grave, o homem vai dizen-do. De que se trata? Qual a sua implicação no assunto? Quer saber Duarte.

PEREIRA, L. S. Uma chinela turca...

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tes, não? – Fortíssimas. Que horas são? – Deram duas agora mesmo.” (p.303).

O major vai embora, passado um tempo Duarte pensa consigo:“Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma

ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo:foi um bom negócio. (...) provaste-me ainda uma vez que o melhor dramaestá no espectador e não no palco.” (p.303)

O conto é “A chinela turca”, de Machado de Assis. A escolha depercorrê-lo aqui com vocês, mais ou menos no detalhe, é a tentativa deestabelecer um tecido em comum que me permita situar algo dos efeitosque a leitura me produziu, e que me parecem pontos valiosos na considera-ção do linguageiro como prática e invenção, seja na literatura ou na práticaanalítica, guardadas as diferenças.

Destaquei este conto, do conjunto da obra, por uma razão particular:“A chinela turca” faz parte da coletânea intitulada “Papéis avulsos”, que, nafortuna crítica de Machado de Assis é situada como reunindo os textos queinauguram o movimento de virada no estilo machadiano (junto com “Memóri-as póstumas de Brás Cubas”, no gênero do romance), trata-se do momentoda inovação e de certa forma de estabelecimento do que vai ficar registradocomo seu estilo.

Tomemos “A chinela turca” como um pequeno fragmento dessa revira-volta para situarmos a discussão psicanálise – narrativa – invenção.

Quando li “A chinela turca” achei surpreendente. Pelo efeito, pelo equí-voco. O que é mesmo que acontecia? A gente não sai da leitura com muitacerteza (a organização do conto no relato que faço a vocês já é mediada pelaminha leitura, então, distante do impacto “da hora”). Se tratava de um sonho“sonhado”, um devaneio, uma brincadeira com os elementos do drama domajor, como era mesmo a coisa? Precisei ler uma segunda vez. Me pergun-tava por onde se produzia esse efeito de vacilação. Tinha algo na estruturada narrativa, da forma pela qual se narrava.

Eu já escrevi sobre “um narrador incerto” a partir de D. Casmurro, masaqui daria para pensar em um narrador de certa forma inquieto, em desloca-

tem nenhum diamante, é, porém, turca, e nunca saiu das mãos de sua dona.Pede que tragam a chinela, um milagre de pequenez. Era de marroquimfiníssimo, forrada de seda azul.

“Chinela de criança, não lhe parece? Disse o velho. – suponho quesim. – Pois supõe mal; é chinela de moça. – Será; nada tenho com isso. –Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona. – Casar! Exclamou Duarte.– Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.” (p. 301)

A moça era uma imagem de poeta, uma criatura divina, vestido bran-co, “era loira, tinha os olhos azuis como os de Cecília, extáticos, uns olhosque buscavam o céu, ou pareciam viver dele.” (p. 300)

Duarte diz que não tem vontade de casar. O velho afirma que ele vaifazer três coisas: casar, escrever um testamento - já que tem uma fortunazinhade cento e cinqüenta contos – a noiva é a herdeira, e a terceira, engolir umacerta droga do Levante.

“Veneno! Interrompeu Duarte”.“– Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte, apavorado. Vem a noiva e o padre. Levante-se! – Não! Não quero! Nãome casarei!”

É apontada uma pistola, Duarte suava e tremia, o padre (que não erapadre) se aproxima e sussurra em seu ouvido: quer fugir? Vê aquela janela?Salte por ela e corra.

“Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, ...atirou-se a Deus mise-ricórdia por ali abaixo.” (p. 302) Começou uma corrida vertiginosa, saltoumuros e cercas, ia esbarrando nas árvores, as forças iam acabando, cortoua mão, o chambre prendeu-se em uma cerca de espinhos, por fim cansado,ferido e ofegante cai nos degraus da última casa que encontra. Entra arras-tando-se, cai numa cadeira, e reconhece o homem lendo o Jornal do Comér-cio. Era o major Lopo Alves. “O major, empunhando a folha, cujas dimensõesiam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente: - Anjodo céu, estás vingado! Fim do último quadro.” (p. 303)

Duarte olha a mesa, as paredes, esfrega os olhos, o major lhe pergun-ta a opinião, Duarte responde – Excelente! O major observa “– Paixões for-

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o que Duarte poderia desejar em matéria de acesso aos finos cabelos loirose olhos azuis.

Mas o que Machado de Assis desdobra no tecido do conto é o de queessa voracidade no ir pegar o objeto, o acesso e do envolvimento em umaperspectiva de se ver diretamente com o objeto na mão1, se podemos dizerassim, pode ser também muito perturbadora. É o desejo e ao mesmo tempoo desamparo (do século XIX ao XXI).

Como é que isso se apresenta no conto? de forma paradoxal: nosonho, o casamento (que no início do conto é o auge da realização do en-contro) aparece agora associado a um imperativo do Outro; a noiva / divina /Cecília, que segue sendo maravilhosa, é ligada ao desaparecimento delepróprio. Ela será a sua herdeira, ela o substitui, e ele fica condenado aoveneno e à morte.

Não dá para deixar de colher essa relação, esse paradoxo da subjeti-vidade que o conto traz, o de que esse rápido acesso tão desejado pode servivido como fatal.

Genial no conto é que Machado inventa aí a expressão justa daequivocidade, o nome do veneno: “passaporte do céu”. Para o bem ou para omal, o passaporte para o paraíso de gozo imaginado no encontro com Cecí-lia, e ao mesmo tempo o documento para poder “passar dessa para a me-lhor”, como se ironiza a morte. Aí encontramos algo da disponibilidade queopera em um escritor para com os significantes que lhe vem do campo doOutro. Da escrita que se produziu é quase como se pudéssemos dizer queMachado de Assis sabe muito bem que em se tratando de atingir, alcançar oobjeto do desejo, há uma beira, uma borda de vazio que implica um desam-paro. Saber da outra cena. Não explícito, sutil. Não descrito no conteúdo,mas tramado com a forma, o estilo, o trato linguageiro. Como se apresentamas condições para um tal efeito na escrita machadiana? Vamos voltar nissologo mais.

1 Vide texto Parênteses, de R. Chemama a partir do conto Uns braços, de Machado deAssis.

mento, não fixado na descrição dos fatos, mas sim incluído, às vezes inter-pelando, “mostrando” direto para o leitor: Vê-de o bacharel Duarte...Notaique é de noite...

Às vezes conduzindo a narrativa, ás vezes encostado, quase na peledo personagem, onde ficam condensados, incluídos na cena.

E aí começa a tensão, trabalhada ao longo de todo o conto pelo fio dotempo que o narrador enuncia, recolocando a pressa, a urgência de Duarte eo enlevo narcísico do major:

O início é “Passa de nove horas (...)”; depois o major perguntando “vaisair? Ainda é cedo...nove e meia...; às 21:55 é a melancolia, às 23 é acólera, às 24 o baile está perdido, no final, duas horas da manhã, algo sepacifica com a saída que Duarte encontra para sua experiência o melhordrama está no espectador, e não no palco. E na leitura um dos efeitos é quenós somos tensionados pela perda que esse tempo vai anunciando.

Essa ênfase sobre o tempo é marcante, e fazendo uma relação com ocontexto, com a história das narrativas, então, a marcação do tempo é umdos elementos que Ian Watt aponta como indicador da mudança na narrativacomo expressão da modernidade e do individualismo: a escrita realista, aescala do tempo, a vinculação dos personagens na dimensão temporal, cir-cunstâncias e pessoas específicas, tempo e espaço condensados e umaimpressão de absoluta veracidade. Talvez mesmo o sonho ali, no conto,esteja, em parte, como um certo “subjetivismo realista”.

Mas há um outro trato do tempo, em A chinela turca, que não é damesma ordem. É o que, a meu ver, vai trabalhar do lado do nervo, do nó doconto: a rapidez com que tudo evoluiu entre Duarte e Cecília, o desejocorrespondido, mas ao mesmo tempo o que isso convoca de perturbador.Isso não aparece diretamente na história, mas certamente articula um aves-so crucial para a trama, que não é nem um pouco evidente: precisa ser lido.

A rapidez de início: entre duas valsas, onde o coração é capturado, adeclaração de amor dez minutos antes da ceia, resposta favorável depois dochocolate (o tempo por contigüidade, como com as valsas), três dias para aprimeira carta, e indo assim, possível casamento antes do fim do ano. Tudo

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Assim, a saída, a resolução que dispensa o romantismo na “Chinelaturca” é determinada pelo jogo posicional, pelo trato com a linguagem, situao ponto de virada da escrita de Machado de Assis. Não se reduz ao drama,à novela. Ao contrário, talvez o que se reduza seja mesmo a novela.

O humor, a ironia ao modo machadiano é irresistível: o major nervosopara saber se faz alta dramaturgia, arte sublime, mas a sua suposta veiacriadora (ao invés de uma inspiração romântica) vem é como uma espécie dereumatismo, funciona por achaques. É como um sintoma ( por que não?uma forma de estar com o Outro, afinal...).

Quando Lacan lida com a questão do declínio do complexo de Édipo,ele vai dizer o que declina é a novela edípica, a novela enquanto o drama, oromance; o que segue, o que resta disso é a estrutura de filiação. Fica paracada um o trabalho subjetivo de “se achar na estrutura”, um “se virar comisso”. Não é a hegemonia do romance. Como na análise, mesmo que sejasob transferência.

Mesmo na clínica, as operações que tem a ver com a prática da éticapsicanalítica lidam com a criação, o surgimento do novo, mas desde umaperspectiva de destituição da idealização. Que surge de ter enfrentado algoda proximidade com a borda do real.

Um analisante de Lacan, Eric Laurent (que se torna psicanalista),reconstrói a frase que ficou ressoando em seus ouvidos, por ocasião doprocesso de início de sua análise:

“Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance queé sua própria vida. Para isso não é necessário fazer uma psicanálise. O queesta realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A contraçãodo tempo, que o conto possibilita, produz efeitos de estilo. A psicanálise lhepossibilitará perceber efeitos de estilo que poderão ser úteis a você”. (Laurent,1992, p.36)

Aqui temos um elemento a mais para incluir nas questões do “estarna linguagem” em relação com a narrativa. Este fragmento permite pelo me-nos interrogar a mudança estética apontada, diferença entre o romance e oconto. Há algo que nos concerne aí, pensando a clínica?

Ainda no jogo da vacilação de sentido não podemos deixar de referir aconstelação que envolve o termo de chinela turca. Quando Cecília é apresen-tada a nós, leitores, já se faz acompanhar de uma certa “raridade”: cabelosloiros e olhos azuis. A chinela turca porta também um elemento deestrangeiridade, de Outro sexo, de feminino. Joga com a condensação, osolhos azuis com o forro de seda azul, os cabelos de fios que brilham e oornamento de diamantes da chinela. Há um tanto de erotismo misturadocom o exotismo e o fascínio que o orientalismo exerce, principalmente den-tro da perspectiva do romantismo.

Esse é outro dos movimentos que me parece fino e preciso na narra-tiva, em se tratando de uma “virada”: Todos os temas e desenvolvimentos doque poderíamos chamar a trama, o enredo, são exemplares do drama ro-mântico, todas as histórias de embuçados, punhais, raptos, corredores egalerias, olhos vendados, damas divinas, e principalmente os testamentos eas heranças. O ultra-romantismo ou romantismo desgrenhado, como Ma-chado de Assis ironiza. Nas novelas românticas não raro alguém vem decondição humilde e tem seu destino mudado pelo recebimento de uma he-rança, ou de uma carta, uma revelação. É clássico.

Machado trabalha com esses índices em todo o conto, poderia seruma novela romântica, mas não é. Pela estrutura da narrativa, pela formacomo o sonho é introduzido - os restos da narrativa do major compondo omovimento do sonho, tudo isso associado à tensão entre urgência e impos-sibilidade, o movimento do narrador que lembra em alguns momentos osfilmes de Wim Wenders ou Woody Allen, onde a câmera parece estar nosombros do cineasta, virando rápido, sacudindo dentro de um táxi que cruza acidade, muito perto do lugar do protagonista. Há outras viradas mais: Duarteé acusado de ladrão, mas ele é também o que se deixa roubar na trama,roubado do acesso ao baile; empurrado ao lugar de espectador do drama. “Omelhor drama está no espectador”, ele conclui por ter tido um sonho originalno lugar do drama chato, mas “o melhor” que ele situa não deixa de ser noponto de passagem em que o espectador passa ao palco, e protagoniza osonho, podemos dizer.

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de sentido finitas porque o “eu” que nelas se diz não fala somente para selembrar de si, mas também porque deve ceder o lugar a algo outro que não simesmo.” (p. 91)

O relâmpago, o nocaute, a contração e o limite, tanto Cortázar comoGagnebin acentuam esse ponto de abertura em uma estrutura de linguagempode nos reenviar à outra realidade, essa que Freud nos indicou: realidadepsíquica, a outra cena, o inconsciente.

O conto, nesse sentido, aparece como uma forma interessante parapensar, principalmente, pontualidade e leveza, abertura e fechamento, nocontraste com o romance2, que tem como horizonte um percorrido maistotalizante.

Corte e limites pontuais estão presentes em uma análise, a cada vez,a cada pequena e pontual operação de separação. Operação analítica quetrata de atualizar a “separação entre a e menos phi”, “lembrar” a inadequaçãofundamental entre causa de desejo e castração imaginária. Não estaríamosaqui, a partir da simbolização da castração que se opera nas sessões e aolongo de uma análise, perto dessa possibilidade de efeitos de estilo que seinventam e se disponibilizam?

Vamos levar a interrogação em torno dos efeitos de estilo na relaçãocom a forma “conto” um pouco mais adiante. Assim como existem chinelase chinelas, existem formas e formas, contos e contos.

A esse respeito, a forma na qual a narrativa é produzida, pode serinteressante um breve diálogo com Ricardo Piglia, escritor argentino quetrabalha sobre as narrativas curtas, os contos, desde Poe, Tchecov, Kafka,indo até Borges. Ele desenvolve, sobre a forma no conto, duas teses:

Primeira tese: um conto conta sempre duas histórias. Traz com exem-plo uma anedota tirada de um caderno de notas de Tchecov: “Um homem emMontecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se.” (Piglia, p.89)

2 Vide o artigo Minha vida daria um romance, de Maria Rita Kehl.

É interessante lembrar que o romance, em seus fundamentos, tendea contar a história de uma vida, ou de uma trajetória individual, o percurso doherói, uma vida distendida ao longo do tempo. O conto é uma espécie decontramão, tende ao pontual, é um corte na pretensão totalizante.

Júlio Cortazar fala do conto de forma precisa e bonita: algo assimcomo um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa perma-nência. O conto parte da noção de limite. Poderia se comparar na analogiacom a fotografia (o romance, ao cinema). “Fotógrafos da categoria de umCartier-Bresson ou de um Brassai definem sua arte como um aparente para-doxo: “o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinadoslimites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão queabra de par em par uma realidade muito mais ampla (...)”.

Numa fotografia ou em um conto de grande qualidade “o fotógrafo ou ocontista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acon-tecimento que sejam ‘significativos’, que não só valham por si mesmos mastambém sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espé-cie de ‘abertura’ (...) em direção a algo que vai muito além do argumentovisual ou literário contido na foto ou no conto.” (p. 151-152)

Ele comenta o dizer de um amigo ligado ao boxe: um romance ganhasempre por pontos, o conto ganha por nocaute.

Quanto ao limite e à contração, interessante considerar a experiênciade Walter Benjamin. Ele escreve “Crônica berlinense”, texto ao estilo narra-tiva de memórias, contínuo; anos depois reescreve todas essas memórias,reminiscências, mas na forma de pequenos fragmentos, mudando totalmen-te a estrutura do escrito. “Infância em Berlim” é o resultado, que J. Gagnebincomenta:

“Benjamin desiste pouco a pouco da forma autobiográfica clássicaque segue o escoamento do tempo vivido pelo autor, uma forma já bastantequestionada na ‘Crônica Berlinense’, para concentrar-se na construção deuma série finita de imagens exemplares, mônadas (para usarmos um deseus conceitos preferidos) privilegiadas que retém a extensão do tempo naintensidade de uma vibração, de um relâmpago, do Kairos. Estas miniaturas

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ou coroa” – ou seja, duas faces – fica aqui subvertido. O direito e o avessopassam a estar contidos um no outro.

A estrutura moebiana, com sua meia torção, desarticula o duplo e oultrapassa. O que é curioso é que se tomamos apenas uma parte da banda,ela apresenta perfeitamente a duplicidade do cara ou coroa, mas a banda emseu conjunto tem só uma face e uma borda. (Se percorrermos a superfície dabanda com o dedo sem levantá-lo do papel, ao longo de uma volta estaremosno avesso do ponto de partida, e só depois da segunda volta estaremosnovamente no ponto de partida. Interessante é que, nesse sentido, só umacontecimento temporal vai poder diferenciar o avesso e o direito).

Porque Lacan vai trabalhar com essa banda de Moebius? Ele faz arelação dessa estrutura moebiana com a fala e o sujeito. A unilateralidadeda superfície aponta que as formações do inconsciente vêm na fala, se pro-duzem no discurso sem atravessar nenhuma borda. Os lapsos, os esqueci-mentos, se produzem no interior do discurso, nos diz Marc Darmon. E ainterpretação, na clínica, é um corte nesta banda, ao longo de todo o seucomprimento, resultando, aí sim, em uma banda de dupla face onde, por ummomento, ocorre a surpresa da constituição do inconsciente como avesso.

Se pensarmos na forma do conto, na relação a essas possibilidadesde representação conceitual, a tese de Piglia, com as duas histórias, teriamais proximidade com uma banda de dupla face, cada face uma história, é ocara ou coroa do exemplo. Mas teríamos que nos movimentar procurandoum raso e um profundo, como um a priori. Como uma psicologia daprofundeza, talvez. Se levamos em conta a subversão da duplicidade, a ban-da de Moebius, a exterioridade e a interioridade estão articuladas.

Eu faço a hipótese de que no conto machadiano a linha de força, detensão, joga com um efeito de queda, de avesso. Mais moebiano do que“cara ou coroa”. E que esses efeitos são produzidos pelo “como é narrado”,ao modo de Machado produzir o nocaute ou a queda do raio, ponto de aber-tura.

Não quero produzir nenhuma forçagem, teríamos muitas mediações afazer entre narrativa textual e a fala em análise, e afinal de contas um escrito

Segundo Piglia, a forma do conto está condensada aí, na contramãodo previsível e do convencional que seria jogar – perder – suicidar-se. Aanedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essacisão paradoxal seria chave para definir o caráter duplo da forma do conto,que trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-la.

Segunda tese: o conto é um relato que encerra uma história secreta.Não se trata de um sentido oculto, mas uma história contada de modo enig-mático. O conto narrando em primeiro plano a história 1(o relato do jogo), econstruindo em segredo a história 2 (o relato do suicídio). O efeito de surpre-sa seria a irrupção da história 2 sobre a primeira. A história secreta seria achave da forma do conto e de suas variantes. Suas teses acentuam a dimen-são da duplicidade e do enigma.

Piglia tem uma proposição interessante, não é nenhum ingênuo emseus desenvolvimentos. Mas onde ele centra o trabalho é na distribuiçãobinária dos lugares em questão. Mas nós ficamos, com essa chave de leitu-ra, inevitavelmente capturados na tentativa de tomar um conto sempre bus-cando identificar o dois, a dupla. Acho que é uma parte do caminho.

O que penso que poderíamos avançar, pensando a partir da Chinelaturca, “abertura do pequeno para o grande”, então, é que ali se põe em movi-mento algo além do binário. Não tanto duas histórias, mas algo que se pro-duz num momento como avesso.

A figura que me veio, na leitura desses contos (chinela turca e outros),foi a da banda de Moebius, essa figura topológica que Lacan nos apresenta.

Vou lembrar brevemente a situação dessa banda para propor aindauma última observação. A partir de uma banda retangular comum, umatira de papel retangular, operando uma meia torção e colando as bordassobre si, conseguimos uma superfície que apresenta uma série de fenô-menos paradoxais. Jeann Granon-Lafont desenvolve todo um trabalhoem seu livro “A topologia de J. Lacan”, Marc Darmon em Ensaios sobre atopologia lacaniana. São referências. A banda de Moebius opera umasubversão em nosso espaço comum de representação. O direito e oavesso dessa fita passam a se achar em continuidade. O uso de “cara

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GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Campinas:Editora Perspectiva, 1994.

GRANON-LAFONT, Jeanne. A topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1990.

LAURENT, Eric. “Quatro observações sobre a preocupação científica de JacquesLacan” In: GIROUD, Françoise et al. (org.) Lacan, você conhece? São Paulo:Editora Cultura, 1998.

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

não é uma superfície moebiana, mas se o que singulariza uma escrita temrelação com o estilo que ali se produziu, arriscaria pensar:

– Que um efeito de avesso como o que encontramos em “Chinelaturca”: desse saber de que a proximidade do objeto de desejo implica emuma borda de desamparo, funciona no estilo de Machado de Assis comonos evocando as relações do sujeito ao campo do Outro em seu funciona-mento moebiano. Não é de duas histórias essa amarração (apesar de poder-mos identificá-las, se quisermos). É do saber inconsciente que se veiculaem algo do estilo do autor. Passagens paradoxais. Assim como passagensentre o singular e o coletivo, em seus contos, ou mesmo passagens queconcernem à posições fantasmáticas que ele recolhe no imaginário social ejoga para dentro de sua ficção.

Para criar as condições de “inventar-se em análise” é preciso quepossamos estar implicados na trama da transferência, e ao mesmo tempoposicionados de maneira a poder dar conta dessas passagens paradoxaisque constituem o estar na linguagem, só assim o desejo do analisando podesurgir, pode surpreender em seu próprio dizer.

Um bom conto de Machado, para mim, tem efeito arejador, no pensarnossas questões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Obra Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Nova AguilarS. A. , 1997.

KEHL, Maria Rita. Minha vida daria um romance. In: BARTUCCI, Giovanna. (org.)Psicanálise, Literatura e Estéticas da Subjetivação. Rio de Janeiro: ImagoEditora, 2001.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.CHEMAMA, Roland, e outros. Parênteses. In: A clínica do especular na obra de

Machado de Assis. Paris: Cadernos da Association Lacanienne Internationale,2003.

DARMON, Marc. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médi-cas, 1994.

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Gostaria de iniciar, com vocês, uma leitura do romance Budapeste. Anarrativa propriamente dita começa assim: “Fui dar em Budapeste graças aum pouso imprevisto quando voava de Istambul a Frankfurt (...)”. José Costa,que é quem nos conta essa história, pára em Budapeste por acaso e éobrigado a passar a noite num hotel à espera do dia seguinte, quando reto-mará a viagem, se vê tomado pelos noticiários, que escuta sem cessar, emhúngaro. Não consegue distinguir uma palavra da outra, “seria como preten-der cortar um rio a faca”. Mas, sendo madrugada, o noticiário é repetidasvezes transmitido, e o personagem se vê como enfeitiçado por essa línguaque, diz ele, é a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, até odiabo respeita.” (p.6)

O pouso fora imprevisto. Assim como era imprevisto o encontro com ohúngaro. Diz ele ao encerrar esse mesmo parágrafo: “Tenho esse ouvidoinfantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderiaaprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas húngaro, nunca sonharaaprender” (p.7). Assim o leitor se depara com esse estranho encontro deJosé Costa com a língua húngara, encontro que captura leitor e personagem.Após ouvir o húngaro à exaustão, passando a noite em claro no hotel, opersonagem consegue decorar mecanicamente uma parte do noticiário (nãoà toa, a reportagem que se referia ao avião do qual ele fora obrigado a desem-barcar). Mas logo o texto se esvai da memória. No restaurante e no aeropor-to, ele espera ouvir mais alguma palavra em húngaro, mas garçons e funcio-nários dirigem-se a ele em inglês. Ainda que ele implore: “in hungarian”, ouveapenas um “Ô”, ou um silêncio desconfiado. Deduz que os húngaros têmciúme da sua língua, o que só a torna mais fascinante para ele. Desolado,transpõe o freeshop – “longo e cintilante território livre, um país de línguanenhuma, pátria de algarismos, ícones e logomarcas” (p.10) – e despede-sede Budapeste com saudade da língua que desconhece.

A narrativa segue, e então passamos a conhecer o universo que cercaJosé Costa. Trata-se de um ghost-writer, (a tradução literal, do inglês, seriaescritor-fantasma) um escritor anônimo: escreve por outros. Tendo iniciadosua carreira escrevendo trabalhos universitários, monografias e cartas, pas-

ANÁLISE: EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA

Marieta Madeira Rodrigues

“Devia ser proibido debochar de quemse aventura em língua estrangeira”. (p.5)

Assim Chico Buarque inicia seu Budapeste, romance publicado em2003, do qual me servirei, nesta Jornada de Abertura, para construiro percurso que sugiro no título deste trabalho: pensar o processo de

análise como uma experiência estrangeira.A frase inicial de Budapeste introduz o tema da língua estrangeira,

expondo, através do deboche, a freqüente fragilidade com a qual nos depara-mos ao tentar falar noutra língua, desconhecida. Trata-se de uma verdadeiraaventura. Bem sabemos os apuros nos quais podemos nos ver metidos aotentar pronunciar uma palavra nunca dita, ao formular uma frase sem conetivos,desconhecendo precisamente o efeito dessas palavras no interlocutor es-trangeiro. Não é uma experiência qualquer. Mas esse desconforto não se dáapenas entre línguas diferentes. Sabemos que a comunicação entre as pes-soas nunca é plena, pois existe um terreno incerto separando o que se dizdo que se escuta.

A indagação que dá origem a esse texto, então, diz respeito a qualefeito podemos supor na experiência de pronunciar-se noutra língua. O queé, para o sujeito, aventurar-se em língua estrangeira? Essa aventura podeprovocar alguma modificação subjetiva? Há palavras que não existem numalíngua, mas existem noutra – como a palavra “saudade” com a qual a línguaportuguesa conta, mas que não existe na língua inglesa. É claro que o inglêsterá outros recursos para dizer saudade, mas... trabalhando com ossignificantes como fazemos, não podemos supor que essas sutilezas sejamcompletamente sem efeito. As palavras, no contexto da análise, têm umlugar privilegiado; as palavras usadas pelo analisante têm o valor de esco-lhas, escolhas que dizem do inconsciente.

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José Costa passa a escrever autobiografias, textos narrados em pri-meira pessoa. Assinalo o movimento da escrita autobiográfica como um ele-mento para pensar, posteriormente, no tema da análise. O personagem es-creve uma primeira obra, e recebe a encomenda da segunda: a autobiografiade um alemão, que vive no Rio de Janeiro. Um estrangeiro, portanto. É quan-do está com essa encomenda na cabeça, que José Costa parte para Istam-bul, para sua segunda participação no encontro de escritores anônimos. Eentão se dá o evento antes narrado, a parada imprevista em Budapeste.Retomo aqui a narrativa do romance, e vale reproduzir o reencontro do perso-nagem com sua mulher: “...olhando a Vanda assim de repente e tão deperto, mais uma vez me admirei; minha primeira dúvida, sempre que vinha deviagem, era se a Vanda ganhara viço na minha ausência, ou se em meuspensamentos ela desbotava.” (p.27) A vida segue seu rumo, Budapeste e ohúngaro tornam-se somente uma lembrança. A autobiografia do alemão nãodeslanchava, até acontecer um evento inusitado: Costa ouve seu filho emitirestranhos ruídos com a boca durante a noite, e reclama disso para suamulher, acha aquilo estranho e desagradável. Ela lhe diz que o menino estáapenas o imitando... ele não entende, e ela lhe revela que, desde que retornouda última viagem, ele próprio emite sons estranhos, enquanto dorme. AssimJosé Costa descobre que fala húngaro em seus sonhos. A língua magiar édespertada. Dias depois, ele tem a oportunidade de ir a uma sessão deautógrafos de um renomado escritor húngaro, onde se reencontra com alíngua. Casualmente, então, desanda a escrever a autobiografia do alemão.

Faço aqui uma breve digressão. Por que é nesse momento que opersonagem libera a escrita do texto que antes estivera truncada? A presen-ça do ghost-writer contratado por seu sócio produz nele um incômodo: elevislumbra sua própria caricatura ao ver-se reproduzido em outros. Num relatoque mais parece um pesadelo, ele lê o que o sujeito escrevera, e consegueadivinhar cada palavra: “era aflitivo, era como ter um interlocutor que nãoparasse de tirar palavras da minha boca, era uma agonia. Era ter um plagiá-rio que me antecedesse, ter um espião dentro do crânio, um vazamento naimaginação.” (p.24) O personagem se encontra com seu sintoma.

sa a escrever também para políticos, gente importante, tendo seus discur-sos proferidos em campanhas, e seus artigos publicados em jornais de am-pla circulação. Seu sócio pendura seus artigos nas paredes do escritório, eos inclui no book da agência. “José Costa é gênio”, diz. José Costa retruca:“Mas Álvaro, e a confidenciabilidade?”. Álvaro nem lhe ouvia. José Costaescreve: “...os artigos nas paredes me incomodavam, o book me incomoda-va, estar em evidência era alguma coisa como quebrar um voto.” (p.17) Nãoque lhe fosse pouco prazerosa a atividade da escrita, pois quando se via sóna agência, lia e relia seus próprios artigos. Diz ele: “Naquelas horas, verminhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipode ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito que se apossavada minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele.” (p.18)

José Costa passa a gozar de uma certa vaidade. É nesse momen-to que lhe chega um convite para participar do encontro mundial de es-critores anônimos, em Melbourne. Nesse bizarro evento, reúnem-se es-critores das mais variadas línguas, para discutir temas de interesse co-mum, como ética e direitos autorais. Passadas as discussões técnicas,o encontro dá lugar a depoimentos pessoais constrangidos, nos quaisos escritores recitam seus textos, revelando inclusive a identidade deseus supostos autores. “Aquilo começava a lembrar uma convenção dealcoólicos anônimos que padecessem não de alcoolismo, mas do anoni-mato.” (p.20)

De volta ao Brasil e à agência, o personagem vive uma experiênciasinistra. Seu sócio contrata mais alguém para executar os serviços antesexclusivos de José Costa, e o novo funcionário é fisicamente semelhante aele, e escreve exatamente como ele escreveria: o novo escritor fora orientadopara escrever pelos outros, mas mantendo o estilo de José Costa. E maisghost-writers são contratados, todos tão iguais a ele quanto o primeiro, o queé narrado com um quê de fantástico pois os outros são reproduções dele,têm sua figura, vestem-se como ele, usam os mesmos óculos, têm a mes-ma tosse e, o mais aterrorizador de tudo, empregam as mesmas palavrasque ele empregaria.

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pasmo, porque a sentença me soou perfeitamente inteligível. Ainda me per-guntei se ela teria se expressado em português, ou em inglês, ou mesmoem romeno, mas tanto era em húngaro que não distingui uma só palavra. Econtudo não me restava dúvida, ela me afirmara que a língua magiar não seaprende nos livros”. (p. 60) Iniciam-se, assim, as lições de húngaro na casade Kriska. Costa se vê inebriado pela língua, e se deixa ficar em Budapeste.Passam-se dias e noites nos quais ele é guiado por sua obsessão pelohúngaro. O envolvimento amoroso com Kriska acontece, e não é fácil distin-guir a mulher da língua. Diz ele, falando da primeira vez em que a vê nua:“Mas ela ficou quieta, o olhar perdido, não sei se comovida pelo meu olharpasseando no seu corpo, ou pelo meu falar pausado no idioma dela, branca,bela, bela, branca, branca, bela, branca. E eu também me comovia, sabendoque em breve conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, onome delas.” (p.46)

O amor pela mulher se confunde com o amor pela língua. A cena dalivraria remete à infância, pois o personagem não distingue uma palavra daoutra, mas sabe o que a mulher quer lhe dizer. Assim como, ao aprender alíngua materna, a criança desconhece as palavras enunciadas pela mãe,mas depreende seus significados. O prazer no aprendizado da língua é revividopelo personagem, com volúpia. A língua, o corpo feminino – afinal, não eradisso que se tratava na autobiografia do alemão? José Costa, antes de relançar-se a Budapeste, escrevera a história do homem que escrevia nas mulheres,no corpo nu das mulheres do Rio. Agora José Costa em Budapeste é umestrangeiro como o alemão no Rio, um estrangeiro que, através do corpo damulher, busca escrever uma história, ou melhor, busca escrever outra histó-ria. Nessa escrita, faz a passagem de ser inscrito pela língua materna para,apropriando-se da outra língua, inscrever-se, fazer-se autor.

Bem, deixo por aqui a narrativa, pois não pretendo esmiuçá-la aindamais. O texto de Chico toma um caminho pouco linear, e sua cronologiaresta confusa. Não vale dissipar a confusão. Interessa-nos que depois dissoo personagem vai e volta de Budapeste, numa trajetória inconstante, perdidodas referências de tempo, mas não de lugar. Gozará do sucesso estrondoso

Depois dessa visão angustiada, vem a descoberta dos sonhos emhúngaro. A língua estrangeira, a princípio esquecida, ressurge do inconsci-ente. Podemos conceber o inconsciente como estrangeiro para o sujeito,estrangeiro para a consciência. Sabemos que no inconsciente os opostosconvivem sem problemas, conforme formulou Freud na Interpretação dosSonhos (1900). Mas já na consciência isso não se passa do mesmo modo.Disso depreendemos que José Costa, quando defrontado com aestrangeiridade não codificável que é seu inconsciente, se põe a trabalhar. Oestrangeiro (inconsciente, húngaro) demanda do personagem uma elabora-ção, que ele fará a partir da escrita.

Escreve assim a história de Kaspar Krabbe que, ao chegar no Brasil,conhece uma mulher que lhe apresenta o Rio de Janeiro, mulher por quemse apaixona. É no corpo nu dessa mulher que ele escreve a primeira palavrana língua brasileira. A escrita no corpo feminino vicia, e nos corpos da primei-ra mulher, e de todas as outras que lhe permitiram, com frenesi, essa escri-tura, redigirá toda sua autobiografia, intitulada “O Ginógrafo”. Terminado otexto, José Costa experimenta uma sensação diferente em relação ao seuescrito. As palavras não parecem ser dele, o livro foi escrito de uma vez só,num ritmo diferente do seu. E tem a sensação de que o livro é seu, e preferianão vendê-lo por dinheiro algum. É nessa produção que José Costa vive aexperiência da autoria, definida justamente pela não coincidência entre oautor e aquele que escreve o texto. A relação estabelecida com seus escri-tos anteriores era radicalmente diferente: ele se reconhecia nos textos, usu-fruindo o prazer debochado de que outros os assinassem. Kaspar Krabberegistrara em horas e horas de fitas sua monótona e desinteressante histó-ria, história que José Costa simplesmente ignorou, pois a autobiografia des-se esquisito alemão foi seu primeiro texto, o primeiro texto propriamenteseu.

Num impulso, José Costa parte novamente para Budapeste. Lá, numalivraria, procura um livro que o auxilie a aprender o húngaro. Quando toma um“húngaro em 100 lições”, tem o livro arrancado das mãos por uma mulher. “Equando ela afirmou que a língua magiar não se aprende nos livros, fiquei

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suposto destino. O acaso vai se fazendo presente, dando rumo aos aconte-cimentos, não casualmente. O acaso vai produzindo eco para o persona-gem, que dirige o olhar sobre o que se passa – um olhar surpreso, que o faz,ainda que impulsivamente, escolher cada caminho. Assim, o inconscientese revela no decorrer do texto, determinando e sendo também, por sua vez,determinado pelo rumo escolhido, como na análise.

A presença do inconsciente, revelada através do acaso e de seusefeitos, confere um ritmo próprio à narrativa. O leitor tem a impressão de queo personagem por vezes lhe foge: mas afinal pra onde ele vai? Mas onde vaiestabelecer-se? Vai ficar com uma ou outra mulher? Mas que rumo, afinal,vai tomar esse texto, essa história? O personagem se deixa ir, o leitor, sequiser acompanhar, também precisa se deixar levar. É tudo um pouco confu-so, fora de ordem. Assemelha-se à fala do sujeito em análise: fala que osanalistas se deixam escutar, privilegiando justamente sua falta de ordem,insistindo para que o analisante associe livremente, desgarrando-se do cro-nológico e do que lhe pareceria relevante, para deixar falar o inconsciente. Ointeressante é para onde isso leva... pois ao final do texto o leitor é levado àpergunta: mas afinal, quem é o autor da história? Quem fala no texto? Bem,tratava-se justamente de um ghost-writer... o tema do romance é também oda autoria.

Romance, autoria. Falar sobre autoria, contar um romance. Tomo aquio segundo ponto encontrado no texto de Chico Buarque: a incursão na línguae no lugar estrangeiros, que faz o personagem transitar por uma outra condi-ção de enunciação. O que interessa é qual relação podemos estabelecerentre o processo de análise e a incursão numa língua estrangeira. Quandoum sujeito se lança a falar em análise, também se encontra e se perde emsua própria língua. A língua, antes falada com tanta naturalidade, começa aser redimensionada. As palavras se perdem de seu sentido, encontrandooutros contornos, outras sonoridades. Poderíamos propor que falar em aná-lise é como falar em outra língua, falar como um estrangeiro. Um estrangeirode si mesmo. A fala na análise requer uma posição de exterioridade dosujeito em relação à sua vida, se faz necessário um distanciamento para que

do seu “O Ginógrafo”, no Rio de Janeiro, em silêncio. Silêncio quebradosomente ao revelar para Vanda que é ele o autor do livro que ela começava aler pela terceira vez. Em Budapeste, trabalhará no Clube das Belas-Letras,dominando o húngaro a ponto de, também em terra estrangeira, ser um ghost-writer. Mas lá ele só conseguirá escrever em poesia, não em prosa. Entreuma língua e outra, uma mulher e outra, seu filho com Vanda e o filho deKriska, o mar do Rio de Janeiro e o Danúbio, José Costa, ou Zsoze Kósta(como será chamado em húngaro) transitará, meio a esmo. E vou pouparvocês do final do livro porque acho injusto revelá-lo - como diz José MiguelWisnik em sua resenha do texto: “Budapeste, no exato momento em quetermina, transforma-se em poesia.”

Por que me interessou trabalhar Budapeste? A partir desse romanceé possível formular uma série de interrogações, enlaçadas com a psicanáli-se. Tomarei o caminho de tecer aproximações entre o romance e o processode análise, passando por alguns elementos encontrados no texto. O primei-ro deles, e que me parece bastante evidente, é a presença constante doacaso. O acaso permeia o texto como permeia a vida, como permeia asnarrativas em análise. Mas gostaria de tomar o acaso enlaçado ao inusi-tado. O acaso, bem o sabemos, só adquire alguma importância quandoencontra eco no inconsciente. E é precisamente o eco inconsciente quetorna o acaso inusitado, pois é no retorno do que a princípio seriairrelevante como algo que faz diferença que o sujeito pode registrá-locomo inusitado. O inconsciente, quando de alguma forma se revela, ésempre surpreendente. Não encontramos o inconsciente quando oestamos buscando, ele se apresenta, surge, se mostra, sendo elabora-do no só-depois de seu próprio surgimento.

Podemos também aproximar o acaso da emergência do real, que im-pele o sujeito a elaborar, possibilitando uma inscrição, seja ela simbólica ouimaginária. Traça-se, então, um percurso: o acaso, tornando-se inusitado,passa a ser um operador para o sujeito. O texto é a narrativa de um temponuma vida, tempo no qual alguns movimentos importantes se dão. Mas essanarrativa não é feita de pré-determinações, de encontros ordenados por um

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Não é possível levar esse escrito a termo sem mencionar a transfe-rência. A experiência da análise se dá entre um sujeito que fala, e outro queescuta. No romance, encontramos esse outro nas mulheres: as de KasparKrabbe (que são de José Costa, afinal), em cujos corpos ele escreve suahistória; e em Kriska, essa mulher que lhe oferece sua língua e seu corpo,permitindo que por ambos ele passeie, transite. Sua disposição para ensiná-lo, para ouvi-lo tentando pronunciar-se em húngaro, permitirá que ele faça apassagem de ser inscrito pela língua materna para inscrever-se em outralíngua. Essa língua estrangeira que passa pelo corpo da mulher amada, écomo a fala do analisante que passa pelo ouvido do analista.

A volúpia pela outra língua encontra amparo no outro, tem em Kriskaum endereço. José Costa escreverá, com Kriska, sua história, repetindo aautobiografia do alemão. Em “Recordar, repetir, elaborar” (1914), Freud enun-cia: “...a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e(que) a repetição é uma transferência do passado esquecido...” (p.197) Natransferência, o analisante atualiza, através do analista, sua relação com oOutro – repetidamente, pois embora a relação com o analista pareça nãoguardar semelhança qualquer com todas as outras relações que estabelece,ela é sua repetição. Mas essa repetição tem algo de inaugural... é atravésdela que o sujeito poderá recontar sua história, podendo assim inventar-se.

Talvez a história de José Costa seja uma metáfora da experiênciaanalítica. De certo modo, algumas questões se impunham a ele: suaclandestinidade transformada em vitrine pelo sócio, o bizarro encontrocom outros escritores anônimos (no qual o anonimato revela-se a elecomo um vício do qual ele e outros padecem), a contratação de seusclones na agência, o desbotamento da esposa em sua memória... Aoutra língua aparece para ele como uma possibilidade de escrever outrahistória. Em Budapeste experimenta ser outro José Costa: Zsoze Kósta,que certamente mantém traços do outro, mas posiciona-se de forma di-ferente, parece mais implicado em seu traçado – mais escritor, menosfantasma. A incursão por outro país e por outra língua poderia convocar osujeito a falar desde outro lugar, a reinventar-se? Talvez a experiência

possa falar. Como se a vida se passasse no palco, e ele, para falar, sentas-se por alguns momentos na platéia, para poder ser expectador de si mes-mo. Através de outro olhar sobre o drama, o sujeito se permite falar desdeoutro lugar. Nesse sentido, falar desde outro lugar, falar em outra posiçãodiscursiva, é falar em outra língua. Uma língua na qual as palavras perdema pronúncia fácil, dando lugar a uma escuta mais atenta. As palavras adqui-rem outro valor.

Um exemplo do valor das palavras em análise é oferecido por Freud,em “Construções em Análise” (1937). Diz ele: “É verdade que não aceitamoso ‘não’ de uma pessoa em análise por seu valor nominal; tampouco, porém,permitimos que seu ‘sim’ seja aceito. (...) Um ‘não’ provindo de uma pessoaem análise é tão ambíguo quanto um ‘sim’ e, na verdade, de menor valorainda.” (p.296) Este é um exemplo muito singelo, que nos interessa pois‘não’ e ‘sim’ poderiam ser tomados, em sua essência, como palavras relati-vamente simples, palavras que não se desdobram em polissemias. Mas onão e o sim, na boca do analisando, podem ser ouvidos pelo analista nosentido oposto de seu sentido. Em “A Negativa” (1925), encontramos o fa-moso exemplo que Freud traz, do paciente que, ao relatar um sonho diz:“Não é a minha mãe” – o que pode ser ouvido como: sim, é a mãe dele. O‘não’, nesse contexto, é justo o que viabiliza que a frase seja enunciada, poissem a negativa o sujeito não ousaria revelar o pensamento que lhe veio àmente.

Podemos tomar também a frase de Lacan, que encontramos no Se-minário 1(1954): “O discurso, desligado de um certo número de convençõespela regra dita fundamental, põe-se a jogar mais ou menos livremente emrelação ao discurso ordinário, e abre o sujeito a essa equivocação fecundapor onde a palavra verídica encontra o discurso do erro.” (p.322). A palavraencontra o discurso do erro...a palavra, emitida com o objetivo de encerrarum sentido, transmitir um conceito, encontra o erro. Encontra outra coisa.Assim, o sujeito em análise encontra a palavra em outro lugar, a palavra ditanão coincide com a palavra pensada. A palavra dita revela o sujeito do in-consciente, esse eu estrangeiro para o sujeito.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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neiro: Imago, 1980.v.23._________. A Negativa (1925). In: Obras Completas . Rio de Janeiro: Imago,

1980.v.19._________. Recordar, repetir, elaborar (1914). In: Obras Completas . Rio de Ja-

neiro: Imago, 1980.v.12.LACAN, Jacques. O seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de

Janeiro: Zahar, 1986.WISNIK, José Miguel. O autor do livro (não) sou eu. Crítica a Budapeste, disponí-

vel no site www.chicobuarque.com.br

estrangeira possa produzir como efeito uma outra amarragem do sinto-ma do sujeito, uma possibilidade de inserção na cultura diferente daestabelecida em seu lugar de origem.

Iniciei este texto lembrando o quanto é particular a experiênciade tentar falar em outra língua. O som emitido parece estranho, a línguaenrola, o que se escuta nem sempre é o que se quis dizer. Quem puderrecordar uma primeira lição de língua estrangeira, saberá do que setrata...Mas essa língua estranha, uma vez saindo da própria boca, for-ça um movimento de apropriação. Esse desconforto com a emissãodas palavras faz lembrar os começos de análise, as primeiras entrevis-tas. É comum que um novo analisante, ao começar a falar ao analista aquem decidiu procurar, produza uma fala hesitante. Ele se sentedesconfortável, não sabe sobre o que deve falar, por onde começar...titubeia. Afinal, o que esse outro vai escutar do que ele diz? Irá interpretá-lo? O que interessa dizer a ele? O desconforto, com o passar do tempo,até se desfaz, mas não de todo. O analisante se escutará num ato falho,num sonho... escutará as palavras que ele mesmo enuncia, experimen-tando sua perda de sentido, algumas ressignificará. No processo deescutar a si mesmo, de escutar sua língua, experimentará outras cons-truções possíveis, outras versões.

Retomo a frase de José Miguel Wisnik: “Budapeste, no exatomomento em que termina, transforma-se em poesia.” José Costa, emsua versão húngara, não escreverá mais em prosa, mas sim em poesia.O que muda da prosa para a poesia? As palavras podem ser as mes-mas, o arcabouço gramatical é o mesmo, mas o ritmo é outro, a orde-nação das palavras é outra, conferindo ao texto outro colorido, outramusicalidade, outra inscrição. Entre prosa e poesia, entre escritor epoeta, se processa uma passagem, passagem que denuncia uma in-venção. Inventar-se em análise, inventar-se na experiência estrangeirada análise. Deixar-se atravessar pela língua, para poder ser o mesmoem um novo texto.

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Então, pensando no tempo da infância nos deparamos com uma sin-gularidade: a dimensão da antecipação.

Sabemos que um sujeito se constitui a partir daquilo que o Outropossa lhe oferecer no terreno do significante. O processo de constituição vaidepender deste universo significante e das possibilidades que oferecemaqueles que encarnam o Outro em termos da significação, do ofereci-mento de sentidos e da possibilidade de antecipar, no pequeno, um su-jeito. Lacan fala no “Estádio do Espelho” (1949), da “matriz simbólica emque o Eu se precipita numa forma primordial”. E podemos pensar nestemomento especular a partir da idéia de uma “antecipação” necessária nolugar do Outro, antecipação que permite à criança uma apropriação desua imagem apesar de sua prematuridade em termos neuro-motores.Aqui se revela a dimensão alienante desta imagem, que tem origem noOutro, e o necessário trabalho de separação que precisará ser operadopara que emerja, ali, um sujeito, a partir da presença do significanteNome-do-Pai. Assim, podemos pensar na antecipação como uma “plata-forma de passagem”, um lugar de onde se possa partir, mas que tam-bém, em algum momento, possa desdobrar-se na construção de umaversão própria, numa apropriação singular destes significantes ofertadospelo Outro. Versão que na infância será construída no terreno do faz-de-conta, como uma história para brincar.

Na análise de crianças, podemos nos encontrar com estes dois mo-mentos: o tempo regido pela antecipação, e o tempo da historicização, tem-po de elaborar uma história. Aqui me remeto ao que trabalha Ana Costa, em“A ficção do si mesmo” (1998): a novela, a ficção de si, montada por umsujeito, reedita a operação de Separação, ao construir uma figuração doOutro. Na ficção, emergem eu e Outro em lugares distintos. Podemos pen-sar que, para uma criança construir uma história no brincar, é preciso já terdemarcado uma diferenciação em relação ao Outro, pois a possibilidade deacesso ao simbólico e, com ele, ao campo das representações, se fundanesta diferenciação. Entretanto, quando tratamos de crianças, nem sempreesta condição já foi operada. Então, situo aqui dois eixos para pensar a

HISTÓRIAS PARA BRINCAR

Ana Laura Giongo

Ao pensarmos sobre o lugar da narrativa na análise de crianças, nosdeparamos com uma especificidade em relação à dimensão do tempo. Se com os adultos trabalhamos no sentido de re-construir uma

história no a posteriori da análise, com as crianças a história aparece emposição de anterioridade: uma história para brincar. A história antes, o brin-car depois.

Tomemos estes diferentes tempos – a infância e a adultez – na clíni-ca. Com os adultos, visitamos o passado, o “infantil do sujeito”, o restorecalcado da passagem por um tempo em que ocorreram inscrições, mar-cas e formações necessárias a sua constituição. Na clínica com crianças,não lidamos com o infantil do sujeito mas com um “sujeito infantil”, alguémque está em meio a este processo de constituição.

Podemos pensar que, com as crianças, operamos num “tempogerúndio”, onde as coisas estão acontecendo, andando, em movimento... Écomo se estivéssemos lidando com uma ampliação do presente. Neste pre-sente, certamente há uma história, um tempo anterior, mas do qual a criançanão costuma se apropriar. Por outro lado, são endereçadas à criança de-mandas em relação ao futuro, com as quais precisará lidar através do brin-car, do faz-de-conta, lugar onde emergirá um tempo que Alfredo Jerusalinsky(1988) nomeia “futuro anterior”. Onde, no brincar, reina o “agora eu era...”Agora eu era herói, princesa, policial... O futuro anterior é este tempo ondeemerge a condição de antecipação a que uma criança está submetida, aoser tomada como “uma mocinha” ou “o garanhão”, quando ainda nem saiudas fraldas. O sentido sexual precede o sujeito, sendo necessária uma dila-tação do imaginário para dar conta da impossibilidade de seu corpo respon-der a esta antecipação. No “agora eu era”, seu Eu, contempla os limites deseu presente e o conjuga no passado: “eu era”, por que desde o ponto emque está, seu ato é pretérito na estrutura que o Outro lhe antecipa.

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Não por acaso, a clínica com crianças é povoada de personagens daliteratura ou do cinema. Chapeuzinho Vermelho, Shrek e Harry Potter entrampela sala, compõem a cena. Os personagens, seus dramas, suas histórias,freqüentemente vêm servir como suporte para a construção de sentidos ne-cessária ao psiquismo infantil. Afinal, se com os adultos trabalhamos nadireção de desmontar, desconstruir sentidos, para reconstruí-los em outraposição, com as crianças estamos numa direção diferente. Como diz EdaTavares (2003), uma criança precisa construir sentidos a partir dossignificantes que lhe foram doados pelo Outro, inventar uma versão própriaatravés do brincar. Os personagens e suas histórias podem, então, vir emseu auxílio, pois colocam em cena significantes numa posição tal que permi-tem elaborar algum saber possível sobre os enigmas da vida.

Esta “incursão” pelo lado de fora do consultório – pelo cinema, pelaliteratura, pela música –, na busca de material de trabalho é importante paraqualquer analista, quer ele trabalhe com crianças ou não. Mas uma dasespecificidades da psicanálise de crianças é o fato de sermos constante-mente convocados a introduzir na cena um elemento exterior: seja um frag-mento da história da própria da criança (operando, assim, uma historicizaçãodo presente, através de um laço com o passado); seja introduzindo um per-sonagem, uma história infantil, ou, também, um elemento oriundo de uma“invenção” ou de uma construção do analista. Neste movimento de introdu-ção de um elemento externo, precisamos propor, passamos oferecendo coi-sas: “que tal desenhar?”, “Vamos brincar com os carrinhos?”... Ou fazendoconstruções, quando introduzimos, a partir de uma brecha no brincar, algodo tipo: “na época em que tu nasceste estava acontecendo algo muito triste,a vó estava muito doente, depois, quando tu tinhas um ano ela morreu, entãoquando tu eras um bebê a mãe estava bem chateada pois estava perdendosua mãe”.

Em Construções em Análise (1937), Freud situa o trabalho que elenomeia de “construção” como uma tarefa do analista. Compara o trabalho deconstrução do analista ao trabalho do arqueólogo, que ergue paredes de umprédio perdido a partir dos alicerces que permaneceram de pé. Coloca que o

narrativa na análise de crianças: um deles é o trabalho de historicização, ooutro é o trabalho no terreno da antecipação.

Quando estamos com uma criança que já conseguiu estabelecer umadiferenciação entre eu e Outro, podemos trabalhar numa historicização, abrin-do o tempo gerúndio ao antes e ao depois. Tomemos uma metáfora parapensar sobre a construção da narrativa numa análise, pensemos no trabalhoartístico de construção de um mosaico. Na análise de adultos, os pequenosfragmentos de cerâmica são trazidos pelo analisante. O analista por vezespode ajudá-lo a pensar em que posição determinado fragmento pode serarranjado em relação aos outros. Pode, em alguns momentos, fornecer omaterial para unir as peças. Precisa, às vezes, fazer alguns cortes na peçapara lhe proporcionar outra forma... Entretanto a matéria prima vem das lem-branças, das “mãos” do sujeito.

Pensemos agora nas crianças em análise. É como se o pequenoestivesse em meio aos fragmentos de cerâmica. Primeiramente, numaposição que poderíamos dizer passiva/de dependência. É falado. É trazi-do. Sua história é contada por outro. Lembremos que aqui estamos fa-lando de crianças que contam com um Outro que possa oferecer ele-mentos para a construção de uma narrativa, pois nem todas contam comesse “potencial de historicização” do lado do Outro. Mas, por enquanto,tomemos estes casos, onde na relação com o pequeno o analista vaiser, por um lado, aquele que vai apresentar, introduzir na cena, as pe-quenas peças trazidas pelos pais para compor o texto a ser construído –para isso precisará fazer um link com este Outro encarnado, um laçocom a história anterior, reeditando, trazendo à cena, algumas vezes,aquilo que foi antecipado por este Outro. Por outro lado, em alguns mo-mentos, o próprio analista vai ver-se convocado a introduzir algo, pelofato de estar diante de um sujeito infantil, alguém em processo de cons-tituição e que conta com recursos um tanto escassos para articular umahistória no brincar, pois tropeça com a curta extensão de sua cadeiasignificante. Vai ser necessário, então, oferecer elementos para que acriança construa no brincar uma história.

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tante presença. Para construir é preciso arriscar, colocar em jogo nossashipóteses. Com as crianças, se trata de encontrar caminhos para tentaramarrar os pequenos fragmentos de texto que emergem no brincar ou nodesenho, em histórias. Neste trabalho de construção, fica no ar, como resto,a dúvida do analista, efeito de uma certa violência, necessária para a inter-venção. Como não lembrar de Piera Aulagnier que falava da violência neces-sária das mães na constituição do sujeito? Há uma violência necessária notrabalho de construir sentidos. Mas podemos pensar que, justamente, a cons-tante dúvida, a posição de inquietação do analista, devido a esta violêncianecessária, introduz a dimensão simbólica no imaginário tão presente naclínica da infância.

Com as crianças que já acederam à condição de brincar, que contamcom uma possibilidade de diferenciação em relação ao Outro, uma constru-ção vai se enlaçar na direção da cura que poderia ser definida – rapidamente– como uma tentativa de levar o pequeno sujeito a elaborar uma história ondepossam entrar em cena os significantes que lhe chegam do Outro, e cons-truir novos sentidos para alguns significantes que ficaram aprisionados numsintoma. Assim, se trata de montar uma história para brincar e com elaelaborar sua própria história. O presente abre-se, então, ao antes, ao queantecede o sujeito, e se conjuga no futuro anterior através do brincar. Aquiestaríamos no terreno de uma “historicização”.

Entretanto, quando tratamos de crianças para quem a diferenciaçãoeu-Outro ainda não se operou, o trabalho de construção terá um outro lugarno tratamento e outra direção, relativa ao trabalho de “antecipação”. Aqui, a“história para brincar” toma uma outra dimensão. É “uma história em posiçãode construção”, que vem antecipar um sujeito e um brincar. Pois, encontra-mos, na clínica, crianças para quem ainda não é possível construir sua his-tória num brincar, são crianças que quando chegam à análise ainda nãobrincam.

Lembro de algumas cenas vividas nesta clínica... Uma delas émarcante, por se tratar de uma de minhas primeiras experiências clínicas,quando tomei em atendimento um menino que não falava ou brincava. Ape-

analista extrai suas inferências a partir de fragmentos de lembranças, dasassociações e do comportamento do paciente. Freud complementa estasafirmações dizendo: “ambos – arqueólogo e analista – possuem direitoindiscutido de reconstruir através da suplementação e da combinação derestos que sobreviveram”. Mas pontua uma diferença: se para o arqueólogo aconstrução é o objetivo final, para o psicanalista “a construção é um trabalhopreliminar”. Ressalta, então, que importam, especialmente, os efeitos daconstrução sobre o paciente, sendo no desdobramento destes efeitos quese pode perceber a apropriação, ou não, do que foi construído, levando emconta que um índice importante é a possibilidade de um paciente seguirproduzindo associações a partir da construção, estendendo suapotencialidade através do surgimento de outros elementos.

Pontuemos, então, duas palavras usadas por Freud na definição doque seriam as construções em análise: inferências e suplementação. Aquipodemos perceber o quanto o analista precisa colocar-se num lugar ativo,criar, associar, introduzir elementos. Mas, ao mesmo tempo, Freud se mos-tra, como analista, aberto a uma interrogação sobre este saber construído,nos fazendo herdeiros de uma posição na qual um analista precisa sempreinterrogar-se e se deixar interrogar pelo discurso do paciente. Evoco aquitambém o que Winnicott coloca sobre a interpretação com crianças. Eleindica que uma interpretação deve ser apresentada de modo aberto, parcial,interrogativo, preparando o fracasso da posição de sujeito suposto saber doanalista. Não trabalharei aqui a diferença entre construção e interpretação.Interessa-me situar esta posição de interrogação necessária ao analista. Apartir de Winnicott, também podemos pensar que a interpretação precisa sedar num espaço transicional, espaço compartilhado, onde o analista não sesitue como detentor de um saber, mas que o produto da interpretação emerjanum processo transicional entre paciente e analista. Sendo que neste espa-ço, podemos incluir, a partir de Lacan, o Outro Simbólico.

Sabemos que as construções em análise e a posição de interrogaçãodo analista não são exclusivas do trabalho com crianças, mas, por outrolado, se constituem como traços essenciais desta prática, pela sua cons-

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vezes nos vemos em situações no mínimo pitorescas, quando buscamosatribuir um sentido ao non sense. Winnicott fala da loucura necessária dasmães e Julieta Jerusalisnky (2002) se apropria deste conceito ao falar daloucura necessária do clínico no trabalho com bebês e crianças pequenas. Éque quando se trata do trabalho de constituição de um sujeito, entra emcena a antecipação. Assim, ao trabalhar com crianças que estão em meioao processo de constituição, ou encontram entraves no mesmo, a posiçãodo clínico vai requerer uma certa “loucura necessária”, uma função que nãose situa no a posteriori, mas sim numa anterioridade, posição de antecipa-ção, de atribuição de sentido, de fundação. Ali emerge a necessidade deescolher um caminho, eleger um significante e, mais uma vez, podemos nosremeter à violência necessária à intervenção e à inquietação que acompanhaum analista ao ocupar esta posição.

No caso do “menino-jardineiro”, foi possível recolher um fragmento dehistória que pôde dar sentido ao ato, mas isso nem sempre está ao nossoalcance. Às vezes não encontramos elementos para construir o mosaico,pois algumas famílias mostram-se esvaziadas em seu “potencial de narra-ção”, sendo que o trabalho também vai ser de tentar fazê-los construir umahistória sobre o filho. Há casos em que o ato da criança fica preso ao real,não encontrando no olhar e no discurso do Outro uma possibilidade de trans-formar um objeto em outra coisa.

Remeto-me a uma cena emblemática desta questão. Um menino noinício de seu tratamento, há alguns anos atrás, tinha um discurso muitodesconexo, mas estava começando a esboçar algumas possibilidades derepresentação através do desenho. Um dia desenha umas bolinhas no qua-dro. Recordo que, neste dia, quando fui buscá-lo na sala de espera, a mãehavia trazido bolinhos para seu lanche. Lembro de minha surpresa por ele,pela primeira vez, fazer um desenho ao qual atribuía um sentido, pois apontao quadro e diz: “bolinhos”. Na sessão, tento “dar corda” aos bolinhos: desenhá-lo comendo os bolinhos, fazer “hummm que gostoso!”, fazer bolinhos commassinha de modelar, propor dar bolinhos aos bonecos da sala... Numaocasião como esta, precisamos abrir nossa janela para o imaginário, brincar

nas corria, fazia movimentos de flapping e balbuciava uma conjugação desílabas que até hoje não decifrei: Degá, degá, degá....

Após conversar com a mãe tive um primeiro encontro com ele, algoque eu chamaria de um “encontro-corrida”, pois foi o que fizemos. Ele dispa-ra correndo, porta afora, corredor afora, pátio afora. Não me restava outracoisa senão correr e tentar pegá-lo. Seria “pegar” o seu “ degá”? Nas sessõesseguintes, ele passa, além de correr, a “pegar” gramas do chão. Pega gra-mas, folhas, raízes, inços, e passo a propor que voltemos para dentro doprédio, para a sala. Já não era uma corrida sem direção, sem volta. Minhapresença, e acredito que meu olhar, autorizando este ato como algo que fariaalgum sentido, confere, de fato, um sentido à corrida. Por mais estranho queparecesse a um transeunte que nos assistisse, o ato vai se transformado emcena, pois ele consegue me olhar, me escutar e voltar a partir de meu convi-te.

Casos como este nos lançam para outro lugar. Não basta escutar,pontuar e esperar pelas associações do paciente. Somos convocados a agru-par elementos, construir. Com Freud, inferir, suplementar, combinar. Entraem cena o mosaico a ser construído. Tínhamos, neste caso, pequenos frag-mentos: correr/pegar grama/espalhá-la pelo chão. Seria preciso convocarelementos para colagem, sendo necessário supor, antecipar alí, algum sen-tido. Vem, então, um fragmento de história relatado pela mãe numa entrevis-ta: a família era de agricultores e o pai era jardineiro. Surgia, assim, umpequeno mosaico: “a família de vocês é de agricultores, o pai é jardineiro,pois bem, o Fulano está fazendo como a família, como o pai, está interessa-do pelas plantas”. Superfície de sentido que abriu uma possibilidade de tra-balho com esta criança e esta família. Pequena narrativa, capaz de retirá-lodo sem sentido de seu ato. Narrativa introduzida, construída pela analistaque se ocupava de recolher significantes da história contada pela mãe ecolocá-los em posição de fundar uma série.

No percurso de construir estas narrativas, estas pequenas histórias,que tem a potencialidade de transformar a cena em um brincar, um analistaprecisa exercer uma posição ativa, de coleta, busca ou mesmo invenção. Às

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“Onde mora o jacaré?” (Do seu lado, silêncio). “Então vou te contar, ojacaré mora na lagoa. Vamos desenhar a lagoa?”

Silêncio, ele olha meu desenho e sorri, como se esperasse pelo de-senho da lagoa. Desenho, então, a lagoa.

“E quem mais mora nesta lagoa?”Ele, então, pega a caneta e faz um outro traço na horizontal.“Ah, acho que fizeste aí um outro bicho! Quem é?”Não lembro se ele, ou eu, mas transformamos o traço em cobrinha.Nas outras sessões, esta história é repetida. Ele chega me olha, olha

para o quadro, atribuo ao olhar um sentido: estava pedindo pelo “jacaré”. Apartir da repetição, onde os elementos precisavam estar sempre na mesmaordem, nas mesmas cores, vamos estendendo as possibilidades da história.“O jacaré quer comer a cobrinha, a cobrinha foge, e joga uma bomba nojacaré”. Começam a entrar em cena, também, outros elementos imaginári-os, a bomba foi introduzida por ele, recolhida na sua relação com osvideogames, com os jogos do irmão. Seria a bomba prenúncio de umsignificante relativo a sua história ou seu desejo?

A história construída precisa ser repetida por muito tempo. Éimportante demarcar o quanto talvez ainda não possamos pensar numa histó-ria como esta, do Jacaré, como uma produção da ordem do brincar. Diria queeste é um trabalho anterior ao brincar – se pensamos no brincar como um lugaronde serão construídos sentidos para dar conta dos significantes que a criançarecebe do Outro. Este é um trabalho que antecede o brincar, um trabalho deconstrução, que Freud denomina como um “trabalho preliminar”. A história doJacaré era uma tentativa de produção de um significante que pudesse fundaruma série. O jacaré foi uma palavra transformada em personagem. Do persona-gem, surgiu um cenário, do cenário uma história montada em transferência,num espaço transicional ao ponto de que eu não lembre, por exemplo, de quempartiu a idéia de que o jacaré comeria a cobrinha. Estava em jogo a tentativa defazer emergir um significante que pudesse abrir o caminho para o surgimentode um sujeito. Sendo que a posição da analista era justamente de antecipar,de supor que deste trabalho narrativo pudesse emergir um sujeito.

com as idéias, arriscar, na direção de ampliar, de estender uma possibilida-de aberta por uma palavra que faz laço com um sentido compartilhado, e quefinalmente surge. Mas quando terminamos a sessão, digo para a mãe: “sabeo quê o Fulano desenhou? Os bolinhos que tu trouxeste.” Ao que ela respon-de: “Que?! Que bolinhos que eu fiz, que nada, fez umas bolinhas no quadro!”.Deparo-me novamente com o deserto de imaginário desta mãe e com suaimpossibilidade de supor no filho um sujeito. Não por acaso, esta criança,aos 5 anos, apresentava-se banhada em palavras e sons que não lhe faziamqualquer sentido, descarrilhava frases em que algumas palavras pulavam, deumas para as outras, sem produzir uma lógica possível de ser apreendida. Osimbólico, a linguagem, lhe chegava em estado puro, bruto, sem qualqueramarragem com o imaginário.

Então foi preciso caminhar pelo imaginário, em busca de elementospara incluir este menino no mundo da linguagem, para que ele pudesse apro-priar-se dela. Trago outro breve recorte deste tratamento para ilustrar estaoperação. Inicialmente, este menino tinha uma linguagem bastante difícil dereproduzir aqui, algo desta ordem:

“Catiti catupi... parece que disse que... batique raca cuticuti... jacarévolivoli”.

A língua materna lhe chegava assim, sem sentido, vez por outra eleconseguia captar ali alguma palavra, mas o tecido da linguagem era com-posto por sons e palavras que não o representavam como sujeito. Do mesmomodo, naquele momento ainda não era possível contar com um discurso doOutro que fornecesse material para construções. Não haviam peças paramontar o mosaico, elas precisavam ser procuradas e introduzidas.

Diante desta frase, “catiti catupi... parece que disse que... batiqueraca cuticuti... jacaré volivoli”, era preciso encontrar elementos possíveispara o trabalho. Assim foi que “pesquei o jacaré” e respondi:

“Parece que disse jacaré. Queres me contar uma história sobre umjacaré?” Aí aparece a antecipação.

“Onde está o jacaré? Vamos desenhar o jacaré?” E eu desenhava noquadro.

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quando precisamos juntar pontos para formar uma imagem. Pois bem, nes-tes casos nos deparamos com situações em que será preciso fazer esteslaços, montar uma série, chegar a uma construção através de uma escutaque estabeleça os fios para uma costura. Costura que permita formar umaimagem, uma superfície a partir da qual se encontre alguns sentidos, super-fície narrativa, história para brincar. No caso desta criança, esta foi umaposição que fiquei oferecendo por algum tempo: estava ali demarcando queseu ato teria algum sentido, antecipando no agir sem direção, algum senti-do, alguma direção. Esta posição repetida, de ligar os pontos de seu percur-so, teve o efeito de que esta criança produzisse pequenas cenas, pequenasbrincadeiras, que passou a repetir, toda sessão, na mesma ordem. Aos pou-cos, estas cenas foram se transformando em pequenas h istórias, onde al-guns significantes de sua história começaram a surgir, compondo uma nar-rativa capaz de produzir alguns sentidos.

Enfim, construir histórias na clínica com crianças que ainda não brin-cam, que ainda não conseguem estabelecer uma diferenciação em relaçãoao Outro, é construir uma superfície narrativa a partir da qual se possa pri-meiramente inscrever um sujeito para, quem sabe, em algum momento, tra-balhar justamente nesta diferenciação, através de uma história armada pelaprópria criança.

Afinal, como nos diz Ana Costa (1998), a ficção, a construção de umaversão própria, implica e, ao mesmo tempo, possibilita o reconhecimento dadistância entre eu e Outro. Para que uma criança possa, ela mesma, contaruma história no brincar, eu e Outro precisam estar em lugares distintos.Antes que isso se funde, é preciso construir um “eu” através dos significantesrecolhidos da relação com o Outro. Não há como partir do nada, é precisocontar com uma plataforma, um lugar de onde se possa partir, para onde sepossa voltar. Nisso, as histórias para brincar construídas numa análise po-dem ser uma valiosa companhia. Afinal, somos todos feitos de histórias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCOSTA, A. A Ficção do Si Mesmo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.

FREUD, S. Construções em análise (1937). Em Obras Completas, Imago,1974.

É assim que, para encerrar, trago a idéia de que, em alguns casos, ahistória, a narrativa, funciona como uma superfície, um lugar a partir do qualpossa emergir um significante desde o qual se possa abrir o caminho paraum sujeito. Um analista nestes casos opera no terreno da antecipação. Eaqui retomo a idéia de que a antecipação seria algo como uma plataforma depassagem. Um lugar onde são colocados, oferecidos pelo Outro, sentidos esignificantes, mas também um lugar de onde se suponha um sujeito.

Quando trabalhamos com crianças para quem é necessária uma an-tecipação, a narrativa, a história, emerge como uma construção introduzidapelo analista, sendo “uma história que antecipa um sujeito e um brincar”.Uma história para que aconteça um sujeito, se funde o campo das represen-tações e se constitua a possibilidade de brincar.

Nestes casos, o analista se ocupa de sair em busca de fragmentosde história, precisa garimpar significantes, pois se depara com os entravesnesta função de antecipação do lado do Outro encarnado pelos pais. E serájustamente este seu terreno de trabalho: sustentar uma antecipação. Porum lado, no trabalho com os pais – quando isto é possível – e por outro, coma criança, onde vai trabalhar, eminentemente, através de construções. Aqui,se aplicam as palavras usadas por Freud ao definir as construções em aná-lise: trabalhamos neste campo com inferências, deduções, suplementaçãoe combinação de elementos.

Até que cheguemos a construir uma história, ficamos durante algumtempo caminhado por um terreno desconhecido, procurando peças, combi-nando fragmentos de texto... Aqui, me ocorre uma associação com o trata-mento de outra criança, que no início da análise não conseguia armar qual-quer cena e deslocava-se de um objeto a outro. Neste caso me vi convocadaa, durante muitas sessões, pontuar seu percurso: “estavas na casinha evistes o dinossauro, o dinossauro vai na casinha? Pegaste o dinossauro eagora queres o carrinho, será que o dinossauro vai andar de carrinho? Elesvão entrar na casinha?” Este fragmento me remete a uma imagem, umametáfora que tomo emprestada de Simone Rickes, que a utilizou num outrocontexto. Ela nos lembra de uma atividade proposta pelas revistas infantís

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ESCRITAS DA CLÍNICA: IMPASSEE TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

Ana Costa

Já se tornou corriqueiro que os psicanalistas rendam homenagens aosartistas e escritores, reconhecendo-lhes um saber fazer com algo queconstitui a materialidade mesma de nosso campo. Mas que

materialidade é essa, em que se constitui essa grande aproximação e emque nos diferenciamos? Todorov nos traz uma questão interessante, quandotenta situar um diferencial entre loucura e literatura. Podemos reconhecer aaproximação da literatura com a fantasia, ou mesmo com os delírios. Noentanto, por uma estranha razão, quase sempre sabemos quando um textoé delírio, ou quando é literatura. E isso é realmente surpreendente, porquenão se trata de uma questão de conteúdo, pois este pode ser similar. O quefaz com que tenhamos essa apreensão? Como primeira aproximação aotema que me proponho, utilizarei o termo “passe”, expressão que se tornouum pouco complicada no lacanismo, quando se tornou um outro nome parareconhecimento. Assim, colocando de saída algumas balizas para o que voudesenvolver, direi que enquanto a clínica psicanalítica lida com “impasses”, aliteratura é, em si mesma, passe. Ou, como gostamos de dizer entre nós,“passagens”. Mantenho o termo “passe” para situar essa relação com oimpasse. Quer dizer, a clínica psicanalítica está situada no lugar de umimpasse subjetivo, enquanto a literatura “realiza” os elementos desse impassena sua produção.

Uso o termo “realiza” aproximando-o ao Real, frisando uma condiçãoque não é fácil descrever. O que faz com que alguns textos, ou mesmoautores, permaneçam como marcas para leituras renovadas? Muito já setem referido sua condição de abertura: de que sua interpretação não se es-gota. Mas será somente do lado do sentido que essa interpretação aberta sesitua? Proponho que essa abertura se dá na medida em que suas leituras

JERUSALINSKY, A. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil. POA: Artes Médicas, 1988.____________. Quando começa a transferência na infância? Em: Seminários I. São

Paulo: USP, 2001JERUSALINSKY, J. Enquanto o Futuro Não Vem. Salvador: Ágalma, 2002.LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). Em

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.______. O Seminário. Livro 11 (1964). Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1981.RASSIAL, J-J. Questões sobre o desejo do analista de crianças. Em: Psicanalisar

crianças: que desejo é este?. Salvador: Ágalma, 2004.RICKES, S. Corte...costura – a tecitura do lugar do sujeito nas tramas da

linguagem.(Texto Inédito).TAVARES, E. O Sentido da Vida. Em Revista da APPOA, n.25, Variantes da Cura,

2003.WINNICOTT, D. The Piggle: Relato do tratamento psicanalítico de uma menina.

Rio de Janeiro: Imago, 1987.

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– a escrita do sintoma, como uma amarração que dá conta, em simesma, da coexistência da letra como jogo pulsional e da inscrição de umtraço do sujeito. Como se sabe, com este último ponto Lacan nos deixouamarrados na experiência de Joyce, na relação entre seu gozo da língua eseu nome.

Assim, de forma aproximativa, poderíamos nomear os três tempos deinscrição como letra, narrativa e escrita. Mesmo que eles se sobreponhamna experiência eles são distinguíveis na sua produção, como o sonho, ofantasma e o “sinthoma”. Desta maneira, tal qual na produção singular docampo da literatura, podemos reconhecer a experiência da psicanálise naescrita desses tempos. No entanto, como já situei, o campo da psicanálisese constitui a partir dos impasses nos tempos de inscrição. É nesses mo-mentos que alguém procura uma análise.

Tratar desses elementos aqui seria tratar de todo campo da psicaná-lise. Assim, vou me deter num ponto específico, que coloca em jogo o quese pode entender como inscrição. Para enunciá-la, trarei algumas referênci-as do livro de Colette Soler L’aventure litteraire ou la psycose inspire. Ali, elaconta um episódio de sua infância, quando fazia aulas de catecismo, em queo padre pergunta o que existia antes que Deus criasse a Terra. Ela respondeprontamente: “nada”. Ao que o padre corrige imediatamente: “não nada, masO nada”. Em francês se utilizam duas palavras: rien, no primeiro caso, e lenéant, no segundo. Sua diferença é clara, mesmo em português: indica “onada” não como uma qualidade, mas como substantivo. Ou seja, que haveriaum “algo” – o nada – antes da criação. Talvez pudéssemos aproximar esse“algo” do Real pleno, como Lacan o define, mesmo que ninguém jamais nostenha testemunhado tal experiência, porque, para testemunhá-la, precisariaa produção de um ponto discreto, um intervalo, situando um buraco, umdiferencial nesse “pleno”. Trago isso porque me interessa pensar na temáticada produção – de uma obra, ou, de uma maneira mais abrangente, a produ-ção de um lugar. Pode-se tomar a criação como a produção de um traço noreal, lá onde antes era o nada. O que implica aproximar criação e inscriçãode um traço – produção de um limite, uma borda. É somente por seus ele-

atualizam uma experiência que se mantém fechada, enclausurada em simesma. Então o enigma não se coloca do lado do sentido, mas do lado deuma experiência de gozo que permanece enigmática. Nesse último ponto,opera-se uma certa necessidade de nomear isso que não se entende. Masdeixemos em suspenso, por enquanto, todo esse desenvolvimento. Rete-nhamos somente que, mais que uma descrição adequada de situações si-milares – da psicanálise e da literatura –, ficamos com o nome de umaexperiência que se repete em campos distintos. Foi assim que Freud no-meou de Édipo uma experiência que não se entende – que não se reduz aosentido da novela – e que o texto de Sófocles realiza, no momento mesmode sua leitura. Tudo o que depois disso se entendeu, escreveu e interpretounão eliminou a repetição da experiência que acontece, a cada vez, na leiturado texto, ou na assistência à montagem da peça. Todos já sabemos o queacontece e entendemos seu sentido. No entanto, isso não economiza quepassemos novamente pelo já experimentado. Essa repetição tem uma raizem comum com a repetição em análise. É nesse sentido que o situamoscomo uma experiência de gozo que permanece enigmática.

Quando proponho “escritas da clínica” como tema de trabalho estoutomando “escrita” como uma “inscrição”. Nesse sentido, expressa não so-mente uma produção de texto, mas os diferentes nomes da experiência dapsicanálise. Podemos situar três tempos de inscrição com os quais a clínicalida:

– a instância da “letra” no inconsciente – essa feliz expressão queganhamos de Lacan, para descrever, por exemplo, a construção do sonhocomo tributária do deslocamento incessante de uma letra, que se expressaem registros sobrepostos, como podem ser o gráfico e o fônico – essa letra/imagem onírica. A letra em instância pode ser pensada como o primeirotempo de um jogo pulsional que se inscreve na língua;

– a narrativa do romance familiar, ou mito individual – no dizer de Lacan–, como o ordenador da repetição do lugar fantasmático. Neste tema, entratodo o trabalho freudiano da cena primária e do originário. A escrita do “casoclínico” vai colocar em evidência, por parte do analista, essa ordenação;

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SEÇÃO TEMÁTICA

tivo a um sintoma clínico e sim a uma aproximação de estruturas, aproxima-ção essa relativa às formas de produção de uma inscrição.

Essas questões nos interessam e têm efeitos nas produções teóricasda psicanálise. Não somente na condição de transmitir um estudo distante,de um objeto sobre o qual nos debruçamos. Esses efeitos estão mesmoembutidos na própria enunciação das questões. Talvez aqui, encontremosoutra aproximação ao campo da literatura e artes. Nesses campos, é inevitá-vel uma indagação a propósito do autor: ele se torna indissociável da obra.Na psicanálise, essa faceta de inclusão transita pelo desejo do analista.Isso nos indica, por exemplo, que não se produz nenhum efeito quando umaconstrução diagnóstica é feita fora da transferência. Acho que quem primeiroassinalou isso foi Lacan, na sua maneira de trabalhar o “caso clínico”. Pode-se perceber que todo o trabalho dele vai tanto no sentido de apresentar aconstrução do caso – diagnóstico, demanda, desejo, etc. – quanto nessaconstrução mesma o elemento motor é a pergunta pelo desejo de Freud.Assim, quando Lacan trabalha a construção do “caso clínico”, ele trabalha atransferência em causa na clínica freudiana a partir da inclusão do desejo doanalista.

De nossa parte, cabe-nos um trabalho a mais: a pergunta pelo desejoem causa na clínica lacaniana. Temos alguns indícios: a entrada de Lacanna psicanálise se dá pela construção de um caso de psicose. Pode-se dizerque essa é tanto sua porta de entrada, como de saída, no final da obra. Mas,tomando algumas licenciosidades, me permitirei recortar um elemento queinsiste nessa clínica: o destaque dado à função do nome.

Para avançar um pouco, quero remarcar o seguinte: a pergunta pelatransferência, com a inclusão do desejo do analista, não implica num senti-do de buscar clínicas modelos, em relação às quais uma determinada cons-trução de caso clínico está em desvantagem. Ou seja, de apresentar umsaber-fazer lá onde o analista que transmitiu o caso teria falhado. Acontecealgo curioso no ensino da psicanálise, onde o transmitido é justamente oimpasse, pela razão de que o mesmo está no cerne da experiência. Assim,não se aprende psicanálise com modelos “positivos”, vamos dizer assim.

mentos secundários, a partir dessa inscrição, que temos “notícia” do real.Nesse sentido, a precedência desse real é mítica. Todo real que testemu-nhamos vem enlaçado aos outros registros.

Vou, ainda, destacar outra passagem do livro de Soler, porque temrelação com o título de nossa jornada: ela destaca a diferença entre criaçãoe invenção.

“Assim, vejamos que invenção não é forçosamente criação. O sinto-ma inventa, ou seja, ele escolhe o termo parceiro, mas esse aí não é neces-sariamente o original. Nesse sentido, a criação... aquela que produz o radi-calmente novo, se ela é sintoma, é um sintoma especial e nos permite dizerque o artista criador é sempre um sem pai. Mesmo se ela é datada, a obranão tem filiação e seu autor é sempre ‘filho de suas obras’ como diziaCervantes. É bem por isso, aliás, que é sempre derrisório buscar a chave deuma obra em suas fontes”. (p. 14)

Pois bem, temos aqui uma relação interessante entre criação e sub-tração de uma ordem de filiação. Essas questões são complexas, difíceis deresponder de forma rápida. Posso pensar em objeções a essa proposição deSoler, do tipo: mas e as tendências e escolas, não podem ser consideradasfiliações? E a ordem discursiva, em relação à qual o artista, como qualquerum de seu tempo e lugar está submetido, não pode forçar filiações? Enfim,caímos aqui na discussão a propósito da criação ex nihilo, com a qual jáandamos as voltas em outros momentos, inclusive com a singular colocaçãode René Passeron de que o ex nihilo é posterior e não anterior. Ou seja, quea obra cria o ex nihilo.

Posso perceber que a questão de Soler não está bem formulada, masela tem procedência. E essa procedência é, antes de mais nada, clínica. Eladiz respeito ao testemunho que encontramos de pelo menos duas questõesclínicas relevantes na lide com uma filiação e com o nome próprio. Na clínicada neurose, onde a produção do nome próprio se restringe ao romance fami-liar; na clínica da psicose, na necessidade de produzir efeitos de inscrição láonde estaria “o nada”. É nesse sentido também que podemos reconheceruma similaridade de estrutura entre criação e psicose. Mas isso não é rela-

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SEÇÃO TEMÁTICA

a neurose, que para a psicose. Nesta última, é como injúria que se produzum efeito de investidura.” (p. 91)1

Luis Fernando Oliveira, no seu livro “Injúria: a pulsão na ponta da lín-gua”, nos traz questões de extremo interesse a respeito da injúria, de comose dá uma espécie de encontro do recalcamento originário, onde as palavrasadquirem estatuto de “coisas”. Transito um pouco por esse tema somentepara lembrar em que lugar entra a função do nome e ao que responderia essafunção na obra de Lacan. Nessa referência, faço questão de romper umpouco com nossa suposição neurótica de que é nosso nome de família queocupa – ou deve ocupar – o lugar da função nomeante, com seus efeitosperformativos. Ou seja, quando escutamos a expressão lacaniana “Nome doPai”, difícil não situá-la no lugar da ilusão perdida no nosso papai da infânciada neurose. No entanto, quando Lacan propõe esse tema está interessadonuma certa condição que situa a amarração dos diferentes registros (Real,Simbólico, Imaginário) e que ele denomina “Nomes do Pai”.

1COSTA, A.”Tatuagem e marcas corporais. Atualizações do sagrado”. Ed. Casa do Psicólo-go, São Paulo, 2003.

Retornemos ao destaque dado à função do nome na obra de Lacan.Como já assinalei no início, existe uma inter relação entre nome e gozo, namedida em que se coloca ali a relação a uma experiência que não se enten-de. Assim, o nome contém o enigma de um desejo impossível de represen-tar, bem como a experiência de gozo contém em si o limite de sua represen-tação. Não é por outra razão que a apresentação do paciente no caso clínicovai junto com a nomeação de seu fantasma: ali onde se nomeia seu gozo(homem dos lobos, homem dos ratos, aimée – amada). É deste lado quepercebemos o quanto, por vezes, uma coisa pode valer pela outra. Ou seja,a nomeação de um gozo pode ter efeitos de nome próprio.

Detive-me nesta última questão no livro sobre marcas corporais. Foinuma passagem onde trabalho as condições em que uma palavra pode serperformativa, como um nome próprio. Trouxe o trabalho de Michel de Certeaua respeito da relação de Schreber com a palavra Luder (podridão). Interessa-va-me pensar nas condições de investidura, onde o nome de família contémessa função suficiente de investidura fálica ao sujeito, independente do sen-tido. Relacionado a isso, Certeau lembra que também a injúria tem condiçãoperformativa. Luder, para Schreber, teria funcionado como o nome própriofunciona no laço social, onde se situa o poder por investidura fálica, ligado àsinstituições (na família, por exemplo). É o lugar do sem sentido e do vazio,que nada significa mas que confere uma significação ao nomeado. É destamaneira que Schreber se faz corpo do significante “podridão”. Citando umapassagem do livro:

“A proposta de Certeau, particularmente a colocação em causa dapalavra schreberiana Luder, permite avançar em relação a esse aspecto:algumas palavras – principalmente na crise psicótica – têm o mesmo efeitoinjuntivo do nome próprio, mas provocam um efeito de forclusão de umordenador das trocas sociais. A análise de Certeau, nesse sentido, é muitoperspicaz, porque apresenta aquilo que testemunhamos clinicamente: nãosomente o que designa o ideal tem efeito de investidura, também o quedesigna o degradado produz esse efeito. No entanto, são distintas as manei-ras de enlace – de mediação – desses dois pólos, não sendo o mesmo para

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SEÇÃO DEBATES

transmitida como um mandato que se justifica por razões externas à própriaexperiência da vida.

Ora, sou pai de três rapazes. Gostaria de lhes transmitir uma paixãopela vida que não dependesse da realização de sonho algum, ainda menosde um sonho meu. Gostaria que eles encontrassem sua razão de viver nãoalhures (numa obrigação ou mesmo nos grandes princípios que dirigem suasações), mas na própria experiência da vida que levam, em seus momentosfelizes ou tristes, jocosos ou duros.

Mas como transmit ir uma paixão pela vida em si?O pai de “Peixe Grande” responde: para amar a vida, é preciso saber roman-ceá-la, não necessariamente devaneando que cada peixe pescado seja MobyDick, mas vivendo a vida como uma aventura maravilhosa.É impossível sair do filme sem pensar no pai da gente. Meu pai não gostavade contar em público suas façanhas. No entanto, não parava de maravilhar-se com a vida.

Até os meus sete ou oito anos, a cada vez que meu pai atendia otelefonema de um de meus colegas da escola, ele declarava, seriíssimo: “Sóum instante, Contardo está preparando a comida para a girafa” ou “Vou ver sepode, estava dando banho no hipopótamo, talvez tenha terminado”. Mais deuma vez, tive que lidar com amigos furiosos, convencidos de que eu escon-dia um zoológico em casa e inconformados com meu egoísmo. Por que nãopermitia que os amigos brincassem com meus bichos?

Na época, eu detestava essas brincadeiras do meu pai. Hoje, achoque ele tentava me transmitir um pouco de sua capacidade de temperar aexistência com pitadas de fantasia.

Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que suacaligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficavaescutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que aspalavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado eque foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidadedo cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sem-pre, aliás, o seu amor pela minha mãe.

“PEIXE GRANDE” E A PAIXÃO PELA VIDA 1

Contardo Calligaris

Na semana passada, estreou “Peixe Grande”, de Tim Burton. O filmeé maravilhoso e tocante. Conta como, de um pai para ofilho, transmite-se um bem precioso: a paixão pela vida.

A história é a seguinte: um filho passa a infância boquiaberto, escu-tando o pai, que não pára de narrar suas aventuras mirabolantes. Ao tornar-se adulto, o filho não agüenta mais: as narrações paternas lhe parecemfanfarrices. Quando o pai está próximo da morte, o filho volta para casa,decidido a entender o tamanho e a razão das “mentiras” paternas.Difícil dizer se as histórias contadas pelo pai eram mentiras ou não. Mastanto faz: o que o filho descobre é outra coisa e mais importante. De que setrata?

Para termos vontade de viver, não basta dispor do famoso instinto deautopreservação. Claro, reagimos imediatamente a situações de perigo. Seo corrimão da sacada balançar de repente, evitaremos cair no vazio jogandonosso peso para trás. Fato notável, o reflexo funcionará mesmo se estiver-mos deprimidos e prestes a cometer suicídio, de revólver na mão.

Essa contradição sugere o seguinte: o instinto de autopreservaçãonão se confunde com a vontade de viver. O gosto pela vida não vem com opacote genético: é uma paixão que nos é transmitida de maneiras diferen-tes, segundo a cultura, a época e a família em que nascemos.Os pais podem inculcar no filho a vontade de viver para que o rebento realizeas ambições nas quais os genitores fracassaram: “Viva, filho, para nos daruma segunda chance”. Na mesma linha, encontra-se: “Viva e reproduza-separa que a família continue”, “viva para honrar os preceitos dos antepassa-dos ou da religião” e “viva feliz para mostrar ao mundo que nós, seus pais,fizemos um bom trabalho”. Em todos esses casos, a vontade de viver é

1 Texto publicado na “Folha de São Paulo”, em 26 de Fevereiro de 2004.

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SEÇÃO DEBATES

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RESENHA

O HOMEM SEM GRAVIDADEGOZAR A QUALQUER PREÇO

MELMAN, Charles. O homem sem gra-vidade: gozar a qualquer preço; entrevistas porJean-Pierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhiade Freud, 2003. 211p.

O labor de um analista frente a singula-ridade de cada analisante que se propõe a es-cutar implica o inquetante desafio de repensara teoria que fundamenta sua práxis. CharlesMelman, em seu livro “O homem sem gravida-de: gozar a qualquer preço”, ao apontar o ad-vento de uma nova economia psíquica na sociedade contemporânea – situ-ando-a a partir da passagem de uma cultura fundada no recalque dos dese-jos, ou seja, ordenada pela neurose, para uma cultura perversa que promovea busca e a exibição do gozo sem limites – convoca-nos de forma muitocontundente a darmos visibilidade às novas patologias que o ordenamentosocial produz.

O livro é fruto de uma série de entrevistas, organizadas por Jean-PierreLebrun (psiquiatra e psicanalista, antigo presidente da Association lacanienneinternationale), com Charles Melman, realizadas entre julho de 2001 e julhode 2002. O repertório e a forma de condução das entrevistas produziramcontornos muito interessantes neste trabalho. Os interlocutores, a partir deseus relatos clínicos, além de abordarem temas complexos tais como –depressão, toxicomania, adolescência, violência, homossexualismo, perver-são, o lugar do pai na cultura, entre outros, os quais situam divergências eimpasses conceituais entre eles próprios – surpreendentemente, propiciamaos seus leitores algumas pitadas de bom humor, brindando-os com a leve-za necessária para tratar de questões cruciais para clínica psicanalítica que,em diferentes aspectos e intensidades, de alguma forma, nos dizem respei-to.

Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo,com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristãofantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde,segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minhamãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.

Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado docéu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o únicoa ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldis-se esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gestodo pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento ea esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviamter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas demetralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico naspáginas do diário e, de fato, na vida dele.

Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez emquando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de suapaixão de viver e de amar.

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RESENHA RESENHA

epóxi, de tal modo que o cadáver encontra-se protegido da putrefação, comoque plastificado em suas formas originais, com postura próxima da vida.

Melman estupefato salienta: “podemos assim admirar o pensador, ocorredor, o ginasta, o jogador de xadrez, na maior autenticidade. Os cadáve-res prometidos à eternidade são, em geral, escorchados. Apresentam suamusculatura, desnuda, soberba”. Com absoluto sucesso de público e críticacientífica, a exposição, logo após passou por Tóquio, com dez milhões emeio de visitantes e, depois foi apresentada em diferentes cidades da Euro-pa e do mundo com milhares de ávidos e curiosos espectadores.

Para Melman, ela é a ilustração paradigmática da nova economia psí-quica, na medida que demarca a ultrapassagem de um limite próprio daespécie humana, a saber, o destino sagrado2 e particular que até então erareservado à sepultura. Segundo o autor, o procedimento adotado pelo Dr.Gunther demarca uma manifestação absolutamente inédita e coletiva, auto-rizando-nos com toda impunidade, um gozo escópico frente ao espetáculoda morte. Não havendo mais limite algum à exigência de transparência, es-taríamos convocados ao imperativo de exibir e contemplar as tripas.

Lebrun, ao questionar por que a clínica que Melman evoca não pode-ria se resumir a uma neurose banal, em particular, a neurose obsessiva,tendo em vista os efeitos de uma obsessivação maciça da sociedade encon-tra um interlocutor disposto a sustentar a hipótese de que o ordenamentosocial na atualidade é perverso. O obsessivo, segundo Melman, busca sem-pre dissimular o desejo, estando assim, organizado em torno da anulação dosexual, ao passo que nos dia de hoje ele aparece na cena pública. Nestesentido, “a nova economia psíquica, ao contrário, faz do desejo uma merca-doria entre outras” (p.48). Segundo Melman, se com dificuldade compreen-demos as perversões, possivelmente estamos todos implicados de muitoperto nelas, pois ela está hoje no princípio das relações sociais, através da

2 Quanto a banalização do sagrado, o autor faz referência específica a exposição queocorreu em Bruxelas sob o título “Körper-welten, o fascínio do autêntico”, num lugar segun-do ele, poder-se-ia crer predestinado: os Abatedouros!

Em contrapartida, Lebrun ao prefaciar o livro1 adverte: “Sem dúvida,alguns ficarão espantados, outros, irritados, outros ainda estupefatos comcertas propostas sobre o mal-estar atual que convém qualificar deprospectivas. Mas esperamos que cada um encontre aqui com o que alimen-tar a sua reflexão constante sobre o que a tarefa de pensar implica” (p.13).Entre as primeiras questões endereçadas ao seu interlocutor, ele interroga-oem que consiste essa nova economia psíquica. Melman responde: “estamoslidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizadapelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. Não émais possível hoje abrir uma revista, admirar personagens ou heróis de nos-sa sociedade sem que eles estejam marcados pelo estado específico deuma exibição do gozo. Isto implica deveres radicalmente novos, impossibili-dades, dificuldades e sofrimentos diferentes” (p.16). Segundo Melman, essaeconomia psíquica se tornou possível mediante a um progresso considerá-vel, mas, ao mesmo tempo, portador de pesadas ameaças. Tal progressodecorre do fato de que o céu está vazio, tanto de Deus quanto de ideologias,de promessas e referências, convocando os indivíduos a se determinarempor eles mesmos, singular e coletivamente, pois o domínio do homem dafecundidade e da reprodução da vida, roubou de Deus o poder de criação,permitindo-lhe trazer à luz organismos novos.

Na tentativa de ilustrar essa nova economia psíquica, o autor evocauma exposição da arte anatômica que foi apresentada pela primeira vez em1997, numa cidade alemã, Mannheim. A exposição é obra de um anatomistada faculdade de medicina de Heidelberg, o Dr. Gunther Von Hagens. Suagenialidade possibilitou-lhe colocar em operação uma técnica notável e revo-lucionária, qual seja: ao fazer passar tecidos ou cadáveres ainda frescosnum banho de acetona, expulsou a água das células e substituiu por resinas

1 Encontram-se em anexos dois textos que valem a pena serem consultados: “Introdução ànova economia psíquica” (publicado na revista La Célibataire, 2000) e “Enfim um gozo novo:a necroscopia” (publicado na revista Art Press, 2001). Neles encontramos as bases dasformulações teóricas de Melman sustentadas ao longo das entrevistas.

62 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 136, junho 2005

RESENHA

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AGENDA

P R Ó X I M O N Ú M E R O

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Reunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de AperiódicosReunião da Comissão da Revista da APPOAReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa Diretiva aberta aos Mem-bros da APPOA

19h30min

20h30min21h8h30min15h30min20h30min21h

JUNHO – 2005

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

2,9,1623 e 306 e 20910 e 2410 e 246 e 2023

forma de se servir do parceiro como um objeto que se descarta quando seavalia que é insuficiente.

A leitura de “O Homem sem gravidade” convida-nos a exercitar a nos-sa reflexão e sensibilidade frente às novas expressões clínicas do sofrimen-to na atualidade e, conseqüentemente, interrogar a especificidade da dire-ção do tratamento psicanalítico, em face dos imperativos sociais que orde-nam simbolicamente a cultura.

Lebrun pergunta se as teses de Melman não evidenciariam uma certanostalgia de um ideal perdido. Por sua vez, Melman lamenta ter dado estaimpressão, procurando esclarecer que “a maneira pela qual se gera o mal-estar hoje em dia conduz a cumprir o fantasma do neurótico, isto é, imaginarque a perversão seria a cura da neurose”.

Norton Cezar da Rosa Jr.

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JORNADA DE ABERTURA“INVENTAR-SE EM ANÁLISE”

N° 136 – ANO XI JUNHO – 2005

S U M Á R I OS U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 9UMA CHINELA TURCA - NARRATIVA,PASSAGENS E A OUTRA CENALucia Serrano Pereira 9ANÁLISE: EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRAMarieta Madeira Rodrigues 24HISTÓRIAS PARA BRINCARAna Laura Giongo 36ESCRITAS DA CLÍNICA: IMPASSE ETRANSMISSÃO DA PSICANÁLISEAna Costa 49

SEÇÃO DEBATES 56“PEIXE GRANDE” E A PAIXÃOPELA VIDAContardo Calligaris 56

RESENHA 59O HOME SEM GRAVIDADEGOZAR A QUALQUER PREÇOCharles Melman 59

AGENDA 63

N° 136 – ANO XII JUNHO – 2005

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