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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE EDSON FRANÇA MARTINEZ AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON São Paulo 2018

EDSON FRANÇA MARTINEZ

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

EDSON FRANÇA MARTINEZ

AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON

São Paulo

2018

EDSON FRANÇA MARTINEZ

AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. José Gaston Hilgert

São Paulo

2018

EDSON FRANÇA MARTINEZ

AS TALHAS DE CANÁ: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA DE UM SERMÃO DE C. H. SPURGEON

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do

título de Mestre em Letras.

Aprovada em de de .

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. José Gaston Hilgert – Orientador

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Arnaldo Cortina

Universidade Estatual Paulista – UNESP

A Deus, revelado em Jesus Cristo, digo:

“Tu és o meu Senhor, outro bem não

possuo, senão a ti somente” (Salmo 16:2)

AGRADECIMENTOS

Principalmente a Deus, de quem emana todo saber e conhecimento. A Ele

agradeço pelo direcionamento da minha vida, pela capacidade e pela sustentação nos

anos de estudo dedicados para à obtenção deste título.

Aos meus pais, por me apoiarem e incentivarem em toda jornada de estudo de

minha vida. Desde os primeiros passos na escola sempre foram zelosos em

acompanhar o meu desenvolvimento.

Ao Conselho da Igreja Presbiteriana de Torrinha e aos membros da amada

Igreja, assim como, os membros da Congregação Presbiterial de Jaú, que

compreenderam os momentos de minha ausência nas atividades da comunidade e

permitiram a conclusão deste estudo.

À minha esposa, Lisangela Ap. Ramos Martinez, pelo auxílio, paciência,

incentivo e compreensão durante os dois anos de viagens para a conclusão deste

sonho.

À Maria da Conceição, pelo carinho, amor, orações e companheirismo nas

horas mais difíceis desta jornada.

Em especial, ao meu orientador, Prof. Dr. José Gaston Hilgert, pela dedicação,

orientações pertinentes e olhar criterioso sobre a dissertação.

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar e explicitar as estratégias enunciativas na

construção de um discurso religioso, mais precisamente a homilética “As Talhas de

Caná”, proferida pelo Reverendo Inglês Charles Haddon Spurgeon, da Igreja Batista

Britânica, a seus fiéis, com base no versículo do texto bíblico do Evangelho de João,

capítulo 2, versículo 7: “Jesus lhes disse: Enchei de água as talhas. E eles as

encheram totalmente”. Para a fundamentação da pesquisa usaremos os conceitos

contidos nas obras de Bakhtin, Benveniste, Fiorin, Marcuschi e Barros. Em um

primeiro momento demonstraremos a diferença considerável entre um sermão e uma

homilética. Isto se faz necessário já que um sermão pode ser algo enfadonho e, não

poucas vezes, constrangedor. Já quando se trata de uma homilética, trata-se de um

discurso baseado em um, ou em vários textos bíblicos, almejando explanar as

Escrituras Sagradas com excelência e profundidade, inclusive utilizando-se de

técnicas de oratória. Posto isto, partiremos para a análise do discurso religioso, à luz

dos fundamentos teóricos da enunciação, objetivando identificar e analisar as

estratégias do enunciador do discurso projetadas no enunciado (texto), explicitando

os efeitos de sentido que essas estratégias produzem, identificando e analisando as

formas como o destinatário do texto é nomeado no próprio texto, explicitando os

efeitos de sentido que essas projeções produzem para a interação

“narrador/narratário” e explicitando a imagem que as diferentes estratégias

enunciativas constroem do enunciador e do enunciatário. Assim, ao realizarmos a

análise deste discurso religioso nos atentaremos as possibilidades do uso do “eu”,

podendo ser ele explicitamente mencionado no texto ou não, podendo num e noutro

desses dois casos o “eu” interpelar ou não o narratário e se há perguntas retóricas na

interpelação do narratário.

Palavras-chave: Discurso Religioso. Texto. Enunciação. Tematização.

Figurativização.

ABSTRACT

This research aims to analyze a religious discourse, more precisely the sermon "The

Talhas de Caná", given by the English Reverend Charles Haddon Spurgeon of the

British Baptist Church, to his faithful, based on the verse of the biblical text of the

Gospel of John, chapter 2, verse 7: "Jesus said to them, Fill the jars with water. And

they filled them completely. " We did the analysis of this religious discourse, based on

the foundations of discursive semantics, just as it is understood by discursive

semiotics. After contextualizing and defining the nature and context of our object of

study and highlighting the objectives and justification of the work, we present the

theoretical foundations. In this sense, we deal with discursive semantics and syntax,

dealing with the figurative and thematic structure of narratives and their enunciative

construction. We did the analysis of C H Spurgeon's sermon in two chapters. In the

first, we focus on the different figurative paths that structure the text and we did the

corresponding thematic reading that is transmitted by them. The text was

predominantly figurative. The narrator highlighted, initially, figurative paths whose

themes can be defined as complementary to what the sermon effectively proposes.

Next, the text specifically thematizes the meaning of order in this passage of the

Gospel of John: "Jesus said to them, Fill the jairs with water. And they filled them

completely. " With regard to the enunciative projections, the enunciation is highlighted

in the analysis. The narrator speaks in the first person and challenges his recipient for

you, creating the effects of informality and proximity to your audience. In several

passages, one has the impression that he is talking to his interlocutors. This proximity

effect is consistent with the figurative features of the text, as they often evoke examples

and comparisons of a person's daily life. We conclude the work with the final

considerations, in which we give evidence to the central points of our study.

Key words: Religious discourse. Text. Enunciation. Thematization. Figurative.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... 09

1 NATUREZA E CONTEXTO BÍBLICO DA NARRATIVA DO

EVANGELHO DE JOÃO, CAPÍTULO 2, VERSÍCULOS DE 1 A 11....

13

2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DO ESTUDO.................. 19

2.1. Contextualização semiótica.............................................................. 19

2.2. Contextualização no continuum da fala à escrita.......................... 20

3. AS PROJEÇÕES DA ENUNCIAÇÃO NO ENUNCIADO.................... 25

4. TEMATIZAÇÃO E FIGURATIVIZAÇÃO DO ENUNCIADO................ 37

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 57

REFERÊNCIAS......................................................................................... 61

ANEXO...................................................................................................... 64

9

INTRODUÇÃO

Todos, de alguma forma, já fomos destinatários de um sermão proferido por

alguém ou até já o proferimos para outrem. Quando se procura a etimologia da palavra

sermão, encontra-se a palavra “sermo”, oriunda do latim, que quer dizer “falar,

discursar”. Já quando pesquisado em um dicionário, neste caso no Dicionário

Houaiss, o termo tem as seguintes definições:

Discurso religioso pronunciado no púlpito por um predicador, esp. católico; prédica, predicação, pregação; 2) discurso moralizador, ger. longo e enfadonho; 3) qualquer fala com o objetivo de convencer alguém de algo; 4) admoestação em tom severo; repreensão, descompostura.

Em termos amplos, sermão é um discurso oral feito por um indivíduo,

sustentando uma crença, comportamento humano ou lei. Aquele que profere o sermão

busca apresentar a seu destinatário conhecimento adquirido por experiência de vida

ou por estudo, partindo do princípio de que esse destinatário estaria desprovido de tal

conhecimento.

Quando se fala que um religioso proferiu um sermão, o termo “sermão” assume

um sentido específico pois, quando ele se dirige a uma determinada comunidade

falando da Palavra de Deus, o faz respaldado pela “homilética”. Homilética, que é “a

ciência, arte e técnica de comunicar o evangelho” (REIFLER, 2002, p. 12). Por isso, a

partir do Concílio Vaticano II, iniciado em 1962 e concluído em 1965, a Igreja Católica

Apostólica Romana deixa de chamar a mensagem bíblica conduzida pelo Padre de

“sermão” e passa a chamá-la de “homilia”. Nesse sentido, a palavra sermão assume

um sentido específico, que é o de difundir, explicar, interpretar os textos bíblicos.

A homilética, segundo nos aponta Reifler (p. 20), em si é “a teoria e prática da

pregação do evangelho do nosso bendito Senhor Jesus Cristo, que revela o poder e

a justiça de Deus para todo homem que nEle crê (Romanos 1.16)”, e ainda, “o termo

‘homilética’ surgiu durante o Iluminismo, entre os séculos XVII e XVIII, quando as

principais disciplinas teológicas receberam nomes gregos, como, por exemplo,

dogmática, apologética e hermenêutica” (p. 11), sendo que “o termo ‘homilética’ deriva

do substantivo grego homilia, que significa literalmente ‘associação’, ‘companhia’, e

do verbo homileo, que significa ‘falar’, ‘conversar’ (p. 11), e “foi mundialmente aceito

10

para referir-se à disciplina teológica que estuda a ciência, a arte e a técnica de

analisar, estruturar e entregar a mensagem do evangelho” (p. 11).

Para que um religioso realmente faça um bom sermão, no sentido da

homilética, ele “deve valer-se dos recursos da retórica (assim como da eloquência),

utilizar os meios e métodos da comunicação moderna e aplicar a avançada estilística”

(p. 12). Além disso, ele deve se aprofundar na hermenêutica, “que é a ciência, arte e

técnica de interpretar corretamente a Palavra de Deus”, e valer-se da exegese, que “é

a ciência, arte e técnica de expor as ideias bíblicas”, pois, como diz Reifler (p. 12), “a

homilética depende amplamente da hermenêutica e da exegese1. Uma homilética sem

hermenêutica bíblica é trombeta de som incerto (1º Coríntios 14.8) e uma homilética

sem exegese bíblica é a mera comunicação de uma mensagem humanista e morta”.

Tendo assim contextualizado e definido o sentido da palavra sermão, o objetivo

geral da presente dissertação é desvelar procedimentos discursivos – semânticos e

sintáticos – na construção do sermão “As talhas de Caná”.

Para tanto, será utilizado o sermão sobre “As Talhas de Caná” 2 (SPURGEON,

2016, p. 94 – 102), proferido pelo Reverendo inglês Charles Haddon Spurgeon3, da

Igreja Batista britânica, a seus fiéis, com base no versículo do texto bíblico do

Evangelho de João, capítulo 2, versículo 7: “Jesus lhes disse: Enchei de água as

talhas. E eles as encheram totalmente” (Bíblia de Genebra, 2009, p. 1374).

O sermão escolhido para análise foi a “As Talhas de Caná”, mas poderia ter

sido escolhido qualquer outro do referido pregador, pois foi considerado um dos mais

brilhantes expositores dos textos bíblicos do século passado. Devido a sua excelência

e profundidade na exposição das Escrituras Bíblicas, recebeu o título de “O Príncipe

dos Pregadores”. Suas mensagens, além da maneira brilhante em expor os textos

bíblicos à luz dos fundamentos da homilética, também oferecem um rico material a

ser analisado do ponto de vista dos fundamentos teóricos do discurso.

Escolhemos esse tema para esta dissertação, em razão do interesse em

acrescentar à nossa formação acadêmica em Teologia e no estudo das teorias da

1 Os termos hermenêutica e exegese são aqui empregados unicamente na perspectiva da análise e interpretação dos textos bíblicos. 2 Neste trabalho, o nosso objeto de estudo será unicamente a tradução em língua portuguesa, publicada em Spurgeon (2016, p. 94 – 102), sem cotejo o original em língua inglesa. 3 O inglês Charles Haddon Spurgeon (1834 – 1892) foi um dos pregadores Batista Calvinista mais

notáveis de seu tempo. Era um homem de estudo e oração e isso refletia em seus sermões, tanto que,

em 1864, seu sermão “A Regeneração Batismal” vendeu mais de 300 mil impressões em uma semana.

E em 1892 seus sermões já eram traduzidos em 9 idiomas.

11

Homilética a análise e a interpretação dos discursos religiosos com base nos

fundamentos linguísticos, especificamente, dos ensinamentos dos estudos do

discurso.

Como dissemos, o objetivo geral da presente dissertação é desvelar

procedimentos discursivos – semânticos e sintáticos – na construção do sermão “As

talhas de Caná”, proferido por C. H. Spurgeon. Como objetivos específicos, a

dissertação buscará: a) identificar e analisar a projeção das categorias da enunciação

no enunciado/texto; b) explicitar os efeitos de sentido que a projeção dessas

categorias produz no texto; c) destacar e analisar as principais estratégias

argumentativas na relação destinador/destinatário no sermão; d) identificar e analisar

os percursos figurativos e temáticos que estruturam os sentidos do texto.

Para alcançar os objetivos estruturamos a dissertação nas seguintes etapas:

No primeiro capítulo identificaremos e caracterizaremos o texto ponto de partida

do sermão de C H Spurgeon. Situaremos a narrativa4 de João sobre as Talhas de

Caná em seu contexto e, dentro dele, definiremos a sua natureza do ponto de vista

das leituras bíblicas. Essa contextualização é importante, na medida em que ela

lançará luz sobre as próprias escolhas do pregador na construção de seu texto.

No segundo capítulo, apresentaremos um breve contexto teórico de nosso

estudo. Faremos isso em duas etapas: na primeira trataremos do contexto semiótico

geral, deixando, no entanto, conceitos específicos para serem apresentados nos

capítulos da análise; na segunda, traremos elementos que permitirão situar o sermão

no continuum dos gêneros textuais proposto por Koch e Oesterreicher (1985), que se

estende do polo da fala ao polo da escrita.

No terceiro capítulo analisaremos o texto do ponto de vista da enunciação,

tratando das projeções das categorias da enunciação no enunciado e das relações

entre destinador e destinatário, com ênfase especial nos efeitos de sentido produzidos

pelas projeções. É nesse capítulo que também caracterizaremos o sermão na

perspectiva do continuum referido.

4 Na sequência do texto, a palavra narrativa, referindo-se ao texto de João, é empregada em sentido lato, isto é, como um tipo de composição textual. O sentido específico do temo na semiótica vem assinalado em nota posterior.

12

No quarto capítulo, dando continuidade à caracterização discursiva do sermão,

nos ocuparemos com a estrutura semântica do sermão, focalizando os percursos

figurativos e temáticos.

E, por fim, nas considerações finais procuraremos retomar os pontos de

consideramos mais relevantes em nosso trabalho.

Para concluir essas considerações introdutórias, cabe uma breve observação

metodológica. No segundo capítulo nos limitaremos a informações gerais destinadas

a situar teoricamente o nosso estudo. Os fundamentos mais específicos, definidores

de nossas categorias de análise, tanto os referentes à sintaxe discursiva (enunciação)

quanto os relativos à semântica discursiva (temas e figuras) apresentaremos na

abertura dos respectivos capítulos (capítulos 3 e 4). Reuniremos assim teoria e análise

no mesmo capítulo, o que evita repetições desnecessárias e possibilita exemplificar

conceitos teóricos no desdobramento da análise.

13

1. NATUREZA E CONTEXTO BÍBLICO DA NARRATIVA DO

EVANGELHO DE JOÃO, CAPÍTULO 2, VERSÍCULOS DE 1 A 11.

Antes de examinarmos o texto do pregador à luz dos fundamentos dos

fundamentos do discurso, iremos agora, configurar a narrativa bíblica com base na

qual o pregador construiu o seu sermão. Essa configuração nos permitirá

compreender, com mais clareza, as opções feitas pelo pregador em seu discurso.

Inicialmente faz-se necessário saber que, em toda narrativa bíblica, desde os

livros do Antigo Testamento até os livros do Novo Testamento, a pessoa de Jesus

Cristo é o centro. Sabemos, contudo, que a pessoa de Jesus sempre foi intrigante e

continua sendo a todos os que já ouviram falar dele. Alguns o veem como um grande

mestre, outros como um revolucionário do primeiro século. Mas realmente podemos

compreender a Jesus Cristo como Deus?

Essa pergunta todos os Evangelhos, que são Mateus, Marcos, Lucas e João,

respondem de forma clara e pontual, pois, embora, cada um o faça de acordo com

sua perspectiva e público, todos descrevem a pessoa de Jesus Cristo como sendo a

encarnação do Deus vivo.

Em específico abordaremos essa perspectiva com base no Evangelho de João,

já que o texto utilizado pelo pregador está no Evangelho de João, capítulo 2, versículos

de 1 a 11. Assim, o Evangelho de João narra Jesus como sendo o Cristo, ou seja, o

Filho do Deus vivo. Vale aqui ressaltar que Jesus é um nome comum, assim como

temos José, Carlos, etc., nos nossos dias. O que diferencia a Jesus dos demais é o

fato de ele ser o Cristo, aquele que fora prometido nos Livros do Antigo Testamento,

e que viria a Terra para a salvação e libertação dos pecados.

Apresentar a Jesus como Deus e como o transformador das vidas daqueles

que nEle creem é o propósito final do Evangelho de João. Isso é enfatizado no capítulo

20: 31: “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e para que crendo,

tenhais vida em seu nome”.

Estudiosos da Bíblia apontoam para essa afirmação. Champlin (1987, p.258),

por exemplo, afirma que mesmo que não houvesse tal versículo seria possível chegar

a esse propósito do autor, isso porque todo o conteúdo do evangelho aponta para

esse objetivo. Macarthur (2006, p.17-18) salienta que esse versículo traz um propósito

14

duplo: apologético (para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus) e

evangelístico (e para que, crendo, tenhais vida em seu nome), temas que também são

bastante abordados no texto do pregador.

A fim de manter o seu propósito evangelístico, João usou o verbo acreditar

cerca de uma centena de vezes, isso para deixar claro que todo aquele que crer em

Jesus receberá a salvação. Alguns textos onde ocorre o uso do verbo acreditar: João,

capítulo 3: 15-16, 36; 4: 14; 5:24, 39-40; 6:27, 33, 35,40, 47-48, 54, 63, 68; 10:10, 28;

capítulo 14: 6; 17: 2-3; 20:31.

O objetivo apologético de João, inseparável de seu propósito evangelístico, era

convencer seus leitores da verdadeira identidade de Jesus. Ele cita Jesus como o

Deus encarnado (João, capítulo 1: 1, 14; capítulo 8: 23, 58; capítulo 10: 30; capítulo

20: 28), como o Messias (João, capítulo 1:41; capítulo 4: 25-26) e como o Salvador

do mundo (João, capítulo 4:42). Para demonstrar a divindade de Jesus, João, assim

como os demais evangelistas, narra repetidamente os sinais miraculosos de Jesus,

como por exemplo nas passagens: João, capítulo 3: 2; capítulo 6: 2, 14; capítulo 7:31;

capítulo 9: 16; capítulo 11: 47; capítulo 20: 30.

O que diferencia João dos demais evangelistas é que ele inclui oito milagres

que não se encontram nos demais, a saber: a conversão da água em vinho (João,

capítulo 2: 1-11), a cura do filho de um funcionário real (João, capítulo 4: 46-54), a

cura de um homem coxo no tanque de Betesda (João, capítulo 5: 1-18), a alimentação

de cinco mil pessoas (João, capítulo 6: 1-15), o milagre de andar por sobre o mar da

Galileia (João, capítulo 6: 16-21), a cura de um cego de nascença (João, capítulo 9:

1-41), a ressurreição Lázaro (João, capítulo 11: 1-45) e a pesca milagrosa (João,

capítulo 21: 6-11). Além desses, narra o sinal mais convincente de todos: a

ressurreição de Jesus (João, capítulo 20: 1-29) em si.

Hendriksen (2004, p. 54) ressalta que “todo esse material que se encontra

somente no quarto evangelho, centra-se em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, e

seu objetivo é que a igreja creia nele por toda a eternidade”.

Assim evidenciamos que o Evangelho de João apresenta Jesus como o Verbo

Eterno, o Filho de Deus vivo, aquele que dá o dom da salvação e da transformação

da vida para todos que nEle crer.

Uma vez averiguado o objetivo principal do Evangelho de João, cabe-nos

analisar o texto utilizado em si, ou seja, o capítulo 2: 1-11, do próprio Evangelho de

João.

15

Para tanto, a primeira análise que deve ser feita é sobre a delimitação da

perícope, já que a delimitação da perícope é uma tarefa de suma importância, visto

que, a partir dessa delimitação são estabelecidas fronteiras para o desenvolvimento

do estudo de qualquer parte do texto bíblico. Como define Gilberto (1998, p.95),

“perícope é um termo grego que significa ‘cortar ao redor’” ou seja, é uma parte de um

determinado texto que é separada para ser estudada.

Uma das razões pelas quais há a necessidade de delimitar-se o início e o fim

do texto, no dizer de Wegner (1998, p.84) é o fato de que os livros neotestamentários

foram redigidos em escrita contínua, sem qualquer separação entre as palavras ou

qualquer outra forma de divisão. Outra razão para esta parte do estudo é que títulos

e divisões nas edições da Bíblia são feitos por editores, o que pode acarretar dois

fenômenos: uma má delimitação, o que levaria, a uma quebra da unidade textual,

isolando-se versículos de seu contexto, ou ainda, algo oposto que é o ajuntamento de

textos que deveriam estar separados.

Tendo destacado tal necessidade, observamos que o texto que ora nos

propomos a estudar, João, capítulo 2: 1-11, tem o início aparentemente de fácil

delimitação por vários fatores que destacaremos, no entanto, entendemos que seu fim

exige um pouco mais de atenção.

Apresentamos aqui o texto de João, capítulo 2: 1-11, (Bíblia de Genebra, 2009,

p. 1374):

1. Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e estava ali a mãe de Jesus;

2. e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento. 3. E, tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. 4. Respondeu-lhes Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é

chegada a minha hora. 5. Disse então sua mãe aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. 6. Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos

judeus, e em cada uma cabiam duas ou três metretas. 7. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em

cima. 8. Então lhes disse: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E eles o fizeram. 9. Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo

donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo

10. e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.

11. Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.

16

De acordo com o estudioso de textos bíblicos, Silva (2000, p. 70-72), para

delimitar o início desta perícope notamos que alguns critérios podem facilmente ser

destacados em relação à perícope anterior:

a. Tempo e espaço

A expressão “três dias depois” deixa claro para quem lê que se trata de outro

evento. Hendriksen (2004, p. 155), afirma que este relato ocorreu três dias depois de

Jesus ganhar mais dois discípulos, Filipe e Natanael, o que nos leva a ressaltar a

questão de espaço, visto que é perceptível o fato de que quando Jesus encontrou tais

discípulos havia decidido partir para a Galileia. O evento da perícope estudada ocorre

já na Galileia, portanto, verificamos eventos ocorridos em diferentes datas e lugares.

b. Actantes ou personagens

Constatamos ainda o aparecimento de alguns personagens que não aparecem

na perícope anterior, como: Maria, mãe de Jesus, os serventes que encheram de água

as talhas, o mestre sala que provou a água transformada em vinho. Quanto aos

discípulos que o acompanhavam não temos condições de saber se eram os mesmos

que estavam na viagem até a Galileia ou se houve acréscimos de outros, incluindo

até mesmo Filipe e Natanael.

c. Argumento

Algumas palavras identificam o início de uma nova perícope, as quais não

encontramos aqui, no entanto, é nítido que há a mudança de assunto entre a perícope

em foco e a perícope anterior.

A perícope estudada relata um casamento em que Jesus realiza seu primeiro

milagre, enquanto que a perícope anterior descreve o encontro de Jesus com duas

pessoas que posteriormente se tornarão seus discípulos.

Tendo delimitado o início da perícope, nos dirigimos para o seu final. Quanto

ao seu fim entendemos que, diferentemente da maioria das edições da Bíblia em

nossa língua, ela não termina no versículo 12 e sim no versículo 11. Bíblias como as

versões ARA (Almeida Revista e Atualizada), NTLH (Nova Tradução da Linguagem

de Hoje) consideram o versículo 12 como o final da perícope. Já a versão NVI (Nova

Versão Internacional), assim como nós, considera o versículo 11.

Tal afirmação se dá pelos seguintes critérios:

17

a. Tempo e espaço

A existência de um advérbio de tempo (no grego) no versículo 12, “depois

disto", indica o início de uma nova perícope, associado a isso está o fato de que nesse

versículo Jesus está “descendo” para Cafarnaum, o que significa que ele estava em

viagem ou na cidade. Ou seja, Jesus já não estava mais no local da festa do

casamento.

b. Actantes ou personagens

Outro elemento a ser destacado é o aparecimento, no versículo 12, de

personagens que não estão presentes na festa em Cafarnaum, os irmãos de Jesus.

Destacamos ainda, que o próprio versículo 11 conclui o tema da perícope quando diz

“com este, deu Jesus princípio a seus sinais...”. Diante dos critérios expostos, a

perícope deve ser delimitada entre os versículos 1 a 11, tal qual fizera o pregador ao

desenvolver seu texto.

Um outro aspecto que deve ainda ser considerado a respeito do texto do

Evangelho de João é a definição do título da perícope. Como vimos anteriormente, os

livros neotestamentários foram redigidos em escrita contínua, ficando a cargo dos

editores das diversas traduções bíblicas escolher o título a ser aplicado.

No caso da perícope do Evangelho de João, capítulo 2: 1–11, a grande maioria

opta pelos títulos “As bodas de Caná” ou “As talhas de Caná”. Contudo, como veremos

ao analisar o local dos acontecimentos e com base nos estudos que realizamos sobre

o tema principal de todo Evangelho de João, a ênfase do título não deva ser “as bodas”

e, tão pouco, “as talhas”.

Para tanto, consideremos primeiro o local onde Jesus realiza o milagre: Caná

da Galileia, que é mencionada apenas nesse Evangelho. Champlin (1987, p. 293)

ressalta que ela é assim chamada para ser distinguida de outra Caná que havia

naquele tempo. Afirma ainda que se trata de uma aldeia Galileia, das terras altas, a

oeste do Mar da Galileia. Essa aldeia também é mencionada no Evangelho de João,

capítulo 21: 2, como sendo o local onde Natanael, discípulo de Jesus, habitava e, por

mais uma vez, no mesmo Evangelho de João, capítulo 4: 46, quando Jesus cura o

filho de um oficial.

Ainda que tenhamos o nome do local, é impossível sabermos a localização

exata onde esse casamento aconteceu. Alguns estudiosos, dentre eles MacArthur

(2006, p.87), acreditam que provavelmente deva ser identificada com a moderna

18

Khirbet Qana, algumas ruínas desabitadas, cerca de 15 quilômetros ao norte de

Nazaré.

Em relação a ocasião, temos um casamento. O casamento judaico era um

evento que em certas ocasiões se prolongava por muitos dias. A respeito dele

MacArthur (p. 87), explica:

“Ao contrário dos casamentos modernos tradicionalmente pagos pela família da noiva, o noivo era responsável pelas despesas da celebração. O casamento marca o fim do período do noivado. Durante este período, que durou vários meses, considerava-se que o casal estava legalmente sendo marido e mulher (Mateus 1: 18-19 refere-se a José como esposo de Maria, durante o período do namoro) e apenas o divórcio poderia acabar com este estado (cp. Mt. 1:19). No entanto, eles não viviam juntos nem tinha consumado o casamento durante este período (cp. Mt. 1:18). Sobre a noite da cerimônia, primeiro o noivo e seus amigos iam para a casa de noiva. Em seguida, eles acompanhavam a noiva e seus convidados para a casa do noivo, onde a cerimônia e o banquete teria lugar (cf. Mateus 25: 1- 10.). A celebração, geralmente no domingo, terminava com o casamento real”.

Dessa forma, durante a cerimônia, acabar o vinho era considerado uma ofensa

séria aos convidados, tendo indícios de que seria até mesmo possível a abertura de

um processo contra o noivo por parte dos parentes da noiva (CARSON, 2007, p. 169).

Considerando essas informações, percebemos que a ênfase do texto não está

nem nas “talhas” e, tão pouco, nas ‘bodas’, afinal, era corriqueiro ter muito vinho em

talhas em casamentos, assim como, poderia faltar também o vinho em qualquer deles.

Dessa maneira a ênfase do texto é a ação de Jesus para demonstrar àquele grupo de

pessoas que ele era o Filho de Deus vivo. Portanto, o título que define o acontecimento

com maior proximidade é: “O milagre de Jesus em uma boda” ou, para mais se

aproximar das traduções optadas pelos editores, “O milagre de Jesus nas bodas de

Caná”.

19

2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DO ESTUDO

2.1. Contextualização semiótica

Como já dissemos, pretendemos basear teoricamente nosso estudo na

semiótica discursiva. Segundo Barros (2005, p.11), “A semiótica tem por objeto o

texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para

dizer o que diz”. Tendo como objetivo analisar o sermão de C. H. Spurgeon, o nosso

objeto de estudo é o texto. Na análise de um texto é preciso considerar incialmente

que todo texto apresenta um plano de expressão e um plano de conteúdo. O conteúdo

de um texto é imanente e se manifesta por meio da expressão, em nosso caso, por

meio da expressão linguística. De acordo com a semiótica, o plano de conteúdo de

um texto se organiza de acordo com um percurso gerativo de sentido. Esse percurso

se apresenta em três níveis, que se desdobram do mais abstrato ao mais concreto: o

nível fundamental > o nível narrativo > e o nível discursivo. Segundo o primeiro nível,

o fundamental, o texto se resume a uma categoria semântica definida por dois termos

opostos. Segundo Barros (p.14), “No nível das estruturas fundamentais, é preciso

determinar a oposição ou as oposições semânticas a partir das quais se constrói o

sentido do texto”. Esses dois termos semanticamente opostos vão, no nível narrativo,

ser assumidos como objetos de valor por sujeitos, estabelecendo estruturas

narrativas5 de conjunção (posse) ou de disjunção (perda). Novamente, de acordo com

Barros (p. 20), a semiótica

Propõe duas concepções complementares de narrativas: narrativa com mudança de estados, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos; narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorre a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos.

5 Se anteriormente empregamos a palavra narrativa em sentido lato, isto é, como um tipo de composição textual, aqui o termo tem o sentido específico que lhe é atribuído na semiótica, por conta do conceito de narratividade.

20

Por fim, no nível discursivo, no dizer de Fiorin (2013, p. 55) “os esquemas

narrativos são assumidos pelo sujeito da enunciação que os converte em discurso”.

Essa perspectiva da enunciação constitui a sintaxe discursiva, em cujo âmbito

estudaremos as projeções das categorias da enunciação no enunciado e as relações

entre enunciador e enunciatário. No âmbito da semântica discursiva, os esquemas

narrativos abstratos são revestidos por temas que, por sua vez, podem veiculados por

meio de figuras. Constituem-se, assim percursos temáticos (não revestidos por

figuras) ou percursos figurativos (revestidos por figuras). Explicando esses conceitos,

Fiorin (p. 90) afirma: “Assim, tematização e figurativização são dois níveis de

concretização do sentido. Todos os textos tematizam o nível narrativo e, depois, esse

nível temático poderá ou não ser figurativizado”.

O nosso estudo restringe-se ao nível discursivo. Trataremos, por isso, somente

da caracterização enunciativa do sermão objeto de estudo e de sua estruturação

temática e figurativa. Os fundamentos teóricos específicos para a análise do sermão,

de acordo essas duas perspectivas do nível discursivo, apresentaremos no início dos

próximos dois capítulos.

2. 2. Contextualização no continuum da fala à escrita

O sermão “As Talhas de Caná”, que será o objeto deste estudo, nos vem

apresentado num texto escrito, que se destina, portanto, a leitores em geral. No

entanto, como será visto, pelos traços discursivos que caracterizam o texto, é possível

observar que ele se destina a um público específico como o provável destinatário. O

sermão é um texto em linguagem simples e explicitamente direcionada a um

destinatário em segunda pessoa (você, vocês). Além disso o texto vem estruturado

por figurativizações e tematizações da vida cotidiana de pessoas simples, sem

conhecimento de formação bíblica ou exegética. Com um destinatário assim

caracterizado, explica-se que texto escrito tem fortes características de oralidade.

Para tratar dessas marcas de oralidade é que apresentamos os fundamentos teóricos

que seguem.

21

Conforme Marcushi (2001, p.45-46) relata, os estudos sobre a relação entre

fala e escrita, embora limitados e dispersos, foram intensificados nos últimos tempos

e os achados mais notáveis indicam que:

as semelhanças são maiores do que as diferenças tanto nos aspectos estritamente linguísticos quanto nos aspectos sociocomunicativos;

as relações de semelhanças e diferenças não são estanques nem dicotômicas, mas contínuas ou pelo menos graduais;

as relações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no contínuo (ou na grade) dos gêneros textuais;

muitas das características diferenciais atribuídas a uma modalidade são propriedades da língua;

não há qualquer diferença linguística notável que perpasse o contínuo de toda a produção falada ou de toda produção escrita, caracterizando uma das duas modalidades;

tanto a fala como a escrita, em todas as suas formas de manifestação textual, são normatizadas;

tanto a fala como a escrita não operam nem se constituem numa única dimensão expressiva mas são multissistêmicas;

uma das características mais notáveis da escrita está na ordem ideológica da avaliação sociopolítica em sua relação com a fala e na maneira como nos apropriamos dela para estabelecer, manter e reproduzir relações de poder, não devendo ser tomada como intrinsecamente ”libertária”.

Essa proposição de Marcuschi revela que a dicotomia fala e escrita é ingênua,

pois se limita a considerar somente o aspecto medial das duas formas de

manifestação linguística, o que limita também a produtividade de interpretação da

oralidade e da escrita.

Diante desse fato, Marcuschi (2001), apoiado em estudos de Koch e

Oesterreicher (1985), que, de forma resumida, dizem que condições de proximidade

geram interações que resultam em textos marcados pela oralidade, e condições de

distanciamento concebem textos caracterizados pela “escrituralidade”, propõe uma

nova perspectiva para a distinção entre fala e escrita.

Segundo essa perspectiva o que é falado e escrito não mais se restringe ao

aspecto medial. O texto falado não é unicamente aquele expresso fonicamente, mas

é também a manifestação por escrito que contém marcas de oralidade. Assim,

também, o texto escrito não é unicamente aquele expresso graficamente, mas é

também a manifestação falada que contém marcas da escrita. Nesse sentido, além

da distinção medial entre fala e escrita, é preciso considerar um aspecto conceptual

nessa distinção. Têm-se então dois aspectos a considerar na distinção entre fala e

22

escrita: a fala e a escrita mediais e a fala e a escrita conceptuais. A este trabalho

interessa explicar esta última distinção.

Um texto seria identificado conceptualmente falado se o usuário da língua o

concebesse como fala, não importando seu caráter fônico ou gráfico. Por outro, um

texto seria identificado conceptualmente escrito se o usuário da língua o concebesse

como escrita, também não importando seu caráter fônico ou gráfico.

Para exemplificar esse caráter conceptual da fala e da escrita, observe-se,

primeiramente, uma conversa de corredor e um texto escrito no WhatsApp. A conversa

de corredor seria fala tanto do ponto de vista medial quanto do conceptual, porque os

usuários da língua assim a percebem. Já o texto do WhatsApp é, do ponto de vista

medial, escrito, mas conceptualmente ele é fala, já que os usuários da língua e dos

que usam o WhatsApp para interagir com os outros, assim o percebem. E cada vez

mais os usuários do WhatsApp são criativos para que ele realmente tenha a

característica de fala.

Observe-se, agora, uma conferência e um texto jurídico. A conferência é

medialmente um texto falado, mas conceptualmente ela é escrita, porque os traços

que a caracterizam se identificam com os traços de um texto escrito. Por isso o usuário

da língua vai identificá-la como escrita, ainda que seja expressa oralmente. O texto

jurídico, por sua vez, é escrito, medial e conceptualmente.

Diante dessas considerações, Marcuschi (2001, p. 37) afirma que os textos não

podem ser classificados dicotomicamente em falados e escritos, mas eles, do ponto

de vista conceptual, são falados ou escritos em grau maior ou menor,

independentemente de sua expressão medial. Nesse sentido, a classificação dos

textos, falados e escritos, ocorre, segundo Marcuschi (p.37), num continuum, isto é,

do ponto de vista da oralidade e da escrita, os textos distribuem-se do polo da fala ao

polo da escrita. O texto prototípico do polo da fala é, sem dúvida, o da conversa, e o

prototípico do polo da escrita poderia ser o texto jurídico. Entre esses dois polos

podemos distribuir todos os gêneros textuais.

Marcuschi (2001, p.41) representa essa distribuição ao longo de um continuum

em um quadro, o qual está apresentado com algumas adaptações:

23

o

Quadro 2: Representação do continuum dos gêneros na fala e na escrita

Como apresentado no quadro 2 e explicado acima, as manifestações escritas,

como e-mail, avisos, cartas pessoais e, no caso destacado, WhatsApp, são, do ponto

de vista medial, escritos, mas conceptualmente eles são fala, pois é como ela é

compreendida. Já a conversa cotidiana, que também está destacada, assim como as

conversas públicas e a conversa telefônica, são fala tanto do ponto de vista medial

quanto do conceptual, porque os usuários da língua assim as percebem.

Observe-se que, no centro do continuum aparecem gêneros de textos dentro

de um círculo oval. Esses gêneros estão aí localizados, porque se caracterizam por

um certo equilíbrio entre traços de oralidade e traços de escrituralidade. O noticiário

de televisão, por exemplo, pretende atingir diferentes públicos, por isso ele não pode

ser informal demais nem pode ter características de um texto formal. Então, para

24

atender a um público maior, os editores dos jornais televisivos cuidam para usar um

vocabulário mais simples. Os mesmos cuidados também acontecem com um texto

medialmente escrito, como é, por exemplo, o anúncio publicitário.

Koch e Oesterreicher (1985), identificam textos conceptualmente falados como

apresentados numa “linguagem da proximidade” e os textos conceptualmente

escritos, como caracterizados por uma “linguagem da distância”. Essa compreensão

dos autores alemães, pode ser associada a princípios de enunciação responsáveis

por efeitos de sentido de proximidade e de distanciamento. Na análise pretendemos

sintonizar esta última perspectiva teórica com a primeira para evidenciar o forte caráter

oral do texto escrito do sermão e, assim, situá-lo no continuum a que nos referimos.

25

3. AS PROJEÇÕES DA ENUNCIAÇÃO NO ENUNCIADO

Para podermos fazer a análise enunciativa do sermão de C. H. Spurgeon,

precisamos definir os principais conceitos que definem o processo da enunciação.

A enunciação é o processo por meio do qual um enunciador eu produz o

enunciado, aqui entendido como texto. O texto é o produto da enunciação. A

enunciação é a ação de um eu, o enunciador, movido pela interação com um tu, o

enunciatário, num tempo agora e num espaço aqui. Segundo Tatit (2002, p.205):

O conceito de enunciador deve ser tomado como uma categoria abstrata, cujo preenchimento, numa manifestação específica, faz emergir o que conhecemos como autor, falante, artista, poeta, etc.; a noção de enunciatário, igualmente, define-se como categoria por meio da qual se manifestam leitores e fruidores de maneira geral.

O eu, o aqui e o agora, isto é, a pessoa, o tempo e o espaço constituem as

categorias da enunciação. Elas são inerentes a qualquer ato enunciativo. Se o

enunciado/texto é resultante da enunciação, esta tem de ser pressuposta por ele. Ao

lermos, interpretarmos e analisarmos o texto, focalizamos não mais a enunciação em

si, mas a projeção de suas categorias no enunciado. A operação dessa projeção

denomina-se debreagem. Há dois tipos de debreagem: a que projeta as marcas da

enunciação no enunciado, instalando nele um narrador em primeira pessoa, e a que

instala no enunciado um narrador em terceira pessoa. O primeiro caso define a

enunciação enunciada; o segundo, o enunciado enunciado. A primeira debreagem é

enunciativa, resultando num texto enunciativo; a segunda é enunciva, e o texto que

ela caracteriza é enuncivo.

Vimos que o enunciador delega a voz, no enunciado, ao narrador. Este, por sua

vez, pode delegar a sua voz ao interlocutor, situação em que uma outra voz toma a

palavra, em discurso direto. O interlocutor, assim como o narrador, pode também se

manifestar de forma enunciativa ou enunciva. Essas diferentes instâncias de

enunciação estabelecem graus de debreagem: a delegação de voz do enunciador

para o narrador constitui uma debreagem de primeiro grau (debreagem externa ao

enunciado); a do narrador para o interlocutor, uma debreagem de segundo grau

(debreagem interna ao enunciado).

26

Essas considerações permitem identificar três instâncias de interação no

processo da enunciação: a relação enunciador /enunciatário, que é exterior ao texto,

pressuposta por ele; já no âmbito do texto, estabelecem-se as relações

narrador/narratário e interlocutor/interlocutário.

Essas relações ficam mais evidentes nesse quadro esquemático, adaptado de

Barros (2002, p.75):

O esquema mostra que, dentro dos colchetes, está o enunciado (o texto). A

relação comunicativa entre enunciador e enunciatário está fora dele, ou seja, é

anterior ao enunciado. Por isso que se diz que o enunciado é o produto da enunciação.

Nele o enunciador é representado pelo narrador (Ndor), cujo destinatário é o narratário

(Ntário). Na ocorrência de discurso direto no texto, diz-se que o narrador delega a voz

ao interlocutor (Intor), que tem como destinatário o interlocutário (Intário).

Observemos agora como esses actantes da enunciação se apresentam no

texto objeto de nosso estudo.

Antes de fazermos a análise é necessária uma observação metodológica. O

texto vem dividido em grandes partes: a primeira, que vai da linha 1 a 104. Essa parte

o próprio pregador considera um prefácio, como ele mesmo diz nesta passagem:

27

Tome estes comentários como uma espécie de prefácio, pois quero mostrar agora os princípios ocultos que se encontram neste texto bíblico e, em seguida, após mostrá-los, apresentar como devem ser aplicados. (102-104)

A segunda parte é o restante do texto, que está, por sua vez, dividida em duas

sub-partes: a primeira, que vai da linha 106 a 356, cujo grande tema é o da obediência;

e a segunda, que trata do modo como os fiéis devem viver a obediência, que vai da

linha 358 a 514. Por fim, o pregador termina o texto com uma exortação final, da linha

515 a 518. Como o texto é muito longo, é impossível analisá-lo em todos os seus

detalhes. Por isso, vamo-nos restringir a destacar os aspectos que nos interessam

para análise, em passagens do texto. Alguns desses segmentos transcrevemos no

texto aqui em construção, outros simplesmente referimos, identificando seus limites

pela numeração das linhas. Comecemos por esta primeira passagem6.

Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o vinho acabou, ele o providenciou com generosidade. Creio que não seja adequado entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. (1 a 7)

O narrador, ao se dirigir a seu narratário, o leitor7 do sermão, trata-o por “você”.

Ora, aquele que diz você só pode ser o eu, o que deixa evidente na primeira frase do

texto que a relação narrador-narratário é a relação eu-você, o que vai se comprovar

na sequência com os verbos “creio” e “estou”, na primeira pessoa do indicativo

presente, que é o tempo da enunciação. Esse tempo também fica explícito adiante,

com o advérbio “hoje”. Essa caracterização interativa mostra que o enunciador

projetou no enunciado a enunciação. A relação eu-você, no tempo agora e no espaço

implícito aqui, produz o efeito de proximidade na interação entre dois interlocutores,

como se fosse uma conversa entre eles. De acordo com Barros (2002, p.23):

A relação entre eu e você caracteriza, por isso mesmo, interações informais, íntimas e espontâneas, na conversação face a face ideal. São características

6 Destacamos na passagem os elementos que serão observados na análise. 7 Embora se possa dizer que originalmente o destinatário do sermão tenham sido ouvintes, usamos aqui leitor, já que, como observamos anteriormente, o objeto de nosso estudo é manifestação por escrito.

28

do franco-falar de Bourdieu (1979), de conversas menos elegantes, distintas, pelos motivos apontados.

Esse efeito de conversa vem intensificado em duas outras ocorrências nesse

parágrafo: o fato de o narratário ser você, no singular, estabelece uma interação entre

dois, o que produz o efeito de privacidade; e a pergunta retórica “Teria sido vinho como

geralmente entendemos ser essa bebida hoje?” Uma pergunta é feita a quem pode

responder, na interação face a face. Por isso, ela instala no enunciado o efeito de

diálogo. São muitas as passagens do texto com esse recurso de oralidade. A seguinte

passagem é mais um exemplo nesse sentido.

Você nem mesmo sabe se já foi salvo nove ou dez vezes. Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês realmente não cresceram (242-252).

O narrador em primeira pessoa vem interpelando seu narratário-destinatário

por você e, na sequência lhe dirige duas perguntas (em destaque). Em geral a

resposta a elas fica implícita, ficando registrada somente na pergunta a referência ao

diálogo. Neste segmento, no entanto, o diálogo vem completo, uma vez que o narrador

dá a voz ao destinatário para responder, em discurso direto, a suas perguntas: “Bem,

nós não estamos crescendo muito.

Nesta outra passagem, bem ao final, o próprio narrador responde à pergunta

que dirige ao destinatário.

Vou dar ênfase semelhante ao próximo princípio: somente a nossa ação não é suficiente. Sabemos disso, é certo, mas deixe-me lembrar-lhe mais uma vez. Eis as talhas e os baldes cheios, e mais do que isso não poderiam estar. Que abundância de água! Nota-se que, na tentativa de enchê-los até a boca, a água escorreu por todo canto. Bem, todas as seis grandes talhas estão cheias de água. Existe algum vinho ali? Nenhuma gota sequer (288-293)

Nesta passagem o diálogo se inverte.

O quarto princípio é que nossa dedicada ação em obediência a Cristo não é contrária, mas necessária, à nossa dependência dele. Vou lhes demonstrar como. Alguns irmãos me dizem: “Veja só! Você promove aquilo que

29

chama de cultos de reavivamento, nos quais tenta despertar os homens por meio de apelos sinceros e discursos entusiasmados. Não vê que Deus faz sua própria obra? Esses esforços seus não passam de uma tentativa sua de tirar a obra das mãos de Deus. A maneira correta é confiar nele e não fazer coisa alguma.” Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada e descrente que conheço (236-246)

É o destinatário que interpela o narrador (Veja só!) e lhe faz a pergunta (em

destaque), à qual este vai responder: “Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição:

confiar nele e não fazer coisa alguma”.

Esse efeito de oralidade produz outro, que é o efeito de proximidade entre

destinador e destinatário. Conversando com seu destinatário, o narrador se aproxima

dele. Às vezes, nessa aproximação, revela-se até certo grau de intimidade, como

mostra esta passagem:

Tudo bem, irmão. Já entendi sua posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada e descrente que conheço

É indiscutível o efeito de sentido de oralidade que esses procedimentos de

interpelação do destinatário produzem no texto. Na sequência toda do sermão, o

narrador mantém esse cenário da enunciação: a relação de um destinador eu com um

destinatário você. Raramente o destinatário-narratário é nomeado por vocês, como

mostra esta passagem:

Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês realmente não cresceram (247-252)

Nomear o narratário por vocês, já tira da relação narrador/narratário o efeito de

privacidade na interação, pois vocês lembra a interação com um público. Há nisso,

30

portanto, um certo efeito de distanciamento. No texto, há somente mais três

passagens com essa característica.

Constatemos na sequência seguinte mais ocorrências da relação padrão entre

um narrador eu e um narratário você.

O que hoje leva este nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado.

Observe-se que a enunciação enunciada continua explícita na fala de um

narrador eu, evidente nas formas verbais “sei” e “estou certo”, no tempo da enunciação

“hoje” e no espaço aqui, marcado por “este nome (aqui)”.

Mas não é só nas marcas da pessoa, do tempo e do espaço que o texto revela

um efeito de conversa, de informalidade. O próprio tema sobre o qual o destinador-

narrador fala no início do sermão sugere ser um tema para se tratar numa conversa

informal e direta, por se tratar, provavelmente, de um tema relacionado ao cotidiano

do público destinatário: o tema do alcoolismo, da embriaguez. Esse tema se apresenta

no percurso figurativo da quantidade de vinho: vinho bom, “vinho natural e verdadeiro”,

uma espécie de “suco da uva suavemente inebriante” do tempo de Jesus, contra o

vinho dos dias atuais, incluído entre “um mar de bebidas mortais” e entre “rios de

bebidas venenosas”. Fica explícito no texto que o pregador está fazendo um

verdadeiro protesto contra o consumo de bebidas alcoólicas nesta passagem: “O tipo

de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas

mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito

de beber”. O fato de tratar desse tema no início do sermão leva a pensar que,

31

provavelmente, o pregador falava para pessoas que, em alguma medida, estivessem

viciadas em bebidas alcoólicas.

Veja-se o tema de mais esta passagem:

Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água.

O narrador se dirige com palavras simples e diretas a seus destinatários,

falando do dos que cursam a universidade e a escola, apresentando sua interpretação

da relação entre estudo e conhecimento e a ordem de Jesus: “enchei as talhas”. É

mais um tema que é próprio para a informalidade de uma conversa.

Na penúltima passagem, o narrador utiliza a primeira pessoa do plural “Se o

nosso grande exemplo” e “nosso amado”. Trata-se de um “nosso” que inclui o eu

destinador e o você/vocês destinatário, que Fiorin (2016, p. 52) chama de “nós

inclusivo”. Com esse recurso o narrador mostra o seu envolvimento com a causa de

Jesus (mostrando que o que ele está falando ele segue) e com o narratário, pois se

inclui, juntamente com os ouvintes, na necessidade de se abster das bebidas

alcóolicas, assim como Jesus o fez.

Para afirmar que Jesus se abstinha da bebida alcoólica e que não disseminaria

ou incentivaria o uso da mesma, o narrador mostra que tem proximidade e até

intimidade com Jesus e, para isso, fala em primeira pessoa do singular: “Sei como

teria agido” e “Estou certo de que não teria contribuído”. Refere-se, assim, ao fato de

que Jesus jamais se teria contaminado com “o mar de bebidas mortais” e contribuído

para que as pessoas consumissem bebidas alcoólicas.

Toda essa configuração enunciativa que até aqui fizemos, nos remete ao tema

da oralidade na escrita. O que aqui observamos é que o sermão de C. H. Spurgeon

tem características que o situam no continuum dos gêneros textuais apresentados por

Marcuschi, na fundamentação teórica. Como vimos, o sermão é, do ponto de vista

32

medial, um texto escrito, mas, conceptualmente, ele percebido pelo usuário da língua,

pelo leitor e analista, como um texto em certa medida falado, pois contém diversas

marcas de oralidade, as quais permitem até supor uma determinada caracterização

de seus destinatários. Considerando o referido continuum, que distribui os gêneros

textuais do polo da oralidade ao polo da escrita, podemos situar o sermão aqui em

análise numa posição intermediária, com um grau de oralidade moderada, o que,

permite que a linguagem por ele usada seja adequada a diferentes públicos, podendo

atingir, tanto pessoas familiarizadas com textos mais complexos quanto outras sem

maior domínio de fala mais elaborada.

Observemos a agora a passagem seguinte:

Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por que não ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo (23-42)

Se nas passagens anteriores destacamos a debreagem de primeiro grau, ou

seja, a delegação de voz do enunciador para o narrador, queremos, nessa passagem,

focalizar a debreagem de segundo grau, isto é, a delegação de voz do narrador para

interlocutor.

Mas antes disso queremos aproveitar essa passagem para retomar o que já

constatamos nas duas passagens anteriores, com especial ênfase nas perguntas

retóricas: "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. “Mas em que você está

33

pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem,

quando muito, umas cinquenta pessoas?” E, mais adiante: “Também por que não

ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque?”.

Todas elas mostram, no enunciado, um pregador dirigindo-se a seus ouvintes

e lhes fazendo perguntas, como se esperasse delas uma resposta. As perguntas

retóricas são um recurso que produz um efeito de sentido de oralidade, no caso do

sermão, de um diálogo com os destinatários. Com esse efeito sintonizam também a

explicitação do destinador (Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que

seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa) e do destinatário você/vocês

(Quanto a isso, cada um - de vocês - pense por si mesmo) e a referência ao tempo

da enunciação, identificado nas passagens “nos dias de hoje”.

Ainda, mantendo-nos na retomada de aspectos já analisados, queremos

reafirmar que o tema dessa passagem trata da durabilidade/não durabilidade dos

alimentos e das bebidas, que é um tema comum à vida cotidiana das pessoas e,

portanto, um tema próprio para tratar na informalidade e simplicidade de uma

conversa. Ao justificar a quantidade de vinho produzida por Jesus, o pregador-

narrador, além de considerar o grande número de pessoas que, naquele tempo,

frequentavam os casamentos, lembra também a durabilidade do vinho. Mesmo se

sobrasse, ele não estragaria se fosse guardado por um tempo. O mesmo já não

ocorreria com os peixes e os pães, do milagre da multiplicação dos pães, que teriam

de ser consumidos logo, caso contrário estragariam e mofariam.

Por fim, vamos ao tópico que queremos destacar nessa passagem: a

delegação de voz do narrador para o interlocutor. Observemos dois momentos: “‘Era

preciso tudo isso?’, questiona alguém” e ‘Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco,

seria uma quantidade enormemente excessiva’ (24-26), argumenta-se. No primeiro, o

narrador delega a voz a um interlocutor indefinido (alguém) que “questiona”: “Era

preciso tudo isso?”, e, no segundo, um interlocutor impessoal “argumenta”: “Mesmo

que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”.

Colocar outras vozes a falar no texto, além da voz do narrador, além de

sintonizar com o caráter dialogal que já apontamos acima, produz um efeito realidade,

conforme afirma Barros (2005, p. 58):

Na sintaxe do discurso, os efeitos de realidade decorrem, em geral, da desembreagem interna. Quando, no interior do texto, cede-se a palavra aos

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interlocutores, em discurso direto, constrói-se uma cena que serve de referente ao texto, cria-se a ilusão de situação “real” de diálogo.

Também Maingueneau (2001, p.142-143) fala dos efeitos de sentido

produzidos pelo discurso direto, entre os quais destaca:

criar autenticidade, indicando que as palavras relatadas são aquelas realmente proferidas; distanciar-se: seja porque o enunciador citante não adere ao que é dito e não quer misturar esse dito com aquilo que ele efetivamente assume; seja porque o enunciador que explicitar, por intermédio do direto sua adesão respeitosa ao dito, fazendo ver o desnível entre palavras prestigiosas, irretocáveis e suas próprias palavras (citação de autoridade); mostrar-se objetivo e sério; (...) dar um caráter oral e espontâneo à frase.

O recurso de delegação de voz ao interlocutor, em discurso direto é muito

usado na segunda parte (a partir da linha 106), quando o narrador dá a voz a Jesus,

como se pode verificar nesta passagem:

I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali esta um homem com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão (Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te (Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um mandamento do evangelho (106-123)

Observa-se que, nessa passagem, em nenhum momento o narrador relata a

fala de Jesus em discurso indireto. Aliás, isso não só acontece na passagem acima,

mas no texto inteiro. Sempre que Jesus fala, o narrador lhe concede a voz em discurso

direto. Além do efeito de realidade que esse fato produz, ele também revela uma

postura do narrador de “adesão respeitosa ao dito, fazendo ver o desnível entre

palavras prestigiosas, irretocáveis e suas próprias palavras”, no dizer acima citado de

35

Maingueneau. Verifica-se por parte do narrador-pregador um distanciamento

respeitoso e humilde diante de Jesus, que é Deus. Não cabe ao homem tomar a voz

de Jesus. É Ele próprio que deve falar.

Dar a voz ao interlocutor, no caso dessa passagem, é determinada também

porque ela trata do tema da obediência. Jesus dá ordens antes do exercício da

realização de milagres, como diz o texto: “Em primeiro lugar: como norma, quando

Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. (...) uma palavra de

comando precede uma palavra de poder”. Ora, para que sejam dadas as ordens de

Jesus, o narrador vê-se obrigado a dar a voz ao interlocutor em discurso direto. E, por

fim, como é da natureza de um sermão citar a palavra bíblica, de Jesus, de Deus, dos

profetas, pode se dizer que o discurso direto é uma marca do gênero discursivo

“sermão”.

Na seguinte passagem,

Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador.

o destinador-narrador continua interagir com o destinador-narratário, tratando-

o por você, produzindo o efeito de sentido que já apontamos acima. O que se destaca

agora é o uso dos verbos no imperativo: “Não faça”, “vá e faça”, “tenha”, “não se

deixe”, “ande” “faça”, “tenha”, “seja”, “não se deixe”, “ande”, “coloque” “faça-a”. Em

todas essas situações, o narrador, em seu papel de pregador, admoesta, aconselha,

ordena seu destinatário você a agir com simplicidade e sem ostentação ao servir

Jesus.

O uso do imperativo é a característica mais evidente nas duas sub-partes da

segunda parte do sermão, a que trata da natureza da obediência e de sua prática na

vida dos cristãos destinatários do narrador, a partir da linha 106.

36

A primeira parte, que trata da natureza da obediência, já analisamos acima,

quando destacamos as ordens de Jesus que antecipam seus milagres. Na sequência

(a partir da linha 124), o narrador dá continuidade a citações de textos bíblicos do

Antigo e do Novo Testamento, em que os interlocutores dão ordens que antecedem

milagres. Até a linha 160, o narrador concentra essa ordem na palavra de Jesus que

manda crer, o que ele denomina de “obediência da fé”, citando o apóstolo Paulo (Rm

16.26). E quando se pergunta: “Mas por que uma ordem?” a sua resposta é a seguinte

“É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser

discípulo” (134-135). Portanto, à ordem de que o narrador fala não cabe

questionamento, ou seja, ela não é da ordem racional. Em resumo, é uma questão de

crer, ou seja, de fé. Na análise sobre aspectos da semântica discursiva, algumas

dessas questões serão retomadas.

37

4. TEMATIZAÇÃO E FIGURATIVIZAÇÃO DO ENUNCIADO

Como já se disse, o texto em estudo é um sermão baseado na narrativa bíblica

das Bodas de Caná, onde João, o autor do Evangelho, descreve com detalhes o

ocorrido no casamento. Essa narrativa, assim como as parábolas8 dos Evangelhos,

se apresenta na forma de um enredo, isto é, no desdobramento de ações de

personagens no espaço e no tempo. Os textos narrativos podem veicular um ou mais

temas (princípios, doutrinas, verdades, valores) por meio de figuras ou percursos

figurativos, os quais iremos analisar a seguir em nosso estudo.

Antes de definirmos o que é figura e tema, e o que é percurso figurativo e

percurso temático, queremos dizer que esse nível do estudo do texto constitui a

semântica discursiva. Resumidamente pode-se dizer que a semântica discursiva

consiste em dar realidade temática e figurativa às possibilidades que as estruturas

abstratas do nível narrativo oferecem. Temas e figuras são “enriquecimentos

semânticos” utilizados pelo enunciador, afim de concretizar o sentido almejado

(BARROS, 2003, p. 206). A disseminação dos temas e a figurativização deles são

tarefas do sujeito da enunciação para assegurar a coerência semântica do discurso e

criar efeitos de sentido sobretudo de concretude e realidade (BARROS, 2011, p. 66).

Temas são as ideias, são os conceitos de que trata o texto. Segundo Fiorin (2013, p.

91), “Tema é um investimento de natureza puramente conceptual, que não remete ao

mundo natural”. Os temas se caracterizam por serem abstratos, isto é, na sua

formulação usam-se predominantemente palavras de sentido abstrato. As figuras são

elementos do texto que se referem à realidade concreta, são substantivos, verbos,

adjetivos concretos. É por meio delas que o enunciador veicula os temas abstratos.

Fiorin (2013, p. 91) afirma que “a figura é o termo que remete a algo existente no

mundo natural: árvore, vagalume, sol, correr, brincar, vermelho, quente”. E completa

dizendo: “a figura é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema

de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural”.

8 A diferença entre uma narrativa bíblica, como essa do casamento, e uma parábola, está no fato de que as narrativas descrevem um determinado acontecimento na vida de Jesus e, no caso das parábolas, são narrativas proferidas pelo próprio Jesus “cuja a finalidade é transmitir verdades morais e religiosas” (Reifler, 2002, p. 68)

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A função das figuras é, portanto, a de produzir um efeito de sentido de

concretude e de realidade. Um texto no qual os temas, em sua maioria, vêm

representados por meio de figuras é denominado de texto figurativo. E quando o texto

se apresenta em sua forma temática, predominantemente sem a cobertura de figuras,

este será um texto temático. Em geral os textos não são inteiramente temáticos ou

figurativos. Eles podem ser figurativos ou temáticos em proporção maior ou menor.

Em geral, os temas não são representados por figuras isoladas, mas por um

conjunto de figuras que se relacionam coerentemente entre si. É preciso verificar as

relações que as figuras estabelecem entre si, perceber como o texto é tecido, pois o

que irá interessar na análise textual é esse encadeamento de figuras, esse tecido

figurativo. Fiorin (p.97) destaca: “ler um texto não é aprender figuras isoladas, mas

perceber relações entre elas, avaliando a trama que constituem”. A esse

encadeamento de figuras dá-se o nome de percurso figurativo. Podemos dizer que

um percurso figurativo se dá quando as figuras tecidas dão sentido a um tema. Vale

ressaltar que um texto pode ter mais que um percurso figurativo.

Percurso temático, no dizer de Fiorin (p. 104) é “um conjunto de lexemas

abstratos, que manifesta um tema mais geral”. Assim como os percursos figurativos,

os percursos temáticos também devem manter uma coerência interna.

Exemplifiquemos essas noções com base na narrativa que deu origem

ao sermão do pregador C. H. Spurgeon, a qual retomamos aqui (Bíblia de Genebra,

2009, p. 1374):

1. Três dias depois, houve um casamento em Caná da Galileia, e estava ali a mãe de Jesus;

2. e foi também convidado Jesus com seus discípulos para o casamento. 3. E, tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. 4. Respondeu-lhes Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é

chegada a minha hora. 5. Disse então sua mãe aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser. 6. Ora, estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos

judeus, e em cada uma cabiam duas ou três metretas. 7. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em

cima. 8. Então lhes disse: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E eles o fizeram. 9. Quando o mestre-sala provou a água tornada em vinho, não sabendo

donde era, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água, chamou o mestre-sala ao noivo

10. e lhe disse: Todo homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho.

11. Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele.

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Observe-se que o texto, justamente por ser uma narrativa, é

predominantemente figurativo. Só não é figurativo o último versículo, que é um resumo

temático da parábola toda. Nos primeiros três versículos, o narrador apresenta o

tempo (Três dias depois), o espaço (em Caná da Galileia, num casamento) e os

personagens (Jesus, a mãe de Jesus e discípulos) do enredo que vai seguir a partir

do versículo 3 até o versículo 10. São vários os percursos figurativos que convergem

para o tema que se torna explícito no último versículo. Adiante analisaremos a

interpretação desses percursos feita pelo pregador cujo texto iremos analisar. O tema

da narrativa, portanto, é a manifestação da glória de Jesus Cristo e a fé que nele

tiveram os discípulos. Na interpretação dos exegetas, entende-se por manifestação

da Glória, a revelação da natureza divina de Jesus, que levou seus discípulos a crerem

nele. Nesse sentido Carson (2007, p. 136) diz que Jesus é “a auto-expressão de

Deus”.

O percurso figurativo principal que dá cobertura para esse tema é a

transformação da água em vinho, isto é, o milagre. Milagre é um acontecimento que

não se explica pela lógica das leis da natureza. Cristo, como autor do milagre, revela-

se com poderes de realizar obras que o homem comum não tem. Ele, portanto, não é

um homem comum. Ele é Deus. Essa revelação ocorre por meio do milagre que

exerce sobre os discípulos um poder de convencimento tal que creram nele, ou seja,

tiveram fé nele.

Não nos cabe aqui discutir a noção de crer, de ter fé no sentido religioso ou

exegético. Nosso trabalho pretende se limitar a definir os conceitos com base nos

fundamentes da semiótica. E nesse sentido, apoiamo-nos em Greimas e Courtés

(2008). Em seu Dicionário de semiótica, nos verbetes “crer” (p. 107) e “modalidades

epistêmicas” (p. 172), distinguem o fazer crer do crer. O primeiro é trabalho do

enunciador de persuadir (fazer-crer) o enunciatário a “assumir posições cognitivas

formuladas pelo enunciador”. Já, ao crer, “o enunciatário, por sua vez, finaliza o seu

fazer interpretativo por um juízo epistêmico (isto é, por um crer) que ele emite sobre

os enunciados de estado que lhe são submetidos”, isto é, sobre as referidas “posições

cognitivas” formuladas pelo enunciador. Em resumo, “fazer-crer é obra do enunciador,

encarregado do fazer persuasivo”, e crer é obra do enunciatário que exerce seu fazer

interpretativo.

Quando falamos aqui em crer e fazer crer, não nos referimos ao sentido

específico do crer no sentido religioso, ao que se chama, nesse sentido de fé. Fazer

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crer é um procedimento discursivo inerente a qualquer discurso cujo objetivo é

persuadir. Por exemplo, o discurso jornalístico vale-se de diferentes recursos para que

os leitores creiam na verdade das notícias. O discurso científico também usa recursos

para produzir efeitos de verdade, ou seja, para persuadir o leitor a crer no objeto

científico apresentado. Nenhum discurso, em última análise, foge desses

procedimentos do fazer crer, nem mesmo o religioso.

Nesse sentido, pode-se dizer que a transformação da água em vinho (a

realização do milagre) constituiu um procedimento argumentativo de Jesus para fazer-

crer, ou seja, para levar seus discípulos a crerem que ele era Deus.

Devemos fazer uma distinção entre crer num objeto de conhecimento

demonstrável pela lógica racional e crer em algo que a lógica racional não explica. É

esse último crer que define a fé no sentido religioso. Essa “racionalidade” de ordem

da fé religiosa, não admite questionamentos. Ela exige obediência incondicional. E

isso o narrador do sermão enfatiza muito, particularmente nas duas últimas partes.

Antecipemos, nesse sentido, algumas passagens:

Ele nos ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo (132-153) Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé (Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência dos homens, dando ordens reais (144-147) Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, sim, obedecidas.

Até aqui definimos os conceitos fundamentais de acordo com os quais faremos

a análise do sermão. O que imediatamente se observa na leitura desse sermão é o

seu caráter predominantemente figurativo. Trata-se, portanto, assim como a narrativa

original de João, de um texto figurativo. Faremos agora o estudo dos procedimentos

figurativos e de sua interpretação temática. Seguiremos a linearidade do texto de

Spurgeon. Em termos gerais, pode-se dizer que o pregador parte de um percurso

figurativo da narrativa de João, para, a partir dela, criar novos percursos figurativos e,

então, fazer a correspondente leitura temática.

Vejamos este segmento inicial do sermão:

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Segmento:

Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o vinho acabou, ele o providenciou com generosidade.

Trata-se uma retomada de um percurso figurativo do texto bíblico. A partir dele,

o pregador constrói nova narrativa, como se vê a seguir.

Segmento:

Creio que não seja adequado entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. O que hoje leva este nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado.

O narrador constrói a sua narrativa, partindo da figura principal da narrativa de

João, o vinho. Começa qualificando o vinho, dizendo que era um “bom vinho”, por ser

obra de Jesus (pois ele não produziria nada que não fosse o melhor). Na sequência,

ele considera que o vinho do milagre não era um vinho como a bebida é conhecida

atualmente. A bebida atual é “alcoólica” e leva à embriaguez e ao vício do alcoolismo.

Já o vinho na época de Jesus seria algo como um “suco da uva suavemente

inebriante”, que, em geral, não levava à embriaguez. Ao final do segmento, o narrador

traz Jesus para os tempos atuais (Se o nosso grande exemplo vivesse nas

circunstâncias atuais), afirmando que no atual contexto, “cercado por um mar de

bebidas mortais que arruína dezenas de milhares de pessoas”, Cristo não teria

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contribuído “para o aumento dos rios de bebidas venenosas existentes e nos quais

corpos e almas vêm sendo destruídos massivamente”.

Observando esse percurso figurativo, observa-se que ele reveste o percurso

temático centrado na oposição entre embriaguez e sobriedade. A embriaguez é

valorizada negativamente e a sobriedade, positivamente. O narrador põe Cristo como

o avalista da sobriedade, e considera que Ele não faria nada que estimulasse “o

aumento dos rios de bebidas venenosas existentes”.

Além[G1][U2] dessa oposição entre embriaguez e sobriedade, observa-se que há

também uma oposição entre um presente marcado pelo consumo “de bebidas mortais

que arruína dezenas de milhares de pessoas” e um passado caracterizado pelo fato

de “o alcoolismo ser vício raro naquela região na época de Jesus e em eras

anteriores”. Vê-se, portanto, que o tempo presente, a atualidade, vinculada à

embriaguez é, por isso, avaliada negativamente pelo narrador. Já o tempo passado,

o de Jesus, é visto positivamente, na medida em que é ligado à sobriedade.

Considerando, por fim, que o pregador tem o objetivo levar o seu público destinatário

a aderir à prática da virtude, o tema em evidência é obviamente a sobriedade, com

que condena, ao mesmo tempo, o consumo de bebidas alcoólicas. Talvez se possa

dizer, que essa leitura temática na abertura do sermão de C. H. Spurgeon [G3]decorra

fato de ele ser um pastor batista, uma igreja cristã em que o consumo de álcool é

especialmente proibido.

Neste outro segmento,

Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por que não ajudar a família,

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fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo.

observe-se a passagem inicial em negrito. O narrador volta à figura do vinho no

casamente e destaca o fato da grande quantidade de vinho resultante do milagre de

Jesus. Justifica a quantidade excessiva em razão de que os casamentos daquela

época vinham muita gente e a festa durava uma semana ou mais (vinha gente de toda

parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, de uma semana a quinze dias).

Outra razão é que se sobrasse vinho ele poderia ser guardado por mais tempo sem

estragar e até poderia ser vendido para outras pessoas, já que os promotores do

casamento “não deviam ser pessoas ricas”.

Temos aqui um percurso figurativo centrado na figura da grande quantidade de

vinho. O narrador não faz uma leitura temática dessa figura neste momento,

considerando o tema até de menor importância (“Seja o que for, este não é meu

assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância”). E a seguir

fecha o segmento voltando ao tema do percurso já analisado, que é a sobriedade

radical em relação ao consumo de bebida alcoólica.

Se o narrador no segmento anterior não fez uma leitura temática da grande

quantidade vinho,

De todo modo, Jesus Cristo deu início à dispensação do evangelho não com um milagre de vingança – tal como o realizado por Deus no Egito, por meio de Moisés, transformando água em sangue –, mas com um milagre de liberalidade, ao transformar a água em vinho. Ele não apenas supre aquilo que é realmente necessário às pessoas, mas provê com fartura, e isto é altamente representativo do reino da sua graça. Ele não apenas dá aos pecadores o suficiente para salvá-los, mas dá com abundância, graça sobre graça. Os dons da aliança não são limitados nem restritos, não são pequenos em quantidade nem em qualidade. Dá aos homens não apenas água da vida, para que possam dela beber e com ela se refrescar, mas também vinhos puros, bem purificados (Is 25.6) para que possam se satisfazer e jubilar. Cristo dá como o dá um rei, em profusão, sem conter copos nem vasilhas. Uma quantidade como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso para com as almas mais necessitadas. Esqueçamos, portanto, toda questão relativa ao vinho; quanto menos coisas tivermos a cogitar, melhor será, tenho certeza. Vamos pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja

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um exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua graça, que ele tão liberalmente nos concede.

ele vai fazê-la neste, conforme registra a passagem seguinte e outras do segmento

acima:

Uma quantidade como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso para com as almas mais necessitadas.

Portanto, o tema destacado é a generosidade, tema que vem enfatizado ao final

do segmento:

Vamos pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja um exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua graça, que ele tão liberalmente nos concede.

Essa figura da grande quantidade de vinho é retomada com frequência na

última parte do sermão (da linha 358 em diante), quando o narrador interpreta a ordem

de Jesus: “enchei de água essas talhas”. Vejamos este segmento:

Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente

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conhecesse a si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei de água essas talhas" (376-397)

Nele, a figura das talhas cheias é associada a um percurso temático do domínio

do conhecimento, do estudo, da formação das pessoas, da educação como fatores

favoráveis ao desenvolvimento cristão. Em oposição ao conhecimento valoriza

negativamente a ignorância, a rudeza (“Espero em Deus que já haja passado aquela

época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser

úteis ao reino dos céus”)

No segmento anterior, chama atenção ainda, na parte inicial, quando o narrador

afirma ter sido o milagre de Cristo não um milagre da vingança, mas um milagre da

liberalidade. A vingança é associada à figura do sangue (transformando água em

sangue) e a liberalidade à figura do vinho (ao transformar a água em vinho). O tema

da liberalidade está diretamente associado ao tema da generosidade.

Vejamos agora este outro segmento, da linha 61 a 101: Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão simples e sem ostentação ele ocorreu. Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu messiado. Não fez assim. Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural deste mundo, revelou sua glória. Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio noivo, ou qualquer dos anfitriões, e lhes diz: “Vocês sabem que o vinho acabou, não? Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água em vinho”. Nada disso; faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos. Pede que encham de água as talhas, recipientes que estavam ali à disposição. Não pede outras vasilhas, mas somente as que tinha à mão, sem fazer nenhum alarde ou exibição. Usa água que também estava disponível em abundância – e realiza um milagre, se posso dizer assim, da maneira mais simples e comum. É este o estilo de Jesus. Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar parafernália. Sendo, porém, um milagre genuíno, foi feito, embora de maneira sobrenatural, quase como uma sequência do que seria natural. Jesus

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não encheu as talhas vazias de vinho, mas foi até onde a natureza pode ir e usou água para fazer vinho dela, seguindo assim um processo de sua providência que se realiza dia a dia. Pois o vinho é produzido da água, iniciando-se o processo quando gotas de chuva caem do céu e fluem para a terra em direção às raízes da vinha, fazendo brotar dos cachos de uva e neles o suco rubro que irá produzir o vinho. Apenas uma diferença no tempo da produção separa o vinho criado nos cachos e o surgido nas talhas. Nosso Senhor não pediu a outros que fizessem isso; os servos só tiveram que lhe trazer água comum. Só quando começaram a tirar das talhas a água – ou aquilo que achavam ser ainda água – é que iriam os servos perceber que a água fora transformada em vinho. Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador (61-101).

Esse longo segmento é predominantemente figurativo, cujo leitura temática já

se manifesta na abertura: “Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão

simples e sem ostentação ele ocorreu”. Portanto os corredores temáticos em oposição

são simplicidade e ostentação. Ambos vêm intensamente figurativizados.

Apresentamos algumas dessas figuras em oposição neste quadro:

Ostentação Simplicidade Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu messiado.

Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural deste mundo, revelou sua glória.

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Ostentação Simplicidade

Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar parafernália

Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio noivo, ou qualquer dos anfitriões

Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água em vinho”.

faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos

Fica evidente que esses dois percursos figurativos, entre outros, revestem os

temas já destacados, conferindo à ostentação valor negativo e à simplicidade valor

positivo. É propósito do narrador dar evidência a que Cristo fez seu milagre sem que

os presentes disso se percebessem. E, ao final, admoesta seus destinatários

procederem da mesma forma, quando diz:

Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal de contas, miserável e desprezível.

Nas duas últimas partes do sermão, o narrador faz diversas leituras temáticas

de um único versículo figurativo da narrativa de João: “Ordenou-lhe Jesus: Enchei de

água essas talhas” (Jo 2.7).

Consideremos essa primeira passagem, da linha 106 à 162.

I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali está um homem com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão (Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te (Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um mandamento do evangelho.

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Observe como este princípio que se verifica nos milagres está presente também nas maravilhas de sua graça divina. Eis um pecador que quer ser salvo. O que Cristo tem a dizer a este pecador, mediante os apóstolos? Crê no Senhor Jesus e serás salvo (At 16.31). E você? Pode crer nisso? Mas ele não está morto em seus pecados? Irmãos, em lugar de levantarmos questionamentos tais, aprendamos, simplesmente, que Jesus Cristo ordena que os homens creiam; e, por isso, comissionou seus discípulos a dizerem: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus (Mt 3.2). Ou seja... Deus, não levando em conta os tempos da ignorância, manda agora que todos os homens em todo lugar se arrependam (At 17.30). Ele nos ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo. Na verdade, tem sido exatamente sempre assim, desde os tempos mais antigos, quando o Senhor estabeleceu sua maneira própria de lidar com uma nação praticamente morta. Ali estavam ossos secos, no vale, em grande número excessivamente secos. Ezequiel recebe então a ordem de profetizar a eles. O que diz o profeta? Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor (Ez 37.4). É esta a sua maneira de fazê-los viver novamente. Sim, por meio de uma ordem para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, surge a vida. Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé (Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência dos homens, dando ordens reais. É o que acontece quando deixamos de não sermos convertidos e nos tornamos crentes. Quando Deus quer abençoar o seu povo tornando-o bênção, ele o faz pronunciando uma ordem. Ao orarmos para que o Senhor se levante e mostre seu braço de poder, sua resposta, contendo uma ordem, é: Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, Sião (Is 52.1). Ao rogarmos que o mundo seja trazido a seus pés, sua resposta, em forma de ordem, é: Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os (Mt 28.19-20). Sua ordem é para que sejamos veículos da sua bênção. Se queremos ter a bênção de ver conversões se multiplicando e as igrejas sendo edificadas, Cristo nos dará esse benefício, pois todo dom procede dele, como foi transformar água em vinho. Contudo, primeiro ele nos diz: “Vão e proclamem a minha salvação até os confins da terra". Temos de encher as talhas de água. Se formos obedientes ao seu mandado, veremos de que modo poderoso ele irá operar, estará conosco, e as nossas orações serão ouvidas. Este é, enfim, o primeiro princípio que vejo aqui: Cristo dá ordens àqueles que ele deseja abençoar.

Nesta primeira parte, o narrador estabelece uma norma de abertura: “quando

Cristo está para conceder uma bênção, ele dá uma ordem”, traduzida longo na

sequência por esta outra afirmação: “uma palavra de comando precede uma palavra

de poder”. Considerando o que já analisamos anteriormente, como Cristo afirmou seu

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poder pelo milagre, a este antecedeu a ordem: “Enchei de água essas talhas”. A

seguir, o narrador vai destacar em várias narrativas bíblicas ordens que antecederam

um milagre, uma manifestação de poder: “Vai, lava-te no tanque de Siloé” (Jo 9.7);

“Estende a tua mão” (Mt 12.13); “Menina, levanta-te” (Lc 8.54). “Lázaro, vem para

fora!” (Jo 11.43). “Crê no Senhor Jesus e serás salvo” (At 16.31); “Arrependei-vos,

porque é chegado o reino dos céus” (Mt 3.2).

Todas são passagens bíblicas que figurativizam o tema de que a eficácia da

ação de Jesus está condicionada à obediência de uma ordem, que só é compreensível

à fé, não cabendo, portanto, o questionamento da lógica da ordem.

Na sequência, o narrador estende essas ordens às práticas cristãs de seus

destinatários e pergunta: “Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e

isso deveria ser suficiente para você, que se diz ser discípulo”; “Oro para que você

não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um dever;”. O próprio narrador

responde a sua pergunta, reafirmando o fundamento temático da fé. Ou seja, segundo

o narrador, para o discípulo de Cristo, não há outra razão que não a ordem por ela

mesma. Trata-se de uma explicação que fere a lógica racional e é somente

compreensível numa outra lógica que a da definida pela fé.[G4]

O narrador traz para ilustrar essa lógica da fé, um interessante percurso

figurativo que trata da ordem dada por Deus a Ezequiel de ordenar aos ossos que

levantassem. O profeta teria todas as razões para contestar a ordem, pois, pela lógica

racional, não faz sentido dar ordens a que ossos vivessem. No entanto o profeta o fez

por razões de fé, fazendo da morte brotar a vida, conforme registra esta passagem:

Sim, por meio de uma ordem para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, surge a vida.

Na sequência, o narrador continua explorando o tema da ordem, tratando,

agora, de um tema decorrente dela: a obediência

Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, sim, obedecidas. As pessoas querem vinho, e Cristo diz aos servos: Enchei de água essas talhas. Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem querer água quando forem à sinagoga ou

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ao templo, para lavar e ter as mãos purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”. Todavia, o conselho que Maria tinha dado aos servos fora muito próprio: Fazei tudo quanto ele vos disser. Nós também: não nos cabe, não devemos questionar nem criticar as ordens do Senhor, mas cumpri-las imediatamente. Em alguns momentos, pode parecer que a ordem de Cristo não seja pertinente ao assunto em questão. O pecador pede: "Senhor, salva-me; vence o pecado em mim". Nosso Senhor responde: "Creia". O pecador não entende de que modo crer em Cristo poderá o capacitá-lo a controlar um pecado insistente. À primeira vista, parece não haver nenhuma conexão entre crer no Salvador e dominar um mau hábito ou se livrar de um mau costume, como a intemperança, a paixão, a cobiça, a falsidade. Existe, sim, uma conexão. Mas mesmo que você não consiga visualizá-la, sua parte é não questionar e, sim, fazer aquilo que Jesus ordena que você faça. É no caminho da ordem cumprida que o milagre da misericórdia será realizado. Enchei de água essas talhas – apesar de o que você quer mesmo seja vinho. Cristo vê uma conexão total entre a água e o vinho, embora você nem a perceba. Ele tem um motivo para que as talhas sejam cheias de água, que você desconhece. Não nos cabe pedir explicações, mas sermos simplesmente obedientes. Se você fizer exatamente aquilo que Jesus ordena, da maneira que ordena e no momento em que ordena, tão somente porque ele ordena, descobrirá que os seus mandamentos não são penosos (1Jo 5.3) e em os guardar há grande recompensa (Sl 19.11). Há momentos em que essas ordens parecem ser até mesmo triviais. Podem nos parecer algo insignificante. Aquela família precisava de vinho, e Jesus diz: Enchei de água essas talhas. Os servos poderiam ter dito: "Isso é simplesmente passar o tempo e brincar conosco. Faríamos melhor se fôssemos falar com os amigos dessas pessoas e pedíssemos se poderiam contribuir oferecendo outras vasilhas de vinho. Melhor ainda se encontrássemos alguma adega ou estalagem onde pudéssemos comprar vinho. Mas mandar-nos ir ao poço encher essas grandes talhas, que só podem conter é muita água, está nos parecendo brincadeira". Meus irmãos sei que, às vezes, o caminho do dever parece que não vai nos levar ao resultado desejado. Preferimos fazer outra coisa. Esta outra coisa pode até parecer estar errada, mas nos dá a impressão de que poderíamos realizar nosso plano de maneira mais fácil e direta; desse modo, lançamo-nos neste outro curso, não ordenado e talvez proibido. Sei que muitas consciências perturbadas acham que simplesmente crer em Jesus é muito pouco. O coração enganoso sugere sempre uma maneira que parece ser mais eficaz: "Faça penitência; sinta amargura; chore certa quantidade de lágrimas. Mude sua mente, quebrante seu coração” – é isso o que pede a nossa carne. Jesus simplesmente nos ordena: "Creia". Isto realmente parece ser uma coisa muito pequena a ser feita, como se não fosse possível receber a vida eterna simplesmente por colocar sua confiança em Jesus Cristo. Mas este é o princípio que quero ensinar aqui: quando Jesus Cristo está prestes a dar uma bênção, ele dá uma ordem que não deve ser questionada, mas, sim, obedecida imediatamente. Se não o crerdes, certamente não haveis de permanecer (Is 7.9); mas se quiserdes, e me ouvirdes, comereis o bem desta terra (Is 1.19). Fazei tudo quanto ele vos disser.

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Em todo esse segmento aparecerem sucessivos percursos figurativos que

revestem o tema da incondicionalidade da obediência. Essa incondicionalidade é

definida como uma obediência sem questionamento da lógica racional da ordem dada.

Observemos somente esta primeira passagem figurativa:

Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem querer água quando forem à sinagoga ou ao templo, para lavar e ter as mãos purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”.

Ela poderia ser uma contestação à ordem de Jesus: “Enchei de água essas

talhas”. Mas, segundo o ensinamento do narrador, essa contestação não cabe. O

importa obedecer incondicionalmente, por determinação da fé.

Na passagem seguinte, o narrador continua abordando o tema da obediência,

focalizando um tema complementar: a completude da obediência.

O terceiro princípio é este: é bom cumprirmos com zelo todas as ordens que recebemos de Cristo. Ele disse: Enchei de água essas talhas, e os servos encheram-nas até em cima (Jo 2.7). Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela ser cheia até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a transbordar. O líquido começa a se mexer quando está prestes a transbordar numa cascata cristalina. É a plenitude do enchimento. Ao cumprir as ordens de Cristo, meus caros irmãos e irmãs, que cheguemos às últimas consequências: que cumpramos as suas ordens “até em cima”. Se a ordem é “crê”, creia nele com toda a sua força, confie nele de todo o seu coração. Se é “prega o evangelho”, pregue a tempo e fora de tempo (2Tm 4.2) – e pregue o evangelho – por completo. Pregue-o até em cima. Não entregue às pessoas um evangelho pela metade. Dê-lhes um evangelho transbordante. Encha as talhas até a borda. Se é para se arrepender, peça-lhes um arrependimento profundo e sincero. Se é para crer, peça-lhes uma fé profunda, absoluta, como a de uma criança, uma fé cheia até a borda. Se a ordem é orar, ore poderosamente: encha até a beirada o vaso da oração. Se é para buscar uma bênção nas Escrituras, procure-a do início ao fim: encha até a extremidade o vaso da leitura da Bíblia. As ordens de Cristo nunca devem ser cumpridas com negligência. Que coloquemos nossa alma em tudo aquilo que ele nos ordenar, ainda que não possamos entender o motivo pelo qual nos manda realizar essa tarefa. Os mandamentos de Cristo devem ser cumpridos com todo o entusiasmo, e realizados ao extremo, se for possível haver um extremo.

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Para tratar do tema da completude da obediência, o narrador volta à figura das

“talhas cheias de água”, e comenta: “Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela

ser cheia até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a

transbordar”. Fica evidente neste comentário que o narrador trata da “plenitude do

enchimento”, com o que volta ao grande tema do sermão: a fé incondicional e plena,

“uma fé cheia até a borda”.

Na sequência dessa parte (da linha 236 a 356) repetem-se referências aos

percursos figurativos já comentados e leituras temáticas correspondentes.

Na última parte do sermão (linha 357 até o final), o narrador/pregador continua

fazendo sua leitura temática da ordem de Jesus: “Enchei de água essas talhas”,

focalizando a “maneira de executar” essa ordem. Na verdade, isso ele vinha fazendo

nas partes anteriores. Destaquemos somente algumas passagens.

Nesse primeiro segmento,

II. Tenha paciência comigo um pouco mais, enquanto procurarei aplicar agora esses princípios a propósitos práticos. Vejamos, então, de que maneira executar esta ordem divina: Enchei de água essas talhas. Primeiramente, use as habilidades que você possui no serviço de Cristo. Ali estão seis talhas. Jesus usa o que encontra disponível, à mão. Há água no poço; nosso Senhor a utiliza também. Nosso Senhor costuma empregar em sua obra o seu povo, com a capacidade e as habilidades que cada qual possui, em vez de usar os anjos ou uma nova classe de seres criados especialmente com esse propósito. Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa: encha o vaso de barro que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver. Traga água mediante suas ordens e há de ser o melhor dos vinhos. O mais comum dos dons pode servir aos propósitos de Cristo. Assim como ele tomou apenas alguns pães e peixes e com eles alimentou uma multidão, assim, também ele se vale de seis talhas de água e nelas cria vinho.

o narrador/pregador volta à figura da água, do recurso mais disponível (“Jesus usa o

que encontra disponível, à mão”) para figurativizar o tema de ser simples e sem

exigências a condição para ser cristão. Nesse sentido vale destacar essa passagem:

Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa:

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encha o vaso de barro que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver.

As figuras “taça de prata” e “peça de porcelana de Sèvres” se opões à figura

“vaso de barro”, figurativizando o simples, o modesto, o disponível como a água do

poço.

Esta outra passagem, à qual já fizemos referência,

Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente conhecesse a si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei de água essas talhas".

o narrador/pregador dá continuidade ao tema do segmento anterior, na medida em

que se contrapõe aos que confundem simplicidade e modéstia (vaso de barro) com

“estupidez” e “ignorância”. Em decorrência, ele exalta a formação universitária, a

educação e o conhecimento como “úteis ao reino dos céus”.

Assim, a fim de aplicarmos esse princípio, vamos todos usar os meios de bênção conforme indicados por Deus. Quais são esses meios? Em Primeiro lugar, a leitura das Escrituras. Já que "examinais as Escrituras", faça-o então examinando tudo o que possa. Busque entender as Escrituras. "Se eu conhecer

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a Bíblia, é que então serei salvo?" Não; você terá de conhecer o próprio Cristo por meio do Espírito Santo. Mais uma vez: enchei de água essas talhas; e, enquanto estudar as Escrituras, pode estar certo de que o Salvador irá abençoar sua Palavra e transformar essa água em vinho. Há sempre auxílio para você nos meios da graça, como, por exemplo, ouvir um ministro do evangelho. Lembre-se de que você deve encher a talha com água até em cima. "Mas eu posso ouvir milhares de sermões e não ser salvo". Pode ser, mas sua tarefa é encher a talha com água, e enquanto você ouve o evangelho, Deus o abençoa, pois a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo" (Rm 10.17). Saiba usar os meios que Deus lhe indicar. E, uma vez que o nosso Senhor decidiu salvar os homens por meio da pregação da Palavra, oro para que levante quem pregue sem cessar, a tempo e fora de tempo, entre quatro paredes e nas ruas. "Mas não é a nossa pregação propriamente que os salvará”, dizem alguns. Sei disso; mas pregar é trazer a água, e, enquanto nós o fazemos, Deus por sua vez, irá abençoar a água e a transformará em vinho. Saiamos a distribuir literatura religiosa e folhetos. “Oh, mas não será propriamente por ler este material que as pessoas serão salvas”. Certamente, não; mas, se o leem, Deus pode e vai fazer que a verdade seja lembrada em sua mente e impressa em seu coração. Enchei de água essas talhas. Cuidemos de distribuir uma infinidade de folhetos. Espalhemos literatura religiosa por toda parte. Enchei de água essas talhas, e o Senhor irá transformar água em vinho. Não se esqueça das reuniões de oração. Que abençoado meio de graça, trazendo o poder do céu a todas as obras da igreja. Enchamos essa talha de água. Não tendo do que reclamar da sua frequência nas reuniões de oração, mas, oh, mantenham-na ativa, meus irmãos! Se você pode orar, ore! Bendito seja o nome de Deus se você tem espírito de oração. Continuem orando! Enchei de água essas talhas, e, em resposta à sua oração, Jesus irá transformá-la em vinho. Professores de escola bíblica dominical, não negligenciem neste seu bendito meio de ser útil. Enchei de água essas talhas. Trabalhem no sistema da escola dominical com toda sua força. "Mas as crianças não serão salvas simplesmente por serem colocadas juntas e lhes falarmos sobre Jesus. Não lhes podemos dar um novo coração". E quem disse que vocês podem? Enchei de água essas talhas que Jesus Cristo sabe como transformá-la em vinho. E ele não deixará de fazê-lo enquanto formos obedientes às suas ordens. Faça uso de todos os meios, mas saiba usá-los com a motivação correta. Volto agora àquela parte do texto que diz: "E encheram-nas até em cima". Sempre que você estiver ensinando aos pequeninos da escola dominical, ensine-os bem. Encha até em cima. Quando você pregar, meu caro amigo, não pregue como se estivesse sonolento. Anime-se, encha o seu ministério até em cima. Quando você estiver buscando evangelizar a comunidade, não o faça sem motivação, como se não se importasse se aquelas almas venham a ser salvas ou não. Encha-as até em cima, pregue o evangelho com toda a sua força, clame pelo poder do alto. Encha cada vaso até em cima. Tudo o que valer a pena fazer, faça-o bem. Ninguém jamais serviu a Cristo bem demais. Já ouvi dizer que, em alguns cultos, pode haver zelo demais; mas, no serviço de Cristo, você pode ter quanto zelo puder e quiser e, ainda assim, jamais haverá excesso se a prudência estiver unida a ele. Enchei de água essas talhas, e até em cima. Faça tudo de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças.

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Ainda no propósito de aplicação desse princípio, lembre-se que, mesmo que você tenha feito tudo o que pode, sempre haverá deficiência em tudo o que fez. Não deve haver problema algum de sua parte, ao voltar da distribuição de folhetos, da classe da escola dominical ou da pregação, ao chegar em casa, em ajoelhar-se e clamar: "Senhor, eu fiz tudo o que me ordenaste, mas nada terá sido feito se não tiver o teu toque final. Senhor, eu enchi essas talhas de água e, embora só possa simplesmente enchê-las com água, as enchi até em cima. Com o melhor da minha capacidade, Senhor, busquei ganhar vidas para ti. Sei que não pode haver uma alma salva, uma criança convertida ou qualquer glória trazida ao teu nome simplesmente por aquilo que fiz, pelos meus atos em si. Contudo, bom mestre, fala a palavra capaz de realizar o milagre de fato, e a água que enche os vasos transforma-a em vinho. Somente tu podes fazê-lo. Senhor, eu não posso. Eu lanço esse fardo sobre ti". Isto me leva à última aplicação do princípio que é: tenha confiança que o Senhor fará a obra. Veja bem, poderia haver outra maneira de encher as talhas de água. Suponha que aquelas pessoas nunca tivessem recebido a ordem de encher as talhas e que o ato de fazer isso não tivesse nenhuma relação com Cristo. Suponha que aquela ação tivesse sido apenas um lampejo de sua própria imaginação e que elas tivessem dito: "Essas pessoas não têm vinho, mas, quem sabe, elas podem querer se lavar, e então vamos encher seis talhas de água". Nada teria acontecido a partir desse procedimento. A água teria ficado ali. Lembro-me de um menino da escola de Eton, que disse: "A água consciente viu seu Deus e ficou vermelha”, uma expressão verdadeiramente poética. A água consciente, no entanto, teria visto os servos, e não teria ficado vermelha. Teria simplesmente refletido a face deles em sua superfície brilhante, e nada além disso teria acontecido. Foi preciso que o próprio Senhor Jesus Cristo, com seu poder presente, realizasse o milagre. Mas isso aconteceu porque ele mesmo havia ordenado aos servos que enchessem as talhas com água e, desse modo, viu-se compelido – sé que posso usar tal expressão em relação ao nosso Rei – a transformá-la em vinho. Se não fosse ele o Cristo, teria simplesmente pregado uma peça naqueles servos. Mas então eles teriam cobrado dele: “Por que nos deste uma ordem absurda como esta?” Se depois de enchermos as talhas com água Jesus não realizasse nada por nós, teríamos apenas feito o que ele nos havia ordenado; mas, como cremos nele, ouso dizer, ele se obriga a si mesmo a realizar o milagre. Do contrário, seríamos perdedores, e perdedores terríveis. Se o Senhor não mostrasse seu poder, só teríamos a lamentar, dizendo "trabalhei em vão e gastei minhas forças por nada". Não seríamos, porém, tão perdedores quanto ele próprio, pois o mundo logo afirmaria serem as ordens de Cristo vazias, inúteis e ineficientes. Diria que a obediência à sua palavra não traz nenhum resultado. Diria o mundo: “Você encheu as talhas com água só porque ele ordenou que fizesse; esperou que ele transformasse água em vinho, mas ele não fez nada disso. Sua fé é vã, sua obediência é vã; ele não é um mestre que valha ser servido”. Nós seríamos perdedores, mas ele seria mais ainda: perderia sua glória. Por isso, de minha parte, creio que jamais uma palavra de Cristo possa ser dita em vão. Tenho certeza de que nenhum sermão que contenha Cristo em si possa ser pregado sem resultado. Alguma coisa positiva disso resultará, se não hoje, amanhã, mas alguma coisa boa há de resultar. Quando um sermão meu é publicado, quando vejo impresso em um livro, já estou desde antes bem feliz

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em saber de almas que foram e serão salvas por este meio. Se ainda não foi impresso, apenas o preguei, já acho que algo de bom Deus fará brotar dele. Se preguei Cristo, coloquei sua verdade salvadora naquele sermão, aquela semente não poderá morrer. Mesmo que pareça morrer naquele livro por vários anos, tal qual grão de trigo enterrados no solo, um dia viverá, crescerá e dará fruto. Ouvi falar recentemente de uma vida que foi levada a Cristo por um sermão que preguei 25 anos atrás. Quase todas as semanas, ouço falar a respeito de pessoas que foram trazidas a Cristo por sermões meus pregados em reuniões realizadas em Park Street, no Exeter Hall e nos jardins de Surrey. Sinto, portanto, que Deus não deixará uma testemunha fiel sequer cair ao chão. Vá em frente, irmão. Encha as talhas de água. Não acredite, porém, que você está fazendo muito, mesmo quando tiver feito tudo o que pode. Não comece a se parabenizar diante dos sucessos. Tudo vem de Cristo e tudo virá de Cristo. Todavia, não diga na reunião de oração: "Paulo pode ter plantado, e Apolo pode ter regado, mas...". Não é bem assim o que diz a passagem. Ela diz exatamente o contrário, ou seja: que Paulo plantou; Apolo regou; mas Deus deu o crescimento (1Co 3.6). O crescimento é dado por Deus, uma vez que plantação e a semeadura sejam feitas de maneira adequada. Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre quem transforma a água em vinho. Que o Senhor nos dê a graça de sermos obedientes às suas ordens, especialmente a este mandamento: “Creia e viva!” E que possamos encontrá-lo nas bodas celestiais para bebermos vinho novo com ele, para todo o sempre. Amém e amém.

Destacamos nesse segmento final, as referências à ordem de Jesus: “Enchei

essas talhas de água”. Nas sucessivas ocorrências faz dela diferentes leituras

temáticas, sempre explorando o tema da completude: a completude no domínio e na

difusão das escrituras; a completude no zelo missionário; a completude nas preces. E

ao final do sermão, retorna o tema central do sermão: a todo milagre antecede uma

ação de poder, quando afirma: Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre

quem transforma a água em vinho.

57

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente dissertação colocou sob análise o sermão “As Talhás de Caná”,

pregado pelo Reverendo Inglês C. H. Spurgeon aos fiéis de sua comunidade na cidade

de Londres, Inglaterra, e trouxe também para o foco do estudo, consequentemente, o

livro do Evangelho de João, mais propriamente o segundo capítulo, veículos de 1 a

11, de onde o pregador, ao se debruçar em estudo, obteve ferramentas para

desenvolver biblicamente seu sermão. Este sermão foi o objeto de nosso estudo, o

qual foi analisado com base em fundamentos da semiótica discursiva.

Inicialmente, contextualizamos a narrativa no contexto das escrituras bíblicas e

definimos a sua natureza nesse contexto. Nesse sentido, fez-se necessário “adequar”

o sentido da palavra sermão respaldado pela “homilética”, que se define como o

minucioso estudo do texto bíblico para extrair a mensagem central do próprio texto,

obtendo, assim, argumentos para fundamentar seu discurso. Notamos, no sermão que

estudamos, que o pregador fez uso dessa técnica, pois ele extrai e aplica, de forma

brilhante, a ideia central do texto bíblico, Evangelho de João, capítulo 2, versículos de

1 a 11, que é a revelação de Jesus como Deus e, como consequência dessa

revelação, arregimenta as pessoas para segui-lo e obedecê-lo sem qualquer tipo de

indagação.

Na sequência de nosso estudo, uma vez que nosso objetivo foi o de caracterizar

discursivamente o mencionado sermão tendo como base fundamentos da teoria

semiótica do discurso, fizemos uma breve contextualização semiótica. Considerando

os três patamares do percurso gerativo de sentido apresentado pela semiótica,

restringimos nossa análise aos fundamentos do nível discursivo. Nesse nível

distinguem-se a sintaxe discursiva e a semântica discursiva. Com base na primeira,

analisamos o sermão como um produto da enunciação, focalizando, no texto, as

projeções da enunciação no enunciado. Com base na semântica discursiva,

analisamos os principais percursos figurativos por meio dos quais o narrador/pregador

veicula os temas de que trata no sermão.

No que respeita às projeções da enunciação no enunciado, o texto do sermão

se caracteriza pela enunciação enunciada. O enunciado/texto do sermão, explicita,

portanto, as marcas da enunciação, isto é, as categorias eu, agora e aqui. Por meio

da debreagem enunciativa, instala-se no sermão a interação de um

58

narrador/destinador eu com um narratário/destinatário você. Este você vem

verbalmente explicitado. É esse o cenário comunicativo do sermão inteiro, do começo

ao fim. O pregador se comunica, portanto, de forma direta com o seu público,

interpelando-o por você. Com muita frequência, dirige-lhe perguntas, deixando em

geral as respostas em aberto. Mas, muitas vezes, ele mesmo as responde ou até põe

respostas na voz dos próprios destinatários. Outras ele faz com que o próprio

destinatário seja o destinador da pergunta, cabendo ao destinador/pregador o papel

de destinatário. Se juntarmos esse recurso ao fato de o pregador tratar os

destinatários por você (raramente por vocês), cria-se no texto um forte efeito de

sentido de diálogo ou até mesmo de conversa. Essa conversa, não raro, revela um

efeito de certa privacidade, de envolvimento entre pregador e público, por conta da

relação eu-você, que é a estrutura interativa padrão para as conversas face a face.

Nesse sentido, pode-se dizer que, do ponto de vista dos efeitos de oralidade no texto

escrito, o texto do sermão é construído por meio de uma linguagem da aproximação.

No continum dos gêneros textuais, o texto se situa numa posição intermediária entre

os polos da fala e da escrita.

Esse modo de o pregador interagir com os destinatários nos permite, inclusive,

construir uma ideia das características deles, supostamente um público de pessoas

simples. Isso se constata não só na forma direta de interação, mas também no

vocabulário usado, comum nas interações cotidianas, nos períodos curtos comuns

das conversas, nos exemplos e nas analogias e metáforas do cotidiano, nas figuras

usadas para explicar os temas abstratos dos textos bíblicos. Todos esses recursos

apontam para um destinatário não sofisticado não domínio da linguagem, no

conhecimento dos textos bíblicos e talvez até na formação escolar.

Do ponto de vista da argumentação do destinador/pregador para fazer crer, isto

é, para persuadir o seu público, podemos dizer que tudo o que já apontamos

anteriormente é recurso argumentativo. No entanto, mais dois outros aspectos se

destacam: a debreagem de segundo grau e a produção de efeitos de realidade. O

primeiro caso o narrador delega a voz ao interlocutor e este assume a fala em discurso

direto. Esse fato de o interlocutor tomar a palavra é uma forma de produzir efeito de

realidade, na medida que passa a ilusão de uma fala objetiva, como se ela tivesse

sido produzida originalmente na forma do texto. Ela produz, portanto, um efeito de

realidade e de verdade. No que respeita ao discurso direto, destacam-se no texto

analisado as vozes das personagens bíblicas: Jesus, Deus e os profetas. Todos esses

59

personagens falam em discurso direto, criando-se não só o efeito de realidade a que

nos referimos, mas também em efeito de distanciamento entre o narrador e esses

personagens. Esse distanciamento decorre de uma postura de respeito e veneração

diante dos personagens das sagradas escrituras.

Além disso, também produzem efeitos de realidade e, por isso, tem força

persuasiva os exemplos, as analogias tiradas da vida cotidiana das pessoas. Também

as referências à quantidade de vinho (cerca de 450 litros) e de pessoas presentes ao

casamento (centenas de pessoas) produzem esse mesmo efeito pois remetem os

destinatários a elementos da vida cotidiana que eles podem perceber e avaliar

concretamente.

No que se refere à semântica discursiva, pode se dizer que a maior parte do

sermão está centralizada no tema veiculado pelo percurso figurativo expresso pelo

subtítulo do sermão: Ordenou-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-

nas até em cima (Jo 2.7). No entanto na primeira parte (até a linha 104), o pregador

focaliza temas envolvendo a vida cotidiana dos destinatários, como o tema da

sobriedade e da embriaguez, baseado na figura da quantidade de vinho (cerca de 450

litros). Também com base na figura da quantidade trata do tema da generosidade,

referindo-se ao modo generoso com que Jesus beneficia com bênçãos e graças os

que o seguem.

Quando analisa o percurso figurativo expresso na ordem de Jesus, “Ordenou-

lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima, o pregador

explora em especial o tema da obediência, sintetizado na figurativização da forma

imperativa “Enchei”. Esse tema está diretamente ligado ao tema da revelação divina,

ou seja, da revelação de que Jesus era Deus, manifesto no próprio percurso figurativo

do milagre. Ao transformar a água em vinho, ocorre um fato que não se explica pela

lógica da racionalidade humana, mas só compreensível no nível do sobrenatural, isto

é, só compreensível para quem tem fé, no sentido religioso da palavra. O milagre da

transformação da água em vinho é um procedimento de persuadir os discípulos a

terem fé. É em relação ao tema da fé que o pregador desenvolve o tema da

obediência. Ele diz que para ter fé é preciso ter obediência incondicional, isto é, a fé

não permite que o cristão questione com a lógica racional as ordens de Jesus Cristo.

Em resumo, um fato de fé, no sentido religioso, por definição exclui o questionamento,

caso contrário não haveria fé. É daí que vem toda a importância do tema da

obediência. Assim, podemos concluir, dizendo que o pregador foi coerente ao

60

relacionar a narrativa de João, que narra o milagre da transformação da água em

vinho, com o desenvolvimento do tema da obediência.

61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO 1

As Talhas de Caná (SPURGEON, 2016, p. 94 – 102)

Disse Jesus aos serviçais: "Encham os potes com água". E os encheram até a borda (Jo 2.7).

Você conhece a narrativa. Jesus estava numa festa de casamento e, quando o 1

vinho acabou, ele o providenciou com generosidade. Creio que não seja adequado 2

entrar em discussão sobre que tipo de vinho nosso Senhor Jesus criou naquela 3

ocasião. Era vinho, e estou certo de que era realmente um bom vinho, pois ele não 4

produziria nada que não fosse o melhor. Teria sido vinho como geralmente 5

entendemos ser essa bebida hoje? Era vinho, sim, mas provavelmente existem muito 6

poucas pessoas atualmente que hajam provado tal tipo de vinho. O que hoje leva este 7

nome não é propriamente vinho natural e verdadeiro, mas, sim, bebida da qual 8

certamente Jesus jamais teria provado uma gota sequer. As bebidas alcoólicas dos 9

atuais fabricantes de vinho são bastante diferentes do suco da uva suavemente 10

inebriante, comum em outros séculos. No que se refere ao vinho então usado no 11

Oriente, era preciso alguém beber muito antes de ficar embriagado. Havia certamente 12

casos de embriaguez pelo vinho, mas, como regra geral, o alcoolismo era vício raro 13

naquela região na época de Jesus e em eras anteriores. Se o nosso grande exemplo 14

vivesse nas circunstâncias atuais, cercado por um mar de bebidas mortais que arruína 15

dezenas de milhares de pessoas, sei como teria agido. Estou certo de que não teria 16

contribuído, fosse por palavras, fosse por atos para o aumento dos rios de bebidas 17

venenosas existentes e nos quais corpos e almas vêm sendo destruídos 18

massivamente. O tipo de vinho que ele fez era tal que, se não fosse pelo fato de 19

haverem surgido bebidas mais fortes, não haveria necessidade de se levantar nenhum 20

protesto contra o hábito de beber. Provavelmente em princípio, não fazia mal a 21

ninguém; caso contrário, Jesus, nosso amado Salvador, não o teria criado. 22

Alguns têm levantado outro questionamento: sobre a grande quantidade de 23

vinho que Jesus criou, pois calcula-se que tenha sido cerca de 450 litros ou mais. "Era 24

preciso tudo isso?", questiona alguém. "Mesmo que fosse vinho do tipo mais fraco, 25

seria uma quantidade enormemente excessiva”, argumenta-se. Mas em que você está 26

pensando? Em um casamento ocidental comum, nos dias de hoje, em que se reúnem, 27

quando muito, umas cinquenta pessoas? O casamento oriental daquela época era 28

65

bastante diferente. Mesmo que acontecesse em uma aldeia, como era o caso de Caná 29

na Galileia, vinha gente de toda parte comer e beber, e a festa durava, quase sempre, 30

de uma semana a quinze dias. Centenas de pessoas tinham de ser devidamente 31

alimentadas durante dias pelos anfitriões da festa, a qual, geralmente, era aberta a 32

todos. Além disso, quando o Senhor multiplicou os pães e os peixes, as pessoas 33

comeram aquele alimento imediatamente ou pouco depois; do contrário, o pão mofaria 34

e o peixe apodreceria; mas vinho pode ser guardado e tomado muito depois. Não 35

tenho dúvida de que o vinho criado por Jesus Cristo era tão bom para ser guardado 36

muito tempo quanto para ser bebido imediatamente ou pouco depois. Também por 37

que não ajudar a família, fornecendo-lhe um estoque? Não deviam ser pessoas ricas. 38

Poderiam vender mais tarde o vinho, caso quisessem. Seja o que for, este não é meu 39

assunto e não quero me envolver em questão de somenos importância. Eu me 40

abstenho de toda a bebida alcoólica e acho que seria sábio se os outros fizessem a 41

mesma coisa. Quanto a isso, cada um pense por si mesmo. 42

De todo modo, Jesus Cristo deu início à dispensação do evangelho não com 43

um milagre de vingança – tal como o realizado por Deus no Egito, por meio de Moisés, 44

transformando água em sangue –, mas com um milagre de liberalidade, ao 45

transformar a água em vinho. Ele não apenas supre aquilo que é realmente necessário 46

às pessoas, mas provê com fartura, e isto é altamente representativo do reino da sua 47

graça. Ele não apenas dá aos pecadores o suficiente para salvá-los, mas dá com 48

abundância, graça sobre graça. Os dons da aliança não são limitados nem restritos, 49

não são pequenos em quantidade nem em qualidade. Dá aos homens não apenas 50

água da vida, para que possam dela beber e com ela se refrescar, mas também vinhos 51

puros, bem purificados (Is 25.6) para que possam se satisfazer e jubilar. Cristo dá 52

como o dá um rei, em profusão, sem conter copos nem vasilhas. Uma quantidade 53

como daqueles 450 litros de vinho é bastante pequena se comparada com os rios de 54

amor e misericórdia que lhe agrada conceder livremente de seu coração generoso 55

para com as almas mais necessitadas. Esqueçamos, portanto, toda questão relativa 56

ao vinho; quanto menos coisas tivermos a cogitar, melhor será, tenho certeza. Vamos 57

pensar simplesmente na misericórdia de nosso Senhor e deixar que o vinho seja um 58

exemplo de sua graça, e a fartura deste, no caso, um modelo da abundância de sua 59

graça, que ele tão liberalmente nos concede. 60

Em relação a este milagre, devemos destacar, ainda, quão simples e sem 61

ostentação ele ocorreu. Seria de esperar que, quando aqui andou sob forma humana, 62

66

o grande Senhor de todas as coisas começasse sua bela carreira de milagres 63

chamando pelo menos os escribas e fariseus, senão os reis e príncipes da terra, para 64

ver as marcas de seu chamado, a garantia e o certificado de seu comissionamento. 65

Talvez devesse colocar todos juntos para realizar um milagre diante deles, como 66

Moisés e Arão tiveram de fazer ante o faraó, para que pudessem se convencer de seu 67

messiado. Não fez assim. Jesus compareceu em uma simples festa de casamento, 68

de pessoas relativamente modestas, e ali, da maneira mais simples e mais natural 69

deste mundo, revelou sua glória. Ao transformar água em vinho, ao escolher este ato 70

como seu primeiro milagre, não chama o mestre de cerimônias da festa, nem próprio 71

noivo, ou qualquer dos anfitriões, e lhes diz: “Vocês sabem que o vinho acabou, não? 72

Pois então, estou prestes a lhes mostrar uma grande maravilha: vou transformar água 73

em vinho”. Nada disso; faz tudo em silêncio, ajudado apenas pelos servos. Pede que 74

encham de água as talhas, recipientes que estavam ali à disposição. Não pede outras 75

vasilhas, mas somente as que tinha à mão, sem fazer nenhum alarde ou exibição. 76

Usa água que também estava disponível em abundância – e realiza um milagre, se 77

posso dizer assim, da maneira mais simples e comum. É este o estilo de Jesus. 78

Se fosse um milagre desses do tipo “carismtático”, provavelmente teria sido 79

feito de maneira aparentemente misteriosa, ou teatral, sensacionalista, sem poupar 80

parafernália. Sendo, porém, um milagre genuíno, foi feito, embora de maneira 81

sobrenatural, quase como uma sequência do que seria natural. Jesus não encheu as 82

talhas vazias de vinho, mas foi até onde a natureza pode ir e usou água para fazer 83

vinho dela, seguindo assim um processo de sua providência que se realiza dia a dia. 84

Pois o vinho é produzido da água, iniciando-se o processo quando gotas de chuva 85

caem do céu e fluem para a terra em direção às raízes da vinha, fazendo brotar dos 86

cachos de uva e neles o suco rubro que irá produzir o vinho. Apenas uma diferença 87

no tempo da produção separa o vinho criado nos cachos e o surgido nas talhas. Nosso 88

Senhor não pediu a outros que fizessem isso; os servos só tiveram que lhe trazer água 89

comum. Só quando começaram a tirar das talhas a água – ou aquilo que achavam ser 90

ainda água – é que iriam os servos perceber que a água fora transformada em vinho. 91

Não faça confusão quando procurar servir a Jesus Cristo. Ele não faz qualquer 92

confusão no que realiza, mesmo quando opera milagres maravilhosos. Se você quer 93

fazer uma coisa boa, vá e faça da maneira mais natural que puder. Tenha um coração 94

simples e uma mente humilde. Seja você mesmo. Não se deixe afetar pela sua 95

provável espiritualidade, como se tivesse que caminhar sobre pernas de pau no céu. 96

67

Ande com os seus próprios pés e coloque a religiosidade no devido segundo plano. 97

Se você tem uma grande obra a fazer, faça-a com simplicidade – que é parente da 98

excelência –, pois toda ostentação e tudo que é enfeitado e ostensivo demais é, afinal 99

de contas, miserável e desprezível. Somente a simples naturalidade possui beleza 100

genuína. Tal beleza estava presente neste milagre do Salvador. 101

Tome estes comentários como uma espécie de prefácio, pois quero mostrar 102

agora os princípios ocultos que se encontram neste texto bíblico e, em seguida, após 103

mostrá-los, apresentar como devem ser aplicados. 104

105

I. Ordenou-lhe Jesus: Enchei de água essas talhas (Jo 2.7). QUAIS SÃO OS 106

PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS NESTE MODO DE AGIR DO NOSSO SENHOR? 107

108

Em primeiro lugar: como norma, quando Cristo está para conceder uma 109

bênção, ele dá uma ordem. Eis aí um fato que sua memória vai ajudar a estabelecer 110

rapidamente. Nem sempre, na verdade, é assim; mas, como regra geral, uma palavra 111

de comando precede uma palavra de poder, ou, então, vem juntamente com ela. Se 112

ele está prestes a criar vinho, o processo aqui não consiste em apenas dizer "haja 113

vinho", mas começa com uma ordem dada aos homens: Enchei de água essas talhas. 114

Eis um homem cego a quem Cristo está pronto a dar visão. Ele coloca barro em seus 115

olhos e, então, lhe diz: Vai, lava-te no tanque de Siloé (Jo 9.7). Ali esta um homem 116

com a mão atrofiada e inútil para ele. Cristo quer restaurá-la e diz: Estende a tua mão 117

(Mt 12.13). O princípio se mostra aplicável até mesmo em casos em que parece não 118

deveria se aplicar, pois mesmo a uma criança morta ele ordena: Menina, levanta-te 119

(Lc 8.54). E até a Lázaro – que já cheirava mal por estar morto havia quatro dias – ele 120

ordena: Lázaro, vem para fora! (Jo 11.43). Deste modo, ele concede benefício por 121

meio de uma ordem. Os benefícios do evangelho vêm juntamente com um 122

mandamento do evangelho. 123

Observe como este princípio que se verifica nos milagres está presente 124

também nas maravilhas de sua graça divina. Eis um pecador que quer ser salvo. O 125

que Cristo tem a dizer a este pecador, mediante os apóstolos? Crê no Senhor Jesus 126

e serás salvo (At 16.31). E você? Pode crer nisso? Mas ele não está morto em seus 127

pecados? Irmãos, em lugar de levantarmos questionamentos tais, aprendamos, 128

simplesmente, que Jesus Cristo ordena que os homens creiam; e, por isso, 129

comissionou seus discípulos a dizerem: Arrependei-vos, porque é chegado o reino 130

68

dos céus (Mt 3.2). Ou seja... Deus, não levando em conta os tempos da ignorância, 131

manda agora que todos os homens em todo lugar se arrependam (At 17.30). Ele nos 132

ordena irmos e pregarmos esta sua palavra: Crê no Senhor Jesus e serás salvo. 133

Mas por que uma ordem? É sua vontade que assim seja, e isso deveria ser 134

suficiente para você, que se diz ser discípulo. Na verdade, tem sido exatamente 135

sempre assim, desde os tempos mais antigos, quando o Senhor estabeleceu sua 136

maneira própria de lidar com uma nação praticamente morta. Ali estavam ossos secos, 137

no vale, em grande número excessivamente secos. Ezequiel recebe então a ordem 138

de profetizar a eles. O que diz o profeta? Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor (Ez 139

37.4). É esta a sua maneira de fazê-los viver novamente. Sim, por meio de uma ordem 140

para que ouçam, coisa que, humanamente, ossos secos não podem fazer. Ele, porém, 141

dá ordem aos mortos, aos ossos secos, aos desesperados, e, mediante ao seu poder, 142

surge a vida. 143

Oro para que você não seja desobediente à ordem do evangelho. Fé é um 144

dever; caso não fosse, não leríamos nas Escrituras a respeito da obediência da fé 145

(Rm 16.26). Por isso, quando a questão é abençoar, Jesus Cristo desafia a obediência 146

dos homens, dando ordens reais. É o que acontece quando deixamos de não sermos 147

convertidos e nos tornamos crentes. Quando Deus quer abençoar o seu povo 148

tornando-o bênção, ele o faz pronunciando uma ordem. Ao orarmos para que o Senhor 149

se levante e mostre seu braço de poder, sua resposta, contendo uma ordem, é: 150

Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, Sião (Is 52.1). Ao rogarmos que o mundo 151

seja trazido a seus pés, sua resposta, em forma de ordem, é: Foi-me dada toda a 152

autoridade nos céus e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, 153

batizando-os (Mt 28.19-20). Sua ordem é para que sejamos veículos da sua bênção. 154

Se queremos ter a bênção de ver conversões se multiplicando e as igrejas sendo 155

edificadas, Cristo nos dará esse benefício, pois todo dom procede dele, como foi 156

transformar água em vinho. Contudo, primeiro ele nos diz: “Vão e proclamem a minha 157

salvação até os confins da terra". Temos de encher as talhas de água. Se formos 158

obedientes ao seu mandado, veremos de que modo poderoso ele irá operar, estará 159

conosco, e as nossas orações serão ouvidas. 160

Este é, enfim, o primeiro princípio que vejo aqui: Cristo dá ordens àqueles que 161

ele deseja abençoar. 162

163

69

Em segundo lugar, as ordens de Cristo não são para serem questionadas, mas, 164

sim, obedecidas. As pessoas querem vinho, e Cristo diz aos servos: Enchei de água 165

essas talhas. Se aqueles servos pensassem da mesma forma que os críticos 166

capciosos dos tempos modernos, teriam olhado com ceticismo para o Senhor por um 167

momento e feito uma objeção: “Eles não querem água; esta não é uma festa da 168

purificação, é uma festa de casamento. Não se usa beber água no casamento. Podem 169

querer água quando forem à sinagoga ou ao templo, para lavar e ter as mãos 170

purificadas, de acordo com os costumes. Mas agora, não, não querem água; a hora, 171

a ocasião, tudo mais, requer que seja servido vinho”. Todavia, o conselho que Maria 172

tinha dado aos servos fora muito próprio: Fazei tudo quanto ele vos disser. Nós 173

também: não nos cabe, não devemos questionar nem criticar as ordens do Senhor, 174

mas cumpri-las imediatamente. 175

Em alguns momentos, pode parecer que a ordem de Cristo não seja pertinente 176

ao assunto em questão. O pecador pede: "Senhor, salva-me; vence o pecado em 177

mim". Nosso Senhor responde: "Creia". O pecador não entende de que modo crer em 178

Cristo poderá o capacitá-lo a controlar um pecado insistente. À primeira vista, parece 179

não haver nenhuma conexão entre crer no Salvador e dominar um mau hábito ou se 180

livrar de um mau costume, como a intemperança, a paixão, a cobiça, a falsidade. 181

Existe, sim, uma conexão. Mas mesmo que você não consiga visualizá-la, sua parte 182

é não questionar e, sim, fazer aquilo que Jesus ordena que você faça. É no caminho 183

da ordem cumprida que o milagre da misericórdia será realizado. Enchei de água 184

essas talhas – apesar de o que você quer mesmo seja vinho. Cristo vê uma conexão 185

total entre a água e o vinho, embora você nem a perceba. Ele tem um motivo para que 186

as talhas sejam cheias de água, que você desconhece. Não nos cabe pedir 187

explicações, mas sermos simplesmente obedientes. Se você fizer exatamente aquilo 188

que Jesus ordena, da maneira que ordena e no momento em que ordena, tão somente 189

porque ele ordena, descobrirá que os seus mandamentos não são penosos (1Jo 5.3) 190

e em os guardar há grande recompensa (Sl 19.11). 191

Há momentos em que essas ordens parecem ser até mesmo triviais. Podem 192

nos parecer algo insignificante. Aquela família precisava de vinho, e Jesus diz: Enchei 193

de água essas talhas. Os servos poderiam ter dito: "Isso é simplesmente passar o 194

tempo e brincar conosco. Faríamos melhor se fôssemos falar com os amigos dessas 195

pessoas e pedíssemos se poderiam contribuir oferecendo outras vasilhas de vinho. 196

Melhor ainda se encontrássemos alguma adega ou estalagem onde pudéssemos 197

70

comprar vinho. Mas mandar-nos ir ao poço encher essas grandes talhas, que só 198

podem conter é muita água, está nos parecendo brincadeira". Meus irmãos sei que, 199

às vezes, o caminho do dever parece que não vai nos levar ao resultado desejado. 200

Preferimos fazer outra coisa. Esta outra coisa pode até parecer estar errada, mas nos 201

dá a impressão de que poderíamos realizar nosso plano de maneira mais fácil e direta; 202

desse modo, lançamo-nos neste outro curso, não ordenado e talvez proibido. 203

Sei que muitas consciências perturbadas acham que simplesmente crer em 204

Jesus é muito pouco. O coração enganoso sugere sempre uma maneira que parece 205

ser mais eficaz: "Faça penitência; sinta amargura; chore certa quantidade de lágrimas. 206

Mude sua mente, quebrante seu coração” – é isso o que pede a nossa carne. Jesus 207

simplesmente nos ordena: "Creia". Isto realmente parece ser uma coisa muito 208

pequena a ser feita, como se não fosse possível receber a vida eterna simplesmente 209

por colocar sua confiança em Jesus Cristo. Mas este é o princípio que quero ensinar 210

aqui: quando Jesus Cristo está prestes a dar uma bênção, ele dá uma ordem que não 211

deve ser questionada, mas, sim, obedecida imediatamente. Se não o crerdes, 212

certamente não haveis de permanecer (Is 7.9); mas se quiserdes, e me ouvirdes, 213

comereis o bem desta terra (Is 1.19). Fazei tudo quanto ele vos disser. 214

O terceiro princípio é este: é bom cumprirmos com zelo todas as ordens que 215

recebemos de Cristo. Ele disse: Enchei de água essas talhas, e os servos encheram-216

nas até em cima (Jo 2.7). Existem duas maneiras de encher uma talha. Ela ser cheia 217

até o máximo, mas você pode ainda encher um pouco mais, até começar a 218

transbordar. O líquido começa a se mexer quando está prestes a transbordar numa 219

cascata cristalina. É a plenitude do enchimento. Ao cumprir as ordens de Cristo, meus 220

caros irmãos e irmãs, que cheguemos às últimas consequências: que cumpramos as 221

suas ordens “até em cima”. Se a ordem é “crê”, creia nele com toda a sua força, confie 222

nele de todo o seu coração. Se é “prega o evangelho”, pregue a tempo e fora de tempo 223

(2Tm 4.2) – e pregue o evangelho – por completo. Pregue-o até em cima. Não 224

entregue às pessoas um evangelho pela metade. Dê-lhes um evangelho 225

transbordante. Encha as talhas até a borda. Se é para se arrepender, peça-lhes um 226

arrependimento profundo e sincero. Se é para crer, peça-lhes uma fé profunda, 227

absoluta, como a de uma criança, uma fé cheia até a borda. Se a ordem é orar, ore 228

poderosamente: encha até a beirada o vaso da oração. Se é para buscar uma bênção 229

nas Escrituras, procure-a do início ao fim: encha até a extremidade o vaso da leitura 230

da Bíblia. As ordens de Cristo nunca devem ser cumpridas com negligência. Que 231

71

coloquemos nossa alma em tudo aquilo que ele nos ordenar, ainda que não possamos 232

entender o motivo pelo qual nos manda realizar essa tarefa. Os mandamentos de 233

Cristo devem ser cumpridos com todo o entusiasmo, e realizados ao extremo, se for 234

possível haver um extremo. 235

O quarto princípio é que nossa dedicada ação em obediência a Cristo não é 236

contrária, mas necessária, à nossa dependência dele. Vou lhes demonstrar como. 237

Alguns irmãos me dizem: “Veja só! Você promove aquilo que chama de cultos de 238

reavivamento, nos quais tenta despertar os homens por meio de apelos sinceros e 239

discursos entusiasmados. Não vê que Deus faz sua própria obra? Esses esforços 240

seus não passam de uma tentativa sua de tirar a obra das mãos de Deus. A maneira 241

correta é confiar nele e não fazer coisa alguma.” Tudo bem, irmão. Já entendi sua 242

posição: confiar nele e não fazer coisa alguma. Tomo a liberdade de não ter plena 243

certeza de que você realmente confia nele, pois, se me lembro bem quem você é, 244

acho que já estive em sua casa e sei que você é a pessoa mais tristonha, desanimada 245

e descrente que conheço. Você nem mesmo sabe se já foi salvo nove ou dez vezes. 246

Acho que você deveria falar de sua fé para você mesmo. Se tivesse essa fé tão 247

maravilhosa, sem dúvida que faria a você conforme sua fé. Quantas pessoas se 248

achegaram à sua igreja – sua igreja abençoada, onde você exerce sua abençoada fé 249

sem obras – mediante sua falta de ação, este ano? Quantos ingressaram nela? "Bem, 250

nós não estamos crescendo muito", confessa você. Realmente, acho que vocês 251

realmente não cresceram. Se você pretende estender o reino do redentor por meio da 252

inação, não acho que esteja trabalhando da maneira que Cristo aprova. Mas nós nos 253

arriscamos a dizer-lhe que vamos prosseguir trabalhando para Cristo com todo o 254

nosso coração e a nossa alma, usando todos os meios disponíveis para trazer os 255

homens a ouvir o evangelho, sentindo, mais ou menos como você, que não podemos 256

fazer qualquer coisa que seja sem o Espírito Santo, que confiamos em Deus, penso 257

eu, quase da maneira que você crê, porque a nossa fé tem produzido muito mais 258

resultado do que a sua. Não me surpreenderia se, no final, sua fé sem obras se 259

mostrasse morta, para ficar apenas nisso, e que a nossa fé, tendo obras consigo, se 260

mostre uma fé viva no final de tudo. 261

Vamos colocar a questão da seguinte maneira: Jesus Cristo diz: Enchei de 262

água essas talhas. O servo ortodoxo responderia: "Meu Senhor, creio plenamente que 263

tu podes produzir vinho para essas pessoas sem a presença de água e, com a tua 264

permissão, não trarei água alguma. Não vou interferir na obra de Deus. Estou bem 265

72

certo de que tu não queres a nossa ajuda, Senhor gracioso. Tu podes fazer que estas 266

talhas se encham de vinho sem que seja necessário trazer um único balde de água, 267

e, assim, não vamos roubar glória de ti. Vamos simplesmente nos colocar atrás e 268

esperar por ti. Quando o vinho for feito, beberemos um pouco dele e bendiremos o teu 269

nome. Enquanto isso, oramos para que tu nos perdoes, pois os baldes com água são 270

difíceis de carregar, e são necessários muitos deles para encher todas essas talhas. 271

Além disso, seria uma interferência na obra divina e, desse modo, preferimos nos 272

aquietar". Você não acha que os servos que falassem dessa maneira estariam 273

mostrando que não tinham fé alguma em Jesus? Não vamos afirmar que isso pudesse 274

comprovar sua descrença, mas que se parece muito com tal atitude, parece. 275

Veja agora o servo que, tão logo que Jesus ordena Enchei de água essas 276

talhas, diz: "Não entendo isso, não vejo qualquer ligação entre pegar água e a falta de 277

vinho; mas vou até o poço. Lá vou encher, e depois trazer, dois baldes de água. Você 278

vem comigo, meu irmão? Venha comigo e me ajude a trazer os baldes. E ali vão eles, 279

voltando alegremente com a água, derramando-a em talhas até que estejam cheias 280

até a boca. Estes me parecem ser os servos crentes, que obedecem à ordem, mesmo 281

sem entendê-la, mas esperando que, de uma maneira ou outra, Jesus Cristo saiba o 282

que irá fazer, como na verdade saberá, ao realizar seu milagre. Não estamos 283

interferindo em sua obra, queridos irmãos, quando nos empenhamos com dedicação 284

em nossa tarefa. Estamos simplesmente demonstrando nossa fé nele se trabalhamos 285

para ele da maneira que ele nos ordena que trabalhemos e confiando nele com uma 286

fé plena. 287

Vou dar ênfase semelhante ao próximo princípio: somente a nossa ação não é 288

suficiente. Sabemos disso, é certo, mas deixe-me lembrar-lhe mais uma vez. Eis as 289

talhas e os baldes cheios, e mais do que isso não poderiam estar. Que abundância 290

de água! Nota-se que, na tentativa de enchê-los até a boca, a água escorreu por todo 291

canto. Bem, todas as seis grandes talhas estão cheias de água. Existe algum vinho 292

ali? Nenhuma gota sequer. O que eles trouxeram foi água, nada além de água que, 293

por enquanto, permanece sendo água. Suponhamos que eles fossem levar aquela 294

água para a festa. Tenho a impressão de que os convidados não considerariam água 295

fresquinha uma bebida adequada para uma festa de casamento. Não sei se o 296

deveriam, mas acho que não foram educados propriamente na crença de uma 297

abstinência total. Certamente reclamariam com o dono da festa: "Você já até nos deu 298

vinho, e do bom, e água, agora não é um final feliz para esta festa". Estou certo, 299

73

porém, de que isso não aconteceria. E, no entanto, aquele líquido era água, nada mais 300

que água pura, quando os servos a derramaram nos vasilhames Assim também, 301

apesar de tudo o que um pecador possa fazer ou de tudo que um salvo possa fazer, 302

nada existe por parte do esforço humano que consiga ajudar na salvação de uma alma 303

até que Cristo pronuncie a palavra de poder. Paulo plantou, e Apolo regou, mas não 304

houve crescimento até que Deus o tivesse dado. Pregue o evangelho, trabalhe com 305

as almas, seja persuasivo, converse, exorte. Saiba, porém, que não há poder em 306

qualquer coisa que você possa fazer até que Jesus Cristo mostre o seu poder divino. 307

Sua presença é o nosso poder. Bendito seja seu nome porque ele virá, encherá as 308

talhas com água e a transformará em vinho. Somente ele pode fazer isso, e os servos 309

que mostram disposição de encher as talhas são justamente dos primeiros a 310

confessar que somente ele pode fazer tais coisas. 311

Agora, o último princípio: o de que, embora a ação humana não consiga por si 312

mesma alcançar o fim desejado, ela tem seu lugar específico no processo e Deus 313

determina que ela seja necessária. Por que precisava o Senhor que as talhas fossem 314

enchidas de água? Não posso afirmar que isso fosse realmente necessário em si, mas 315

com o objetivo de que o milagre pudesse ser aberto e claro para todos, necessário se 316

tornou. Suponha que o nosso Senhor tivesse dito: "Vão até as talhas e peguem o 317

vinho, que está lá". Aqueles que vissem isso certamente diriam que já havia vinho 318

antes nas talhas e que, portanto, nenhum milagre fora realizado. Quando o nosso 319

Senhor pede que as talhas sejam enchidas de água, não haverá mais espaço algum 320

para que qualquer gota de vinho possa estar ali escondida. O mesmo aconteceu com 321

Elias: com o objetivo de provar que não havia fogo oculto algum debaixo do altar, no 322

Monte Carmelo, ordenou que fossem até o mar e trouxessem água a fim de derramá-323

la sobre o altar, sobre o sacrifício e no rego em volta do altar até que estivesse cheio. 324

Mandou: "Façam uma segunda vez", e eles o fizeram. Disse ainda: "Façam-no pela 325

terceira vez". Eles o fizeram, e, assim, não havia nenhuma possibilidade de fraude. 326

Portanto, quando o Senhor Jesus ordena aos servos que encham as talhas com água, 327

está garantindo não haver qualquer possibilidade de vir a ser acusado de falsário. Eis 328

por que foi necessário, portanto, que as talhas fossem cheias de água. 329

Além disso, foi necessário porque se tornou altamente edificante para os servos. Você 330

pode observar, no texto, que quando o mestre-sala prova do vinho, não sabe de onde 331

veio. Nem podia imaginar de onde ou como tinha surgido ali e mostrou-se surpreso. 332

74

Mas, conforme diz a Palavra, “o sabiam os serventes”. O mesmo acontece com 333

alguns membros das igrejas quando almas se convertem. Esses membros são boas 334

pessoas, mas pouco sabem a respeito de conversão de pecadores. Não sentem muito 335

prazer no reavivamento. Na verdade, tal qual o irmão mais velho do filho pródigo, têm 336

certa prevenção para com os recém-convertidos, sobretudo quando se mostram muito 337

efusivos com a conversão. Como esses membros se consideram muito sérios e 338

respeitáveis, prefeririam não ser essas pessoas, que julgam ser de um nível mais 339

baixo, sentadas ao seu lado. Sentem-se um tanto desconfortáveis por terem de ficar 340

tão perto delas. Pouco ou nada sabem, enfim, a respeito do que realmente está 341

acontecendo; todavia, bem o sabem os serventes, ou seja, os servos. 342

É exatamente isso o que quero dizer: crentes sinceros, que fazem a obra e 343

enchem as talhas, sabem o que está acontecendo. Jesus ordenou que se enchessem 344

as talhas com água com o propósito de que os homens que trouxeram a água do poço 345

soubessem depois que aquilo fora um milagre. E eu lhe garanto: se você trouxer almas 346

a Cristo, conhecerá o seu poder. Vai vibrar de alegria ao ouvir o clamor de glória do 347

arrependido e perceber brilhante raio de luz de júbilo sobre a face de quem nasce de 348

novo, ao ter seus pecados lavados e se sentir restaurado. Se você quer sentir o poder 349

miraculoso de Jesus Cristo, deve ir não realizar milagres, mas, simplesmente, trazer 350

água e encher as talhas. Faça as suas obrigações normais de homem e mulher 351

cristãos – coisas nas quais não há poder em si mesmas, mas que Jesus Cristo conecta 352

à sua própria obra divina – e só o fato de você saber que participou dessa obra será 353

excelente para sua edificação e seu conforto: “Se bem que o sabiam os serventes”. 354

355

Creio que já falei o suficiente sobre os princípios presentes neste texto. 356

357

II. Tenha paciência comigo um pouco mais, enquanto procurarei aplicar agora esses 358

princípios a propósitos práticos. Vejamos, então, DE QUE MANEIRA EXECUTAR 359

ESTA ORDEM DIVINA: Enchei de água essas talhas. 360

361

Primeiramente, use as habilidades que você possui no serviço de Cristo. Ali 362

estão seis talhas. Jesus usa o que encontra disponível, à mão. Há água no poço; 363

nosso Senhor a utiliza também. Nosso Senhor costuma empregar em sua obra o seu 364

povo, com a capacidade e as habilidades que cada qual possui, em vez de usar os 365

anjos ou uma nova classe de seres criados especialmente com esse propósito. 366

75

Queridos irmãos e irmãs, se nenhum de vocês possui um cálice de ouro, encha seu 367

vasilhame comum. Mesmo que você não se considere uma taça de prata de elaborado 368

labor, ou uma peça de porcelana de Sèvres, isso não importa: encha o vaso de barro 369

que você acha que é. Se não pode fazer cair fogo do céu, tal qual Elias, ou realizar 370

milagres como fizeram os apóstolos, faça então o que puder. Se você não possui prata 371

nem ouro, dê a Cristo aquilo que você tiver. Traga água mediante suas ordens e há 372

de ser o melhor dos vinhos. O mais comum dos dons pode servir aos propósitos de 373

Cristo. Assim como ele tomou apenas alguns pães e peixes e com eles alimentou uma 374

multidão, assim, também ele se vale de seis talhas de água e nelas cria vinho. 375

Você pode observar como melhorou o que possuía, a começar pelas talhas, 376

que estavam vazias, mas foram cheias. Encontram-se hoje aqui muitos irmãos que 377

cursam a universidade. Estão buscando melhorar seus dons e habilidades. Vocês 378

estão agindo corretamente, irmãos. No entanto, já ouvi uma vez quem dissesse: "O 379

Senhor Jesus não precisa daquilo que você aprendeu na escola”. É bem provável que 380

sim, do mesmo modo que ele talvez não precisasse da água em si. Mas certamente 381

ele também não quer de modo algum de estupidez e ignorância nem do modo de falar 382

errado e rude e sem educação. Ele não quis usar talhas vazias, mas, sim, cheias, e 383

os servos fizeram bem em enchê-las. Hoje, nosso Senhor não quer cabeça vazia em 384

seus ministros, muito menos um coração vazio. Assim, meus irmãos, encham suas 385

talhas com água. Esforcem-se, estudem, aprendam tudo o que puderem; encham as 386

talhas com água. "Oh", talvez alguém alegue, "mas de que maneira esses estudos os 387

levarão à conversão? A conversão é como o vinho, e tudo o que esses jovens irmãos 388

aprenderão será como água". Tem razão. Mas espere até que eu ordene a esses 389

estudantes que encham suas talhas de água, para que então o Senhor Jesus a 390

transforme em vinho. O conhecimento humano pode ser perfeitamente santificado, de 391

modo que venha a ser útil na propagação do conhecimento de Cristo. Espero em Deus 392

que já haja passado aquela época em que muitos imaginavam que somente a 393

ignorância e a rudeza poderiam ser úteis ao reino dos céus. O grande Mestre fez que 394

todo o seu povo aprendesse tudo o que devia aprender, especialmente conhecesse a 395

si mesmo e às Escrituras, para que melhor pudesse proclamar seu evangelho. "Enchei 396

de água essas talhas". 397

398

Assim, a fim de aplicarmos esse princípio, vamos todos usar os meios de 399

bênção conforme indicados por Deus. Quais são esses meios? 400

76

Em Primeiro lugar, a leitura das Escrituras. Já que "examinais as Escrituras", 401

faça-o então examinando tudo o que possa. Busque entender as Escrituras. "Se eu 402

conhecer a Bíblia, é que então serei salvo?" Não; você terá de conhecer o próprio 403

Cristo por meio do Espírito Santo. Mais uma vez: enchei de água essas talhas; e, 404

enquanto estudar as Escrituras, pode estar certo de que o Salvador irá abençoar sua 405

Palavra e transformar essa água em vinho. Há sempre auxílio para você nos meios 406

da graça, como, por exemplo, ouvir um ministro do evangelho. Lembre-se de que você 407

deve encher a talha com água até em cima. "Mas eu posso ouvir milhares de sermões 408

e não ser salvo". Pode ser, mas sua tarefa é encher a talha com água, e enquanto 409

você ouve o evangelho, Deus o abençoa, pois a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra 410

de Cristo" (Rm 10.17). Saiba usar os meios que Deus lhe indicar. E, uma vez que o 411

nosso Senhor decidiu salvar os homens por meio da pregação da Palavra, oro para 412

que levante quem pregue sem cessar, a tempo e fora de tempo, entre quatro paredes 413

e nas ruas. "Mas não é a nossa pregação propriamente que os salvará”, dizem alguns. 414

Sei disso; mas pregar é trazer a água, e, enquanto nós o fazemos, Deus por sua vez, 415

irá abençoar a água e a transformará em vinho. Saiamos a distribuir literatura religiosa 416

e folhetos. “Oh, mas não será propriamente por ler este material que as pessoas serão 417

salvas”. Certamente, não; mas, se o leem, Deus pode e vai fazer que a verdade seja 418

lembrada em sua mente e impressa em seu coração. Enchei de água essas talhas. 419

Cuidemos de distribuir uma infinidade de folhetos. Espalhemos literatura religiosa por 420

toda parte. Enchei de água essas talhas, e o Senhor irá transformar água em vinho. 421

Não se esqueça das reuniões de oração. Que abençoado meio de graça, 422

trazendo o poder do céu a todas as obras da igreja. Enchamos essa talha de água. 423

Não tendo do que reclamar da sua frequência nas reuniões de oração, mas, oh, 424

mantenham-na ativa, meus irmãos! Se você pode orar, ore! Bendito seja o nome de 425

Deus se você tem espírito de oração. Continuem orando! Enchei de água essas talhas, 426

e, em resposta à sua oração, Jesus irá transformá-la em vinho. Professores de escola 427

bíblica dominical, não negligenciem neste seu bendito meio de ser útil. Enchei de água 428

essas talhas. Trabalhem no sistema da escola dominical com toda sua força. "Mas as 429

crianças não serão salvas simplesmente por serem colocadas juntas e lhes falarmos 430

sobre Jesus. Não lhes podemos dar um novo coração". E quem disse que vocês 431

podem? Enchei de água essas talhas que Jesus Cristo sabe como transformá-la em 432

vinho. E ele não deixará de fazê-lo enquanto formos obedientes às suas ordens. 433

434

77

Faça uso de todos os meios, mas saiba usá-los com a motivação correta. Volto 435

agora àquela parte do texto que diz: "E encheram-nas até em cima". Sempre que você 436

estiver ensinando aos pequeninos da escola dominical, ensine-os bem. Encha até em 437

cima. Quando você pregar, meu caro amigo, não pregue como se estivesse sonolento. 438

Anime-se, encha o seu ministério até em cima. Quando você estiver buscando 439

evangelizar a comunidade, não o faça sem motivação, como se não se importasse se 440

aquelas almas venham a ser salvas ou não. Encha-as até em cima, pregue o 441

evangelho com toda a sua força, clame pelo poder do alto. Encha cada vaso até em 442

cima. Tudo o que valer a pena fazer, faça-o bem. Ninguém jamais serviu a Cristo bem 443

demais. Já ouvi dizer que, em alguns cultos, pode haver zelo demais; mas, no serviço 444

de Cristo, você pode ter quanto zelo puder e quiser e, ainda assim, jamais haverá 445

excesso se a prudência estiver unida a ele. Enchei de água essas talhas, e até em 446

cima. Faça tudo de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças. 447

Ainda no propósito de aplicação desse princípio, lembre-se que, mesmo que 448

você tenha feito tudo o que pode, sempre haverá deficiência em tudo o que fez. Não 449

deve haver problema algum de sua parte, ao voltar da distribuição de folhetos, da 450

classe da escola dominical ou da pregação, ao chegar em casa, em ajoelhar-se e 451

clamar: "Senhor, eu fiz tudo o que me ordenaste, mas nada terá sido feito se não tiver 452

o teu toque final. Senhor, eu enchi essas talhas de água e, embora só possa 453

simplesmente enchê-las com água, as enchi até em cima. Com o melhor da minha 454

capacidade, Senhor, busquei ganhar vidas para ti. Sei que não pode haver uma alma 455

salva, uma criança convertida ou qualquer glória trazida ao teu nome simplesmente 456

por aquilo que fiz, pelos meus atos em si. Contudo, bom mestre, fala a palavra capaz 457

de realizar o milagre de fato, e a água que enche os vasos transforma-a em vinho. 458

Somente tu podes fazê-lo. Senhor, eu não posso. Eu lanço esse fardo sobre ti". 459

Isto me leva à última aplicação do princípio que é: tenha confiança que o 460

Senhor fará a obra. Veja bem, poderia haver outra maneira de encher as talhas de 461

água. Suponha que aquelas pessoas nunca tivessem recebido a ordem de encher as 462

talhas e que o ato de fazer isso não tivesse nenhuma relação com Cristo. Suponha 463

que aquela ação tivesse sido apenas um lampejo de sua própria imaginação e que 464

elas tivessem dito: "Essas pessoas não têm vinho, mas, quem sabe, elas podem 465

querer se lavar, e então vamos encher seis talhas de água". Nada teria acontecido a 466

partir desse procedimento. A água teria ficado ali. Lembro-me de um menino da escola 467

de Eton, que disse: "A água consciente viu seu Deus e ficou vermelha”, uma 468

78

expressão verdadeiramente poética. A água consciente, no entanto, teria visto os 469

servos, e não teria ficado vermelha. Teria simplesmente refletido a face deles em sua 470

superfície brilhante, e nada além disso teria acontecido. Foi preciso que o próprio 471

Senhor Jesus Cristo, com seu poder presente, realizasse o milagre. Mas isso 472

aconteceu porque ele mesmo havia ordenado aos servos que enchessem as talhas 473

com água e, desse modo, viu-se compelido – sé que posso usar tal expressão em 474

relação ao nosso Rei – a transformá-la em vinho. 475

Se não fosse ele o Cristo, teria simplesmente pregado uma peça naqueles 476

servos. Mas então eles teriam cobrado dele: “Por que nos deste uma ordem absurda 477

como esta?” Se depois de enchermos as talhas com água Jesus não realizasse nada 478

por nós, teríamos apenas feito o que ele nos havia ordenado; mas, como cremos nele, 479

ouso dizer, ele se obriga a si mesmo a realizar o milagre. Do contrário, seríamos 480

perdedores, e perdedores terríveis. Se o Senhor não mostrasse seu poder, só 481

teríamos a lamentar, dizendo"trabalhei em vão e gastei minhas forças por nada". Não 482

seríamos, porém, tão perdedores quanto ele próprio, pois o mundo logo afirmaria 483

serem as ordens de Cristo vazias, inúteis e ineficientes. Diria que a obediência à sua 484

palavra não traz nenhum resultado. Diria o mundo: “Você encheu as talhas com água 485

só porque ele ordenou que fizesse; esperou que ele transformasse água em vinho, 486

mas ele não fez nada disso. Sua fé é vã, sua obediência é vã; ele não é um mestre 487

que valha ser servido”. Nós seríamos perdedores, mas ele seria mais ainda: perderia 488

sua glória. 489

Por isso, de minha parte, creio que jamais uma palavra de Cristo possa ser dita 490

em vão. Tenho certeza de que nenhum sermão que contenha Cristo em si possa ser 491

pregado sem resultado. Alguma coisa positiva disso resultará, se não hoje, amanhã, 492

mas alguma coisa boa há de resultar. Quando um sermão meu é publicado, quando 493

vejo impresso em um livro, já estou desde antes bem feliz em saber de almas que 494

foram e serão salvas por este meio. Se ainda não foi impresso, apenas o preguei, já 495

acho que algo de bom Deus fará brotar dele. Se preguei Cristo, coloquei sua verdade 496

salvadora naquele sermão, aquela semente não poderá morrer. Mesmo que pareça 497

morrer naquele livro por vários anos, tal qual grão de trigo enterrados no solo, um dia 498

viverá, crescerá e dará fruto. Ouvi falar recentemente de uma vida que foi levada a 499

Cristo por um sermão que preguei 25 anos atrás. Quase todas as semanas, ouço falar 500

a respeito de pessoas que foram trazidas a Cristo por sermões meus pregados em 501

79

reuniões realizadas em Park Street, no Exeter Hall e nos jardins de Surrey. Sinto, 502

portanto, que Deus não deixará uma testemunha fiel sequer cair ao chão. 503

Vá em frente, irmão. Encha as talhas de água. Não acredite, porém, que você 504

está fazendo muito, mesmo quando tiver feito tudo o que pode. Não comece a se 505

parabenizar diante dos sucessos. Tudo vem de Cristo e tudo virá de Cristo. Todavia, 506

não diga na reunião de oração: "Paulo pode ter plantado, e Apolo pode ter regado, 507

mas...". Não é bem assim o que diz a passagem. Ela diz exatamente o contrário, ou 508

seja: que Paulo plantou; Apolo regou; mas Deus deu o crescimento (1Co 3.6). O 509

crescimento é dado por Deus, uma vez que plantação e a semeadura sejam feitas de 510

maneira adequada. Os servos devem encher as talhas; e é o Mestre quem transforma 511

a água em vinho. 512

Que o Senhor nos dê a graça de sermos obedientes às suas ordens, 513

especialmente a este mandamento: “Creia e viva!” E que possamos encontrá-lo nas 514

bodas celestiais para bebermos vinho novo com ele, para todo o sempre. Amém e 515

amém. 516