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ELSA MARIA NUNES DA SILVA
Bolseira do Centro de Cincia e Tecnologia da Madeira e do POPRAM III
LITERATURA E CINEMA: A ESCRITA CINEMATOGRFICA DE O
DELFIM, DE JOS CARDOSO PIRES
FUNCHAL
2008
CCUURRSSOO CCOO--FFIINNAANNCCIIAADDOO PPEELLAA UUNNIIOO EEUURROOPPEEIIAA
FFUUNNDDOO SSOOCCIIAALL EEUURROOPPEEUU
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS ROMANSTICOS
LITERATURA E CINEMA: A ESCRITA CINEMATOGRFICA DE O
DELFIM, DE JOS CARDOSO PIRES
Tese submetida ao grau de Mestre em
Ensino da Lngua e da Literatura
Portuguesas, sob a orientao do
Professor Doutor Carlos Reis.
ELSA MARIA NUNES DA SILVA
FUNCHAL
2008
DEDICATRIA
Ao Vtor Marco e Maria Ana, por acreditarem sempre.
AGRADECIMENTOS
Queremos prestar um especial agradecimento:
Ao Prof. Dr. Carlos Reis, pelo incentivo, apoio, disponibilidade e orientao
prestada;
Universidade da Madeira, pela oportunidade de formao;
Ao CITMA Centro de Cincia e Tecnologia da Madeira -, pela atribuio
da Bolsa Individual de Formao referente parte curricular do curso;
Biblioteca Pblica Regional da Madeira, pelo Servio de Emprstimo de
Bibliografia;
amiga Alcia Rodriguez, residente em Frana, pelo apoio na aquisio de
Bibliografia;
Aos amigos e colegas Ancia, Joo, Sandra, Isabel, Lusa, Teresa, Licnio e
Zlia, pela disponibilidade e apoio.
minha famlia.
RESUMO
O trabalho que agora se apresenta centra-se no domnio das relaes que
se estabelecem entre o modo de narrar de O Delfim, de Jos Cardoso Pires,
e a narrao tipicamente cinematogrfica. Com efeito, tentamos demonstrar
como a forma particular com que naquela obra literria se produz o efeito de
uma intermutabilidade dos contedos da conscincia se obtm em grande
parte dessa adopo de procedimentos da gramtica e da textura flmicas,
nomeadamente das formas espaciais e temporais do filme e da montagem
tcnica. O cdigo cinematogrfico, ao colaborar, em O Delfim, na expresso
de uma temporalidade diversa e inovadora mais conforme organizao do
pensamento e da subjectividade, auxiliando-o na representao da
modificao perceptiva to peculiar arte moderna, surge assim como uma
fonte de renovao, permitindo ao texto literrio em anlise ultrapassar a
natureza conceptual e mondica do seu material expressivo.
ABSTRACT
The work now presented concerns the field of the connections between the
narrative structure of the novel O Delfim, written by Jos Cardoso Pires, and
the cinematic narrative in general. Thus, we try to prove that the particular way
by which an intermutability of the consciousness contents occurs in that verbal
narrative is obtained because cinematic techniques, mainly the spatial and
temporal ones and the montage or cutting technique, are frequently applied in
that novel. The cinematic code contributes, on O Delfim, to suggest a new
temporality more suitable to the thought and subjectivity structures and to
express the perceptual changes which occurs in modern art. Therefore,
cinematic techniques can contribute as a renewal source to that novel in
particular, helping it to overpass the limitations of the conceptual and monodic
nature of its medium.
NDICE GERAL
INTRODUO 1
PRIMEIRA PARTE ENTRE CINEMA, LITERATURA E O DELFIM 5
0. Introduo 6
1. Interartes e a mtua influncia cinema / literatura 8
1.1. A relao interartes e a questo da literatura e cinema 8
1.2. Literatura e cinema: estudos sobre a interinfluncia 13
1.3. Estudos realizados em Portugal 19
2. Literatura e cinema: homologias e divergncias 23
2.1. Afinidades sociolgicas, perceptivas e narratolgicas 23
2.2. Especificidades e diferenas 26
2.2.1. O Tempo 28
2.2.2. O Espao 29
2.2.3. A Perspectiva Narrativa 31
2.2.4. Os Modos de Representao e de Apresentao da Narrativa 35
2.2.5. A Pontuao 38
2.3. O cdigo tcnico-compositivo como elemento influencivel 38
3. Jos Cardoso Pires, o cinema e O Delfim 40
3.1. Breve perfil de Jos Cardoso Pires 40
3.2. Relao de Cardoso Pires com o cinema 42
3.3. Estudos feitos sobre a presena do cinema na escrita cardoseana 44
3.4. O Delfim: organizao discursiva 45
3.5. O Delfim: o filme 48
SEGUNDA PARTE O MODUS OPERANDI DO CINEMA COMO ALICERCE
TERICO ANLISE DE O DELFIM
50
0. Introduo 51
1. A especificidade cinematogrfica 53
1.1. Multiplicidade de cdigos e espessura significante 53
1.2. Codificaes especializadas e significao conotativa 56
1.3. Combinaes significantes, co-ocorrncia e justaposio de elementos
heterogneos
57
2. Montagem: continuidade e descontinuidade 61
2.1. Objecto e modalidades 61
2.2. Funes da montagem, efeito de plasticidade e lgica de implicao 63
2.2.1. Burch: combinao entre os planos 65
2.2.2. Metz: combinao entre sequncias de planos 67
2.2.3. Giacomantonio: ordem de projeco dos planos-imagens 71
2.3. Moscariello: configuraes possveis da narrativa no cinema 73
3. O cinema e as modificaes espcio-temporais 74
3.1. Imagem-movimento: intermutabilidade do espao e tempo flmicos 74
3.2. Transposies convencionais da linguagem flmica 77
3.2.1. A fuso 78
3.2.2. O elemento sonoro como processo de transio 79
3.3. O efeito-montagem e a percepo humana 81
TERCEIRA PARTE O DELFIM ESCRITA CINEMATOGRFICA 85
0. Introduo 86
1. Descontinuidade e instabilidade representativa 89
1.1. Policronia discursiva 89
1.2. Alternncia perspctica: objectividade vs subjectividade 95
1.3. Imbricao enunciativa 98
2. Formas de transio e sugesto audiovisual 107
2.1. Deslocao de contexto por meio de efeitos de ligao 107
2.1.1. A fuso e suas variantes como elementos de transio 107
2.1.2. O dilogo como elemento de transio 120
2.2. Deslocao de contexto por meio do corte directo 125
2.2.1. O insert visual 125
2.2.2. O insert sonoro e o efeito fora-de-campo 128
2.3. O assincronismo 134
3. O Delfim, o cinema e a modificao perceptiva 136
3.1. O Delfim e o cinema: relao de convergncia e intertextualidade 136
3.2. Continuidade ilusria e ambiguidade 140
3.3. A plasticidade cinematogrfica e a realidade do indivduo moderno 142
CONSIDERAES FINAIS 148
APNDICES 151
Apndice 1 152
Apndice 2 153
Apndice 3 154
BIBLIOGRAFIA GERAL 155
LITERATURA E CINEMA: A ESCRITA CINEMATOGRFICA DE O
DELFIM, DE JOS CARDOSO PIRES
INTRODUO
O mundo que rodeia o homem fala linguagens mltiplas e [...] o
apangio da sabedoria est em aprender a compreend-las.
Iuri Lotman, Teoria e Estrutura do Texto Artstico
Introduo
2
A presente dissertao pretende ser o culminar da nossa investigao em
torno dos mecanismos de transposio da tcnica e linguagem
cinematogrfica na obra O Delfim, de Jos Cardoso Pires, e do significado
esttico ideolgico que tal transposio encerra. Trata-se, quanto a ns, de
uma temtica de grande interesse por constituir, de um modo concreto, uma
abordagem inovadora daquela obra de Cardoso Pires. Embora esta vertente
cinematogrfica do escritor tenha j sido aclamada por diversas vezes, no foi,
que saibamos, exaustivamente analisada, pelo que julgamos ser de toda a
relevncia dedicarmos-lhe agora uma ateno especial. De um ponto de vista
mais global, pensamos tambm contribuir o desenvolvimento desta temtica
para um aprofundamento do estudo dos possveis paralelismos entre literatura
e cinema, bem como da relao interartes em geral.
Ao intentarmos identificar a tcnica cinematogrfica como referencial
explcita ou implicitamente expressivo na construo de O Delfim, temos como
principal finalidade demonstrar como a forma original com que nesta obra se
d uma intermutabilidade dos contedos da conscincia est directamente
ligada adopo da montagem tcnica e das formas temporais e espaciais do
filme, visto ser a representao cinematogrfica uma das formas de arte mais
fidedignas na reproduo do modus operandi da conscincia no que
interpretao e percepo da realidade diz respeito. Assim, de um modo mais
amplo, tentaremos mostrar como as tcnicas da imagem influenciaram a
sensibilidade artstica do ltimo sculo, constituindo uma fonte de renovao
para a escrita literria (e, em particular, para aquela obra ficcional de Cardoso
Pires), ajudando-a a escapar sua natureza eminentemente mondica e
conceptual, sobretudo quando procura exprimir uma viso subjectiva do real.
A nossa metodologia na abordagem narrativa delfiniana recair, desse
modo, sobre a vertente sintctica e estrutural da obra, a sua organizao
discursiva, mbito onde, a nosso ver, se estabelecem quer relaes de
convergncia com o cinema, quer relaes de influncia explcita daquela arte
sobre o texto escolhido. Contudo, no nosso propsito ignorar o universo
diegtico a que essa organizao sintctica d forma. Muito pelo contrrio, s
por meio da anlise conjunta a ambas as componentes que podemos
depreender essa aproximao com o flmico, aproximao que ocorre tanto
Introduo
3
em termos de um tratamento anlogo das categorias temporal, espacial e
perspctica, como em termos de uma adopo concreta de procedimentos
provindos da gramtica flmica.
Esta considerao do cinema como meio expressivo capaz de oferecer um
contributo ao texto literrio em anlise levou-nos a eleger, num momento
inicial, como fontes de pesquisa, autores consagrados da rea da Teoria e
Esttica do Cinema (Christian Metz, Nel Burch, Francis Vanoye, Angelo
Moscariello, Gilles Deleuze, Gillo Dorfles, Giacomantonio, entre outros), dada
a nossa necessidade de conhecer o modo especfico de funcionamento
daquela arte. A busca contnua, a partir de uma semiologia geral do cinema,
levou-nos a encontrar as explicaes cientficas prprias essncia do facto
cinematogrfico e composio heterognea do seu discurso, suficientes,
julgamos, para nos debruarmos com seriedade sobre a anlise da sua
presena na obra delfiniana. Para alm disto, tornou-se tambm necessrio
aprofundar o nosso conhecimento da dimenso narrativa da literatura e do
cinema (para o que nos apoimos em estudiosos como Grard Genette,
Carlos Reis, Seymour Chatman, Jacques Aumont, Andr Gaudreault, Franois
Jost, Yuri Lotman, Edgar Morin, Jean Mitry, e outros), bem como da temtica
da inter-relao entre as duas artes, no nosso pas e no estrangeiro (sendo de
realar autores como Umberto Eco, Joaquin Entrambasaguas, Susana
Cesteros, Claude Magny, Arnold Hauser, Jeanne Clerc, Ablio Cardoso, Lupi
Bello e Srgio Sousa). No podemos deixar de referir ainda as leituras
efectuadas a estudos realizados em torno da obra ficcional de Cardoso Pires,
no seu geral, de onde destacamos alguns estudiosos como Claudia Hoffmann,
Lucia Lepecki, Carlos Reis, Eunice Silva, Petar Petrov, Liberto Cruz, Batista-
Bastos e Mrio Dionsio.
Tendo em vista os objectivos delineados, optmos por estruturar a nossa
dissertao em trs partes principais. A primeira parte, intitulada Entre
cinema, literatura e O Delfim, constitui um captulo introdutrio ao nosso
tema, versando sobre a questo geral da relao interartes e dos estudos
efectuados aos mltiplos contactos que se foram estabelecendo entre o
cinema e a literatura ao longo dos tempos, no estrangeiro e em Portugal.
Abarca tambm a descrio do funcionamento especfico de cada um dos
Introduo
4
sistemas artsticos, numa anlise comparativa aos elementos narrativos que
ambos partilham, anlise a partir da qual possvel definir o principal elemento
influencivel entre o cinema e a literatura e, mais concretamente, entre o
cinema e O Delfim. Na primeira parte ainda, introduzimos a obra e o autor em
estudo e comentamos a sua ligao stima arte, bem como os estudos j
efectuados vertente cinematogrfica da sua obra em geral e ainda a verso
cinematogrfica de O Delfim.
A segunda parte da nossa dissertao, O modus operandi do cinema
como alicerce terico anlise de O Delfim, completamente dedicada ao
fenmeno cinematogrfico. Partindo do pressuposto de que a escrita
delfiniana toma de emprstimo certos procedimentos organizativos da textura
flmica, tornou-se imperioso procedermos a uma anlise das especificidades
do cinema como arte e linguagem, bem como definio daqueles aspectos
da gramtica flmica que, quanto a ns, podem servir de base slida para a
abordagem cinematogrfica obra em estudo. Devemos ressalvar a este
propsito que tivemos o cuidado de seleccionar apenas aquelas noes
flmicas cujo contributo mais determinante para a corroborao da nossa
tese, tendo-se ignorado aqueloutras que, a nosso ver, no o cumpriam
(refiramos, a ttulo de exemplo, o travelling ptico, bastante presente nalgumas
passagens do livro).
Na terceira e ltima parte, o captulo central do nosso estudo, que tem
como ttulo O Delfim escrita cinematogrfica, partimos para a anlise
concreta daquela obra de Cardoso Pires, primeiro, sob um ponto de vista da
configurao estrutural da narrativa, designadamente com a averiguao das
categorias temporal, espacial e perspctica; depois, em termos da forma como
so articuladas as diferentes sequncias e os diferentes contextos narrados na
narrativa delfiniana. Conclumos esta terceira parte com uma reflexo final
anlise efectuada, tentando demonstrar de que forma o aproveitamento da
tcnica cinematogrfica, pelo texto literrio em causa, colabora na
necessidade de expresso de uma modificao perceptiva, assente na
ambiguidade discursiva.
PRIMEIRA PARTE
ENTRE CINEMA, LITERATURA E O DELFIM
Creo, por tanto, que, de igual modo y con idnticas razones, si vivimos, como es cierto, una cultura cuyo signo es el Cine, nuestra Literatura tiene perfecto derecho a renovarse con las formas propias de la poca, que la enriquecen, indiscutiblemente, y allanar de este modo uno de los caminos ms rectos hacia nuestra sensibilidad de hoy.
Joaquin Entrambasaguas, Filmoliteratura (Temas y Ensayos)
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
6
0 Introduo
hoje indiscutvel que o cinema tem exercido uma forte influncia na
narrativa literria, contribuindo nomeadamente para a expresso de novas
experincias no domnio do discurso literrio, sobretudo derivadas de efeitos
com um grande grau de visualidade. No dizer de Ablio Cardoso, h
experincias literrias que s podem ser analisadas recorrendo ao contexto
terico e metodolgico do cinema:
Desde que se evite o erro de tentar visualizar uma obra literria como se tratasse simplesmente de a imaginar em filme, sem cuidar do seu funcionamento especfico enquanto escrita literria, o estudo da literatura em associao com o cinema proporciona, sobretudo no que respeita ao romance, a descoberta de novas experincias no domnio da expresso, dificilmente analisveis sem recurso a tal contexto terico e metodolgico. (Ablio Cardoso, 1995-6: 27)
Por outro lado, a tendncia oposta, a da influncia da literatura sobre o
cinema, tambm se verificou desde cedo, como sabemos.
A reflexo em torno da relao entre prticas artsticas diferentes, como o
so a literatura e o cinema, todavia uma reflexo que no se pode esgotar
na anlise ao jogo de influncias existente entre ambas. Embora esse seja o
ponto de partida e de chegada, pois a evoluo da temtica assim o
determina, h que ter em conta que essa relao muito mais profunda e que
assenta em todo um conjunto de interaces dialgicas que reenviam para a
partilha de cdigos, estruturas e dispositivos narrativos comuns.
Assim se justifica, neste primeiro captulo, uma inicial abordagem ao
estudo das interinfluncias que tm existido, no estrangeiro e em Portugal,
entre literatura e cinema, enquadradas que esto na relao interartes em
geral. tambm premente o especial destaque que dedicamos ao
funcionamento especfico de cada uma das artes de per se, um funcionamento
que engloba o mbito da prpria fruio da obra de arte pelo destinatrio de
cada prtica artstica e ainda, naturalmente, o mbito da estruturao e do
modo de produo de sentido nas duas narrativas. que, se a interpretao
de uma narrativa requer uma determinada competncia de leitura, esta no se
esgota na matria de expresso, mas passa tambm pelo conhecimento dos
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
7
cdigos especficos que estruturam as mensagens (Umberto Eco, 1981).
Deste modo, para alm das principais homologias entre os dois sistemas
artsticos, que apresentamos no ponto dois deste captulo, debruamo-nos
essencialmente sobre as suas divergncias, pois, s assim, mais facilmente
conseguiremos compreender a interaco dialgica entre cinema e literatura:
Numa reflexo sobre as diferenas e as semelhanas existentes entre os comportamentos narrativos e discursivos das duas prticas artsticas, ser sobretudo a percepo das diferenas, das solues especficas de cada linguagem [] que nos permitir uma compreenso mais profunda e mais completa. (Ablio Cardoso, op. cit.: 31)
Se a compreenso desta especificidade nos leva a entender melhor as
relaes entre as artes em questo, permite-nos, por outro lado, identificar
aqueles elementos que, partilhveis entre ambas, nos ajudam a aproximar de
modo concreto a escrita delfiniana narrativa cinematogrfica. Referimo-nos,
nomeadamente, ao cdigo tcnico-compositivo da obra, mbito relativo sua
organizao discursiva. J muito comentada por vrios estudiosos, esta
vertente organicista da obra no foi contudo ainda devidamente contemplada
nesse contacto implcito (embora por vezes explcito) que mantm com a
linguagem flmica. Sendo nosso objectivo abordar a forma como tal dilogo se
opera em O Delfim, conclumos esta parte preliminar com a breve aluso ao
contacto que Cardoso Pires manteve com o cinema (onde inclumos algumas
observaes ao seu lado cinematogrfico e verso cinematogrfica da obra
que analisamos) e s caractersticas principais da escrita delfiniana que nos
levam a empreender a nossa abordagem.
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
8
1 Interartes e a mtua influncia cinema / literatura
1.1. A relao interartes e a questo da literatura e cinema
Numa pertinente abordagem ao carcter transartstico do conceito de
perspectiva, Carlos Reis refere ser a relao entre as artes to antiga quanto
a tentativa de tornar presentes os objectos ausentes, portanto, to antiga
quanto o prprio problema da representao, fuso essa que se foi tornando
cada vez mais forte com o passar dos tempos. Segundo o autor,
interessante analisar a correspondncia de tais conceitos nas diferentes
prticas artsticas e comentar a interaco dialgica que da nasce (Carlos
Reis, 2003). Uma interaco cujo interesse reside, quanto a ns, em dois
aspectos fundamentais: por um lado, no alargamento e enriquecimento, e at
modificao, do prprio plano expressivo do artista e na consequente
manifestao de uma linguagem diversa:
A importncia evolutiva de tais excessos consiste no facto de a arte aprender a sentir de nova maneira os seus recursos formais e a ver o seu material numa perspectiva desusada; ao mesmo tempo, a arte no deixa de ser a mesma, no se confunde com a arte vizinha apenas consegue, com o mesmo procedimento, efeitos diferentes ou utiliza diferentes procedimentos para obter os mesmos efeitos. (Ian Mukarovsky, 1993:197)
Por outro, nessa fecunda constatao de que cada produo artstica um
campo aberto na aceitao do plural.
Na base desta pluralidade interesttica est, embora a um nvel diferente, a
prpria noo de criao artstica que nos chegou atravs do Romantismo e
comentada por Lotman: a de que o ponto de vista artstico se constri no por
meio de uma univocidade das relaes sujeito objecto, de uma
convergncia radial para um centro nico, exprimindo a unidade e a
imobilidade da verdade, mas sim segundo as leis de uma interseco livre
de diferentes posies subjectivas (Iuri Lotman, 1978a: 426ss). Assim, a
relao entre vrios e diversos pontos de vista aquilo que se torna uma fonte
complementar de significaes. Lotman afirma ainda que a base da
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
9
narrao artstica contempornea constituda pela estrutura polifnica
complexa dos pontos de vista, heterogeneidade essa que no s se revela a
nvel da composio do texto artstico, aumentando a sua carga informativa,
mas tambm a nvel do dilogo entre as vrias reas artsticas: A influncia
recproca das diversas artes a manifestao a um nvel superior da lei geral
de justaposio de diferentes princpios estruturais na obra artstica (id.: 452).
Gillo Dorfles, examinando a interferncia entre as artes como
manifestaes sinestticas, relembra a presena constante na literatura de
todas as pocas e de todas as civilizaes de analogias metafricas
baseadas em evidentes fenmenos de substituies e transferncias
intersensoriais (Gillo Dorfles, 1988: 63ss). Dando vrios exemplos acerca da
verificao de imagens sensoriais diversas suscitadas por cada arte na esfera
de aco de um rgo sensorial distinto do comumente estimulado por uma
dada arte (como imagens coloridas suscitadas por sons, imagens sonoras
suscitadas por cores, imagens cromticas suscitadas por palavras), o autor
equaciona a questo como resultado da relao constante entre o elemento
perceptivo e o elemento criativo (e fruitivo) da obra de arte.1 A propsito do
mbito mais concreto da absoro e da assimilao por uma arte do meio
expressivo de outra arte, o autor defende ainda que em muitos casos tal pode
ser pernicioso e pode denunciar a sua fraqueza e o seu declnio (id.: 60),
admitindo contudo que quando uma tal assimilao ocorre d-se uma espcie
de apropriao e de integrao pela arte assimiladora.2
1 Uma inter-relao e interaco entre imagens sensoriais e imagens estticas pode permitir
aventurar a hiptese de uma relao constante entre o elemento perceptivo e o elemento criativo (e fruitivo) da obra de arte (id.: 62). 2 Metz alude, por seu lado, ao termo cinematografizao para referir-se representao em
filme de um cdigo no cinematogrfico, ou seja, o filme cinematografiza os elementos de que se apodera (Christian Metz, 1980: 136), sendo que, depois de adoptado esse cdigo, ele nunca volta s origens tal como era: modificado ligeiramente. Este argumento da modificao inevitvel designa um fenmeno banal que no se refere unicamente ao cinema, ocorrendo o mesmo processo inversamente, quando se trata de adoptar cdigos extra-literrios na literatura. Por exemplo, se se tratar de representar, na escrita, um procedimento ou um cdigo especificamente cinematogrfico, como o que vamos tentar comprovar que existe n O Delfim, teremos de ter essa conscincia de que ocorrer inevitavelmente uma certa modificao desse cdigo, quando apoderado pela arte literria: no se deve esquecer de que o processo inverso tambm existe: figuras cinematogrficas que se acham, se assim se pode dizer, parcialmente des-cinematografizadas, isto , modificadas e desviadas em consequncia do seu contato com elementos no-especficos do cinema (id.: 139).
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
10
A conjugao e a integrao das artes constituiu, segundo Slvio Castro, o
elemento fundamental na afirmao da moderna fisionomia artstica
brasileira, entendendo-se essa inter-relao das artes como a passagem de
meios expressivos de uma determinada forma artstica para o sistema de
linguagem de uma outra arte aparentemente e tradicionalmente diversa
(Slvio Castro, 1999: 119). No caso de Portugal, a temtica da relao
interartes, particularmente entre a literatura e a pintura, chega-nos com o
Primeiro Modernismo. A Revista Orpheu, principal marco cultural desta fase da
literatura portuguesa, destaca-se pelo intercmbio que vem propiciar entre
escritores e pintores, no s contribuindo para divulgar os talentos mais
recentes das artes plsticas, mas tambm acentuando a invulgar qualidade de
artistas literrios marcados por uma inclinao marcadamente interdisciplinar,
como Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro, Almada Negreiros, entre
outros.
A necessidade de estabelecer relaes entre a arte literria e outros tipos
de expresso artstica, como a pintura, a msica e outras, remonta entretanto
aos primrdios da reflexo terica em torno da literatura, surgindo sobretudo
desse desejo de aprofundar o conhecimento do modo de funcionar especfico
de cada arte e como reflexo desse permanente fenmeno de permutao que
as diversas formas de arte sempre patentearam. A aproximao da literatura
com a pintura, por exemplo, evidenciou-se sobremaneira ao longo dos tempos
atravs de objectos literrios como a poesia ecfrstica, a parnasiana, os
caligramas de Apolinnaire e outras produes posteriores futuristas e
modernistas. Com a msica, o intercmbio tem-se efectuado tambm a nvel
das produes lricas, que nos chegam tanto da Antiga Grcia, como da poca
trovadoresca, do renascimento e do barroco e ainda do romantismo, do
simbolismo e do modernismo. Este constante jogo de interinfluncias no tem
feito mais do que revelar a natureza universal da arte e da sua incessante
interpenetrao, sob diversas formas, em todos os campos da expresso
humana.
No que concerne concretamente relao entre literatura e cinema, de
mbito naturalmente mais recente, podemos afirmar que, de um modo geral, as
aproximaes se tm efectivado em torno da dimenso narrativa que ambas as
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
11
artes tm em comum,3 caracterizando-se essas aproximaes por uma troca
mtua de influncias. De incio, foi o cinema que se interessou pela literatura,
por encontrar nela a capacidade de exprimir o mesmo fenmeno que a cmara:
o fluir de uma temporalidade organizada e plena de significado. Os cineastas
viram desde cedo na literatura um universo de temas e de estruturas narrativas
que lhes poderiam constituir de verdadeira fonte de inspirao e de trabalho:
De Homero o cinema aprendeu o flash-back e a idia de que cronologia vcio. De Petrnio, o poder dramtico da prosdia e a subjetividade do discurso. De Dante, a vertigem dos acontecimentos, a rapidez para mudar de assunto. De Boccaccio, a idia da fbula como entretenimento. De Rabelais, os delrios visuais e certeza de que a arte tudo que a natureza no . De Montaigne, o esforo para registrar a condio humana. De Shakespeare, Cervantes (e tambm de Giotto) a corporalidade do personagem e o poder da tragdia. Da comdia de Molire o cinema aprende que a histria uma mquina. Voltaire ensinou a decupagem, a tcnica do holofote e o humor como forma avanada da filosofia. De Goethe o cinema (e tambm a televiso) aprendem o prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narrao off e o autor como personagem. De Flaubert, vem a imagem dramtica e o roteiro como tentativa de literatura. Brecht o pai do cinema-teatro e a idia de que realismo tem hora. (Jorge Furtado, 2003)
O cineasta Griffith tambm no desmente ter colhido de Charles Dickens
modelos narrativos, tcnicas, uma concepo de ritmo e de suspense,
articulando duas aces simultneas e paralelas (Lus Cardoso, s.d.). Por
outro lado, tanto em termos semiticos (Metz, Lotman, Garroni ou Chatman),
como em termos estticos ou histricos (Eisenstein, Bazin ou Mitry), o cinema
foi estabelecendo mltiplas conexes com a arte literria. Eco refere-se
analogia entre determinadas noes da gramtica flmica e certos processos
literrios, empregando-se essas analogias, segundo o autor, sob a forma de
metforas (Umberto Eco, op.cit.: 190).
Quanto ao interesse da literatura pelo cinema, no podemos esquecer que
os crticos que no incio se interessam pela stima arte so essencialmente
escritores, constituindo de uma grande importncia a influncia desta crtica
3 de notar que as relaes entre as artes so mais frequentes quanto maior o grau de
afinidade entre elas, o que ocorre no caso especfico da literatura e cinema, cujas afinidades interestticas provm do facto de ambas serem artes narrativas, ou seja, ambas representam uma sucesso de acontecimentos ao longo de um espao tempo e dispem de uma estrutura enunciativa semelhante: O texto flmico narra frequentemente uma histria, uma sequncia de eventos ocorridos a determinadas personagens num determinado espao e num determinado tempo, e por isso mesmo to frequente e congenial a sua relao intersemitica com textos literrios nos quais tambm se narra ou se representa uma histria. (Aguiar e Silva, 1990: 178)
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
12
especializada para o conhecimento do cinema e para uma reflexo sobre as
caractersticas especficas da nova arte. O facto de pertencerem literatura
permitiu estabelecer relaes comparativas entre as duas artes, contribuindo a
reflexo crtica sobre o cinema americano, alemo, sueco e russo para impor
novos critrios estticos s outras artes de representao, incluindo a prpria
literatura.
de notar que, a nvel europeu, o conceito de influncia de uma arte na
outra significativo de uma transformao progressiva das relaes que os
escritores foram mantendo com a imagem cinematogrfica. Na Frana, por
exemplo, o entusiasmo na abordagem das relaes e das trocas entre as duas
artes pelos escritores dos anos vinte deu lugar, com a chegada do cinema
falado, a um movimento de refluxo, chegando-se a negar o prprio conceito de
influncia no meio da literatura. Com a Segunda Guerra Mundial, os
antagonismos atenuaram-se, passando a haver um novo modo de colaborao
entre cineastas e escritores: por um lado, os prprios escritores tentam adaptar
ao ecr textos escritos para serem lidos (adaptao cinematogrfica de obras
literrias); por outro adaptam-se filmes escrita (adaptao literria de filmes).
o caso dos scnarios, dos cin-romans e dos romances cin-pticos. Esta
nova relao entre escritores e cineastas, que essencialmente econmica, d
origem a uma osmose original entre dois meios de expresso, estando em
causa no uma busca de equivalncias, mas o confronto de duas maneiras
diferentes de ver e contar o mundo (Jeanne-Marie Clerc, 1993).
No modernismo brasileiro, a natureza plstica do cinema que vai
interessar os jovens escritores. Estes encontravam na nova arte elementos
capazes de enriquecer a escrita literria:
O absoluto sentido plstico da linguagem cinematogrfica serve aos escritores tendentes ao experimentalismo a superar a natureza predominantemente conceitual da linguagem literria, endereando-a, a partir de ento, intensificao do imagismo e a uma projeo acentuadamente visual. (Slvio Castro, op. cit.: 149)
Mas a influncia passa a ser recproca:
Assim, a literatura se serve do ritmo do processo de montagem, do conceito de tempo e de espao, dentre outros valores tpicos do cinema; enquanto este
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
13
finalmente se libera da influncia do teatro na realizao do roteiro ao servir-se da narrao literria, de seu poder de transcrio analgica da realidade, de figurao psicolgica, de representao de comportamentos. (id.:153)
Em Portugal, a inter-relao literatura cinema desencadeia-se no mbito
dos modos de narrao e representao do texto narrativo literrio, sobretudo
dos textos surrealistas, neo-realistas e do nouveau roman, onde se verifica a
presena de tcnicas compositivas provindas da pluridiscursividade flmica,
designadamente na composio de espaos interactivos com movimentos e
olhares de personagens e na descrio de personagens (Srgio Sousa, s.d.). O
cinema tem sido, alis, apontado como o substituto da pintura no que toca a ter
imprimido, de forma profunda, as suas marcas no texto narrativo literrio,
tornando-se, pois, bastante pertinente dedicar um lugar central ao estudo
dessas relaes. Ablio Cardoso comenta essa influncia da visualidade
cinematogrfica como elemento preponderante na nova expresso da
experincia:
Efectivamente, o cinema parece ter ocupado o lugar da pintura como referente privilegiado de alguns efeitos literrios aos quais se reconhece um elevado grau de visualidade. Os modos como o romance, por exemplo, organiza a componente do espao na sua relao com os movimentos e o olhar das personagens, ou a descrio dos gestos e das atitudes destas em plena actividade comunicativa no verbal, tm sido explicados, com frequncia cada vez maior, pela influncia que a linguagem cinematogrfica vem exercendo na narrativa literria. (Ablio Cardoso, op.cit.: 27)
1.2. Literatura e cinema: estudos sobre a interinfluncia
Os vrios estudos que ao longo dos tempos foram dedicados temtica da
relao entre estas duas artes so indicativos do interesse que a mesma foi
suscitando e tem suscitado no estrangeiro e no nosso pas. Inicialmente, tal
estudo resumiu-se durante muito tempo questo da adaptao
cinematogrfica de obras literrias, o que se explica pelo facto de a mtua
influncia no se ter processado desde o incio: primeiro, foi a literatura que
influenciou fortemente o cinema e s mais tarde se deu a situao inversa.
A transposio flmica de textos literrios, considerada um dos tipos
maiores de influncia da literatura sobre o cinema, foi pautando a relao
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
14
entre ambas as artes de duas perspectivas diferentes: por um lado, como
reprodues identificantes, sendo a adaptao encarada como uma traduo
literal de uma inteno textual, equivalendo-se aquilo que se filma quilo que
se leu; por outro, como recriaes livres, dando-se ao sujeito interpretante,
neste caso o realizador, a possibilidade de reconfigurar e transformar o que
leu, reelaborando criticamente o texto.
Entrambasaguas resume por seu lado esta influncia da literatura sobre o
cinema a um fornecimento de argumentos:
En un principio, la Literatura, generosamente, ofreci al Cine elementales argumentos para encauzar sus posibilidades en curiosas experiencias. Una idea simplista y vulgar, que la Literatura hubiera desdeado para s, se le entregaba al Cine, para que, apoyndose en ella, realizara lo que estaba vedado hasta entonces. (Joaquin Entrambasaguas, 1954: 97)
Contudo, se certo que a literatura teve um importante papel no que diz
respeito ao j aludido fornecimento de argumentos, no aspecto mais narrativo,
h que atender a todo um conjunto de caractersticas sociolgicas e
etnolgicas importantes para o cinema que se situam antes do romance e que
apenas nos seus aspectos pr-literrios ou metaliterrios, e apenas nisso,
podem ser consideradas literrias. O encadeamento de imagens em discurso,
por exemplo, surge com a narrao oral (o mito, a fbula, conto folclrico,
canto pico, inscries de santos e mrtires, etc.), portanto, antes da literatura
e do romance. A vertente cmica e o prprio suspense, por seu lado, deve o
cinema s formas de espectculo que o antecederam (o teatro, o circo, o jogo
desportivo, o music-hall, etc.). ainda a tradio da pintura que influencia a
stima arte no chamado grande plano, e no o romance (Italo Calvino, 1993).
Noutro mbito que no o da adaptao cinematogrfica de obras literrias,
o cinema sofreu em contrapartida uma tentao literria durante tempos que
o levou a inventar procedimentos especficos para melhor exprimir problemas
como o da subjectividade e o da temporalidade. So disso exemplo a voz fora-
de-campo (para a primeira pessoa), o flashback (para o passado) e o fundido
(para o escoamento do tempo). Hoje, contudo, a literatura j s interessa
apenas como modelo de liberdade para o cinema, ganhando este contornos
cada vez mais particulares e mais autonomia como arte:
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
15
Longtemps, la littrature a jou pour le cinma le rle du mauvais matre. La grande nouveaut des dernires annes, cest la conscience diffuse que le cinma doit chercher des modles littraires diffrents du roman traditionnel. Le dfi la parole crite continue dtre lun des moteurs principaux de linvention cinmatographique, mais, linverse de ce qui eut lieu dans le pass, la littrature fonctionne prsent comme modle de libert. (id.: 63)
A influncia da arte potica sobre o cinema foi ainda notada a um outro
nvel, nomeadamente pelos defensores da ideia do cinema avant la lettre.
Segundo estes, foi daquela que a stima arte se serviu para fazer uso de
certos procedimentos (como a elipse e o flashback), uma vez que muito antes
do surgimento do cinematgrafo, e desde Homero, um grande nmero de
escritores escreveu de modo acentuadamente visual, como se de verdadeiros
montadores e guionistas se tratassem.4 H que ressalvar, no entanto, que esta
proximidade no se deveu tanto a uma questo de antecipao de uma arte
outra, mas est, antes de mais, ligada a esse desejo de organizar a narrao
de acordo com as mltiplas possibilidades da viso, algo que sempre existiu.
Mitry bastante crtico quanto a este aspecto, referindo ser estril essa
denncia da presena da expresso flmica nas artes e nos modos de
expresso do passado. Segundo o autor, a questo da influncia de uma arte
na outra no se pe a este nvel porque no o uso cinematogrfico de certas
figuras literrias que est em causa, pois tais figuras (como a elipse, a
sindoque, a metonmia, etc.) no so uma funo da linguagem, mas sim do
pensamento. O que acontece que a linguagem verbal foi o nico meio, at
ao surgimento do cinema, capaz de traduzir e de aplicar tais figuras de
pensamento. Assim, quando este vem faz-lo, no as vai buscar literatura
mas sim ao pensamento:
Si donc les procds utiliss par le cinma ont pour objet de traduire cette idation en termes filmiques, ils le doivent aux figures de pense et non aux figures littraires qui nen sont que lapplication verbale. Il est normal que, du cinma la littrature, ces figures de pense se retrouvent sous des formes diffrentes. (Jean Mitry, 1963: 61)
4 Francastel, tienne Fuzellier, Henri Agel, entre outros, so alguns dos autores, apontados
por Jorge Urrutia, que abordaram a questo da antecipao imagem, pela escrita (Jorge Urrutia, 1995-6).
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
16
E continua :
On ne peut pas ignorer que le langage a forg la mentalit humaine, que cest par lui et avec lui que nous pensons. En consquence de quoi on peut soutenir que les caractres originaux de lexpression filmique dcoulent des modes didation auxquels le langage nous a habitus, mais cest parler improprement que de dire ces caractres ne sont que la transposition de certaines structures dont lorigine serait uniquement littraire. (id., ibid.)
A ideia de pr-cinema no satisfaz, portanto, Jean Mitry. Dando o exemplo
do movimento, este autor refere que no por a arte em geral ter tentado
traduzir de qualquer maneira o movimento, antes de o cinema lhe ter dado
uma soluo efectiva, que h pr-cinema. O que h a expression de
quelque chose que seul le cinma a pu rendre parfaitement (id.: 63). A
questo deve pois colocar-se a outro nvel, designadamente o de constiturem
artes diversas que, em momentos diferentes, expressaram a seu modo
particular determinados aspectos do pensamento humano.
A influncia do cinema sobre a literatura foi, por seu lado, sendo feita
progressivamente, sendo apenas a partir das dcadas de sessenta e setenta
que, no estrangeiro, se comea a dedicar ateno mais objectiva e mais
sistemtica a tal fenmeno, uma vez que at a dominava uma concepo
elitista da literatura e o filme detinha uma menoridade esttica. Nesta altura,
chegam-nos obras de incidncia semitica (Metz, 1968, 1971, 1977; Eco,
1970, 1971; Lotman, 1977; Chatman,1980; Jost, 1978) e narratolgica
(Gardies, 1983; Bordwell, 1985; Gaudreault, 1988) (Ablio Cardoso, op.cit.).
Sergei Eisenstein foi o primeiro a identificar a influncia da stima arte na
escrita do incio do sculo, dizendo que os escritores viam em fotogramas ou
em imagens de fotogramas, escreviam em forma de roteiro de montagem
e alguns compunham com metforas cinematogrficas (ap. Joo Dias, 2000:
18). Vrios outros autores abordaram teoricamente esta influncia, admitindo-a
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
17
como elemento preponderante na nossa sensibilidade colectiva5 e na traduo
de percepes e vises novas do real.6
Eco reconhece, por sua vez, que o filme fez nascer uma temporalidade
especfica cujo tratamento produziu efeitos determinantes na cultura e arte
contemporneas. Referindo-se ao romance de Robbe-Grillet, Dans le labyrinte,
o autor explica que a qualidade desta narrativa deriva da aceitao de uma
temporalidade alheia, que a literatura aprendeu olhando o cinema e
tentando transpor os seus artifcios para o plano literrio (Umberto Eco, op.
cit.: 193). Essa temporalidade caracteriza-se por uma montagem de diferentes
tempos, da qual resulta um efeito de suspense e subtil sentimento de
angstia, de fatalidade, de inquietao que invade esta narrativa concreta (id.,
ibid.).
Hauser refere tambm que muitas das novidades temporais introduzidas
pelo cinema foram incorporadas no romance contemporneo. Embora
algumas delas j tivessem sido aplicadas na literatura, com o advento do
cinema, o seu emprego mais consistente no romance aumenta, juntamente
com essa necessidade de renovao da linguagem literria. Entre outros
aspectos particularmente interessantes sobre a temtica, o autor aborda a
relatividade e a inconsistncia dos padres de tempo, a descontinuidade
do enredo, o desenvolvimento cnico e o sbito aflorar dos pensamentos
e dos estados de esprito como efeitos concretos do cutting, do dissolve e
das interpolaes prprias da matria flmica no romance (Arnold Hauser,
1989: 37).
Examinando tambm mais de perto a tomada de emprstimo de certos
procedimentos do filme pelo romance, Magny refere que tal ocorreu em torno
de dois aspectos principais: no modo de narrao, que se tornou objectivo
5 Notre sensibilit collective a t profondment modifie, sans que nous y prenions garde,
par le cinma. Nous ne percevons plus de la mme manire quil y a cinquante ans: en particulier, nous avons pris lhabitude de nous voir raconter des histoires, au lieu de les entendre narrer. (Claude-Edmonde Magny, 1948: 47) 6 Segundo Aguiar e Silva, a tcnica e a gramtica do texto flmico exercem influncia a dois
nveis concretos do texto narrativo literrio: na rejeio da anlise psicolgica introspectiva das personagens e na recusa de um narrador omnisciente. Tais aspectos devem-se a uma focalizao baseada na objectividade visual estrita que a cmara cinematogrfica (aquela que recolhe e fixa os objectos, os movimentos, etc., sem comentrios e interpretaes) ensinou o escritor a converter. (Aguiar e Silva, op. cit.: 179)
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
18
(behaviourista), e na adopo de inovaes especificamente tcnicas, como
as mudanas e a multiplicidade de planos, que vieram instaurar na narrativa
literria uma pluralidade de perspectiva. Assumindo uma atitude behaviourista,
o romancista d-nos apenas a descrio objectiva dos actos das personagens,
em vez de nos dar os seus pensamentos e sentimentos. banida da obra
toda a retrica, ficando a cargo do leitor a interpretao das coisas. Desse
modo, o cinema ensina a literatura a utilizar as margens da conscincia do
leitor e a no acreditar que os pormenores se percam quando no so
completamente compreendidos:
On peut mme dire que le cinma [...] pourrait rduquer vritablement la perception et lintelligence du spectateur en lhabituant comprendre sans longs discours. [...] Le cinma constitue ainsi une raction salutaire contre notre civilisation gave de mots. (Claude-Edmonde Magny, op. cit.: 65)
A mudana e a multiplicidade de planos, por seu lado, corresponde no
romance a uma espcie de mobilidade de quem narra, tal como a cmara, e
tambm a uma alternncia de pontos de vista, participando o discurso das
oscilaes de conscincia e de viso da personagem. Com esta dcoupage
cinematogrfica, o real -nos transmitido de modo fragmentado, numa
sequncia descontnua de aparncias.
De Espanha, Joaquin Entrambasaguas aponta outros aspectos indicadores
dessa influncia da stima arte, como o desenvolvimento da aco, que
passou a basear-se numa sucesso de imagens pormenorizadas maneira do
fotograma do guio; a plasticidade das descries; o reforo da aco, atravs
de sucesses de planos com fundidos e contracampos completamente
cinematogrficos; a valorizao cinematogrfica do acessrio, usando-se os
primeiros planos e a construo sob a forma de guio cinematogrfico,
acompanhado do dilogo e da voz off do subconsciente, como no cinema
(Joaquin Entrambasaguas, op. cit.).
A descrio do espao e a caracterizao das personagens so tambm
de um modo geral apontados por Cesteros, quando nos fala da contaminatio
da literatura pela stima arte. De um modo geral, a autora refere-se tcnica
de antecipao descritiva, importncia cinematogrfica do detalhe,
individualizao das personagens atravs da imagem de um detalhe e sua
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
19
caracterizao a partir do que ela v e faz. Cesteros alude ainda ao jogo de
luzes e sombras na descrio do espao, dando-se uma certa importncia
luz de carcter cinematogrfico, especialmente quando se faz referncia
tcnica do fundido (Susana Cesteros, 1996).
1.3. Estudos realizados em Portugal
Em Portugal, tm-se revelado de forma tmida os estudos crticos acerca
desta influncia do cinema em escritores portugueses, se quisermos comparar
com outros pases como a Espanha, a Frana e Brasil, onde a temtica tem
sido abundantemente tratada. De Baptista-Bastos, chega-nos o ensaio
Aspectos cinematogrficos no Neo-Realismo Portugus onde, a propsito
da escrita de Augusto Abelaira e de Cardoso Pires (O Anjo Ancorado), o autor
refere que nos neo-realistas portugueses a gramtica cinematogrfica foi
uma descoberta para o encontro decisivo com a nova linguagem (Baptista-
Bastos, 1979: 110), que mais narrativa do que descritiva. Sobre Pires, e em
particular sobre Anjo Ancorado, afiana que certas tcnicas cinematogrficas
que usa na sua escrita, como a montagem paralela ou outras, so o veculo
ideal para a obteno de um efeito espao-tempo que d origem a uma
expurgao descritiva. Ainda acerca daquela obra, Baptista-Bastos diz que o
autor usa uma linguagem audiovisual, mais prxima de um contador
cinematogrfico do que de um escritor de literatura. Sobre Abelaira,
assegura que este autor recorre propositadamente a processos narrativos do
cinema porque no tempo-limite de um filme, localiza um dinamismo
aproveitvel em Literatura, na medida em que facilita a expurgao do
acessrio. Confrontando os dois autores, afirma que:
Se em Cardoso Pires a sintetizao dialogal adquire um plano francamente auditivo, em Augusto Abelaira o cuidado na composio consegue uma sugesto mais visual. E, apesar da divergncia de processos, ambos os romancistas tm um objectivo convergente: situar, o menos caligraficamente possvel, as aces essenciais das suas personagens. (id.: 124)
Sobre Viagens na Minha Terra, Carlos Reis postula o carcter pr-
cinematogrfico desta obra, apontando algumas propriedades que a
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
20
aproximam da linguagem cinematogrfica. Em primeiro lugar, refere a presena
de uma pluralidade enunciativa muito prpria do registo flmico, que se
denota a partir da alternncia focalizadora e enunciativa constante ao longo do
texto. Depois, o facto de o texto se encontrar como que segmentado em
unidades diegticas autonomizadas f-lo aproximar-se da fragmentao
flmica, sendo da responsabilidade do leitor o acto de conectar e inter-
relacionar essas unidades e de proceder coerente articulao diegtica,
abolindo a disperso prpria dessa narrativa fragmentada. Por fim, a ausncia
de conectores lgico-temporais a enunciar transferncias espcio-temporais
equivale simultaneidade de tempos e espaos sem transio, aspecto
altamente cinematogrfico por implicar a noo eisensteiniana de montagem
dialctica, segundo a qual a partir da justaposio de duas unidades
contrrias que se gera um sentido novo e uma tenso dialctica fortemente
produtora de sentido (Carlos Reis, 1999: 115-124).
Dionsio Vila Maior, num artigo publicado na Revista Discursos em 1995-6,
revista dedicada ao dilogo entre cinema e literatura, em particular a narrativa
literria, faz uma tentativa de interpretao das relaes entre literatura e
cinema, equacionando a montagem cinematogrfica (a fragmentao das
imagens, as colagens) e a descontinuidade a ela inerente como questes
ligadas prpria crise do sujeito ocidental modernista. Referindo-se aos
heternimos pessoanos, Vila Maior questiona se os mesmos no podero ser
interpretados como planos diferentes de um mesmo sujeito potico, como
clulas de montagem de um filme, falando em linguagem eisensteiniana,
sendo a sua diferena que os aproxima dialecticamente. O discurso da
descontinuidade, curial na histria do cinema pelas potencialidades
significativas que, ao nvel ideolgico-cultural e literrio, so inerentes a tal
discurso, realado pelo autor como sendo a evidncia mais forte da
adopo da montagem cinematogrfica pela escrita literria. Remetendo para
um discurso flmico prenunciadamente estigmatizado pela categoria da
fragmentao, a montagem cinematogrfica expurga a perspectiva nica
em benefcio do enquadramento polifnico, realizando-se materialmente
atravs de vrios procedimentos tcnicos, como os cortes, as elipses, a
acelerao e o retardamento temporal, a subverso da linha temporal, o
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
21
close-up, as referncias cruzadas, etc. Para Vila Maior, h evidentes
conexes entre a escrita literria e programtica do modernismo e as tcnicas
cinematogrficas: naquela, pela tentativa de traduo de um ritmo dinmico
moderno, por uma aparente desordenao lgica do tempo, pela mistura de
espaos, pela subverso do mundo real atravs do mundo imaginrio e do
esbatimento dos limites entre realidade e fico; nestas, pela subverso dos
parmetros percepcionais do tempo e do espao e pelo consequente
redireccionamento da aprendizagem visual. (Dionsio Vila Maior, 1995-6: 53-
103)
O estudo de Srgio Sousa, Relaes Intersemiticas entre o Cinema e a
Literatura, incide, por um lado, na anlise questo da transcodificao tela
de textos literrios, para o que se serve o autor, como objecto de anlise, da
adaptao cinematogrfica de Amor de Perdio, realizao de Lopes Ribeiro,
de 1943) e, por outro, na recepo literria do cinema, nomeadamente na
considerao de estruturas e contedos que, no mbito da literatura
portuguesa, patenteiam contaminao cinematogrfica (Srgio Sousa,
2001). Para este ltimo aspecto, o autor centrou-se no apenas num nico
objecto textual, mas em obras publicadas entre a dcada de 60 e os anos 907,
observando nas mesmas cdigos e tecnologias cinematogrficos [...] de
mbito icnico-sequencial, tecnolgico e combinatrio. Em 2003, o mesmo
autor publica Literatura e Cinema. Ensaios, Entrevistas, Bibliografia, livro, nas
palavras do mesmo, essencialmente vocacionado para uma abordagem
conversacional do assunto em causa (Srgio Sousa, 2003: 7), onde, para
alm de abordar de novo a presena do cinema na literatura e a questo da
adaptao cinematogrfica, so de destacar as entrevistas realizadas com
individualidades ligadas stima arte e/ou literatura (Jacinto Lucas Pires,
Manuel Antnio Pina, entre outros). Estas entrevistas constituem, a nosso ver,
elementos importantes sobre a temtica, pois, por se tratar de testemunhos
7Note-se que, neste estudo, o autor Cardoso Pires apenas citado duas vezes: uma, relativa
obra Alexandra Alpha, por comportar a incluso de termos e conceitos da metalinguagem tcnica da produo flmica (panormica, focagem em grande plano, voz off, legenda), articulados com efeitos visuais heterogneos tpicos da mecnica ptica (fundido em negro/de fecho, travelling ascendente, fora de campo) (id.: 142-3); outra, em nota de rodap, relativa a um pequeno segmento de O Delfim, desta vez a propsito de o espao se efectuar por uma audio em off, geradora de um respectivo espao em off. (id.: 172)
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
22
directos acerca da natureza e relevncia das convergncias entre as duas
artes, mostram-nos que a problemtica cada vez mais discutida8.
O estudo das relaes entre literatura e cinema tem tomado direces
diversas, podendo embora resumir-se a duas tendncias principais: a primeira
diz respeito nfase que se tem dado dimenso de correspondncia entre
uma e outra arte, uma correspondncia atravs da qual possvel comprovar
o dilogo intertextual que tem havido entre ambas; a segunda reporta-se, por
seu lado, diferena radical entre os dois sistemas artsticos, aceitando-se
aqui apenas a noo de analogia de processos (duas artes diversas que, a
seu modo particular, expressam determinados aspectos que, na forma de
serem narrados, reflectem uma certa aproximao). Em todo o caso, uma
reflexo mais profunda e mais completa dessa interaco dialgica entre as
duas artes s se torna efectivamente possvel a partir do momento em que
no s se tem a percepo daquilo que possuem em comum, mas sobretudo
quando se tem em considerao o funcionamento especfico de ambas as
prticas artsticas. Esta constatao leva-nos a uma necessria abordagem
que contempla as afinidades mas tambm as diferenas entre literatura e
cinema.
8 Mais recentemente, em Abril de 2005, foi publicado um estudo de Lupi Bello que tambm
aborda a temtica Literatura Cinema, mas apenas em termos introdutrios, pois o livro (Lupi Bello, 2005) est substancialmente voltado para a anlise das adaptaes cinematogrficas de que a obra Amor de Perdio foi alvo ao longo dos tempos. No entanto, as informaes iniciais contemplam aspectos importantes sobre a questo narratolgica das duas artes e de algumas das suas especificidades.
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
23
2 Literatura e cinema: homologias e divergncias
2.1. Afinidades sociolgicas, perceptivas e narratolgicas
Embora tratando-se de dois sistemas semiticos com particularidades
bastante distintas, muitos pontos de contacto se tm desvendado entre
literatura e cinema, englobando-se nesta aproximao tanto aspectos
psicolgicos, sociolgicos como estticos. De um modo mais superficial,
podemos dizer que literatura e cinema, tal como algumas outras
manifestaes artsticas, so artes de massa que satisfazem uma mesma
necessidade fundamental da natureza humana: a curiosidade do homem pelo
homem, o desejo de identificao momentnea com a emoo dos nossos
semelhantes e a prpria necessidade de evaso. Ao proporcionarem ambas
um prazer momentneo e uma espcie de distraco ao pblico mais
comum, exercem sobre ele um grande poder de atraco. Este grande poder
de atraco, de notar, ocorre sobre um pblico muito vasto, sem grande
homogeneidade de cultura ou de classe, sendo, no caso da literatura, a
afluncia do pblico maior na variante romance.9 Por outro lado, entre a
psicologia do leitor de romances e do espectador de filmes desenham-se
singularidades paralelas bvias. Estando em causa o fenmeno da recepo e
da fruio da obra de arte, a actividade interpretativa do leitor e do espectador
envolve uma semelhante projeco de desejos, afectos e interesses sobre o
objecto artstico em causa (a identificao com o heri, etc.), bem como uma
semelhante cooperao na produo de sentidos e no preenchimento dos
espaos no-ditos. Em termos sociolgicos, de destacar o facto de
literatura e cinema constiturem formas de arte adaptadas conscincia
moderna e s suas necessidades. Ao contrrio das sociedades primitivas,
onde o sentimento de participao colectiva dominante, no indivduo da
sociedade contempornea prevalece uma conscincia individual muito forte e
o sentimento de uma pertena singular e diferenciada. Nesse isolamento em
9 Il y a une production romanesque qui se maintient justement parce que sa faon de raconter
(et ses thmes) ne sloigne pas de celle du film moyen et vise satisfaire les habitudes du mme public, la demande du mme consommateur. (Italo Calvino, op.cit.: 66)
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
24
que o leitor se coloca, nesse mesmo individualismo que necessariamente
deriva das prprias condies de percepo do romance encontra-se tambm
o filme. No cinema, embora as condies fsicas e materiais o tentem disfarar
(a sala cheia de pessoas), h uma solido de percepo muito semelhante (
sempre um sentimento individual).
A homologia mais visvel, contudo, entre as duas artes de cariz esttico.
Por constiturem ambas artes narrativas, comungam, para alm de outras
conexes homolgicas funcionais (autor/realizador; narrador/argumentista;
leitor/espectador), de afinidades narratolgicas muito importantes. A primeira
delas diz respeito estrutura inerente a cada um dos sistemas semiticos que
so. Independentemente do meio de que se servem para exprimir determinada
mensagem artstica,10 literatura e cinema aproximam-se naquilo a que alguns
estudiosos designam de forma do contedo e forma da expresso.
Assim, enredo, espao, tempo, personagens, como elementos ligados
estrutura dos componentes da histria narrativa, e voz, ponto de vista,
narratrio, (etc.), interligados estrutura da transmisso narrativa,
constituem pontos principais de grande analogia11 de uma arte e de outra.
Umberto Eco refere-se a tais analogias quando admite que entre as duas artes
h uma espcie de homologia estrutural (Umberto Eco, op.cit.: 192). Uma
outra afinidade narratolgica que aproxima as duas artes a da
temporalidade, ou, mais especificamente, a da dupla temporalidade. Dos
10
Embora uma narrativa nest communicable que sous condition dtre relay par une technique de rcit, celle-ci utilisant le systme de signes qui lui est propre (Claude Bremond, 1973: 46), toda a narrativa tem uma estrutura independente do seu modo de actualizao. Chatman fala-nos dessa independncia do medium e da capacidade de uma histria ser transposta de um medium para outro sem perder as suas propriedades essenciais: any sort of narrative message (), regardless of the process of expression which it uses, manifests the same level in the same way. It is only independent of the techniques that bear it along (Seymour Chatman, 1980: 20). A noo de que todas as narrativas tm uma estrutura comum, independentemente do meio utilizado para as transmitir, comparvel ideia da independncia entre pensamento e estruturas lingusticas particulares, proclamada por Benveniste (mile Benveniste, 1966). Assim, possvel postular a existncia de estruturas narrativas anteriores sua colocao em prtica por uma tcnica. 11
no sentido de uma especificao dos elementos narrativos e de uma estrutura semitica da narrativa que Chatman retoma Hjelmslev, ao apresentar a estrutura da narrativa em termos de uma disposio quadripartida: a narrativa tem, por um lado, uma forma da Expresso (todos os elementos ligados estrutura da transmisso narrativa) e uma substncia da Expresso (o medium material da transmisso narrativa) e, por outro, uma forma do Contedo (os componentes da histria narrativa) e uma substncia do Contedo (toda a representao narrativa retirada de cdigos da sociedade do autor) (Seymour Chatman, op.cit.).
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
25
diversos pontos em que convergem os narratlogos no que noo de
narrativa diz respeito,12 a temporalidade constitui o aspecto que maior
destaque detm, por ser precisamente aquilo que permite distinguir os textos
narrativos dos textos no - narrativos. Ao clarificar a terminologia do campo da
Narrativa e ao distingui-la de outros textos no-narrativos, como o
Argumentativo e o Descritivo, Chatman destaca o carcter chrono-logic da
narrativa: temporality is immanent to, a component of, narrative texts, uma
componente que informs narrative texts in a way that it does not inform
paintings (or non-narrative verbal texts, for that matter). (Seymour Chatman,
1990: 8) E, enquanto os textos no-narrativos possuem uma s ordem
temporal, a da durao que o texto leva a ser lido (a externa), os textos
narrativos caracterizam-se por uma dupla estrutura temporal:
Narrative entails movement through time not only externally (the duration of the presentation of the novel, film, play) but also internally (the duration of the sequence of events that constitute the plot). (id.: 9)13
A sequencialidade constitui, ainda, uma outra aproximao de mbito
esttico e que tem a ver com o facto de literatura e cinema pressuporem uma
certa sequencialidade, que no corresponde necessariamente a uma
sucesso linear dos eventos, mas sim sua conexo no eixo da cadeia
discursiva. Assim, a dinmica sequencial ocorre no filme por meio da
12
Para Genette, aquele conceito engloba trs noes: o enunciado narrativo; o discurso oral ou escrito que assume a relao de um ou mais acontecimentos (o discours); a sucesso de eventos, reais ou fictcios, que constituem o objecto daquele discurso narrativo e as suas diversas relaes de encadeamento, oposio, repetio, etc (a histoire); finalmente, designa um acontecimento, no o que se conta, mas aquele em que algum conta alguma coisa: o acto de narrar em si mesmo (a narration) (Grard Genette, s.d.: 26). Na mesma ordem de ideias, Metz define narrativa como um discours clos venant irraliser une squence temporelle d vnements, correspondendo o discours clos ao enunciado narrativo e une squence temporelle d vnements sucesso de eventos de Genette (Christian Metz, 1977: 42). Chatman, por seu lado, faz corresponder s noes de story e discourse, respectivamente, as componentes da histria enredo, personagens, espao, tempo e a estrutura da transmisso narrativa voz, ponto de vista, covert and overt narration, narratrio (Seymour Chatman, op.cit.). Baseando-se, tambm, nas concepes bsicas teorizadas por Genette (histoire, rcit e narration), e restringindo-se, embora, narrativa propriamente literria, Rimmon-Kenan prope uma definio de fico narrativa que vai ao encontro das anteriormente apresentadas: the narration of a sucession of fictional events (Shlomith Rimmon-Kenan, 1994: 2). 13
Genette refere-se a esta dualidade temporal quando a designa por tempo da coisa - contada e tempo da narrativa, e Metz por tempo do significado e tempo do significante.
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
26
sequencialidade de imagens e da montagem de quadros, enquanto no livro
ocorre por meio da sequncia de eventos. A literatura aproxima-se, a este
nvel, menos da pintura e da fotografia do que do filme, porque este tambm
inscreve o continuum temporal e sequencial num continuum espcio-temporal
(embora tecnicamente descontnuo, quando intervm a montagem), enquanto
aquelas inscrevem o continuum temporal e sequencial num descontnuo
espacial e fixo.
2.2. Especificidades e diferenas
Se em termos narratolgicos ambas as artes se aproximam sobremaneira,
tambm esse o mbito em que sobressaem as suas especificidades. Assim,
embora possuam um espao comum de partilha de cdigos, estruturas e
dispositivos narrativos (Ablio Cardoso, op.cit.: 29), cada qual constri de
modo particular a forma como cada um desses componentes significa, devido
sua natureza e perfil semiologicamente diferentes. De um modo geral,
podemos afirmar convictamente ser a natureza da matria de expresso de
cada um dos sistemas semiticos referidos o elemento mais determinante na
configurao dessa especificidade.14 Para alm das diferenas bvias em
torno do dispositivo material utilizado por ambos os sistemas artsticos (no
livro, os signos arbitrrios escritos; no ecr, os signos icnicos audiovisuais) e
das respectivas condies particulares de percepo,15 a distino
14
A preponderncia da matria de expresso salientada por vrios estudiosos. Jorge Urrutia afirma, por exemplo, que el conocimiento de los aspectos tcnicos del arte es decir: de todo aquello que se liga, depende y permite su materialidad explica mucho de los enunciados y de los textos (Jorge Urrutia, op.cit.: 39). Dorfles, por seu lado, refora: , certamente, possvel que cada poca veja o predomnio de uma arte ou de algumas artes sobre as outras; que a cada perodo histrico se ajuste um meio expressivo particular mas muito mais possvel verificar como cada arte depende, de modo essencial, do elemento tcnico de que se serve, e como esse elemento tcnico pode ser quase sempre identificado com o meio expressivo dela prpria (Gillo Dorfles, op.cit.: 56-57). 15
Entre outros aspectos, le livre peut se lire en des lieux et des situations trs divers (Francis Vanoye, 1989 : 18), ficando o ritmo e o tempo de leitura a cargo do leitor, independentemente do ritmo e cronologia internos criados pelo romancista. Na narrativa flmica, h certas imposies de percepo, como sejam o espao de visualizao, que sempre colectivo, a impossibilidade de o espectador controlar o tempo, bem como de manipular as imagens e o aparelho de projeco. Ablio Cardoso refere, a este propsito, a necessidade de se empreender uma reflexo mais consequente e mais rigorosa acerca das estruturas e dos modos de produo dos sentidos na literatura e no cinema, concretamente na narrativa literria e na narrativa flmica, bem como acerca dos actos de leitura e dos
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
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substancial entre o significante flmico e o literrio reside, na nossa
perspectiva, no tipo e na quantidade de informao veiculada. Enquanto a
literatura se caracteriza pela sua natureza mondica, visto ser apenas uma a
matria expressiva, a verbal, no cinema, a matria polifnica, estando em
causa a articulao de diversas operaes de significao. Devido
multiplicidade de matrias de expresso (icnicas, verbais, sonoras) e a uma
espessura do significante (Andr Gaudreault, 1990: 54), nesta arte
possvel a sobreposio de uma variedade de discursos, de planos de
enunciao e de pontos de vista:
Pour limage cinmatographique, il est trs difficile de ne signifier quun seul nonc la fois, uma vez que tout plan contient virtuellement une pluralit dnoncs narratifs qui se superposent, jusqu se recouvrir quand le contexte nous y aide. (id.: 22)
Alm disto, o facto de a arte cinematogrfica ser eminentemente icnica e
a literria eminentemente abstracta (embora ambas possam assumir, a seu
modo, significaes tanto analgicas como simblicas) faz com que a imagem
conceptual produzida pelo signo verbal evidencie um maior grau de fluidez do
que a imagem cinematogrfica, que, de natureza perceptual, se caracteriza
pelo contrrio por uma abundncia de detalhes visuais, e por aquilo que
Chatman designa de over-specification (Seymour Chatman, 1999). Este
um aspecto que tem implicaes em termos do tipo de recepo pelo fruidor
de cada arte: no caso do leitor, por no haver essa especificao e essa
delimitao taxativa do universo ficcional (j que no v a histria, mas l-a), a
maior parte do narrado fica a cargo da sua imaginao (a caracterizao das
personagens, dos cenrios, etc.), o que lhe d maior oportunidade de
projectar, em parte, a sua prpria histria.16 O cinema, em contrapartida,
integra o espectador num mundo perfeitamente perfilado: o espectador recebe
imagens j feitas, j fabricadas, a partir das quais imagina. Isto tem levado a
considerar-se o cinema uma arte mais ou menos passiva, pois o espectador
respectivos contextos em que se envolvem os destinatrios de uma e de outra prtica artstica (Ablio Cardoso, op.cit.: 26). 16
Por outro lado, ocorre frequentemente na literatura certos pormenores da histria, devido ausncia de visualidade, serem pouco esclarecedores, o que leva o leitor a fazer um esforo que no filme nem sempre sente necessidade de fazer. No entanto, o facto de poder efectivamente voltar atrs e re-assimilar conceitos resolve eventuais ambiguidades de leitura.
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
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no tem um papel to preponderante na construo da histria. Apesar de
haver certos filmes que, pela forma como esto construdos, apelam mais ou
menos para a participao activa do espectador, de um modo geral, o filme
um objecto artstico pr-definido, pr-fabricado.
O modo como cada arte se exprime (conceptual vs icnico) e a natureza da
matria de que se servem para tal (homogeneidade vs heterogeneidade), alm
de influenciarem o prprio processo de fruio fsica e psicolgica pelo leitor /
espectador, produzem consequncias diversas na configurao de
componentes como o tempo, o espao, a perspectiva e os modos de
representao da narrativa.
2.2.1. O Tempo
No que categoria tempo diz respeito, podemos dizer que as narrativas
verbais demarcam com facilidade as diferentes temporalidades, assinalando-
as atravs de um conjunto de elementos gramaticais e semnticos que
reenviam para os respectivos referentes (os verbos, os pronomes, os
advrbios). No cinema, devido sua natureza visual, tal categoria
circunscreve-se na sucesso de representaes de um presente: It is
commonplace to say that the cinema can only occur in the present time. Unlike
the verbal medium, film and its pure, unedited state is absolutely tied to real
time. (Seymour Chatman, op. cit.: 84)17
A determinao e marcao de hiatos temporais no cinema decorre, por
seu lado, da significao do contedo das imagens, do contexto da narrao
flmica e ainda de cdigos convencionalizados.18 Notemos, a este respeito,
que, apesar dessa aparente dificuldade em manifestar as diferentes
temporalidades, o cinema criou uma especificamente cinematogrfica que a
17
precisamente devido ao carcter presente da imagem que a actualizao do passado se faz de modo mais forte no cinema do que na literatura. A escrita produz um efeito de anterioridade da histria sobre o discurso, enquanto o filme produz um efeito de contemporaneidade da histria sobre o discurso. Da tambm a predileco dos cineastas pelo flashback como revelao, como portador de informaes importantes para a descoberta do passado (Seymour Chatman, op.cit.). 18
Para alm dessa tcnica compositiva propriamente cinematogrfica, muito propcia criao de anacronias que a montagem e o corte, o cinema possui outras tcnicas que produzem o mesmo efeito, tais como o flashback, o flashforward e a assincronia.
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
29
que se obtm da articulao mais ou menos complexa de imagens, sons e
palavras.19 Tal capacidade de narrar num determinado tempo, mostrando
embora outro, s se torna possvel porque o significante flmico, devido sua
dimenso sincrnica e aptido para a apresentao simultnea das aces,
assim o possibilita.
A stima arte introduziu ainda aquilo que, para Hauser, constitui a
verdadeira essncia temporal cinematogrfica a mobilidade temporal:
Em resultado da descontinuidade do tempo, o desenvolvimento retrospectivo do enredo combina-se com o desenvolvimento progressivo em completa liberdade, sem qualquer espcie de sujeio cronolgica, e, por intermdio de repetidas curvas e desvios no continuum-tempo, a mobilidade, que a verdadeira essncia da experincia cinemtica, levada aos limites extremos. (Arnold Hauser, op.cit.: 28)
2.2.2. O Espao
Quanto categoria espacial, na narrativa flmica o espao da histria
expe-se, uma vez mais devido ao carcter icnico do significante, de modo
anlogo ao espao do mundo real, enquanto na narrativa verbal [it] is what the
reader is prompted to create in imagination [...] on the basis of the characters
perceptions and/or the narrators reports (Seymour Chatman, op.cit.: 104).
Desse modo, o leitor transforma as palavras em projeces mentais, havendo
maior liberdade de imaginao do que no filme, visto tratar-se de um espao
abstracto. O espao da histria, no cinema, ocorre em simultneo com a
ocorrncia temporal dos eventos, ao contrrio da literatura, onde a
determinao do espao diegtico se faz separadamente em relao
narrao de eventos (alargando, com efeito, o tempo do discurso).20 O espao
19
o que ocorre, por exemplo, quando o narrador verbal narra um evento do passado, apresentando-se no ecr as imagens desse passado e persistindo auditivamente um sinal do presente (a msica ou outro elemento sonoro do lugar onde o narrador conta esse passado, portanto, do seu momento presente). Neste caso, Le rcit mlange donc deux temporalits diegtiques diffrentes, dune faon quun roman ne peut rendre: nous sommes la fois dans le pass et le prsent, dans un lieu et dans un autre, dans limagination et dans la ralit (du moins dans celle qui est suggre et suppose par le premier niveau du rcit) (Andr Gaudreault, op.cit.: 110). Existe ainda um outro exemplo, que quando a imagem mostra o presente, embora a personagem narre algo do passado. 20
Ao contrrio do cinema, onde parmetros topogrficos e cronolgicos ocorrem em lugares diferentes do significante flmico (respectivamente, na banda-imagem e na banda-sonora), na
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flmico est, pois, praticamente sempre representado, sendo as informaes
narrativas relativas s coordenadas espaciais fornecidas em abundncia:
Cest que, comme tout autre mdia visuel, le cinma est fond sur la
prsentation simultane, en synchronie, dlments informationnels (id.: 81).
Esta simultaneidade espcio-temporal no cinema e a sua impossibilidade
na literatura deve-se, de novo, natureza do significante: naquele, devido
multiplicidade da matria de expresso, nesta devido ao seu carcter
mondico e unilinear. Hauser fala desta ocorrncia simultnea do espao-
tempo no cinema como o resultado de uma mtua fuso entre as duas
categorias, adquirindo uma as caractersticas da outra. Assim, no filme:
O espao perde a sua qualidade esttica, a sua serena passividade, e torna-se dinmico; surge, por assim dizer, diante dos nossos olhos. fludo, sem limitao, no atingindo um fim, um elemento com a sua prpria histria, o seu prprio esquema e processo de desenvolvimento. O espao fsico homogneo assume aqui as caractersticas do tempo histrico, heterogeneamente constitudo. Neste meio as fases individuais no so j da mesma espcie, as partes individuais do espao j no tm o mesmo valor; o espao contm posies especialmente qualificadas, mas com certa prioridade de desenvolvimento, outras significando a culminao da experincia espacial. (Arnold Hauser, op.cit.: 25)
Este aspecto relaciona-se ainda com o facto de a imagem flmica constituir
um significante eminentemente espacial, pelo que a prpria composio do
espao diegtico se v condicionada pela natureza mvel e espacial do
espao do discurso. No esqueamos que a nossa apreenso da
representao flmica deriva dessas duas caractersticas materiais da imagem:
as suas dimenses como imagem fixa e mvel e a sua superfcie rectangular e
plana.21 Para alm disto, no devemos esquecer que o espao
literatura impossvel representar simultaneamente parmetros espaciais e temporais do evento narrado : La cooccurrence spatiale, la synchronie, la simultanit sont un idal impossible atteindre pour le narrateur scriptural. Lorsque deux vnements ont lieu simultanment dans la mme espace, celui-ci doit ncessairement en laisser un de ct, ne serait-ce que de faon provisoire. (Andr Gaudreault, op.cit.: 80). Veremos, contudo, com a anlise que empreendemos a O Delfim, como possvel sugerir tal efeito de simultaneidade cinematogrfica na escrita literria. 21
O dispositivo material de produo da narrativa flmica implica a existncia de trs tipos de espao: 1. o espao proflmico (o campo, delimitado pelo quadro da cmara) e o de rodagem, forosamente contguo quele (o espao daquele que filma); 2. o espao de apreenso da representao flmica (o do espectador, a sala de cinema) e o lugar de inscrio do significante visual, que a superfcie do ecr; 3. o espao flmico (a imagem flmica). A imagem flmica constitui-se primeiramente como imagem fixa, os fotogramas, dispostos em srie numa pelcula transparente, a qual, ao passar com um certo ritmo por um projector (24
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
31
cinematogrfico no dado na totalidade por nenhuma das imagens, mas
cada uma destas vem acompanhada da conscincia da unidade do espao
global e medida que as imagens se vo sucedendo que a ideia deste
espao se vai concretizando.
2.2.3. A Perspectiva Narrativa
Relativamente perspectiva narrativa, podemos distinguir no cinema, tal
como na literatura, aquele que narra daquele que v, que podem ou no
coincidir. A diferena, contudo, reside no facto de na stima arte, devido
complexidade do material de expresso e consequente possibilidade de uma
conjugao simultnea de informaes variadas, a distino no ser to fcil
de se fazer.22 Gaudreault e Jost referem-se a essa complexa sobreposio de
informaes quando especificam que :
Le rcit cinmatographique est tout particulirement apte empiler les uns sur les autres une varit de discours, une varit de plans de lnonciation et, finalement, une varit de points de vue qui peuvent, ventuellement, sentrechoquer. (Andr Gaudreault, op.cit.: 54)
No cinema, a instncia narradora corresponde entidade que se encarrega
no s da actividade de mostrao (a actividade da rodagem ou filmagem, em
que se articulam os fotogramas entre si), mas tambm da actividade de
narrao (a actividade de montagem, em que se articulam os planos entre si).
imagens por segundo, no cinema sonoro e 16 / 18 no mudo), origina a imagem ampliada e em movimento. A sua delimitao por uma superfcie plana e rectangular forma, por sua vez, o quadro, que, com dimenses e propores impostas por premissas tcnicas, tem um papel determinante na composio da imagem. Perante o quadro, e devido impresso da realidade do cinema, produzida pela iluso de movimento e de profundidade, reagimos como se estivssemos perante o espao real em que vivemos. Como este espao limitado pela extenso do quadro, apercebemo-lo como uma parte desse espao, o campo, cuja visibilidade prolongada por um espao invisvel, o fora de campo. Campo e fora-de-campo comunicam entre si de vrios modos e o ltimo s existe em face do primeiro. Uma boa parte do potencial narrativo do cinema reside nas articulaes constantes entre o campo e o contra-campo, as quais formam a sequncia flmica: Chaque succession de plans actualise et organise un espace prcdement hors champ. L ici-maintenaint du plan en cours nest que le l du plan antrieur, tandis que le l du plan en cours deviendra bientt un ici-maintenaint (Andr Gaudreault, op.cit.: 87). 22
Como explica Chatman, The cinematic narrator is the composite of a large and complex variety of communicating devices, os quais usually work in consort, but sometimes the implied author creates an ironic tension between two of them (Seymour Chatman, op.cit.: 135).
Primeira Parte: Entre cinema, literatura e O Delfim
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Gaudreault e Jost designam de meganarrateur essa instncia fundamental
responsvel pela comunicao da narrativa flmica.23 Embora a instncia
flmica intervenha em vrios mbitos, como o proflmico, que diz respeito a
todos os elementos que o cineasta manipula para os colocar perante a cmara
(mise en scne), e o filmogrfico, que pressupe uma actividade
relacionada com a aparelhagem cinematogrfica (nomeadamente as
actividades de enquadramento, de movimentos do aparelho, etc., a mise en
cadre), ao nvel da montagem (mise en chane) que a presena do
narrador mais se faz sentir. Aqui, por muito que se tente ocultar a sua
presena, apagando os traos da actividade narrativa e as marcas da
enunciao, nunca o fazemos completamente, uma vez que Un changement
de plan, quelque prcaution que lon prenne, restera toujours visible (id.:
114). Assim que o mostrador flmico, mesmo sendo muito importante quanto
ao papel que assume em relao realidade referencial (inscrevendo um
determinado ponto de vista, enquadrando certos objectos e no outros,
controlando a nitidez da imagem, fazendo a ligao entre os objectos, etc.), ,
partida, mais invisvel que o narrador flmico, o qual absorb par les
images mmes et par la faon dont elles sont jointes les unes aux autres. Le
narrateur semble lire les images au spectateur au mme moment o il les
prsente. Le narrateur est invisible, ne rvlant sa prsence que par la
manire dont il rvle les images sur lcran (id.: 152).24
Narrador literrio e narrador flmico distinguem-se, pois, em termos da
complexidade de funes, visto que, embora a organizao da informao
narrativa fique tambm a cargo do primeiro, a sua funo primordial
enunciar o discurso como protagonista da comunicao narrativa (Carlos
23
Segundo os mesmos autores, o mostrador flmico a instncia responsvel pelos nveis proflmico e filmogrfico, enquanto o narrador flmico intervm no trabalho de estruturao da narrativa, na montagem. A expresso meganarrador abarca, portanto, as duas instncias, o mostrador e o narrador flmicos. 24
Para Gaudreault e Jost, a narratividade flmica s surge com a montagem, por ser precisamente esta a operao privilegiada atravs da qual se manifesta a interveno do narrador flmico. A existncia da montagem permite que haja uma articulao dos segmentos espcio-temporais uns nos outros (e no um s espao e um s tempo como no teatro), bem como a presena de diferentes modulaes temporais, e isso da responsabilidade de um narrador flmico. pela montagem que le spectateur prouve cette sensation de ne pas tre seul regarder cette histoire qui se droule devant ses yeux. Cest par les dbotements de camra, principalement, quil peroit le rle de cet adjuvant [...] que serai le narrateur filmique. (id.: 102)
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Reis, 2000: 257). O segundo, por seu lado, ao manipular as diversas matrias
de expresso flmica, tem tambm como funo a sua ordenao e
organizao de modo a que as diversas informaes narrativas cheguem ao
pblico.
A diferena substancial, contudo, entre a enunciao literria e a flmica
sobretudo evidente quando se trata de analisar, por um lado, a apropriao
por um narrador primeiro do discurso de um narrador segundo e, por outro, de
confrontar a relao temporal entre a narrao (o discurso) e a fico (a
histria). No primeiro caso, a enunciao flmica distingue-se claramente da
literria, uma vez que, embora nesta ltima seja tambm possvel tal
apropriao, so os aspectos tipogrficos que permitem distinguir um discurso
do outro (o signo escrito), enquanto naquela so utilizados vrios meios para o
fazer (o som, a imagem, a palavra). Por outro lado, na enunciao literria s
possvel dar a voz a cada narrador um aps o outro, e nunca ao mesmo
tempo, devido a tratar-se da mesma matria de expresso a verbal
(homogeneidade do material expressivo). Na flmica, por se tratarem de
matrias diferentes (polifonia do material expressivo), tal feito de modo
simultneo:
Dans ce cas, le double rcit se prsente comme une concomitance de la voix narrative du mganarrateur filmique, responsable du rcit audiovisuel, et de celle du (sous-)narrateur verbal, responsable du (sous-)rcit oral. (id.: 51)
Ao confrontarmos a relao temporal entre o discurso e a histria,
verificamos ainda que, por o cinema actualizar a mensagem narrativa quer
atravs de imagens flmicas, quer atravs de imagens flmicas em conjugao
com uma ou mais vozes (diegticas ou no), surge a j refer
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