View
2
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
EDSON FRANÇA MARTINEZ
AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON
São Paulo
2018
EDSON FRANÇA MARTINEZ
AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. José Gaston Hilgert
São Paulo
2018
EDSON FRANÇA MARTINEZ
AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Letras.
Aprovada em de de .
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Gaston Hilgert – Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Arnaldo Cortina
Universidade Estatual Paulista – UNESP
A Deus, revelado em Jesus Cristo, digo:
“Tu és o meu Senhor, outro bem não
possuo, senão a ti somente” (Salmo 16:2)
AGRADECIMENTOS
Principalmente a Deus, de quem emana todo saber e conhecimento. A Ele
agradeço pelo direcionamento da minha vida, pela capacidade e pela sustentação nos
anos de estudo dedicados para à obtenção deste título.
Aos meus pais, por me apoiarem e incentivarem em toda jornada de estudo de
minha vida. Desde os primeiros passos na escola sempre foram zelosos em
acompanhar o meu desenvolvimento.
Ao Conselho da Igreja Presbiteriana de Torrinha e aos membros da amada
Igreja, assim como, os membros da Congregação Presbiterial de Jaú, que
compreenderam os momentos de minha ausência nas atividades da comunidade e
permitiram a conclusão deste estudo.
À minha esposa, Lisangela Ap. Ramos Martinez, pelo auxílio, paciência,
incentivo e compreensão durante os dois anos de viagens para a conclusão deste
sonho.
À Maria da Conceição, pelo carinho, amor, orações e companheirismo nas
horas mais difíceis desta jornada.
Em especial, ao meu orientador, Prof. Dr. José Gaston Hilgert, pela dedicação,
orientações pertinentes e olhar criterioso sobre a dissertação.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar e explicitar as estratégias enunciativas na
construção de um discurso religioso, mais precisamente a homilética “As Talhas de
Caná”, proferida pelo Reverendo Inglês Charles Haddon Spurgeon, da Igreja Batista
Britânica, a seus fiéis, com base no versículo do texto bíblico do Evangelho de João,
capítulo 2, versículo 7: “Jesus lhes disse: Enchei de água as talhas. E eles as
encheram totalmente”. Para a fundamentação da pesquisa usaremos os conceitos
contidos nas obras de Bakhtin, Benveniste, Fiorin, Marcuschi e Barros. Em um
primeiro momento demonstraremos a diferença considerável entre um sermão e uma
homilética. Isto se faz necessário já que um sermão pode ser algo enfadonho e, não
poucas vezes, constrangedor. Já quando se trata de uma homilética, trata-se de um
discurso baseado em um, ou em vários textos bíblicos, almejando explanar as
Escrituras Sagradas com excelência e profundidade, inclusive utilizando-se de
técnicas de oratória. Posto isto, partiremos para a análise do discurso religioso, à luz
dos fundamentos teóricos da enunciação, objetivando identificar e analisar as
estratégias do enunciador do discurso projetadas no enunciado (texto), explicitando
os efeitos de sentido que essas estratégias produzem, identificando e analisando as
formas como o destinatário do texto é nomeado no próprio texto, explicitando os
efeitos de sentido que essas projeções produzem para a interação
“narrador/narratário” e explicitando a imagem que as diferentes estratégias
enunciativas constroem do enunciador e do enunciatário. Assim, ao realizarmos a
análise deste discurso religioso nos atentaremos as possibilidades do uso do “eu”,
podendo ser ele explicitamente mencionado no texto ou não, podendo num e noutro
desses dois casos o “eu” interpelar ou não o narratário e se há perguntas retóricas na
interpelação do narratário.
Palavras-chave: Discurso Religioso. Texto. Enunciação. Tematização.
Figurativização.
ABSTRACT
This research aims to analyze a religious discourse, more precisely the sermon "The
Talhas de Caná", given by the English Reverend Charles Haddon Spurgeon of the
British Baptist Church, to his faithful, based on the verse of the biblical text of the
Gospel of John, chapter 2, verse 7: "Jesus said to them, Fill the jars with water. And
they filled them completely. " We did the analysis of this religious discourse, based on
the foundations of discursive semantics, just as it is understood by discursive
semiotics. After contextualizing and defining the nature and context of our object of
study and highlighting the objectives and justification of the work, we present the
theoretical foundations. In this sense, we deal with discursive semantics and syntax,
dealing with the figurative and thematic structure of narratives and their enunciative
construction. We did the analysis of C H Spurgeon's sermon in two chapters. In the
first, we focus on the different figurative paths that structure the text and we did the
corresponding thematic reading that is transmitted by them. The text was
predominantly figurative. The narrator highlighted, initially, figurative paths whose
themes can be defined as complementary to what the sermon effectively proposes.
Next, the text specifically thematizes the meaning of order in this passage of the
Gospel of John: "Jesus said to them, Fill the jairs with water. And they filled them
completely. " With regard to the enunciative projections, the enunciation is highlighted
in the analysis. The narrator speaks in the first person and challenges his recipient for
you, creating the effects of informality and proximity to your audience. In several
passages, one has the impression that he is talking to his interlocutors. This proximity
effect is consistent with the figurative features of the text, as they often evoke examples
and comparisons of a person's daily life. We conclude the work with the final
considerations, in which we give evidence to the central points of our study.
Key words: Religious discourse. Text. Enunciation. Thematization. Figurative.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................... 09
1 NATUREZA E CONTEXTO BÍBLICO DA NARRATIVA DO
EVANGELHO DE JOÃO, CAPÍTULO 2, VERSÍCULOS DE 1 A 11....
13
2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DO ESTUDO.................. 19
2.1. Contextualização semiótica.............................................................. 19
2.2. Contextualização no continuum da fala à escrita.......................... 20
3. AS PROJEÇÕES DA ENUNCIAÇÃO NO ENUNCIADO.................... 25
4. TEMATIZAÇÃO E FIGURATIVIZAÇÃO DO ENUNCIADO................ 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 57
REFERÊNCIAS......................................................................................... 61
ANEXO...................................................................................................... 64
9
INTRODUÇÃO
Todos, de alguma forma, já fomos destinatários de um sermão proferido por
alguém ou até já o proferimos para outrem. Quando se procura a etimologia da palavra
sermão, encontra-se a palavra “sermo”, oriunda do latim, que quer dizer “falar,
discursar”. Já quando pesquisado em um dicionário, neste caso no Dicionário
Houaiss, o termo tem as seguintes definições:
Discurso religioso pronunciado no púlpito por um predicador, esp. católico; prédica, predicação, pregação; 2) discurso moralizador, ger. longo e enfadonho; 3) qualquer fala com o objetivo de convencer alguém de algo; 4) admoestação em tom severo; repreensão, descompostura.
Em termos amplos, sermão é um discurso oral feito por um indivíduo,
sustentando uma crença, comportamento humano ou lei. Aquele que profere o sermão
busca apresentar a seu destinatário conhecimento adquirido por experiência de vida
ou por estudo, partindo do princípio de que esse destinatário estaria desprovido de tal
conhecimento.
Quando se fala que um religioso proferiu um sermão, o termo “sermão” assume
um sentido específico pois, quando ele se dirige a uma determinada comunidade
falando da Palavra de Deus, o faz respaldado pela “homilética”. Homilética, que é “a
ciência, arte e técnica de comunicar o evangelho” (REIFLER, 2002, p. 12). Por isso, a
partir do Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 e concluído em 1965, a Igreja Católica
Apostólica Romana deixa de chamar a mensagem bíblica conduzida pelo Padre de
“sermão” e passa a chamá-la de “homilia”. Nesse sentido, a palavra sermão assume
um sentido específico, que é o de difundir, explicar, interpretar os textos bíblicos.
A homilética, segundo nos aponta Reifler (p. 20), em si é “a teoria e prática da
pregação do evangelho do nosso bendito Senhor Jesus Cristo, que revela o poder e
a justiça de Deus para todo homem que nEle crê (Romanos 1.16)”, e ainda, “o termo
‘homilética’ surgiu durante o Iluminismo, entre os séculos XVII e XVIII, quando as
principais disciplinas teológicas receberam nomes gregos, como, por exemplo,
dogmática, apologética e hermenêutica” (p. 11), sendo que “o termo ‘homilética’ deriva
do substantivo grego homilia, que significa literalmente ‘associação’, ‘companhia’, e
do verbo homileo, que significa ‘falar’, ‘conversar’ (p. 11), e “foi mundialmente aceito
10
para referir-se à disciplina teológica que estuda a ciência, a arte e a técnica de
analisar, estruturar e entregar a mensagem do evangelho” (p. 11).
Para que um religioso realmente faça um bom sermão, no sentido da
homilética, ele “deve valer-se dos recursos da retórica (assim como da eloquência),
utilizar os meios e métodos da comunicação moderna e aplicar a avançada estilística”
(p. 12). Além disso, ele deve se aprofundar na hermenêutica, “que é a ciência, arte e
técnica de interpretar corretamente a Palavra de Deus”, e valer-se da exegese, que “é
a ciência, arte e técnica de expor as ideias bíblicas”, pois, como diz Reifler (p. 12), “a
homilética depende amplamente da hermenêutica e da exegese1. Uma homilética sem
hermenêutica bíblica é trombeta de som incerto (1º Coríntios 14.8) e uma homilética
sem exegese bíblica é a mera comunicação de uma mensagem humanista e morta”.
Tendo assim contextualizado e definido o sentido da palavra sermão, o objetivo
geral da presente dissertação é desvelar procedimentos discursivos – semânticos e
sintáticos – na construção do sermão “As talhas de Caná”.
Para tanto, será utilizado o sermão sobre “As Talhas de Caná” 2 (SPURGEON,
2016, p. 94 – 102), proferido pelo Reverendo inglês Charles Haddon Spurgeon3, da
Igreja Batista britânica, a seus fiéis, com base no versículo do texto bíblico do
Evangelho de João, capítulo 2, versículo 7: “Jesus lhes disse: Enchei de água as
talhas. E eles as encheram totalmente” (Bíblia de Genebra, 2009, p. 1374).
O sermão escolhido para análise foi a “As Talhas de Caná”, mas poderia ter
sido escolhido qualquer outro do referido pregador, pois foi considerado um dos mais
brilhantes expositores dos textos bíblicos do século passado. Devido a sua excelência
e profundidade na exposição das Escrituras Bíblicas, recebeu o título de “O Príncipe
dos Pregadores”. Suas mensagens, além da maneira brilhante em expor os textos
bíblicos à luz dos fundamentos da homilética, também oferecem um rico material a
ser analisado do ponto de vista dos fundamentos teóricos do discurso.
Escolhemos esse tema para esta dissertação, em razão do interesse em
acrescentar à nossa formação acadêmica em Teologia e no estudo das teorias da
1 Os termos hermenêutica e exegese são aqui empregados unicamente na perspectiva da análise e interpretação dos textos bíblicos. 2 Neste trabalho, o nosso objeto de estudo será unicamente a tradução em língua portuguesa, publicada em Spurgeon (2016, p. 94 – 102), sem cotejo o original em língua inglesa. 3 O inglês Charles Haddon Spurgeon (1834 – 1892) foi um dos pregadores Batista Calvinista mais
notáveis de seu tempo. Era um homem de estudo e oração e isso refletia em seus sermões, tanto que,
em 1864, seu sermão “A Regeneração Batismal” vendeu mais de 300 mil impressões em uma semana.
E em 1892 seus sermões já eram traduzidos em 9 idiomas.
11
Homilética a análise e a interpretação dos discursos religiosos com base nos
fundamentos linguísticos, especificamente, dos ensinamentos dos estudos do
discurso.
Como dissemos, o objetivo geral da presente dissertação é desvelar
procedimentos discursivos – semânticos e sintáticos – na construção do sermão “As
talhas de Caná”, proferido por C. H. Spurgeon. Como objetivos específicos, a
dissertação buscará: a) identificar e analisar a projeção das categorias da enunciação
no enunciado/texto; b) explicitar os efeitos de sentido que a projeção dessas
categorias produz no texto; c) destacar e analisar as principais estratégias
argumentativas na relação destinador/destinatário no sermão; d) identificar e analisar
os percursos figurativos e temáticos que estruturam os sentidos do texto.
Para alcançar os objetivos estruturamos a dissertação nas seguintes etapas:
No primeiro capítulo identificaremos e caracterizaremos o texto ponto de partida
do sermão de C H Spurgeon. Situaremos a narrativa4 de João sobre as Talhas de
Caná em seu contexto e, dentro dele, definiremos a sua natureza do ponto de vista
das leituras bíblicas. Essa contextualização é importante, na medida em que ela
lançará luz sobre as próprias escolhas do pregador na construção de seu texto.
No segundo capítulo, apresentaremos um breve contexto teórico de nosso
estudo. Faremos isso em duas etapas: na primeira trataremos do contexto semiótico
geral, deixando, no entanto, conceitos específicos para serem apresentados nos
capítulos da análise; na segunda, traremos elementos que permitirão situar o sermão
no continuum dos gêneros textuais proposto por Koch e Oesterreicher (1985), que se
estende do polo da fala ao polo da escrita.
No terceiro capítulo analisaremos o texto do ponto de vista da enunciação,
tratando das projeções das categorias da enunciação no enunciado e das relações
entre destinador e destinatário, com ênfase especial nos efeitos de sentido produzidos
pelas projeções. É nesse capítulo que também caracterizaremos o sermão na
perspectiva do continuum referido.
4 Na sequência do texto, a palavra narrativa, referindo-se ao texto de João, é empregada em sentido lato, isto é, como um tipo de composição textual. O sentido específico do temo na semiótica vem assinalado em nota posterior.
12
No quarto capítulo, dando continuidade à caracterização discursiva do sermão,
nos ocuparemos com a estrutura semântica do sermão, focalizando os percursos
figurativos e temáticos.
E, por fim, nas considerações finais procuraremos retomar os pontos de
consideramos mais relevantes em nosso trabalho.
Para concluir essas considerações introdutórias, cabe uma breve observação
metodológica. No segundo capítulo nos limitaremos a informações gerais destinadas
a situar teoricamente o nosso estudo. Os fundamentos mais específicos, definidores
de nossas categorias de análise, tanto os referentes à sintaxe discursiva (enunciação)
quanto os relativos à semântica discursiva (temas e figuras) apresentaremos na
abertura dos respectivos capítulos (capítulos 3 e 4). Reuniremos assim teoria e análise
no mesmo capítulo, o que evita repetições desnecessárias e possibilita exemplificar
conceitos teóricos no desdobramento da análise.
13
1. NATUREZA E CONTEXTO BÍBLICO DA NARRATIVA DO
EVANGELHO DE JOÃO, CAPÍTULO 2, VERSÍCULOS DE 1 A 11.
Antes de examinarmos o texto do pregador à luz dos fundamentos dos
fundamentos do discurso, iremos agora, configurar a narrativa bíblica com base na
qual o pregador construiu o seu sermão. Essa configuração nos permitirá
compreender, com mais clareza, as opções feitas pelo pregador em seu discurso.
Inicialmente faz-se necessário saber que, em toda narrativa bíblica, desde os
livros do Antigo Testamento até os livros do Novo Testamento, a pessoa de Jesus
Cristo é o centro. Sabemos, contudo, que a pessoa de Jesus sempre foi intrigante e
continua sendo a todos os que já ouviram falar dele. Alguns o veem como um grande
mestre, outros como um revolucionário do primeiro século. Mas realmente podemos
compreender a Jesus Cristo como Deus?
Essa pergunta todos os Evangelhos, que são Mateus, Marcos, Lucas e João,
respondem de forma clara e pontual, pois, embora, cada um o faça de acordo com
sua perspectiva e público, todos descrevem a pessoa de Jesus Cristo como sendo a
encarnação do Deus vivo.
Em específico abordaremos essa perspectiva com base no Evangelho de João,
já que o texto utilizado pelo pregador está no Evangelho de João, capítulo 2, versículos
de 1 a 11. Assim, o Evangelho de João narra Jesus como sendo o Cristo, ou seja, o
Filho do Deus vivo. Vale aqui ressaltar que Jesus é um nome comum, assim como
temos José, Carlos, etc., nos nossos dias. O que diferencia a Jesus dos demais é o
fato de ele ser o Cristo, aquele que fora prometido nos Livros do Antigo Testamento,
e que viria a Terra para a salvação e libertação dos pecados.
Apresentar a Jesus como Deus e como o transformador das vidas daqueles
que nEle creem é o propósito final do Evangelho de João. Isso é enfatizado no capítulo
20: 31: “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e para que crendo,
tenhais vida em seu nome”.
Estudiosos da Bíblia apontoam para essa afirmação. Champlin (1987, p.258),
por exemplo, afirma que mesmo que não houvesse tal versículo seria possível chegar
a esse propósito do autor, isso porque todo o conteúdo do evangelho aponta para
esse objetivo. Macarthur (2006, p.17-18) salienta que esse versículo traz um propósito
14
duplo: apologético (para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus) e
evangelístico (e para que, crendo, tenhais vida em seu nome), temas que também são
bastante abordados no texto do pregador.
A fim de manter o seu propósito evangelístico, João usou o verbo acreditar
cerca de uma centena de vezes, isso para deixar claro que todo aquele que crer em
Jesus receberá a salvação. Alguns textos onde ocorre o uso do verbo acreditar: João,
capítulo 3: 15-16, 36; 4: 14; 5:24, 39-40; 6:27, 33, 35,40, 47-48, 54, 63, 68; 10:10, 28;
capítulo 14: 6; 17: 2-3; 20:31.
O objetivo apologético de João, inseparável de seu propósito evangelístico, era
convencer seus leitores da verdadeira identidade de Jesus. Ele cita Jesus como o
Deus encarnado (João, capítulo 1: 1, 14; capítulo 8: 23, 58; capítulo 10: 30; capítulo
20: 28), como o Messias (João, capítulo 1:41; capítulo 4: 25-26) e como o Salvador
do mundo (João, capítulo 4:42). Para demonstrar a divindade de Jesus, João, assim
como os demais evangelistas, narra repetidamente os sinais miraculosos de Jesus,
como por exemplo nas passagens: João, capítulo 3: 2; capítulo 6: 2, 14; capítulo 7:31;
capítulo 9: 16; capítulo 11: 47; capítulo 20: 30.
O que diferencia João dos demais evangelistas é que ele inclui oito milagres
que não se encontram nos demais, a saber: a conversão da água em vinho (João,
capítulo 2: 1-11), a cura do filho de um funcionário real (João, capítulo 4: 46-54), a
cura de um homem coxo no tanque de Betesda (João, capítulo 5: 1-18), a alimentação
de cinco mil pessoas (João, capítulo 6: 1-15), o milagre de andar por sobre o mar da
Galileia (João, capítulo 6: 16-21), a cura de um cego de nascença (João, capítulo 9:
1-41), a ressurreição Lázaro (João, capítulo 11: 1-45) e a pesca milagrosa (João,
capítulo 21: 6-11). Além desses, narra o sinal mais convincente de todos: a
ressurreição de Jesus (João, capítulo 20: 1-29) em si.
Hendriksen (2004, p. 54) ressalta que “todo esse material que se encontra
somente no quarto evangelho, centra-se em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, e
seu objetivo é que a igreja creia nele por toda a eternidade”.
Assim evidenciamos que o Evangelho de João apresenta Jesus como o Verbo
Eterno, o Filho de Deus vivo, aquele que dá o dom da salvação e da transformação
da vida para todos que nEle crer.
Uma vez averiguado o objetivo principal do Evangelho de João, cabe-nos
analisar o texto utilizado em si, ou seja, o capítulo 2: 1-11, do próprio Evangelho de
João.
15
Para tanto, a primeira análise que deve ser feita é sobre a delimitação da
perícope, já que a delimitação da perícope é uma tarefa de suma importância, visto
que, a partir dessa delimitação são estabelecidas fronteiras para o desenvolvimento
do estudo de qualquer parte do texto bíblico. Como define Gilberto (1998, p.95),
“perícope é um termo grego que significa ‘cortar ao redor’” ou seja, é uma parte de um
determinado texto que é separada para ser estudada.
Uma das razões pelas quais há a necessidade de delimitar-se o início e o fim
do texto, no dizer de Wegner (1998, p.84) é o fato de que os livros neotestamentários
foram redigidos em escrita contínua, sem qualquer separação entre as palavras ou
qualquer outra forma de divisão. Outra razão para esta parte do estudo é que títulos
e divisões nas edições da Bíblia são feitos por editores, o que pode acarretar dois
fenômenos: uma má delimitação, o que levaria, a uma quebra da unidade textual,
isolando-se versículos de seu contexto, ou ainda, algo oposto que é o ajuntamento de
textos que deveriam estar separados.
Tendo destacado tal necessidade, observamos que o texto que ora nos
propomos a estudar, João, capítulo 2: 1-11, tem o início aparentemente de fácil
delimitação por vários fatores que destacaremos, no entanto, entendemos que seu fim
exige um pouco mais de atenção.
Apresentamos aqui o texto de João, capítulo 2: 1-11, (Bíblia de Genebra, 2009,
p. 1374):
1. Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e estava ali a mãe de Jesus;
2. e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento. 3. E, tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. 4. Respondeu-lhes Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é
chegada a minha hora. 5. Disse então sua mãe aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. 6. Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos
judeus, e em cada uma cabiam duas ou três metretas. 7. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em
cima. 8. Então lhes disse: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E eles o fizeram. 9. Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo
donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo
10. e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.
11. Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.
16
De acordo com o estudioso de textos bíblicos, Silva (2000, p. 70-72), para
delimitar o início desta perícope notamos que alguns critérios podem facilmente ser
destacados em relação à perícope anterior:
a. Tempo e espaço
A expressão “três dias depois” deixa claro para quem lê que se trata de outro
evento. Hendriksen (2004, p. 155), afirma que este relato ocorreu três dias depois de
Jesus ganhar mais dois discípulos, Filipe e Natanael, o que nos leva a ressaltar a
questão de espaço, visto que é perceptível o fato de que quando Jesus encontrou tais
discípulos havia decidido partir para a Galileia. O evento da perícope estudada ocorre
já na Galileia, portanto, verificamos eventos ocorridos em diferentes datas e lugares.
b. Actantes ou personagens
Constatamos ainda o aparecimento de alguns personagens que não aparecem
na perícope anterior, como: Maria, mãe de Jesus, os serventes que encheram de água
as talhas, o mestre sala que provou a água transformada em vinho. Quanto aos
discípulos que o acompanhavam não temos condições de saber se eram os mesmos
que estavam na viagem até a Galileia ou se houve acréscimos de outros, incluindo
até mesmo Filipe e Natanael.
c. Argumento
Algumas palavras identificam o início de uma nova perícope, as quais não
encontramos aqui, no entanto, é nítido que há a mudança de assunto entre a perícope
em foco e a perícope anterior.
A perícope estudada relata um casamento em que Jesus realiza seu primeiro
milagre, enquanto que a perícope anterior descreve o encontro de Jesus com duas
pessoas que posteriormente se tornarão seus discípulos.
Tendo delimitado o início da perícope, nos dirigimos para o seu final. Quanto
ao seu fim entendemos que, diferentemente da maioria das edições da Bíblia em
nossa língua, ela não termina no versículo 12 e sim no versículo 11. Bíblias como as
versões ARA (Almeida Revista e Atualizada), NTLH (Nova Tradução da Linguagem
de Hoje) consideram o versículo 12 como o final da perícope. Já a versão NVI (Nova
Versão Internacional), assim como nós, considera o versículo 11.
Tal afirmação se dá pelos seguintes critérios:
17
a. Tempo e espaço
A existência de um advérbio de tempo (no grego) no versículo 12, “depois
disto", indica o início de uma nova perícope, associado a isso está o fato de que nesse
versículo Jesus está “descendo” para Cafarnaum, o que significa que ele estava em
viagem ou na cidade. Ou seja, Jesus já não estava mais no local da festa do
casamento.
b. Actantes ou personagens
Outro elemento a ser destacado é o aparecimento, no versículo 12, de
personagens que não estão presentes na festa em Cafarnaum, os irmãos de Jesus.
Destacamos ainda, que o próprio versículo 11 conclui o tema da perícope quando diz
“com este, deu Jesus princípio a seus sinais...”. Diante dos critérios expostos, a
perícope deve ser delimitada entre os versículos 1 a 11, tal qual fizera o pregador ao
desenvolver seu texto.
Um outro aspecto que deve ainda ser considerado a respeito do texto do
Evangelho de João é a definição do título da perícope. Como vimos anteriormente, os
livros neotestamentários foram redigidos em escrita contínua, ficando a cargo dos
editores das diversas traduções bíblicas escolher o título a ser aplicado.
No caso da perícope do Evangelho de João, capítulo 2: 1–11, a grande maioria
opta pelos títulos “As bodas de Caná” ou “As talhas de Caná”. Contudo, como veremos
ao analisar o local dos acontecimentos e com base nos estudos que realizamos sobre
o tema principal de todo Evangelho de João, a ênfase do título não deva ser “as bodas”
e, tão pouco, “as talhas”.
Para tanto, consideremos primeiro o local onde Jesus realiza o milagre: Caná
da Galileia, que é mencionada apenas nesse Evangelho. Champlin (1987, p. 293)
ressalta que ela é assim chamada para ser distinguida de outra Caná que havia
naquele tempo. Afirma ainda que se trata de uma aldeia Galileia, das terras altas, a
oeste do Mar da Galileia. Essa aldeia também é mencionada no Evangelho de João,
capítulo 21: 2, como sendo o local onde Natanael, discípulo de Jesus, habitava e, por
mais uma vez, no mesmo Evangelho de João, capítulo 4: 46, quando Jesus cura o
filho de um oficial.
Ainda que tenhamos o nome do local, é impossível sabermos a localização
exata onde esse casamento aconteceu. Alguns estudiosos, dentre eles MacArthur
(2006, p.87), acreditam que provavelmente deva ser identificada com a moderna
18
Khirbet Qana, algumas ruínas desabitadas, cerca de 15 quilômetros ao norte de
Nazaré.
Em relação a ocasião, temos um casamento. O casamento judaico era um
evento que em certas ocasiões se prolongava por muitos dias. A respeito dele
MacArthur (p. 87), explica:
“Ao contrário dos casamentos modernos tradicionalmente pagos pela família da noiva, o noivo era responsável pelas despesas da celebração. O casamento marca o fim do período do noivado. Durante este período, que durou vários meses, considerava-se que o casal estava legalmente sendo marido e mulher (Mateus 1: 18-19 refere-se a José como esposo de Maria, durante o período do namoro) e apenas o divórcio poderia acabar com este estado (cp. Mt. 1:19). No entanto, eles não viviam juntos nem tinha consumado o casamento durante este período (cp. Mt. 1:18). Sobre a noite da cerimônia, primeiro o noivo e seus amigos iam para a casa de noiva. Em seguida, eles acompanhavam a noiva e seus convidados para a casa do noivo, onde a cerimônia e o banquete teria lugar (cf. Mateus 25: 1- 10.). A celebração, geralmente no domingo, terminava com o casamento real”.
Dessa forma, durante a cerimônia, acabar o vinho era considerado uma ofensa
séria aos convidados, tendo indícios de que seria até mesmo possível a abertura de
um processo contra o noivo por parte dos parentes da noiva (CARSON, 2007, p. 169).
Considerando essas informações, percebemos que a ênfase do texto não está
nem nas “talhas” e, tão pouco, nas ‘bodas’, afinal, era corriqueiro ter muito vinho em
talhas em casamentos, assim como, poderia faltar também o vinho em qualquer deles.
Dessa maneira a ênfase do texto é a ação de Jesus para demonstrar àquele grupo de
pessoas que ele era o Filho de Deus vivo. Portanto, o título que define o acontecimento
com maior proximidade é: “O milagre de Jesus em uma boda” ou, para mais se
aproximar das traduções optadas pelos editores, “O milagre de Jesus nas bodas de
Caná”.
19
2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DO ESTUDO
2.1. Contextualização semiótica
Como já dissemos, pretendemos basear teoricamente nosso estudo na
semiótica discursiva. Segundo Barros (2005, p.11), “A semiótica tem por objeto o
texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para
dizer o que diz”. Tendo como objetivo analisar o sermão de C. H. Spurgeon, o nosso
objeto de estudo é o texto. Na análise de um texto é preciso considerar incialmente
que todo texto apresenta um plano de expressão e um plano de conteúdo. O conteúdo
de um texto é imanente e se manifesta por meio da expressão, em nosso caso, por
meio da expressão linguística. De acordo com a semiótica, o plano de conteúdo de
um texto se organiza de acordo com um percurso gerativo de sentido. Esse percurso
se apresenta em três níveis, que se desdobram do mais abstrato ao mais concreto: o
nível fundamental > o nível narrativo > e o nível discursivo. Segundo o primeiro nível,
o fundamental, o texto se resume a uma categoria semântica definida por dois termos
opostos. Segundo Barros (p.14), “No nível das estruturas fundamentais, é preciso
determinar a oposição ou as oposições semânticas a partir das quais se constrói o
sentido do texto”. Esses dois termos semanticamente opostos vão, no nível narrativo,
ser assumidos como objetos de valor por sujeitos, estabelecendo estruturas
narrativas5 de conjunção (posse) ou de disjunção (perda). Novamente, de acordo com
Barros (p. 20), a semiótica
Propõe duas concepções complementares de narrativas: narrativa com mudança de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos; narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorre a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos.
5 Se anteriormente empregamos a palavra narrativa em sentido lato, isto é, como um tipo de composição textual, aqui o termo tem o sentido específico que lhe é atribuído na semiótica, por conta do conceito de narratividade.
20
Por fim, no nível discursivo, no dizer de Fiorin (2013, p. 55) “os esquemas
narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação que os converte em discurso”.
Essa perspectiva da enunciação constitui a sintaxe discursiva, em cujo âmbito
estudaremos as projeções das categorias da enunciação no enunciado e as relações
entre enunciador e enunciatário. No âmbito da semântica discursiva, os esquemas
narrativos abstratos são revestidos por temas que, por sua vez, podem veiculados por
meio de figuras. Constituem-se, assim percursos temáticos (não revestidos por
figuras) ou percursos figurativos (revestidos por figuras). Explicando esses conceitos,
Fiorin (p. 90) afirma: “Assim, tematização e figurativização são dois níveis de
concretização do sentido. Todos os textos tematizam o nível narrativo e, depois, esse
nível temático poderá ou não ser figurativizado”.
O nosso estudo restringe-se ao nível discursivo. Trataremos, por isso, somente
da caracterização enunciativa do sermão objeto de estudo e de sua estruturação
temática e figurativa. Os fundamentos teóricos específicos para a análise do sermão,
de acordo essas duas perspectivas do nível discursivo, apresentaremos no início dos
próximos dois capítulos.
2. 2. Contextualização no continuum da fala à escrita
O sermão “As Talhas de Caná”, que será o objeto deste estudo, nos vem
apresentado num texto escrito, que se destina, portanto, a leitores em geral. No
entanto, como será visto, pelos traços discursivos que caracterizam o texto, é possível
observar que ele se destina a um público específico como o provável destinatário. O
sermão é um texto em linguagem simples e explicitamente direcionada a um
destinatário em segunda pessoa (você, vocês). Além disso o texto vem estruturado
por figurativizações e tematizações da vida cotidiana de pessoas simples, sem
conhecimento de formação bíblica ou exegética. Com um destinatário assim
caracterizado, explica-se que texto escrito tem fortes características de oralidade.
Para tratar dessas marcas de oralidade é que apresentamos os fundamentos teóricos
que seguem.
21
Conforme Marcushi (2001, p.45-46) relata, os estudos sobre a relação entre
fala e escrita, embora limitados e dispersos, foram intensificados nos últimos tempos
e os achados mais notáveis indicam que:
as semelhanças são maiores do que as diferenças tanto nos aspectos estritamente linguísticos quanto nos aspectos sociocomunicativos;
as relações de semelhanças e diferenças não são estanques nem dicotômicas, mas contínuas ou pelo menos graduais;
as relações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no contínuo (ou na grade) dos gêneros textuais;
muitas das características diferenciais atribuídas a uma modalidade são propriedades da língua;
não há qualquer diferença linguística notável que perpasse o contínuo de toda a produção falada ou de toda produção escrita, caracterizando uma das duas modalidades;
tanto a fala como a escrita, em todas as suas formas de manifestação textual, são normatizadas;
tanto a fala como a escrita não operam nem se constituem numa única dimensão expressiva mas são multissistêmicas;
uma das características mais notáveis da escrita está na ordem ideológica da avaliação sociopolítica em sua relação com a fala e na maneira como nos apropriamos dela para estabelecer, manter e reproduzir relações de poder, não devendo ser tomada como intrinsecamente ”libertária”.
Essa proposição de Marcuschi revela que a dicotomia fala e escrita é ingênua,
pois se limita a considerar somente o aspecto medial das duas formas de
manifestação linguística, o que limita também a produtividade de interpretação da
oralidade e da escrita.
Diante desse fato, Marcuschi (2001), apoiado em estudos de Koch e
Oesterreicher (1985), que, de forma resumida, dizem que condições de proximidade
geram interações que resultam em textos marcados pela oralidade, e condições de
distanciamento concebem textos caracterizados pela “escrituralidade”, propõe uma
nova perspectiva para a distinção entre fala e escrita.
Segundo essa perspectiva o que é falado e escrito não mais se restringe ao
aspecto medial. O texto falado não é unicamente aquele expresso fonicamente, mas
é também a manifestação por escrito que contém marcas de oralidade. Assim,
também, o texto escrito não é unicamente aquele expresso graficamente, mas é
também a manifestação falada que contém marcas da escrita. Nesse sentido, além
da distinção medial entre fala e escrita, é preciso considerar um aspecto conceptual
nessa distinção. Têm-se então dois aspectos a considerar na distinção entre fala e
22
escrita: a fala e a escrita mediais e a fala e a escrita conceptuais. A este trabalho
interessa explicar esta última distinção.
Um texto seria identificado conceptualmente falado se o usuário da língua o
concebesse como fala, não importando seu caráter fônico ou gráfico. Por outro, um
texto seria identificado conceptualmente escrito se o usuário da língua o concebesse
como escrita, também não importando seu caráter fônico ou gráfico.
Para exemplificar esse caráter conceptual da fala e da escrita, observe-se,
primeiramente, uma conversa de corredor e um texto escrito no WhatsApp. A conversa
de corredor seria fala tanto do ponto de vista medial quanto do conceptual, porque os
usuários da língua assim a percebem. Já o texto do WhatsApp é, do ponto de vista
medial, escrito, mas conceptualmente ele é fala, já que os usuários da língua e dos
que usam o WhatsApp para interagir com os outros, assim o percebem. E cada vez
mais os usuários do WhatsApp são criativos para que ele realmente tenha a
característica de fala.
Observe-se, agora, uma conferência e um texto jurídico. A conferência é
medialmente um texto falado, mas conceptualmente ela é escrita, porque os traços
que a caracterizam se identificam com os traços de um texto escrito. Por isso o usuário
da língua vai identificá-la como escrita, ainda que seja expressa oralmente. O texto
jurídico, por sua vez, é escrito, medial e conceptualmente.
Diante dessas considerações, Marcuschi (2001, p. 37) afirma que os textos não
podem ser classificados dicotomicamente em falados e escritos, mas eles, do ponto
de vista conceptual, são falados ou escritos em grau maior ou menor,
independentemente de sua expressão medial. Nesse sentido, a classificação dos
textos, falados e escritos, ocorre, segundo Marcuschi (p.37), num continuum, isto é,
do ponto de vista da oralidade e da escrita, os textos distribuem-se do polo da fala ao
polo da escrita. O texto prototípico do polo da fala é, sem dúvida, o da conversa, e o
prototípico do polo da escrita poderia ser o texto jurídico. Entre esses dois polos
podemos distribuir todos os gêneros textuais.
Marcuschi (2001, p.41) representa essa distribuição ao longo de um continuum
em um quadro, o qual está apresentado com algumas adaptações:
23
o
Quadro 2: Representação do continuum dos gêneros na fala e na escrita
Como apresentado no quadro 2 e explicado acima, as manifestações escritas,
como e-mail, avisos, cartas pessoais e, no caso destacado, WhatsApp, são, do ponto
de vista medial, escritos, mas conceptualmente eles são fala, pois é como ela é
compreendida. Já a conversa cotidiana, que também está destacada, assim como as
conversas públicas e a conversa telefônica, são fala tanto do ponto de vista medial
quanto do conceptual, porque os usuários da língua assim as percebem.
Observe-se que, no centro do continuum aparecem gêneros de textos dentro
de um círculo oval. Esses gêneros estão aí localizados, porque se caracterizam por
um certo equilíbrio entre traços de oralidade e traços de escrituralidade. O noticiário
de televisão, por exemplo, pretende atingir diferentes públicos, por isso ele não pode
ser informal demais nem pode ter características de um texto formal. Então, para
24
atender a um público maior, os editores dos jornais televisivos cuidam para usar um
vocabulário mais simples. Os mesmos cuidados também acontecem com um texto
medialmente escrito, como é, por exemplo, o anúncio publicitário.
Koch e Oesterreicher (1985), identificam textos conceptualmente falados como
apresentados numa “linguagem da proximidade” e os textos conceptualmente
escritos, como caracterizados por uma “linguagem da distância”. Essa compreensão
dos autores alemães, pode ser associada a princípios de enunciação responsáveis
por efeitos de sentido de proximidade e de distanciamento. Na análise pretendemos
sintonizar esta última perspectiva teórica com a primeira para evidenciar o forte caráter
oral do texto escrito do sermão e, assim, situá-lo no continuum a que nos referimos.
25
3. AS PROJEÇÕES DA ENUNCIAÇÃO NO ENUNCIADO
Para podermos fazer a análise enunciativa do sermão de C. H. Spurgeon,
precisamos definir os principais conceitos que definem o processo da enunciação.
A enunciação é o processo por meio do qual um enunciador eu produz o
enunciado, aqui entendido como texto. O texto é o produto da enunciação. A
enunciação é a ação de um eu, o enunciador, movido pela interação com um tu, o
enunciatário, num tempo agora e num espaço aqui. Segundo Tatit (2002, p.205):
O conceito de enunciador deve ser tomado como uma categoria abstrata, cujo preenchimento, numa manifestação específica, faz emergir o que conhecemos como autor, falante, artista, poeta, etc.; a noção de enunciatário, igualmente, define-se como categoria por meio da qual se manifestam leitores e fruidores de maneira geral.
O eu, o aqui e o agora, isto é, a pessoa, o tempo e o espaço constituem as
categorias da enunciação. Elas são inerentes a qualquer ato enunciativo. Se o
enunciado/texto é resultante da enunciação, esta tem de ser pressuposta por ele. Ao
lermos, interpretarmos e analisarmos o texto, focalizamos não mais a enunciação em
si, mas a projeção de suas categorias no enunciado. A operação dessa projeção
denomina-se debreagem. Há dois tipos de debreagem: a que projeta as marcas da
enunciação no enunciado, instalando nele um narrador em primeira pessoa, e a que
instala no enunciado um narrador em terceira pessoa. O primeiro caso define a
enunciação enunciada; o segundo, o enunciado enunciado. A primeira debreagem é
enunciativa, resultando num texto enunciativo; a segunda é enunciva, e o texto que
ela caracteriza é enuncivo.
Vimos que o enunciador delega a voz, no enunciado, ao narrador. Este, por sua
vez, pode delegar a sua voz ao interlocutor, situação em que uma outra voz toma a
palavra, em discurso direto. O interlocutor, assim como o narrador, pode também se
manifestar de forma enunciativa ou enunciva. Essas diferentes instâncias de
enunciação estabelecem graus de debreagem: a delegação de voz do enunciador
para o narrador constitui uma debreagem de primeiro grau (debreagem externa ao
enunciado); a do narrador para o interlocutor, uma debreagem de segundo grau
(debreagem interna ao enunciado).
26
Essas considerações permitem identificar três instâncias de interação no
processo da enunciação: a relação enunciador /enunciatário, que é exterior ao texto,
pressuposta por ele; já no âmbito do texto, estabelecem-se as relações
narrador/narratário e interlocutor/interlocutário.
Essas relações ficam mais evidentes nesse quadro esquemático, adaptado de
Barros (2002, p.75):
O esquema mostra que, dentro dos colchetes, está o enunciado (o texto). A
relação comunicativa entre enunciador e enunciatário está fora dele, ou seja, é
anterior ao enunciado. Por isso que se diz que o enunciado é o produto da enunciação.
Nele o enunciador é representado pelo narrador (Ndor), cujo destinatário é o narratário
(Ntário). Na ocorrência de discurso direto no texto, diz-se que o narrador delega a voz
ao interlocutor (Intor), que tem como destinatário o interlocutário (Intário).
Observemos agora como esses actantes da enunciação se apresentam no
texto objeto de nosso estudo.
Antes de fazermos a análise é necessária uma observação metodológica. O
texto vem dividido em grandes partes: a primeira, que vai da linha 1 a 104. Essa parte
o próprio pregador considera um prefácio, como ele mesmo diz nesta passagem:
27
Tome estes comentários como uma espécie de prefácio, pois quero mostrar agora os princípios ocultos que se encontram neste texto bíblico e, em seguida, após mostrá-los, apresentar como devem ser aplicados. (102-104)
A segunda parte é o restante do texto, que está, por sua vez, dividida em duas
sub-partes: a primeira, que vai da linha 106 a 356, cujo grande tema é o da obediência;
e a segunda, que trata do modo como os fiéis devem viver a obediência, que vai da
linha 358 a 514. Por fim, o pregador termina o texto com uma exortação final, da linha
515 a 518. Como o texto é muito longo, é impossível analisá-lo em todos os seus
detalhes. Por isso, vamo-nos restringir a destacar os aspectos que nos interessam
para análise, em passagens do texto. Alguns desses segmentos transcrevemos no
texto aqui em construção, outros simplesmente referimos, identificando seus limites
pela numeração das linhas. Comecemos por esta primeira passagem6.
Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o vinho acabou, ele o providenciou com generosidade. Creio que não seja adequado entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. (1 a 7)
O narrador, ao se dirigir a seu narratário, o leitor7 do sermão, trata-o por “você”.
Ora, aquele que diz você só pode ser o eu, o que deixa evidente na primeira frase do
texto que a relação narrador-narratário é a relação eu-você, o que vai se comprovar
na sequência com os verbos “creio” e “estou”, na primeira pessoa do indicativo
presente, que é o tempo da enunciação. Esse tempo também fica explícito adiante,
com o advérbio “hoje”. Essa caracterização interativa mostra que o enunciador
projetou no enunciado a enunciação. A relação eu-você, no tempo agora e no espaço
implícito aqui, produz o efeito de proximidade na interação entre dois interlocutores,
como se fosse uma conversa entre eles. De acordo com Barros (2002, p.23):
A relação entre eu e você caracteriza, por isso mesmo, interações informais, íntimas e espontâneas, na conversação face a face ideal. São características
6 Destacamos na passagem os elementos que serão observados na análise. 7 Embora se possa dizer que originalmente o destinatário do sermão tenham sido ouvintes, usamos aqui leitor, já que, como observamos anteriormente, o objeto de nosso estudo é manifestação por escrito.
28
do franco-falar de Bourdieu (1979), de conversas menos elegantes, distintas, pelos motivos apontados.
Esse efeito de conversa vem intensificado em duas outras ocorrências nesse
parágrafo: o fato de o narratário ser você, no singular, estabelece uma interação entre
dois, o que produz o efeito de privacidade; e a pergunta retórica “Teria sido vinho como
geralmente entendemos ser essa bebida hoje?” Uma pergunta é feita a quem pode
responder, na interação face a face. Por isso, ela instala no enunciado o efeito de
diálogo. São muitas as passagens do texto com esse recurso de oralidade. A seguinte
passagem é mais um exemplo nesse sentido.
Você nem mesmo sabe se já foi salvo nove ou dez vezes. Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês realmente não cresceram (242-252).
O narrador em primeira pessoa vem interpelando seu narratário-destinatário
por você e, na sequência lhe dirige duas perguntas (em destaque). Em geral a
resposta a elas fica implícita, ficando registrada somente na pergunta a referência ao
diálogo. Neste segmento, no entanto, o diálogo vem completo, uma vez que o narrador
dá a voz ao destinatário para responder, em discurso direto, a suas perguntas: “Bem,
nós não estamos crescendo muito.
Nesta outra passagem, bem ao final, o próprio narrador responde à pergunta
que dirige ao destinatário.
Vou dar ênfase semelhante ao próximo princípio: somente a nossa ação não é suficiente. Sabemos disso, é certo, mas deixe-me lembrar-lhe mais uma vez. Eis as talhas e os baldes cheios, e mais do que isso não poderiam estar. Que abundância de água! Nota-se que, na tentativa de enchê-los até a boca, a água escorreu por todo canto. Bem, todas as seis grandes talhas estão cheias de água. Existe algum vinho ali? Nenhuma gota sequer (288-293)
Nesta passagem o diálogo se inverte.
O quarto princípio é que nossa dedicada ação em obediência a Cristo não é contrária, mas necessária, à nossa dependência dele. Vou lhes demonstrar como. Alguns irmãos me dizem: “Veja só! Você promove aquilo que
29
chama de cultos de reavivamento, nos quais tenta despertar os homens por meio de apelos sinceros e discursos entusiasmados. Não vê que Deus faz sua própria obra? Esses esforços seus não passam de uma tentativa sua de tirar a obra das mãos de Deus. A maneira correta é confiar nele e não fazer coisa alguma.” Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada e descrente que conheço (236-246)
É o destinatário que interpela o narrador (Veja só!) e lhe faz a pergunta (em
destaque), à qual este vai responder: “Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição:
confiar nele e não fazer coisa alguma”.
Esse efeito de oralidade produz outro, que é o efeito de proximidade entre
destinador e destinatário. Conversando com seu destinatário, o narrador se aproxima
dele. Às vezes, nessa aproximação, revela-se até certo grau de intimidade, como
mostra esta passagem:
Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada e descrente que conheço
É indiscutível o efeito de sentido de oralidade que esses procedimentos de
interpelação do destinatário produzem no texto. Na sequência toda do sermão, o
narrador mantém esse cenário da enunciação: a relação de um destinador eu com um
destinatário você. Raramente o destinatário-narratário é nomeado por vocês, como
mostra esta passagem:
Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês realmente não cresceram (247-252)
Nomear o narratário por vocês, já tira da relação narrador/narratário o efeito de
privacidade na interação, pois vocês lembra a interação com um público. Há nisso,
30
portanto, um certo efeito de distanciamento. No texto, há somente mais três
passagens com essa característica.
Constatemos na sequência seguinte mais ocorrências da relação padrão entre
um narrador eu e um narratário você.
O que hoje leva este nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado.
Observe-se que a enunciação enunciada continua explícita na fala de um
narrador eu, evidente nas formas verbais “sei” e “estou certo”, no tempo da enunciação
“hoje” e no espaço aqui, marcado por “este nome (aqui)”.
Mas não é só nas marcas da pessoa, do tempo e do espaço que o texto revela
um efeito de conversa, de informalidade. O próprio tema sobre o qual o destinador-
narrador fala no início do sermão sugere ser um tema para se tratar numa conversa
informal e direta, por se tratar, provavelmente, de um tema relacionado ao cotidiano
do público destinatário: o tema do alcoolismo, da embriaguez. Esse tema se apresenta
no percurso figurativo da quantidade de vinho: vinho bom, “vinho natural e verdadeiro”,
uma espécie de “suco da uva suavemente inebriante” do tempo de Jesus, contra o
vinho dos dias atuais, incluído entre “um mar de bebidas mortais” e entre “rios de
bebidas venenosas”. Fica explícito no texto que o pregador está fazendo um
verdadeiro protesto contra o consumo de bebidas alcoólicas nesta passagem: “O tipo
de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas
mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito
de beber”. O fato de tratar desse tema no início do sermão leva a pensar que,
31
provavelmente, o pregador falava para pessoas que, em alguma medida, estivessem
viciadas em bebidas alcoólicas.
Veja-se o tema de mais esta passagem:
Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água.
O narrador se dirige com palavras simples e diretas a seus destinatários,
falando do dos que cursam a universidade e a escola, apresentando sua interpretação
da relação entre estudo e conhecimento e a ordem de Jesus: “enchei as talhas”. É
mais um tema que é próprio para a informalidade de uma conversa.
Na penúltima passagem, o narrador utiliza a primeira pessoa do plural “Se o
nosso grande exemplo” e “nosso amado”. Trata-se de um “nosso” que inclui o eu
destinador e o você/vocês destinatário, que Fiorin (2016, p. 52) chama de “nós
inclusivo”. Com esse recurso o narrador mostra o seu envolvimento com a causa de
Jesus (mostrando que o que ele está falando ele segue) e com o narratário, pois se
inclui, juntamente com os ouvintes, na necessidade de se abster das bebidas
alcóolicas, assim como Jesus o fez.
Para afirmar que Jesus se abstinha da bebida alcoólica e que não disseminaria
ou incentivaria o uso da mesma, o narrador mostra que tem proximidade e até
intimidade com Jesus e, para isso, fala em primeira pessoa do singular: “Sei como
teria agido” e “Estou certo de que não teria contribuído”. Refere-se, assim, ao fato de
que Jesus jamais se teria contaminado com “o mar de bebidas mortais” e contribuído
para que as pessoas consumissem bebidas alcoólicas.
Toda essa configuração enunciativa que até aqui fizemos, nos remete ao tema
da oralidade na escrita. O que aqui observamos é que o sermão de C. H. Spurgeon
tem características que o situam no continuum dos gêneros textuais apresentados por
Marcuschi, na fundamentação teórica. Como vimos, o sermão é, do ponto de vista
32
medial, um texto escrito, mas, conceptualmente, ele percebido pelo usuário da língua,
pelo leitor e analista, como um texto em certa medida falado, pois contém diversas
marcas de oralidade, as quais permitem até supor uma determinada caracterização
de seus destinatários. Considerando o referido continuum, que distribui os gêneros
textuais do polo da oralidade ao polo da escrita, podemos situar o sermão aqui em
análise numa posição intermediária, com um grau de oralidade moderada, o que,
permite que a linguagem por ele usada seja adequada a diferentes públicos, podendo
atingir, tanto pessoas familiarizadas com textos mais complexos quanto outras sem
maior domínio de fala mais elaborada.
Observemos a agora a passagem seguinte:
Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por que não ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo (23-42)
Se nas passagens anteriores destacamos a debreagem de primeiro grau, ou
seja, a delegação de voz do enunciador para o narrador, queremos, nessa passagem,
focalizar a debreagem de segundo grau, isto é, a delegação de voz do narrador para
interlocutor.
Mas antes disso queremos aproveitar essa passagem para retomar o que já
constatamos nas duas passagens anteriores, com especial ênfase nas perguntas
retóricas: "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. “Mas em que você está
33
pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem,
quando muito, umas cinquenta pessoas?” E, mais adiante: “Também por que não
ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque?”.
Todas elas mostram, no enunciado, um pregador dirigindo-se a seus ouvintes
e lhes fazendo perguntas, como se esperasse delas uma resposta. As perguntas
retóricas são um recurso que produz um efeito de sentido de oralidade, no caso do
sermão, de um diálogo com os destinatários. Com esse efeito sintonizam também a
explicitação do destinador (Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que
seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa) e do destinatário você/vocês
(Quanto a isso, cada um - de vocês - pense por si mesmo) e a referência ao tempo
da enunciação, identificado nas passagens “nos dias de hoje”.
Ainda, mantendo-nos na retomada de aspectos já analisados, queremos
reafirmar que o tema dessa passagem trata da durabilidade/não durabilidade dos
alimentos e das bebidas, que é um tema comum à vida cotidiana das pessoas e,
portanto, um tema próprio para tratar na informalidade e simplicidade de uma
conversa. Ao justificar a quantidade de vinho produzida por Jesus, o pregador-
narrador, além de considerar o grande número de pessoas que, naquele tempo,
frequentavam os casamentos, lembra também a durabilidade do vinho. Mesmo se
sobrasse, ele não estragaria se fosse guardado por um tempo. O mesmo já não
ocorreria com os peixes e os pães, do milagre da multiplicação dos pães, que teriam
de ser consumidos logo, caso contrário estragariam e mofariam.
Por fim, vamos ao tópico que queremos destacar nessa passagem: a
delegação de voz do narrador para o interlocutor. Observemos dois momentos: “‘Era
preciso tudo isso?’, questiona alguém” e ‘Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco,
seria uma quantidade enormemente excessiva’ (24-26), argumenta-se. No primeiro, o
narrador delega a voz a um interlocutor indefinido (alguém) que “questiona”: “Era
preciso tudo isso?”, e, no segundo, um interlocutor impessoal “argumenta”: “Mesmo
que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”.
Colocar outras vozes a falar no texto, além da voz do narrador, além de
sintonizar com o caráter dialogal que já apontamos acima, produz um efeito realidade,
conforme afirma Barros (2005, p. 58):
Na sintaxe do discurso, os efeitos de realidade decorrem, em geral, da desembreagem interna. Quando, no interior do texto, cede-se a palavra aos
34
interlocutores, em discurso direto, constrói-se uma cena que serve de referente ao texto, cria-se a ilusão de situação “real” de diálogo.
Também Maingueneau (2001, p.142-143) fala dos efeitos de sentido
produzidos pelo discurso direto, entre os quais destaca:
criar autenticidade, indicando que as palavras relatadas são aquelas realmente proferidas; distanciar-se: seja porque o enunciador citante não adere ao que é dito e não quer misturar esse dito com aquilo que ele efetivamente assume; seja porque o enunciador que explicitar, por intermédio do direto sua adesão respeitosa ao dito, fazendo ver o desnível entre palavras prestigiosas, irretocáveis e suas próprias palavras (citação de autoridade); mostrar-se objetivo e sério; (...) dar um caráter oral e espontâneo à frase.
O recurso de delegação de voz ao interlocutor, em discurso direto é muito
usado na segunda parte (a partir da linha 106), quando o narrador dá a voz a Jesus,
como se pode verificar nesta passagem:
I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali esta um homem com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão (Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te (Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um mandamento do evangelho (106-123)
Observa-se que, nessa passagem, em nenhum momento o narrador relata a
fala de Jesus em discurso indireto. Aliás, isso não só acontece na passagem acima,
mas no texto inteiro. Sempre que Jesus fala, o narrador lhe concede a voz em discurso
direto. Além do efeito de realidade que esse fato produz, ele também revela uma
postura do narrador de “adesão respeitosa ao dito, fazendo ver o desnível entre
palavras prestigiosas, irretocáveis e suas próprias palavras”, no dizer acima citado de
35
Maingueneau. Verifica-se por parte do narrador-pregador um distanciamento
respeitoso e humilde diante de Jesus, que é Deus. Não cabe ao homem tomar a voz
de Jesus. É Ele próprio que deve falar.
Dar a voz ao interlocutor, no caso dessa passagem, é determinada também
porque ela trata do tema da obediência. Jesus dá ordens antes do exercício da
realização de milagres, como diz o texto: “Em primeiro lugar: como norma, quando
Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. (...) uma palavra de
comando precede uma palavra de poder”. Ora, para que sejam dadas as ordens de
Jesus, o narrador vê-se obrigado a dar a voz ao interlocutor em discurso direto. E, por
fim, como é da natureza de um sermão citar a palavra bíblica, de Jesus, de Deus, dos
profetas, pode se dizer que o discurso direto é uma marca do gênero discursivo
“sermão”.
Na seguinte passagem,
Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador.
o destinador-narrador continua interagir com o destinador-narratário, tratando-
o por você, produzindo o efeito de sentido que já apontamos acima. O que se destaca
agora é o uso dos verbos no imperativo: “Não faça”, “vá e faça”, “tenha”, “não se
deixe”, “ande” “faça”, “tenha”, “seja”, “não se deixe”, “ande”, “coloque” “faça-a”. Em
todas essas situações, o narrador, em seu papel de pregador, admoesta, aconselha,
ordena seu destinatário você a agir com simplicidade e sem ostentação ao servir
Jesus.
O uso do imperativo é a característica mais evidente nas duas sub-partes da
segunda parte do sermão, a que trata da natureza da obediência e de sua prática na
vida dos cristãos destinatários do narrador, a partir da linha 106.
36
A primeira parte, que trata da natureza da obediência, já analisamos acima,
quando destacamos as ordens de Jesus que antecipam seus milagres. Na sequência
(a partir da linha 124), o narrador dá continuidade a citações de textos bíblicos do
Antigo e do Novo Testamento, em que os interlocutores dão ordens que antecedem
milagres. Até a linha 160, o narrador concentra essa ordem na palavra de Jesus que
manda crer, o que ele denomina de “obediência da fé”, citando o apóstolo Paulo (Rm
16.26). E quando se pergunta: “Mas por que uma ordem?” a sua resposta é a seguinte
“É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser
discípulo” (134-135). Portanto, à ordem de que o narrador fala não cabe
questionamento, ou seja, ela não é da ordem racional. Em resumo, é uma questão de
crer, ou seja, de fé. Na análise sobre aspectos da semântica discursiva, algumas
dessas questões serão retomadas.
37
4. TEMATIZAÇÃO E FIGURATIVIZAÇÃO DO ENUNCIADO
Como já se disse, o texto em estudo é um sermão baseado na narrativa bíblica
das Bodas de Caná, onde João, o autor do Evangelho, descreve com detalhes o
ocorrido no casamento. Essa narrativa, assim como as parábolas8 dos Evangelhos,
se apresenta na forma de um enredo, isto é, no desdobramento de ações de
personagens no espaço e no tempo. Os textos narrativos podem veicular um ou mais
temas (princípios, doutrinas, verdades, valores) por meio de figuras ou percursos
figurativos, os quais iremos analisar a seguir em nosso estudo.
Antes de definirmos o que é figura e tema, e o que é percurso figurativo e
percurso temático, queremos dizer que esse nível do estudo do texto constitui a
semântica discursiva. Resumidamente pode-se dizer que a semântica discursiva
consiste em dar realidade temática e figurativa às possibilidades que as estruturas
abstratas do nível narrativo oferecem. Temas e figuras são “enriquecimentos
semânticos” utilizados pelo enunciador, afim de concretizar o sentido almejado
(BARROS, 2003, p. 206). A disseminação dos temas e a figurativização deles são
tarefas do sujeito da enunciação para assegurar a coerência semântica do discurso e
criar efeitos de sentido sobretudo de concretude e realidade (BARROS, 2011, p. 66).
Temas são as ideias, são os conceitos de que trata o texto. Segundo Fiorin (2013, p.
91), “Tema é um investimento de natureza puramente conceptual, que não remete ao
mundo natural”. Os temas se caracterizam por serem abstratos, isto é, na sua
formulação usam-se predominantemente palavras de sentido abstrato. As figuras são
elementos do texto que se referem à realidade concreta, são substantivos, verbos,
adjetivos concretos. É por meio delas que o enunciador veicula os temas abstratos.
Fiorin (2013, p. 91) afirma que “a figura é o termo que remete a algo existente no
mundo natural: árvore, vagalume, sol, correr, brincar, vermelho, quente”. E completa
dizendo: “a figura é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema
de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural”.
8 A diferença entre uma narrativa bíblica, como essa do casamento, e uma parábola, está no fato de que as narrativas descrevem um determinado acontecimento na vida de Jesus e, no caso das parábolas, são narrativas proferidas pelo próprio Jesus “cuja a finalidade é transmitir verdades morais e religiosas” (Reifler, 2002, p. 68)
38
A função das figuras é, portanto, a de produzir um efeito de sentido de
concretude e de realidade. Um texto no qual os temas, em sua maioria, vêm
representados por meio de figuras é denominado de texto figurativo. E quando o texto
se apresenta em sua forma temática, predominantemente sem a cobertura de figuras,
este será um texto temático. Em geral os textos não são inteiramente temáticos ou
figurativos. Eles podem ser figurativos ou temáticos em proporção maior ou menor.
Em geral, os temas não são representados por figuras isoladas, mas por um
conjunto de figuras que se relacionam coerentemente entre si. É preciso verificar as
relações que as figuras estabelecem entre si, perceber como o texto é tecido, pois o
que irá interessar na análise textual é esse encadeamento de figuras, esse tecido
figurativo. Fiorin (p.97) destaca: “ler um texto não é aprender figuras isoladas, mas
perceber relações entre elas, avaliando a trama que constituem”. A esse
encadeamento de figuras dá-se o nome de percurso figurativo. Podemos dizer que
um percurso figurativo se dá quando as figuras tecidas dão sentido a um tema. Vale
ressaltar que um texto pode ter mais que um percurso figurativo.
Percurso temático, no dizer de Fiorin (p. 104) é “um conjunto de lexemas
abstratos, que manifesta um tema mais geral”. Assim como os percursos figurativos,
os percursos temáticos também devem manter uma coerência interna.
Exemplifiquemos essas noções com base na narrativa que deu origem
ao sermão do pregador C. H. Spurgeon, a qual retomamos aqui (Bíblia de Genebra,
2009, p. 1374):
1. Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e estava ali a mãe de Jesus;
2. e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento. 3. E, tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. 4. Respondeu-lhes Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é
chegada a minha hora. 5. Disse então sua mãe aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. 6. Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos
judeus, e em cada uma cabiam duas ou três metretas. 7. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em
cima. 8. Então lhes disse: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E eles o fizeram. 9. Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo
donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo
10. e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.
11. Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.
39
Observe-se que o texto, justamente por ser uma narrativa, é
predominantemente figurativo. Só não é figurativo o último versículo, que é um resumo
temático da parábola toda. Nos primeiros três versículos, o narrador apresenta o
tempo (Três dias depois), o espaço (em Caná da Galileia, num casamento) e os
personagens (Jesus, a mãe de Jesus e discípulos) do enredo que vai seguir a partir
do versículo 3 até o versículo 10. São vários os percursos figurativos que convergem
para o tema que se torna explícito no último versículo. Adiante analisaremos a
interpretação desses percursos feita pelo pregador cujo texto iremos analisar. O tema
da narrativa, portanto, é a manifestação da glória de Jesus Cristo e a fé que nele
tiveram os discípulos. Na interpretação dos exegetas, entende-se por manifestação
da Glória, a revelação da natureza divina de Jesus, que levou seus discípulos a crerem
nele. Nesse sentido Carson (2007, p. 136) diz que Jesus é “a auto-expressão de
Deus”.
O percurso figurativo principal que dá cobertura para esse tema é a
transformação da água em vinho, isto é, o milagre. Milagre é um acontecimento que
não se explica pela lógica das leis da natureza. Cristo, como autor do milagre, revela-
se com poderes de realizar obras que o homem comum não tem. Ele, portanto, não é
um homem comum. Ele é Deus. Essa revelação ocorre por meio do milagre que
exerce sobre os discípulos um poder de convencimento tal que creram nele, ou seja,
tiveram fé nele.
Não nos cabe aqui discutir a noção de crer, de ter fé no sentido religioso ou
exegético. Nosso trabalho pretende se limitar a definir os conceitos com base nos
fundamentes da semiótica. E nesse sentido, apoiamo-nos em Greimas e Courtés
(2008). Em seu Dicionário de semiótica, nos verbetes “crer” (p. 107) e “modalidades
epistêmicas” (p. 172), distinguem o fazer crer do crer. O primeiro é trabalho do
enunciador de persuadir (fazer-crer) o enunciatário a “assumir posições cognitivas
formuladas pelo enunciador”. Já, ao crer, “o enunciatário, por sua vez, finaliza o seu
fazer interpretativo por um juízo epistêmico (isto é, por um crer) que ele emite sobre
os enunciados de estado que lhe são submetidos”, isto é, sobre as referidas “posições
cognitivas” formuladas pelo enunciador. Em resumo, “fazer-crer é obra do enunciador,
encarregado do fazer persuasivo”, e crer é obra do enunciatário que exerce seu fazer
interpretativo.
Quando falamos aqui em crer e fazer crer, não nos referimos ao sentido
específico do crer no sentido religioso, ao que se chama, nesse sentido de fé. Fazer
40
crer é um procedimento discursivo inerente a qualquer discurso cujo objetivo é
persuadir. Por exemplo, o discurso jornalístico vale-se de diferentes recursos para que
os leitores creiam na verdade das notícias. O discurso científico também usa recursos
para produzir efeitos de verdade, ou seja, para persuadir o leitor a crer no objeto
científico apresentado. Nenhum discurso, em última análise, foge desses
procedimentos do fazer crer, nem mesmo o religioso.
Nesse sentido, pode-se dizer que a transformação da água em vinho (a
realização do milagre) constituiu um procedimento argumentativo de Jesus para fazer-
crer, ou seja, para levar seus discípulos a crerem que ele era Deus.
Devemos fazer uma distinção entre crer num objeto de conhecimento
demonstrável pela lógica racional e crer em algo que a lógica racional não explica. É
esse último crer que define a fé no sentido religioso. Essa “racionalidade” de ordem
da fé religiosa, não admite questionamentos. Ela exige obediência incondicional. E
isso o narrador do sermão enfatiza muito, particularmente nas duas últimas partes.
Antecipemos, nesse sentido, algumas passagens:
Ele nos ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo (132-153) Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé (Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência dos homens, dando ordens reais (144-147) Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, sim, obedecidas.
Até aqui definimos os conceitos fundamentais de acordo com os quais faremos
a análise do sermão. O que imediatamente se observa na leitura desse sermão é o
seu caráter predominantemente figurativo. Trata-se, portanto, assim como a narrativa
original de João, de um texto figurativo. Faremos agora o estudo dos procedimentos
figurativos e de sua interpretação temática. Seguiremos a linearidade do texto de
Spurgeon. Em termos gerais, pode-se dizer que o pregador parte de um percurso
figurativo da narrativa de João, para, a partir dela, criar novos percursos figurativos e,
então, fazer a correspondente leitura temática.
Vejamos este segmento inicial do sermão:
41
Segmento:
Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o vinho acabou, ele o providenciou com generosidade.
Trata-se uma retomada de um percurso figurativo do texto bíblico. A partir dele,
o pregador constrói nova narrativa, como se vê a seguir.
Segmento:
Creio que não seja adequado entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. O que hoje leva este nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado.
O narrador constrói a sua narrativa, partindo da figura principal da narrativa de
João, o vinho. Começa qualificando o vinho, dizendo que era um “bom vinho”, por ser
obra de Jesus (pois ele não produziria nada que não fosse o melhor). Na sequência,
ele considera que o vinho do milagre não era um vinho como a bebida é conhecida
atualmente. A bebida atual é “alcoólica” e leva à embriaguez e ao vício do alcoolismo.
Já o vinho na época de Jesus seria algo como um “suco da uva suavemente
inebriante”, que, em geral, não levava à embriaguez. Ao final do segmento, o narrador
traz Jesus para os tempos atuais (Se o nosso grande exemplo vivesse nas
circunstâncias atuais), afirmando que no atual contexto, “cercado por um mar de
bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas”, Cristo não teria
42
contribuído “para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais
corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente”.
Observando esse percurso figurativo, observa-se que ele reveste o percurso
temático centrado na oposição entre embriaguez e sobriedade. A embriaguez é
valorizada negativamente e a sobriedade, positivamente. O narrador põe Cristo como
o avalista da sobriedade, e considera que Ele não faria nada que estimulasse “o
aumento dos rios de bebidas venenosas existentes”.
Além[G1][U2] dessa oposição entre embriaguez e sobriedade, observa-se que há
também uma oposição entre um presente marcado pelo consumo “de bebidas mortais
que arruína dezenas de milhares de pessoas” e um passado caracterizado pelo fato
de “o alcoolismo ser vício raro naquela região na época de Jesus e em eras
anteriores”. Vê-se, portanto, que o tempo presente, a atualidade, vinculada à
embriaguez é, por isso, avaliada negativamente pelo narrador. Já o tempo passado,
o de Jesus, é visto positivamente, na medida em que é ligado à sobriedade.
Considerando, por fim, que o pregador tem o objetivo levar o seu público destinatário
a aderir à prática da virtude, o tema em evidência é obviamente a sobriedade, com
que condena, ao mesmo tempo, o consumo de bebidas alcoólicas. Talvez se possa
dizer, que essa leitura temática na abertura do sermão de C. H. Spurgeon [G3]decorra
fato de ele ser um pastor batista, uma igreja cristã em que o consumo de álcool é
especialmente proibido.
Neste outro segmento,
Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por que não ajudar a família,
43
fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo.
observe-se a passagem inicial em negrito. O narrador volta à figura do vinho no
casamente e destaca o fato da grande quantidade de vinho resultante do milagre de
Jesus. Justifica a quantidade excessiva em razão de que os casamentos daquela
época vinham muita gente e a festa durava uma semana ou mais (vinha gente de toda
parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias).
Outra razão é que se sobrasse vinho ele poderia ser guardado por mais tempo sem
estragar e até poderia ser vendido para outras pessoas, já que os promotores do
casamento “não deviam ser pessoas ricas”.
Temos aqui um percurso figurativo centrado na figura da grande quantidade de
vinho. O narrador não faz uma leitura temática dessa figura neste momento,
considerando o tema até de menor importância (“Seja o que for, este não é meu
assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância”). E a seguir
fecha o segmento voltando ao tema do percurso já analisado, que é a sobriedade
radical em relação ao consumo de bebida alcoólica.
Se o narrador no segmento anterior não fez uma leitura temática da grande
quantidade vinho,
De todo modo, Jesus Cristo deu início à dispensação do evangelho não com um milagre de vingança – tal como o realizado por Deus no Egito, por meio de Moisés, transformando água em sangue –, mas com um milagre de liberalidade, ao transformar a água em vinho. Ele não apenas supre aquilo que é realmente necessário às pessoas, mas provê com fartura, e isto é altamente representativo do reino da sua graça. Ele não apenas dá aos pecadores o suficiente para salvá-los, mas dá com abundância, graça sobre graça. Os dons da aliança não são limitados nem restritos, não são pequenos em quantidade nem em qualidade. Dá aos homens não apenas água da vida, para que possam dela beber e com ela se refrescar, mas também vinhos puros, bem purificados (Is 25.6) para que possam se satisfazer e jubilar. Cristo dá como o dá um rei, em profusão, sem conter copos nem vasilhas. Uma quantidade como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso para com as almas mais necessitadas. Esqueçamos, portanto, toda questão relativa ao vinho; quanto menos coisas tivermos a cogitar, melhor será, tenho certeza. Vamos pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja
44
um exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua graça, que ele tão liberalmente nos concede.
ele vai fazê-la neste, conforme registra a passagem seguinte e outras do segmento
acima:
Uma quantidade como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso para com as almas mais necessitadas.
Portanto, o tema destacado é a generosidade, tema que vem enfatizado ao final
do segmento:
Vamos pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja um exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua graça, que ele tão liberalmente nos concede.
Essa figura da grande quantidade de vinho é retomada com frequência na
última parte do sermão (da linha 358 em diante), quando o narrador interpreta a ordem
de Jesus: “enchei de água essas talhas”. Vejamos este segmento:
Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente
45
conhecesse a si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei de água essas talhas" (376-397)
Nele, a figura das talhas cheias é associada a um percurso temático do domínio
do conhecimento, do estudo, da formação das pessoas, da educação como fatores
favoráveis ao desenvolvimento cristão. Em oposição ao conhecimento valoriza
negativamente a ignorância, a rudeza (“Espero em Deus que já haja passado aquela
época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser
úteis ao reino dos céus”)
No segmento anterior, chama atenção ainda, na parte inicial, quando o narrador
afirma ter sido o milagre de Cristo não um milagre da vingança, mas um milagre da
liberalidade. A vingança é associada à figura do sangue (transformando água em
sangue) e a liberalidade à figura do vinho (ao transformar a água em vinho). O tema
da liberalidade está diretamente associado ao tema da generosidade.
Vejamos agora este outro segmento, da linha 61 a 101: Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão simples e sem ostentação ele ocorreu. Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu messiado. Não fez assim. Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural deste mundo, revelou sua glória. Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio noivo, ou qualquer dos anfitriões, e lhes diz: “Vocês sabem que o vinho acabou, não? Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água em vinho”. Nada disso; faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos. Pede que encham de água as talhas, recipientes que estavam ali à disposição. Não pede outras vasilhas, mas somente as que tinha à mão, sem fazer nenhum alarde ou exibição. Usa água que também estava disponível em abundância – e realiza um milagre, se posso dizer assim, da maneira mais simples e comum. É este o estilo de Jesus. Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar parafernália. Sendo, porém, um milagre genuíno, foi feito, embora de maneira sobrenatural, quase como uma sequência do que seria natural. Jesus
46
não encheu as talhas vazias de vinho, mas foi até onde a natureza pode ir e usou água para fazer vinho dela, seguindo assim um processo de sua providência que se realiza dia a dia. Pois o vinho é produzido da água, iniciando-se o processo quando gotas de chuva caem do céu e fluem para a terra em direção às raízes da vinha, fazendo brotar dos cachos de uva e neles o suco rubro que irá produzir o vinho. Apenas uma diferença no tempo da produção separa o vinho criado nos cachos e o surgido nas talhas. Nosso Senhor não pediu a outros que fizessem isso; os servos só tiveram que lhe trazer água comum. Só quando começaram a tirar das talhas a água – ou aquilo que achavam ser ainda água – é que iriam os servos perceber que a água fora transformada em vinho. Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador (61-101).
Esse longo segmento é predominantemente figurativo, cujo leitura temática já
se manifesta na abertura: “Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão
simples e sem ostentação ele ocorreu”. Portanto os corredores temáticos em oposição
são simplicidade e ostentação. Ambos vêm intensamente figurativizados.
Apresentamos algumas dessas figuras em oposição neste quadro:
Ostentação Simplicidade Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu messiado.
Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural deste mundo, revelou sua glória.
47
Ostentação Simplicidade
Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar parafernália
Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio noivo, ou qualquer dos anfitriões
Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água em vinho”.
faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos
Fica evidente que esses dois percursos figurativos, entre outros, revestem os
temas já destacados, conferindo à ostentação valor negativo e à simplicidade valor
positivo. É propósito do narrador dar evidência a que Cristo fez seu milagre sem que
os presentes disso se percebessem. E, ao final, admoesta seus destinatários
procederem da mesma forma, quando diz:
Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível.
Nas duas últimas partes do sermão, o narrador faz diversas leituras temáticas
de um único versículo figurativo da narrativa de João: “Ordenou-lhe Jesus: Enchei de
água essas talhas” (Jo 2.7).
Consideremos essa primeira passagem, da linha 106 à 162.
I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali está um homem com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão (Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te (Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um mandamento do evangelho.
48
Observe como este princípio que se verifica nos milagres está presente também nas maravilhas de sua graça divina. Eis um pecador que quer ser salvo. O que Cristo tem a dizer a este pecador, mediante os apóstolos? Crê no Senhor Jesus e serás salvo (At 16.31). E você? Pode crer nisso? Mas ele não está morto em seus pecados? Irmãos, em lugar de levantarmos questionamentos tais, aprendamos, simplesmente, que Jesus Cristo ordena que os homens creiam; e, por isso, comissionou seus discípulos a dizerem: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus (Mt 3.2). Ou seja... Deus, não levando em conta os tempos da ignorância, manda agora que todos os homens em todo lugar se arrependam (At 17.30). Ele nos ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo. Na verdade, tem sido exatamente sempre assim, desde os tempos mais antigos, quando o Senhor estabeleceu sua maneira própria de lidar com uma nação praticamente morta. Ali estavam ossos secos, no vale, em grande número excessivamente secos. Ezequiel recebe então a ordem de profetizar a eles. O que diz o profeta? Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor (Ez 37.4). É esta a sua maneira de fazê-los viver novamente. Sim, por meio de uma ordem para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, surge a vida. Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé (Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência dos homens, dando ordens reais. É o que acontece quando deixamos de não sermos convertidos e nos tornamos crentes. Quando Deus quer abençoar o seu povo tornando-o bênção, ele o faz pronunciando uma ordem. Ao orarmos para que o Senhor se levante e mostre seu braço de poder, sua resposta, contendo uma ordem, é: Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, Sião (Is 52.1). Ao rogarmos que o mundo seja trazido a seus pés, sua resposta, em forma de ordem, é: Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os (Mt 28.19-20). Sua ordem é para que sejamos veículos da sua bênção. Se queremos ter a bênção de ver conversões se multiplicando e as igrejas sendo edificadas, Cristo nos dará esse benefício, pois todo dom procede dele, como foi transformar água em vinho. Contudo, primeiro ele nos diz: “Vão e proclamem a minha salvação até os confins da terra". Temos de encher as talhas de água. Se formos obedientes ao seu mandado, veremos de que modo poderoso ele irá operar, estará conosco, e as nossas orações serão ouvidas. Este é, enfim, o primeiro princípio que vejo aqui: Cristo dá ordens àqueles que ele deseja abençoar.
Nesta primeira parte, o narrador estabelece uma norma de abertura: “quando
Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem”, traduzida longo na
sequência por esta outra afirmação: “uma palavra de comando precede uma palavra
de poder”. Considerando o que já analisamos anteriormente, como Cristo afirmou seu
49
poder pelo milagre, a este antecedeu a ordem: “Enchei de água essas talhas”. A
seguir, o narrador vai destacar em várias narrativas bíblicas ordens que antecederam
um milagre, uma manifestação de poder: “Vai, lava-te no tanque de Siloé” (Jo 9.7);
“Estende a tua mão” (Mt 12.13); “Menina, levanta-te” (Lc 8.54). “Lázaro, vem para
fora!” (Jo 11.43). “Crê no Senhor Jesus e serás salvo” (At 16.31); “Arrependei-vos,
porque é chegado o reino dos céus” (Mt 3.2).
Todas são passagens bíblicas que figurativizam o tema de que a eficácia da
ação de Jesus está condicionada à obediência de uma ordem, que só é compreensível
à fé, não cabendo, portanto, o questionamento da lógica da ordem.
Na sequência, o narrador estende essas ordens às práticas cristãs de seus
destinatários e pergunta: “Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e
isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo”; “Oro para que você
não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever;”. O próprio narrador
responde a sua pergunta, reafirmando o fundamento temático da fé. Ou seja, segundo
o narrador, para o discípulo de Cristo, não há outra razão que não a ordem por ela
mesma. Trata-se de uma explicação que fere a lógica racional e é somente
compreensível numa outra lógica que a da definida pela fé.[G4]
O narrador traz para ilustrar essa lógica da fé, um interessante percurso
figurativo que trata da ordem dada por Deus a Ezequiel de ordenar aos ossos que
levantassem. O profeta teria todas as razões para contestar a ordem, pois, pela lógica
racional, não faz sentido dar ordens a que ossos vivessem. No entanto o profeta o fez
por razões de fé, fazendo da morte brotar a vida, conforme registra esta passagem:
Sim, por meio de uma ordem para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, surge a vida.
Na sequência, o narrador continua explorando o tema da ordem, tratando,
agora, de um tema decorrente dela: a obediência
Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, sim, obedecidas. As pessoas querem vinho, e Cristo diz aos servos: Enchei de água essas talhas. Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem querer água quando forem à sinagoga ou
50
ao templo, para lavar e ter as mãos purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”. Todavia, o conselho que Maria tinha dado aos servos fora muito próprio: Fazei tudo quanto ele vos disser. Nós também: não nos cabe, não devemos questionar nem criticar as ordens do Senhor, mas cumpri-las imediatamente. Em alguns momentos, pode parecer que a ordem de Cristo não seja pertinente ao assunto em questão. O pecador pede: "Senhor, salva-me; vence o pecado em mim". Nosso Senhor responde: "Creia". O pecador não entende de que modo crer em Cristo poderá o capacitá-lo a controlar um pecado insistente. À primeira vista, parece não haver nenhuma conexão entre crer no Salvador e dominar um mau hábito ou se livrar de um mau costume, como a intemperança, a paixão, a cobiça, a falsidade. Existe, sim, uma conexão. Mas mesmo que você não consiga visualizá-la, sua parte é não questionar e, sim, fazer aquilo que Jesus ordena que você faça. É no caminho da ordem cumprida que o milagre da misericórdia será realizado. Enchei de água essas talhas – apesar de o que você quer mesmo seja vinho. Cristo vê uma conexão total entre a água e o vinho, embora você nem a perceba. Ele tem um motivo para que as talhas sejam cheias de água, que você desconhece. Não nos cabe pedir explicações, mas sermos simplesmente obedientes. Se você fizer exatamente aquilo que Jesus ordena, da maneira que ordena e no momento em que ordena, tão somente porque ele ordena, descobrirá que os seus mandamentos não são penosos (1Jo 5.3) e em os guardar há grande recompensa (Sl 19.11). Há momentos em que essas ordens parecem ser até mesmo triviais. Podem nos parecer algo insignificante. Aquela família precisava de vinho, e Jesus diz: Enchei de água essas talhas. Os servos poderiam ter dito: "Isso é simplesmente passar o tempo e brincar conosco. Faríamos melhor se fôssemos falar com os amigos dessas pessoas e pedíssemos se poderiam contribuir oferecendo outras vasilhas de vinho. Melhor ainda se encontrássemos alguma adega ou estalagem onde pudéssemos comprar vinho. Mas mandar-nos ir ao poço encher essas grandes talhas, que só podem conter é muita água, está nos parecendo brincadeira". Meus irmãos sei que, às vezes, o caminho do dever parece que não vai nos levar ao resultado desejado. Preferimos fazer outra coisa. Esta outra coisa pode até parecer estar errada, mas nos dá a impressão de que poderíamos realizar nosso plano de maneira mais fácil e direta; desse modo, lançamo-nos neste outro curso, não ordenado e talvez proibido. Sei que muitas consciências perturbadas acham que simplesmente crer em Jesus é muito pouco. O coração enganoso sugere sempre uma maneira que parece ser mais eficaz: "Faça penitência; sinta amargura; chore certa quantidade de lágrimas. Mude sua mente, quebrante seu coração” – é isso o que pede a nossa carne. Jesus simplesmente nos ordena: "Creia". Isto realmente parece ser uma coisa muito pequena a ser feita, como se não fosse possível receber a vida eterna simplesmente por colocar sua confiança em Jesus Cristo. Mas este é o princípio que quero ensinar aqui: quando Jesus Cristo está prestes a dar uma bênção, ele dá uma ordem que não deve ser questionada, mas, sim, obedecida imediatamente. Se não o crerdes, certamente não haveis de permanecer (Is 7.9); mas se quiserdes, e me ouvirdes, comereis o bem desta terra (Is 1.19). Fazei tudo quanto ele vos disser.
51
Em todo esse segmento aparecerem sucessivos percursos figurativos que
revestem o tema da incondicionalidade da obediência. Essa incondicionalidade é
definida como uma obediência sem questionamento da lógica racional da ordem dada.
Observemos somente esta primeira passagem figurativa:
Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem querer água quando forem à sinagoga ou ao templo, para lavar e ter as mãos purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”.
Ela poderia ser uma contestação à ordem de Jesus: “Enchei de água essas
talhas”. Mas, segundo o ensinamento do narrador, essa contestação não cabe. O
importa obedecer incondicionalmente, por determinação da fé.
Na passagem seguinte, o narrador continua abordando o tema da obediência,
focalizando um tema complementar: a completude da obediência.
O terceiro princípio é este: é bom cumprirmos com zelo todas as ordens que recebemos de Cristo. Ele disse: Enchei de água essas talhas, e os servos encheram-nas até em cima (Jo 2.7). Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela ser cheia até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a transbordar. O líquido começa a se mexer quando está prestes a transbordar numa cascata cristalina. É a plenitude do enchimento. Ao cumprir as ordens de Cristo, meus caros irmãos e irmãs, que cheguemos às últimas consequências: que cumpramos as suas ordens “até em cima”. Se a ordem é “crê”, creia nele com toda a sua força, confie nele de todo o seu coração. Se é “prega o evangelho”, pregue a tempo e fora de tempo (2Tm 4.2) – e pregue o evangelho – por completo. Pregue-o até em cima. Não entregue às pessoas um evangelho pela metade. Dê-lhes um evangelho transbordante. Encha as talhas até a borda. Se é para se arrepender, peça-lhes um arrependimento profundo e sincero. Se é para crer, peça-lhes uma fé profunda, absoluta, como a de uma criança, uma fé cheia até a borda. Se a ordem é orar, ore poderosamente: encha até a beirada o vaso da oração. Se é para buscar uma bênção nas Escrituras, procure-a do início ao fim: encha até a extremidade o vaso da leitura da Bíblia. As ordens de Cristo nunca devem ser cumpridas com negligência. Que coloquemos nossa alma em tudo aquilo que ele nos ordenar, ainda que não possamos entender o motivo pelo qual nos manda realizar essa tarefa. Os mandamentos de Cristo devem ser cumpridos com todo o entusiasmo, e realizados ao extremo, se for possível haver um extremo.
52
Para tratar do tema da completude da obediência, o narrador volta à figura das
“talhas cheias de água”, e comenta: “Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela
ser cheia até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a
transbordar”. Fica evidente neste comentário que o narrador trata da “plenitude do
enchimento”, com o que volta ao grande tema do sermão: a fé incondicional e plena,
“uma fé cheia até a borda”.
Na sequência dessa parte (da linha 236 a 356) repetem-se referências aos
percursos figurativos já comentados e leituras temáticas correspondentes.
Na última parte do sermão (linha 357 até o final), o narrador/pregador continua
fazendo sua leitura temática da ordem de Jesus: “Enchei de água essas talhas”,
focalizando a “maneira de executar” essa ordem. Na verdade, isso ele vinha fazendo
nas partes anteriores. Destaquemos somente algumas passagens.
Nesse primeiro segmento,
II. Tenha paciência comigo um pouco mais, enquanto procurarei aplicar agora esses princípios a propósitos práticos. Vejamos, então, de que maneira executar esta ordem divina: Enchei de água essas talhas. Primeiramente, use as habilidades que você possui no serviço de Cristo. Ali estão seis talhas. Jesus usa o que encontra disponível, à mão. Há água no poço; nosso Senhor a utiliza também. Nosso Senhor costuma empregar em sua obra o seu povo, com a capacidade e as habilidades que cada qual possui, em vez de usar os anjos ou uma nova classe de seres criados especialmente com esse propósito. Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa: encha o vaso de barro que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver. Traga água mediante suas ordens e há de ser o melhor dos vinhos. O mais comum dos dons pode servir aos propósitos de Cristo. Assim como ele tomou apenas alguns pães e peixes e com eles alimentou uma multidão, assim, também ele se vale de seis talhas de água e nelas cria vinho.
o narrador/pregador volta à figura da água, do recurso mais disponível (“Jesus usa o
que encontra disponível, à mão”) para figurativizar o tema de ser simples e sem
exigências a condição para ser cristão. Nesse sentido vale destacar essa passagem:
Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa:
53
encha o vaso de barro que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver.
As figuras “taça de prata” e “peça de porcelana de Sèvres” se opões à figura
“vaso de barro”, figurativizando o simples, o modesto, o disponível como a água do
poço.
Esta outra passagem, à qual já fizemos referência,
Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente conhecesse a si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei de água essas talhas".
o narrador/pregador dá continuidade ao tema do segmento anterior, na medida em
que se contrapõe aos que confundem simplicidade e modéstia (vaso de barro) com
“estupidez” e “ignorância”. Em decorrência, ele exalta a formação universitária, a
educação e o conhecimento como “úteis ao reino dos céus”.
Assim, a fim de aplicarmos esse princípio, vamos todos usar os meios de bênção conforme indicados por Deus. Quais são esses meios? Em Primeiro lugar, a leitura das Escrituras. Já que "examinais as Escrituras", faça-o então examinando tudo o que possa. Busque entender as Escrituras. "Se eu conhecer
54
a Bíblia, é que então serei salvo?" Não; você terá de conhecer o próprio Cristo por meio do Espírito Santo. Mais uma vez: enchei de água essas talhas; e, enquanto estudar as Escrituras, pode estar certo de que o Salvador irá abençoar sua Palavra e transformar essa água em vinho. Há sempre auxílio para você nos meios da graça, como, por exemplo, ouvir um ministro do evangelho. Lembre-se de que você deve encher a talha com água até em cima. "Mas eu posso ouvir milhares de sermões e não ser salvo". Pode ser, mas sua tarefa é encher a talha com água, e enquanto você ouve o evangelho, Deus o abençoa, pois a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo" (Rm 10.17). Saiba usar os meios que Deus lhe indicar. E, uma vez que o nosso Senhor decidiu salvar os homens por meio da pregação da Palavra, oro para que levante quem pregue sem cessar, a tempo e fora de tempo, entre quatro paredes e nas ruas. "Mas não é a nossa pregação propriamente que os salvará”, dizem alguns. Sei disso; mas pregar é trazer a água, e, enquanto nós o fazemos, Deus por sua vez, irá abençoar a água e a transformará em vinho. Saiamos a distribuir literatura religiosa e folhetos. “Oh, mas não será propriamente por ler este material que as pessoas serão salvas”. Certamente, não; mas, se o leem, Deus pode e vai fazer que a verdade seja lembrada em sua mente e impressa em seu coração. Enchei de água essas talhas. Cuidemos de distribuir uma infinidade de folhetos. Espalhemos literatura religiosa por toda parte. Enchei de água essas talhas, e o Senhor irá transformar água em vinho. Não se esqueça das reuniões de oração. Que abençoado meio de graça, trazendo o poder do céu a todas as obras da igreja. Enchamos essa talha de água. Não tendo do que reclamar da sua frequência nas reuniões de oração, mas, oh, mantenham-na ativa, meus irmãos! Se você pode orar, ore! Bendito seja o nome de Deus se você tem espírito de oração. Continuem orando! Enchei de água essas talhas, e, em resposta à sua oração, Jesus irá transformá-la em vinho. Professores de escola bíblica dominical, não negligenciem neste seu bendito meio de ser útil. Enchei de água essas talhas. Trabalhem no sistema da escola dominical com toda sua força. "Mas as crianças não serão salvas simplesmente por serem colocadas juntas e lhes falarmos sobre Jesus. Não lhes podemos dar um novo coração". E quem disse que vocês podem? Enchei de água essas talhas que Jesus Cristo sabe como transformá-la em vinho. E ele não deixará de fazê-lo enquanto formos obedientes às suas ordens. Faça uso de todos os meios, mas saiba usá-los com a motivação correta. Volto agora àquela parte do texto que diz: "E encheram-nas até em cima". Sempre que você estiver ensinando aos pequeninos da escola dominical, ensine-os bem. Encha até em cima. Quando você pregar, meu caro amigo, não pregue como se estivesse sonolento. Anime-se, encha o seu ministério até em cima. Quando você estiver buscando evangelizar a comunidade, não o faça sem motivação, como se não se importasse se aquelas almas venham a ser salvas ou não. Encha-as até em cima, pregue o evangelho com toda a sua força, clame pelo poder do alto. Encha cada vaso até em cima. Tudo o que valer a pena fazer, faça-o bem. Ninguém jamais serviu a Cristo bem demais. Já ouvi dizer que, em alguns cultos, pode haver zelo demais; mas, no serviço de Cristo, você pode ter quanto zelo puder e quiser e, ainda assim, jamais haverá excesso se a prudência estiver unida a ele. Enchei de água essas talhas, e até em cima. Faça tudo de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças.
55
Ainda no propósito de aplicação desse princípio, lembre-se que, mesmo que você tenha feito tudo o que pode, sempre haverá deficiência em tudo o que fez. Não deve haver problema algum de sua parte, ao voltar da distribuição de folhetos, da classe da escola dominical ou da pregação, ao chegar em casa, em ajoelhar-se e clamar: "Senhor, eu fiz tudo o que me ordenaste, mas nada terá sido feito se não tiver o teu toque final. Senhor, eu enchi essas talhas de água e, embora só possa simplesmente enchê-las com água, as enchi até em cima. Com o melhor da minha capacidade, Senhor, busquei ganhar vidas para ti. Sei que não pode haver uma alma salva, uma criança convertida ou qualquer glória trazida ao teu nome simplesmente por aquilo que fiz, pelos meus atos em si. Contudo, bom mestre, fala a palavra capaz de realizar o milagre de fato, e a água que enche os vasos transforma-a em vinho. Somente tu podes fazê-lo. Senhor, eu não posso. Eu lanço esse fardo sobre ti". Isto me leva à última aplicação do princípio que é: tenha confiança que o Senhor fará a obra. Veja bem, poderia haver outra maneira de encher as talhas de água. Suponha que aquelas pessoas nunca tivessem recebido a ordem de encher as talhas e que o ato de fazer isso não tivesse nenhuma relação com Cristo. Suponha que aquela ação tivesse sido apenas um lampejo de sua própria imaginação e que elas tivessem dito: "Essas pessoas não têm vinho, mas, quem sabe, elas podem querer se lavar, e então vamos encher seis talhas de água". Nada teria acontecido a partir desse procedimento. A água teria ficado ali. Lembro-me de um menino da escola de Eton, que disse: "A água consciente viu seu Deus e ficou vermelha”, uma expressão verdadeiramente poética. A água consciente, no entanto, teria visto os servos, e não teria ficado vermelha. Teria simplesmente refletido a face deles em sua superfície brilhante, e nada além disso teria acontecido. Foi preciso que o próprio Senhor Jesus Cristo, com seu poder presente, realizasse o milagre. Mas isso aconteceu porque ele mesmo havia ordenado aos servos que enchessem as talhas com água e, desse modo, viu-se compelido – sé que posso usar tal expressão em relação ao nosso Rei – a transformá-la em vinho. Se não fosse ele o Cristo, teria simplesmente pregado uma peça naqueles servos. Mas então eles teriam cobrado dele: “Por que nos deste uma ordem absurda como esta?” Se depois de enchermos as talhas com água Jesus não realizasse nada por nós, teríamos apenas feito o que ele nos havia ordenado; mas, como cremos nele, ouso dizer, ele se obriga a si mesmo a realizar o milagre. Do contrário, seríamos perdedores, e perdedores terríveis. Se o Senhor não mostrasse seu poder, só teríamos a lamentar, dizendo "trabalhei em vão e gastei minhas forças por nada". Não seríamos, porém, tão perdedores quanto ele próprio, pois o mundo logo afirmaria serem as ordens de Cristo vazias, inúteis e ineficientes. Diria que a obediência à sua palavra não traz nenhum resultado. Diria o mundo: “Você encheu as talhas com água só porque ele ordenou que fizesse; esperou que ele transformasse água em vinho, mas ele não fez nada disso. Sua fé é vã, sua obediência é vã; ele não é um mestre que valha ser servido”. Nós seríamos perdedores, mas ele seria mais ainda: perderia sua glória. Por isso, de minha parte, creio que jamais uma palavra de Cristo possa ser dita em vão. Tenho certeza de que nenhum sermão que contenha Cristo em si possa ser pregado sem resultado. Alguma coisa positiva disso resultará, se não hoje, amanhã, mas alguma coisa boa há de resultar. Quando um sermão meu é publicado, quando vejo impresso em um livro, já estou desde antes bem feliz
56
em saber de almas que foram e serão salvas por este meio. Se ainda não foi impresso, apenas o preguei, já acho que algo de bom Deus fará brotar dele. Se preguei Cristo, coloquei sua verdade salvadora naquele sermão, aquela semente não poderá morrer. Mesmo que pareça morrer naquele livro por vários anos, tal qual grão de trigo enterrados no solo, um dia viverá, crescerá e dará fruto. Ouvi falar recentemente de uma vida que foi levada a Cristo por um sermão que preguei 25 anos atrás. Quase todas as semanas, ouço falar a respeito de pessoas que foram trazidas a Cristo por sermões meus pregados em reuniões realizadas em Park Street, no Exeter Hall e nos jardins de Surrey. Sinto, portanto, que Deus não deixará uma testemunha fiel sequer cair ao chão. Vá em frente, irmão. Encha as talhas de água. Não acredite, porém, que você está fazendo muito, mesmo quando tiver feito tudo o que pode. Não comece a se parabenizar diante dos sucessos. Tudo vem de Cristo e tudo virá de Cristo. Todavia, não diga na reunião de oração: "Paulo pode ter plantado, e Apolo pode ter regado, mas...". Não é bem assim o que diz a passagem. Ela diz exatamente o contrário, ou seja: que Paulo plantou; Apolo regou; mas Deus deu o crescimento (1Co 3.6). O crescimento é dado por Deus, uma vez que plantação e a semeadura sejam feitas de maneira adequada. Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre quem transforma a água em vinho. Que o Senhor nos dê a graça de sermos obedientes às suas ordens, especialmente a este mandamento: “Creia e viva!” E que possamos encontrá-lo nas bodas celestiais para bebermos vinho novo com ele, para todo o sempre. Amém e amém.
Destacamos nesse segmento final, as referências à ordem de Jesus: “Enchei
essas talhas de água”. Nas sucessivas ocorrências faz dela diferentes leituras
temáticas, sempre explorando o tema da completude: a completude no domínio e na
difusão das escrituras; a completude no zelo missionário; a completude nas preces. E
ao final do sermão, retorna o tema central do sermão: a todo milagre antecede uma
ação de poder, quando afirma: Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre
quem transforma a água em vinho.
57
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente dissertação colocou sob análise o sermão “As Talhás de Caná”,
pregado pelo Reverendo Inglês C. H. Spurgeon aos fiéis de sua comunidade na cidade
de Londres, Inglaterra, e trouxe também para o foco do estudo, consequentemente, o
livro do Evangelho de João, mais propriamente o segundo capítulo, veículos de 1 a
11, de onde o pregador, ao se debruçar em estudo, obteve ferramentas para
desenvolver biblicamente seu sermão. Este sermão foi o objeto de nosso estudo, o
qual foi analisado com base em fundamentos da semiótica discursiva.
Inicialmente, contextualizamos a narrativa no contexto das escrituras bíblicas e
definimos a sua natureza nesse contexto. Nesse sentido, fez-se necessário “adequar”
o sentido da palavra sermão respaldado pela “homilética”, que se define como o
minucioso estudo do texto bíblico para extrair a mensagem central do próprio texto,
obtendo, assim, argumentos para fundamentar seu discurso. Notamos, no sermão que
estudamos, que o pregador fez uso dessa técnica, pois ele extrai e aplica, de forma
brilhante, a ideia central do texto bíblico, Evangelho de João, capítulo 2, versículos de
1 a 11, que é a revelação de Jesus como Deus e, como consequência dessa
revelação, arregimenta as pessoas para segui-lo e obedecê-lo sem qualquer tipo de
indagação.
Na sequência de nosso estudo, uma vez que nosso objetivo foi o de caracterizar
discursivamente o mencionado sermão tendo como base fundamentos da teoria
semiótica do discurso, fizemos uma breve contextualização semiótica. Considerando
os três patamares do percurso gerativo de sentido apresentado pela semiótica,
restringimos nossa análise aos fundamentos do nível discursivo. Nesse nível
distinguem-se a sintaxe discursiva e a semântica discursiva. Com base na primeira,
analisamos o sermão como um produto da enunciação, focalizando, no texto, as
projeções da enunciação no enunciado. Com base na semântica discursiva,
analisamos os principais percursos figurativos por meio dos quais o narrador/pregador
veicula os temas de que trata no sermão.
No que respeita às projeções da enunciação no enunciado, o texto do sermão
se caracteriza pela enunciação enunciada. O enunciado/texto do sermão, explicita,
portanto, as marcas da enunciação, isto é, as categorias eu, agora e aqui. Por meio
da debreagem enunciativa, instala-se no sermão a interação de um
58
narrador/destinador eu com um narratário/destinatário você. Este você vem
verbalmente explicitado. É esse o cenário comunicativo do sermão inteiro, do começo
ao fim. O pregador se comunica, portanto, de forma direta com o seu público,
interpelando-o por você. Com muita frequência, dirige-lhe perguntas, deixando em
geral as respostas em aberto. Mas, muitas vezes, ele mesmo as responde ou até põe
respostas na voz dos próprios destinatários. Outras ele faz com que o próprio
destinatário seja o destinador da pergunta, cabendo ao destinador/pregador o papel
de destinatário. Se juntarmos esse recurso ao fato de o pregador tratar os
destinatários por você (raramente por vocês), cria-se no texto um forte efeito de
sentido de diálogo ou até mesmo de conversa. Essa conversa, não raro, revela um
efeito de certa privacidade, de envolvimento entre pregador e público, por conta da
relação eu-você, que é a estrutura interativa padrão para as conversas face a face.
Nesse sentido, pode-se dizer que, do ponto de vista dos efeitos de oralidade no texto
escrito, o texto do sermão é construído por meio de uma linguagem da aproximação.
No continum dos gêneros textuais, o texto se situa numa posição intermediária entre
os polos da fala e da escrita.
Esse modo de o pregador interagir com os destinatários nos permite, inclusive,
construir uma ideia das características deles, supostamente um público de pessoas
simples. Isso se constata não só na forma direta de interação, mas também no
vocabulário usado, comum nas interações cotidianas, nos períodos curtos comuns
das conversas, nos exemplos e nas analogias e metáforas do cotidiano, nas figuras
usadas para explicar os temas abstratos dos textos bíblicos. Todos esses recursos
apontam para um destinatário não sofisticado não domínio da linguagem, no
conhecimento dos textos bíblicos e talvez até na formação escolar.
Do ponto de vista da argumentação do destinador/pregador para fazer crer, isto
é, para persuadir o seu público, podemos dizer que tudo o que já apontamos
anteriormente é recurso argumentativo. No entanto, mais dois outros aspectos se
destacam: a debreagem de segundo grau e a produção de efeitos de realidade. O
primeiro caso o narrador delega a voz ao interlocutor e este assume a fala em discurso
direto. Esse fato de o interlocutor tomar a palavra é uma forma de produzir efeito de
realidade, na medida que passa a ilusão de uma fala objetiva, como se ela tivesse
sido produzida originalmente na forma do texto. Ela produz, portanto, um efeito de
realidade e de verdade. No que respeita ao discurso direto, destacam-se no texto
analisado as vozes das personagens bíblicas: Jesus, Deus e os profetas. Todos esses
59
personagens falam em discurso direto, criando-se não só o efeito de realidade a que
nos referimos, mas também em efeito de distanciamento entre o narrador e esses
personagens. Esse distanciamento decorre de uma postura de respeito e veneração
diante dos personagens das sagradas escrituras.
Além disso, também produzem efeitos de realidade e, por isso, tem força
persuasiva os exemplos, as analogias tiradas da vida cotidiana das pessoas. Também
as referências à quantidade de vinho (cerca de 450 litros) e de pessoas presentes ao
casamento (centenas de pessoas) produzem esse mesmo efeito pois remetem os
destinatários a elementos da vida cotidiana que eles podem perceber e avaliar
concretamente.
No que se refere à semântica discursiva, pode se dizer que a maior parte do
sermão está centralizada no tema veiculado pelo percurso figurativo expresso pelo
subtítulo do sermão: Ordenou-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-
nas até em cima (Jo 2.7). No entanto na primeira parte (até a linha 104), o pregador
focaliza temas envolvendo a vida cotidiana dos destinatários, como o tema da
sobriedade e da embriaguez, baseado na figura da quantidade de vinho (cerca de 450
litros). Também com base na figura da quantidade trata do tema da generosidade,
referindo-se ao modo generoso com que Jesus beneficia com bênçãos e graças os
que o seguem.
Quando analisa o percurso figurativo expresso na ordem de Jesus, “Ordenou-
lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima, o pregador
explora em especial o tema da obediência, sintetizado na figurativização da forma
imperativa “Enchei”. Esse tema está diretamente ligado ao tema da revelação divina,
ou seja, da revelação de que Jesus era Deus, manifesto no próprio percurso figurativo
do milagre. Ao transformar a água em vinho, ocorre um fato que não se explica pela
lógica da racionalidade humana, mas só compreensível no nível do sobrenatural, isto
é, só compreensível para quem tem fé, no sentido religioso da palavra. O milagre da
transformação da água em vinho é um procedimento de persuadir os discípulos a
terem fé. É em relação ao tema da fé que o pregador desenvolve o tema da
obediência. Ele diz que para ter fé é preciso ter obediência incondicional, isto é, a fé
não permite que o cristão questione com a lógica racional as ordens de Jesus Cristo.
Em resumo, um fato de fé, no sentido religioso, por definição exclui o questionamento,
caso contrário não haveria fé. É daí que vem toda a importância do tema da
obediência. Assim, podemos concluir, dizendo que o pregador foi coerente ao
60
relacionar a narrativa de João, que narra o milagre da transformação da água em
vinho, com o desenvolvimento do tema da obediência.
61
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Referência de material com autoria conhecida:
BARROS, D. L. P. Interação em anúncios publicitários. In: PRETI, Dino (org.). Interação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas, 2002. ___________. Teoria do discurso: Fundamentos semióticos. 3. ed. São Paulo: Humanitas/FLLCH/USP, 2002. ____________. Estudos do Discurso. In. FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística (Vol. 2): Princípios de Análise. São Paulo: Contexto, p. 187- 219, 2003. ___________. Teoria Semiótica do Texto; 4º ed., São Paulo: Editora Ática, 2005. BÍBLIA de Estudo de Genebra. 2 ed. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009. CARSON, D.A. O comentário de João. Tradução: Daniel de Oliveira & Vivian Nunes do Amaral. São Paulo: Shedd Publicações, 2007. CHAMPLIM, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo, VOL. II: Lucas – João; São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural Ltda – 6º imp, 1987. FIORIN, J.L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo; 3º ed., São Paulo: Contexto, 2016. ___________. Elementos de análise do discurso. 14. ed. São Paulo: Contexto, 2013. GILBERTO, A. A Bíblia através dos Séculos. A história e formação do Livro dos livros. 7.ed. Rio de Janeiro: CPAD,1998.
GREIMAS, A. J. & COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica – São Paulo: Contexto, 2008. HENDRIKSEN, W. O Evanelho de João. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. KOCH, P.; OESTERREICHER, W. Sprache der Nähe-Sprache der Distanz. Romanistisches Jahrbuch, 36: 15-43, 1985. MACARTHUR, Jonh. The Macarthur New Testament Commentary. Moody Publishers. Chicago, 2006. MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MARCUSCHI, L.A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização; 2º ed., São Paulo: Cortez Editora, 2001.
62
REIFLER, H. U. Pregação ao Alcance de todos; São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2002. SILVA, C.M. Metodologia da Exegese Bíblica, São Paulo: Paulinas, 2000. SPURGEON, C.H. Milagre e parábolas de nosso Senhor: a obra e o ensino de Jesus em 173 sermões selecionados / C.H. Spurgeon; tradução de Jurandyr Bravo, Lilian Jenkino, Emirson Justino – São Paulo: Hagnos, 2016. TATIT L. A linguagem do texto. In: Fiorin JL (org.). Introdução à linguística: objetos teóricos. Vol. 1. São Paulo: Contexto; 2002. WEGNER, UWE. Exegese do Novo Testamento – Manual de Metodologia. São Paulo: Paulinas, 1998.
63
Referência de material sem autoria conhecida: GRANDE DICIONÁRIO HOUAISS. Página inicial. Disponível em: <https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#1> Acesso em: 17 de dezembro de 2018. METROPOLIN TABERNACLE. Página inicial. Disponível em: https://www.metropolitantabernacle.org/Portugues/Detalhes-da-Igreja/Historia Acesso em 14 de dezembro de 2018.
VATICAN. Página inicial. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm> Acesso em 18 de julho de 2018.
64
ANEXO 1
As Talhas de Caná (SPURGEON, 2016, p. 94 – 102)
Disse Jesus aos serviçais: "Encham os potes com água". E os encheram até a borda (Jo 2.7).
Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o 1
vinho acabou, ele o providenciou com generosidade. Creio que não seja adequado 2
entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela 3
ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não 4
produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente 5
entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito 6
poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. O que hoje leva este 7
nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual 8
certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos 9
atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente 10
inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no 11
Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente 12
casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro 13
naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo 14
vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína 15
dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria 16
contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas 17
venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos 18
massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de 19
haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum 20
protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a 21
ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado. 22
Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de 23
vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era 24
preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, 25
seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está 26
pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, 27
quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era 28
65
bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná 29
na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, 30
de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente 31
alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a 32
todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas 33
comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria 34
e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não 35
tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado 36
muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por 37
que não ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. 38
Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu 39
assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me 40
abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a 41
mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo. 42
De todo modo, Jesus Cristo deu início à dispensação do evangelho não com 43
um milagre de vingança – tal como o realizado por Deus no Egito, por meio de Moisés, 44
transformando água em sangue –, mas com um milagre de liberalidade, ao 45
transformar a água em vinho. Ele não apenas supre aquilo que é realmente necessário 46
às pessoas, mas provê com fartura, e isto é altamente representativo do reino da sua 47
graça. Ele não apenas dá aos pecadores o suficiente para salvá-los, mas dá com 48
abundância, graça sobre graça. Os dons da aliança não são limitados nem restritos, 49
não são pequenos em quantidade nem em qualidade. Dá aos homens não apenas 50
água da vida, para que possam dela beber e com ela se refrescar, mas também vinhos 51
puros, bem purificados (Is 25.6) para que possam se satisfazer e jubilar. Cristo dá 52
como o dá um rei, em profusão, sem conter copos nem vasilhas. Uma quantidade 53
como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de 54
amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso 55
para com as almas mais necessitadas. Esqueçamos, portanto, toda questão relativa 56
ao vinho; quanto menos coisas tivermos a cogitar, melhor será, tenho certeza. Vamos 57
pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja um 58
exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua 59
graça, que ele tão liberalmente nos concede. 60
Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão simples e sem 61
ostentação ele ocorreu. Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, 62
66
o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres 63
chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para 64
ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. 65
Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como 66
Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu 67
messiado. Não fez assim. Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, 68
de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural 69
deste mundo, revelou sua glória. Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato 70
como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio 71
noivo, ou qualquer dos anfitriões, e lhes diz: “Vocês sabem que o vinho acabou, não? 72
Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água 73
em vinho”. Nada disso; faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos. Pede que 74
encham de água as talhas, recipientes que estavam ali à disposição. Não pede outras 75
vasilhas, mas somente as que tinha à mão, sem fazer nenhum alarde ou exibição. 76
Usa água que também estava disponível em abundância – e realiza um milagre, se 77
posso dizer assim, da maneira mais simples e comum. É este o estilo de Jesus. 78
Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido 79
feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar 80
parafernália. Sendo, porém, um milagre genuíno, foi feito, embora de maneira 81
sobrenatural, quase como uma sequência do que seria natural. Jesus não encheu as 82
talhas vazias de vinho, mas foi até onde a natureza pode ir e usou água para fazer 83
vinho dela, seguindo assim um processo de sua providência que se realiza dia a dia. 84
Pois o vinho é produzido da água, iniciando-se o processo quando gotas de chuva 85
caem do céu e fluem para a terra em direção às raízes da vinha, fazendo brotar dos 86
cachos de uva e neles o suco rubro que irá produzir o vinho. Apenas uma diferença 87
no tempo da produção separa o vinho criado nos cachos e o surgido nas talhas. Nosso 88
Senhor não pediu a outros que fizessem isso; os servos só tiveram que lhe trazer água 89
comum. Só quando começaram a tirar das talhas a água – ou aquilo que achavam ser 90
ainda água – é que iriam os servos perceber que a água fora transformada em vinho. 91
Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer 92
confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer 93
fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração 94
simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua 95
provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. 96
67
Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. 97
Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da 98
excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal 99
de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza 100
genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador. 101
Tome estes comentários como uma espécie de prefácio, pois quero mostrar 102
agora os princípios ocultos que se encontram neste texto bíblico e, em seguida, após 103
mostrá-los, apresentar como devem ser aplicados. 104
105
I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS 106
PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? 107
108
Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma 109
bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer 110
rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra 111
de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se 112
ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja 113
vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. 114
Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus 115
olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali esta um homem 116
com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão 117
(Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não 118
deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te 119
(Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele 120
ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por 121
meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um 122
mandamento do evangelho. 123
Observe como este princípio que se verifica nos milagres está presente 124
também nas maravilhas de sua graça divina. Eis um pecador que quer ser salvo. O 125
que Cristo tem a dizer a este pecador, mediante os apóstolos? Crê no Senhor Jesus 126
e serás salvo (At 16.31). E você? Pode crer nisso? Mas ele não está morto em seus 127
pecados? Irmãos, em lugar de levantarmos questionamentos tais, aprendamos, 128
simplesmente, que Jesus Cristo ordena que os homens creiam; e, por isso, 129
comissionou seus discípulos a dizerem: Arrependei-vos, porque é chegado o reino 130
68
dos céus (Mt 3.2). Ou seja... Deus, não levando em conta os tempos da ignorância, 131
manda agora que todos os homens em todo lugar se arrependam (At 17.30). Ele nos 132
ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. 133
Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser 134
suficiente para você, que se diz ser discípulo. Na verdade, tem sido exatamente 135
sempre assim, desde os tempos mais antigos, quando o Senhor estabeleceu sua 136
maneira própria de lidar com uma nação praticamente morta. Ali estavam ossos secos, 137
no vale, em grande número excessivamente secos. Ezequiel recebe então a ordem 138
de profetizar a eles. O que diz o profeta? Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor (Ez 139
37.4). É esta a sua maneira de fazê-los viver novamente. Sim, por meio de uma ordem 140
para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, 141
dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, 142
surge a vida. 143
Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um 144
dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé 145
(Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência 146
dos homens, dando ordens reais. É o que acontece quando deixamos de não sermos 147
convertidos e nos tornamos crentes. Quando Deus quer abençoar o seu povo 148
tornando-o bênção, ele o faz pronunciando uma ordem. Ao orarmos para que o Senhor 149
se levante e mostre seu braço de poder, sua resposta, contendo uma ordem, é: 150
Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, Sião (Is 52.1). Ao rogarmos que o mundo 151
seja trazido a seus pés, sua resposta, em forma de ordem, é: Foi-me dada toda a 152
autoridade nos céus e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, 153
batizando-os (Mt 28.19-20). Sua ordem é para que sejamos veículos da sua bênção. 154
Se queremos ter a bênção de ver conversões se multiplicando e as igrejas sendo 155
edificadas, Cristo nos dará esse benefício, pois todo dom procede dele, como foi 156
transformar água em vinho. Contudo, primeiro ele nos diz: “Vão e proclamem a minha 157
salvação até os confins da terra". Temos de encher as talhas de água. Se formos 158
obedientes ao seu mandado, veremos de que modo poderoso ele irá operar, estará 159
conosco, e as nossas orações serão ouvidas. 160
Este é, enfim, o primeiro princípio que vejo aqui: Cristo dá ordens àqueles que 161
ele deseja abençoar. 162
163
69
Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, 164
sim, obedecidas. As pessoas querem vinho, e Cristo diz aos servos: Enchei de água 165
essas talhas. Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos 166
capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um 167
momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da 168
purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem 169
querer água quando forem à sinagoga ou ao templo, para lavar e ter as mãos 170
purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, 171
a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”. Todavia, o conselho que Maria 172
tinha dado aos servos fora muito próprio: Fazei tudo quanto ele vos disser. Nós 173
também: não nos cabe, não devemos questionar nem criticar as ordens do Senhor, 174
mas cumpri-las imediatamente. 175
Em alguns momentos, pode parecer que a ordem de Cristo não seja pertinente 176
ao assunto em questão. O pecador pede: "Senhor, salva-me; vence o pecado em 177
mim". Nosso Senhor responde: "Creia". O pecador não entende de que modo crer em 178
Cristo poderá o capacitá-lo a controlar um pecado insistente. À primeira vista, parece 179
não haver nenhuma conexão entre crer no Salvador e dominar um mau hábito ou se 180
livrar de um mau costume, como a intemperança, a paixão, a cobiça, a falsidade. 181
Existe, sim, uma conexão. Mas mesmo que você não consiga visualizá-la, sua parte 182
é não questionar e, sim, fazer aquilo que Jesus ordena que você faça. É no caminho 183
da ordem cumprida que o milagre da misericórdia será realizado. Enchei de água 184
essas talhas – apesar de o que você quer mesmo seja vinho. Cristo vê uma conexão 185
total entre a água e o vinho, embora você nem a perceba. Ele tem um motivo para que 186
as talhas sejam cheias de água, que você desconhece. Não nos cabe pedir 187
explicações, mas sermos simplesmente obedientes. Se você fizer exatamente aquilo 188
que Jesus ordena, da maneira que ordena e no momento em que ordena, tão somente 189
porque ele ordena, descobrirá que os seus mandamentos não são penosos (1Jo 5.3) 190
e em os guardar há grande recompensa (Sl 19.11). 191
Há momentos em que essas ordens parecem ser até mesmo triviais. Podem 192
nos parecer algo insignificante. Aquela família precisava de vinho, e Jesus diz: Enchei 193
de água essas talhas. Os servos poderiam ter dito: "Isso é simplesmente passar o 194
tempo e brincar conosco. Faríamos melhor se fôssemos falar com os amigos dessas 195
pessoas e pedíssemos se poderiam contribuir oferecendo outras vasilhas de vinho. 196
Melhor ainda se encontrássemos alguma adega ou estalagem onde pudéssemos 197
70
comprar vinho. Mas mandar-nos ir ao poço encher essas grandes talhas, que só 198
podem conter é muita água, está nos parecendo brincadeira". Meus irmãos sei que, 199
às vezes, o caminho do dever parece que não vai nos levar ao resultado desejado. 200
Preferimos fazer outra coisa. Esta outra coisa pode até parecer estar errada, mas nos 201
dá a impressão de que poderíamos realizar nosso plano de maneira mais fácil e direta; 202
desse modo, lançamo-nos neste outro curso, não ordenado e talvez proibido. 203
Sei que muitas consciências perturbadas acham que simplesmente crer em 204
Jesus é muito pouco. O coração enganoso sugere sempre uma maneira que parece 205
ser mais eficaz: "Faça penitência; sinta amargura; chore certa quantidade de lágrimas. 206
Mude sua mente, quebrante seu coração” – é isso o que pede a nossa carne. Jesus 207
simplesmente nos ordena: "Creia". Isto realmente parece ser uma coisa muito 208
pequena a ser feita, como se não fosse possível receber a vida eterna simplesmente 209
por colocar sua confiança em Jesus Cristo. Mas este é o princípio que quero ensinar 210
aqui: quando Jesus Cristo está prestes a dar uma bênção, ele dá uma ordem que não 211
deve ser questionada, mas, sim, obedecida imediatamente. Se não o crerdes, 212
certamente não haveis de permanecer (Is 7.9); mas se quiserdes, e me ouvirdes, 213
comereis o bem desta terra (Is 1.19). Fazei tudo quanto ele vos disser. 214
O terceiro princípio é este: é bom cumprirmos com zelo todas as ordens que 215
recebemos de Cristo. Ele disse: Enchei de água essas talhas, e os servos encheram-216
nas até em cima (Jo 2.7). Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela ser cheia 217
até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a 218
transbordar. O líquido começa a se mexer quando está prestes a transbordar numa 219
cascata cristalina. É a plenitude do enchimento. Ao cumprir as ordens de Cristo, meus 220
caros irmãos e irmãs, que cheguemos às últimas consequências: que cumpramos as 221
suas ordens “até em cima”. Se a ordem é “crê”, creia nele com toda a sua força, confie 222
nele de todo o seu coração. Se é “prega o evangelho”, pregue a tempo e fora de tempo 223
(2Tm 4.2) – e pregue o evangelho – por completo. Pregue-o até em cima. Não 224
entregue às pessoas um evangelho pela metade. Dê-lhes um evangelho 225
transbordante. Encha as talhas até a borda. Se é para se arrepender, peça-lhes um 226
arrependimento profundo e sincero. Se é para crer, peça-lhes uma fé profunda, 227
absoluta, como a de uma criança, uma fé cheia até a borda. Se a ordem é orar, ore 228
poderosamente: encha até a beirada o vaso da oração. Se é para buscar uma bênção 229
nas Escrituras, procure-a do início ao fim: encha até a extremidade o vaso da leitura 230
da Bíblia. As ordens de Cristo nunca devem ser cumpridas com negligência. Que 231
71
coloquemos nossa alma em tudo aquilo que ele nos ordenar, ainda que não possamos 232
entender o motivo pelo qual nos manda realizar essa tarefa. Os mandamentos de 233
Cristo devem ser cumpridos com todo o entusiasmo, e realizados ao extremo, se for 234
possível haver um extremo. 235
O quarto princípio é que nossa dedicada ação em obediência a Cristo não é 236
contrária, mas necessária, à nossa dependência dele. Vou lhes demonstrar como. 237
Alguns irmãos me dizem: “Veja só! Você promove aquilo que chama de cultos de 238
reavivamento, nos quais tenta despertar os homens por meio de apelos sinceros e 239
discursos entusiasmados. Não vê que Deus faz sua própria obra? Esses esforços 240
seus não passam de uma tentativa sua de tirar a obra das mãos de Deus. A maneira 241
correta é confiar nele e não fazer coisa alguma.” Tudo bem, irmão. Já entendi sua 242
posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena 243
certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, 244
acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada 245
e descrente que conheço. Você nem mesmo sabe se já foi salvo nove ou dez vezes. 246
Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão 247
maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se 248
achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé 249
sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, 250
nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês 251
realmente não cresceram. Se você pretende estender o reino do redentor por meio da 252
inação, não acho que esteja trabalhando da maneira que Cristo aprova. Mas nós nos 253
arriscamos a dizer-lhe que vamos prosseguir trabalhando para Cristo com todo o 254
nosso coração e a nossa alma, usando todos os meios disponíveis para trazer os 255
homens a ouvir o evangelho, sentindo, mais ou menos como você, que não podemos 256
fazer qualquer coisa que seja sem o Espírito Santo, que confiamos em Deus, penso 257
eu, quase da maneira que você crê, porque a nossa fé tem produzido muito mais 258
resultado do que a sua. Não me surpreenderia se, no final, sua fé sem obras se 259
mostrasse morta, para ficar apenas nisso, e que a nossa fé, tendo obras consigo, se 260
mostre uma fé viva no final de tudo. 261
Vamos colocar a questão da seguinte maneira: Jesus Cristo diz: Enchei de 262
água essas talhas. O servo ortodoxo responderia: "Meu Senhor, creio plenamente que 263
tu podes produzir vinho para essas pessoas sem a presença de água e, com a tua 264
permissão, não trarei água alguma. Não vou interferir na obra de Deus. Estou bem 265
72
certo de que tu não queres a nossa ajuda, Senhor gracioso. Tu podes fazer que estas 266
talhas se encham de vinho sem que seja necessário trazer um único balde de água, 267
e, assim, não vamos roubar glória de ti. Vamos simplesmente nos colocar atrás e 268
esperar por ti. Quando o vinho for feito, beberemos um pouco dele e bendiremos o teu 269
nome. Enquanto isso, oramos para que tu nos perdoes, pois os baldes com água são 270
difíceis de carregar, e são necessários muitos deles para encher todas essas talhas. 271
Além disso, seria uma interferência na obra divina e, desse modo, preferimos nos 272
aquietar". Você não acha que os servos que falassem dessa maneira estariam 273
mostrando que não tinham fé alguma em Jesus? Não vamos afirmar que isso pudesse 274
comprovar sua descrença, mas que se parece muito com tal atitude, parece. 275
Veja agora o servo que, tão logo que Jesus ordena Enchei de água essas 276
talhas, diz: "Não entendo isso, não vejo qualquer ligação entre pegar água e a falta de 277
vinho; mas vou até o poço. Lá vou encher, e depois trazer, dois baldes de água. Você 278
vem comigo, meu irmão? Venha comigo e me ajude a trazer os baldes. E ali vão eles, 279
voltando alegremente com a água, derramando-a em talhas até que estejam cheias 280
até a boca. Estes me parecem ser os servos crentes, que obedecem à ordem, mesmo 281
sem entendê-la, mas esperando que, de uma maneira ou outra, Jesus Cristo saiba o 282
que irá fazer, como na verdade saberá, ao realizar seu milagre. Não estamos 283
interferindo em sua obra, queridos irmãos, quando nos empenhamos com dedicação 284
em nossa tarefa. Estamos simplesmente demonstrando nossa fé nele se trabalhamos 285
para ele da maneira que ele nos ordena que trabalhemos e confiando nele com uma 286
fé plena. 287
Vou dar ênfase semelhante ao próximo princípio: somente a nossa ação não é 288
suficiente. Sabemos disso, é certo, mas deixe-me lembrar-lhe mais uma vez. Eis as 289
talhas e os baldes cheios, e mais do que isso não poderiam estar. Que abundância 290
de água! Nota-se que, na tentativa de enchê-los até a boca, a água escorreu por todo 291
canto. Bem, todas as seis grandes talhas estão cheias de água. Existe algum vinho 292
ali? Nenhuma gota sequer. O que eles trouxeram foi água, nada além de água que, 293
por enquanto, permanece sendo água. Suponhamos que eles fossem levar aquela 294
água para a festa. Tenho a impressão de que os convidados não considerariam água 295
fresquinha uma bebida adequada para uma festa de casamento. Não sei se o 296
deveriam, mas acho que não foram educados propriamente na crença de uma 297
abstinência total. Certamente reclamariam com o dono da festa: "Você já até nos deu 298
vinho, e do bom, e água, agora não é um final feliz para esta festa". Estou certo, 299
73
porém, de que isso não aconteceria. E, no entanto, aquele líquido era água, nada mais 300
que água pura, quando os servos a derramaram nos vasilhames Assim também, 301
apesar de tudo o que um pecador possa fazer ou de tudo que um salvo possa fazer, 302
nada existe por parte do esforço humano que consiga ajudar na salvação de uma alma 303
até que Cristo pronuncie a palavra de poder. Paulo plantou, e Apolo regou, mas não 304
houve crescimento até que Deus o tivesse dado. Pregue o evangelho, trabalhe com 305
as almas, seja persuasivo, converse, exorte. Saiba, porém, que não há poder em 306
qualquer coisa que você possa fazer até que Jesus Cristo mostre o seu poder divino. 307
Sua presença é o nosso poder. Bendito seja seu nome porque ele virá, encherá as 308
talhas com água e a transformará em vinho. Somente ele pode fazer isso, e os servos 309
que mostram disposição de encher as talhas são justamente dos primeiros a 310
confessar que somente ele pode fazer tais coisas. 311
Agora, o último princípio: o de que, embora a ação humana não consiga por si 312
mesma alcançar o fim desejado, ela tem seu lugar específico no processo e Deus 313
determina que ela seja necessária. Por que precisava o Senhor que as talhas fossem 314
enchidas de água? Não posso afirmar que isso fosse realmente necessário em si, mas 315
com o objetivo de que o milagre pudesse ser aberto e claro para todos, necessário se 316
tornou. Suponha que o nosso Senhor tivesse dito: "Vão até as talhas e peguem o 317
vinho, que está lá". Aqueles que vissem isso certamente diriam que já havia vinho 318
antes nas talhas e que, portanto, nenhum milagre fora realizado. Quando o nosso 319
Senhor pede que as talhas sejam enchidas de água, não haverá mais espaço algum 320
para que qualquer gota de vinho possa estar ali escondida. O mesmo aconteceu com 321
Elias: com o objetivo de provar que não havia fogo oculto algum debaixo do altar, no 322
Monte Carmelo, ordenou que fossem até o mar e trouxessem água a fim de derramá-323
la sobre o altar, sobre o sacrifício e no rego em volta do altar até que estivesse cheio. 324
Mandou: "Façam uma segunda vez", e eles o fizeram. Disse ainda: "Façam-no pela 325
terceira vez". Eles o fizeram, e, assim, não havia nenhuma possibilidade de fraude. 326
Portanto, quando o Senhor Jesus ordena aos servos que encham as talhas com água, 327
está garantindo não haver qualquer possibilidade de vir a ser acusado de falsário. Eis 328
por que foi necessário, portanto, que as talhas fossem cheias de água. 329
Além disso, foi necessário porque se tornou altamente edificante para os servos. Você 330
pode observar, no texto, que quando o mestre-sala prova do vinho, não sabe de onde 331
veio. Nem podia imaginar de onde ou como tinha surgido ali e mostrou-se surpreso. 332
74
Mas, conforme diz a Palavra, “o sabiam os serventes”. O mesmo acontece com 333
alguns membros das igrejas quando almas se convertem. Esses membros são boas 334
pessoas, mas pouco sabem a respeito de conversão de pecadores. Não sentem muito 335
prazer no reavivamento. Na verdade, tal qual o irmão mais velho do filho pródigo, têm 336
certa prevenção para com os recém-convertidos, sobretudo quando se mostram muito 337
efusivos com a conversão. Como esses membros se consideram muito sérios e 338
respeitáveis, prefeririam não ser essas pessoas, que julgam ser de um nível mais 339
baixo, sentadas ao seu lado. Sentem-se um tanto desconfortáveis por terem de ficar 340
tão perto delas. Pouco ou nada sabem, enfim, a respeito do que realmente está 341
acontecendo; todavia, bem o sabem os serventes, ou seja, os servos. 342
É exatamente isso o que quero dizer: crentes sinceros, que fazem a obra e 343
enchem as talhas, sabem o que está acontecendo. Jesus ordenou que se enchessem 344
as talhas com água com o propósito de que os homens que trouxeram a água do poço 345
soubessem depois que aquilo fora um milagre. E eu lhe garanto: se você trouxer almas 346
a Cristo, conhecerá o seu poder. Vai vibrar de alegria ao ouvir o clamor de glória do 347
arrependido e perceber brilhante raio de luz de júbilo sobre a face de quem nasce de 348
novo, ao ter seus pecados lavados e se sentir restaurado. Se você quer sentir o poder 349
miraculoso de Jesus Cristo, deve ir não realizar milagres, mas, simplesmente, trazer 350
água e encher as talhas. Faça as suas obrigações normais de homem e mulher 351
cristãos – coisas nas quais não há poder em si mesmas, mas que Jesus Cristo conecta 352
à sua própria obra divina – e só o fato de você saber que participou dessa obra será 353
excelente para sua edificação e seu conforto: “Se bem que o sabiam os serventes”. 354
355
Creio que já falei o suficiente sobre os princípios presentes neste texto. 356
357
II. Tenha paciência comigo um pouco mais, enquanto procurarei aplicar agora esses 358
princípios a propósitos práticos. Vejamos, então, DE QUE MANEIRA EXECUTAR 359
ESTA ORDEM DIVINA: Enchei de água essas talhas. 360
361
Primeiramente, use as habilidades que você possui no serviço de Cristo. Ali 362
estão seis talhas. Jesus usa o que encontra disponível, à mão. Há água no poço; 363
nosso Senhor a utiliza também. Nosso Senhor costuma empregar em sua obra o seu 364
povo, com a capacidade e as habilidades que cada qual possui, em vez de usar os 365
anjos ou uma nova classe de seres criados especialmente com esse propósito. 366
75
Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu 367
vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado 368
labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa: encha o vaso de barro 369
que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar 370
milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata 371
nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver. Traga água mediante suas ordens e há 372
de ser o melhor dos vinhos. O mais comum dos dons pode servir aos propósitos de 373
Cristo. Assim como ele tomou apenas alguns pães e peixes e com eles alimentou uma 374
multidão, assim, também ele se vale de seis talhas de água e nelas cria vinho. 375
Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, 376
que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que 377
cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês 378
estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O 379
Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que 380
sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente 381
ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar 382
errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e 383
os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em 384
seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas 385
talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as 386
talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os 387
levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos 388
aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses 389
estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a 390
transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de 391
modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus 392
que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a 393
ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que 394
todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente conhecesse a 395
si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei 396
de água essas talhas". 397
398
Assim, a fim de aplicarmos esse princípio, vamos todos usar os meios de 399
bênção conforme indicados por Deus. Quais são esses meios? 400
76
Em Primeiro lugar, a leitura das Escrituras. Já que "examinais as Escrituras", 401
faça-o então examinando tudo o que possa. Busque entender as Escrituras. "Se eu 402
conhecer a Bíblia, é que então serei salvo?" Não; você terá de conhecer o próprio 403
Cristo por meio do Espírito Santo. Mais uma vez: enchei de água essas talhas; e, 404
enquanto estudar as Escrituras, pode estar certo de que o Salvador irá abençoar sua 405
Palavra e transformar essa água em vinho. Há sempre auxílio para você nos meios 406
da graça, como, por exemplo, ouvir um ministro do evangelho. Lembre-se de que você 407
deve encher a talha com água até em cima. "Mas eu posso ouvir milhares de sermões 408
e não ser salvo". Pode ser, mas sua tarefa é encher a talha com água, e enquanto 409
você ouve o evangelho, Deus o abençoa, pois a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra 410
de Cristo" (Rm 10.17). Saiba usar os meios que Deus lhe indicar. E, uma vez que o 411
nosso Senhor decidiu salvar os homens por meio da pregação da Palavra, oro para 412
que levante quem pregue sem cessar, a tempo e fora de tempo, entre quatro paredes 413
e nas ruas. "Mas não é a nossa pregação propriamente que os salvará”, dizem alguns. 414
Sei disso; mas pregar é trazer a água, e, enquanto nós o fazemos, Deus por sua vez, 415
irá abençoar a água e a transformará em vinho. Saiamos a distribuir literatura religiosa 416
e folhetos. “Oh, mas não será propriamente por ler este material que as pessoas serão 417
salvas”. Certamente, não; mas, se o leem, Deus pode e vai fazer que a verdade seja 418
lembrada em sua mente e impressa em seu coração. Enchei de água essas talhas. 419
Cuidemos de distribuir uma infinidade de folhetos. Espalhemos literatura religiosa por 420
toda parte. Enchei de água essas talhas, e o Senhor irá transformar água em vinho. 421
Não se esqueça das reuniões de oração. Que abençoado meio de graça, 422
trazendo o poder do céu a todas as obras da igreja. Enchamos essa talha de água. 423
Não tendo do que reclamar da sua frequência nas reuniões de oração, mas, oh, 424
mantenham-na ativa, meus irmãos! Se você pode orar, ore! Bendito seja o nome de 425
Deus se você tem espírito de oração. Continuem orando! Enchei de água essas talhas, 426
e, em resposta à sua oração, Jesus irá transformá-la em vinho. Professores de escola 427
bíblica dominical, não negligenciem neste seu bendito meio de ser útil. Enchei de água 428
essas talhas. Trabalhem no sistema da escola dominical com toda sua força. "Mas as 429
crianças não serão salvas simplesmente por serem colocadas juntas e lhes falarmos 430
sobre Jesus. Não lhes podemos dar um novo coração". E quem disse que vocês 431
podem? Enchei de água essas talhas que Jesus Cristo sabe como transformá-la em 432
vinho. E ele não deixará de fazê-lo enquanto formos obedientes às suas ordens. 433
434
77
Faça uso de todos os meios, mas saiba usá-los com a motivação correta. Volto 435
agora àquela parte do texto que diz: "E encheram-nas até em cima". Sempre que você 436
estiver ensinando aos pequeninos da escola dominical, ensine-os bem. Encha até em 437
cima. Quando você pregar, meu caro amigo, não pregue como se estivesse sonolento. 438
Anime-se, encha o seu ministério até em cima. Quando você estiver buscando 439
evangelizar a comunidade, não o faça sem motivação, como se não se importasse se 440
aquelas almas venham a ser salvas ou não. Encha-as até em cima, pregue o 441
evangelho com toda a sua força, clame pelo poder do alto. Encha cada vaso até em 442
cima. Tudo o que valer a pena fazer, faça-o bem. Ninguém jamais serviu a Cristo bem 443
demais. Já ouvi dizer que, em alguns cultos, pode haver zelo demais; mas, no serviço 444
de Cristo, você pode ter quanto zelo puder e quiser e, ainda assim, jamais haverá 445
excesso se a prudência estiver unida a ele. Enchei de água essas talhas, e até em 446
cima. Faça tudo de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças. 447
Ainda no propósito de aplicação desse princípio, lembre-se que, mesmo que 448
você tenha feito tudo o que pode, sempre haverá deficiência em tudo o que fez. Não 449
deve haver problema algum de sua parte, ao voltar da distribuição de folhetos, da 450
classe da escola dominical ou da pregação, ao chegar em casa, em ajoelhar-se e 451
clamar: "Senhor, eu fiz tudo o que me ordenaste, mas nada terá sido feito se não tiver 452
o teu toque final. Senhor, eu enchi essas talhas de água e, embora só possa 453
simplesmente enchê-las com água, as enchi até em cima. Com o melhor da minha 454
capacidade, Senhor, busquei ganhar vidas para ti. Sei que não pode haver uma alma 455
salva, uma criança convertida ou qualquer glória trazida ao teu nome simplesmente 456
por aquilo que fiz, pelos meus atos em si. Contudo, bom mestre, fala a palavra capaz 457
de realizar o milagre de fato, e a água que enche os vasos transforma-a em vinho. 458
Somente tu podes fazê-lo. Senhor, eu não posso. Eu lanço esse fardo sobre ti". 459
Isto me leva à última aplicação do princípio que é: tenha confiança que o 460
Senhor fará a obra. Veja bem, poderia haver outra maneira de encher as talhas de 461
água. Suponha que aquelas pessoas nunca tivessem recebido a ordem de encher as 462
talhas e que o ato de fazer isso não tivesse nenhuma relação com Cristo. Suponha 463
que aquela ação tivesse sido apenas um lampejo de sua própria imaginação e que 464
elas tivessem dito: "Essas pessoas não têm vinho, mas, quem sabe, elas podem 465
querer se lavar, e então vamos encher seis talhas de água". Nada teria acontecido a 466
partir desse procedimento. A água teria ficado ali. Lembro-me de um menino da escola 467
de Eton, que disse: "A água consciente viu seu Deus e ficou vermelha”, uma 468
78
expressão verdadeiramente poética. A água consciente, no entanto, teria visto os 469
servos, e não teria ficado vermelha. Teria simplesmente refletido a face deles em sua 470
superfície brilhante, e nada além disso teria acontecido. Foi preciso que o próprio 471
Senhor Jesus Cristo, com seu poder presente, realizasse o milagre. Mas isso 472
aconteceu porque ele mesmo havia ordenado aos servos que enchessem as talhas 473
com água e, desse modo, viu-se compelido – sé que posso usar tal expressão em 474
relação ao nosso Rei – a transformá-la em vinho. 475
Se não fosse ele o Cristo, teria simplesmente pregado uma peça naqueles 476
servos. Mas então eles teriam cobrado dele: “Por que nos deste uma ordem absurda 477
como esta?” Se depois de enchermos as talhas com água Jesus não realizasse nada 478
por nós, teríamos apenas feito o que ele nos havia ordenado; mas, como cremos nele, 479
ouso dizer, ele se obriga a si mesmo a realizar o milagre. Do contrário, seríamos 480
perdedores, e perdedores terríveis. Se o Senhor não mostrasse seu poder, só 481
teríamos a lamentar, dizendo"trabalhei em vão e gastei minhas forças por nada". Não 482
seríamos, porém, tão perdedores quanto ele próprio, pois o mundo logo afirmaria 483
serem as ordens de Cristo vazias, inúteis e ineficientes. Diria que a obediência à sua 484
palavra não traz nenhum resultado. Diria o mundo: “Você encheu as talhas com água 485
só porque ele ordenou que fizesse; esperou que ele transformasse água em vinho, 486
mas ele não fez nada disso. Sua fé é vã, sua obediência é vã; ele não é um mestre 487
que valha ser servido”. Nós seríamos perdedores, mas ele seria mais ainda: perderia 488
sua glória. 489
Por isso, de minha parte, creio que jamais uma palavra de Cristo possa ser dita 490
em vão. Tenho certeza de que nenhum sermão que contenha Cristo em si possa ser 491
pregado sem resultado. Alguma coisa positiva disso resultará, se não hoje, amanhã, 492
mas alguma coisa boa há de resultar. Quando um sermão meu é publicado, quando 493
vejo impresso em um livro, já estou desde antes bem feliz em saber de almas que 494
foram e serão salvas por este meio. Se ainda não foi impresso, apenas o preguei, já 495
acho que algo de bom Deus fará brotar dele. Se preguei Cristo, coloquei sua verdade 496
salvadora naquele sermão, aquela semente não poderá morrer. Mesmo que pareça 497
morrer naquele livro por vários anos, tal qual grão de trigo enterrados no solo, um dia 498
viverá, crescerá e dará fruto. Ouvi falar recentemente de uma vida que foi levada a 499
Cristo por um sermão que preguei 25 anos atrás. Quase todas as semanas, ouço falar 500
a respeito de pessoas que foram trazidas a Cristo por sermões meus pregados em 501
79
reuniões realizadas em Park Street, no Exeter Hall e nos jardins de Surrey. Sinto, 502
portanto, que Deus não deixará uma testemunha fiel sequer cair ao chão. 503
Vá em frente, irmão. Encha as talhas de água. Não acredite, porém, que você 504
está fazendo muito, mesmo quando tiver feito tudo o que pode. Não comece a se 505
parabenizar diante dos sucessos. Tudo vem de Cristo e tudo virá de Cristo. Todavia, 506
não diga na reunião de oração: "Paulo pode ter plantado, e Apolo pode ter regado, 507
mas...". Não é bem assim o que diz a passagem. Ela diz exatamente o contrário, ou 508
seja: que Paulo plantou; Apolo regou; mas Deus deu o crescimento (1Co 3.6). O 509
crescimento é dado por Deus, uma vez que plantação e a semeadura sejam feitas de 510
maneira adequada. Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre quem transforma 511
a água em vinho. 512
Que o Senhor nos dê a graça de sermos obedientes às suas ordens, 513
especialmente a este mandamento: “Creia e viva!” E que possamos encontrá-lo nas 514
bodas celestiais para bebermos vinho novo com ele, para todo o sempre. Amém e 515
amém. 516
Recommended