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ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS:APROXIMANDO AGENDAS E AGENTES
23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) DA MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA À AMIZADE NA SALA DE AULA: (RE)
PENSANDO A POSTURA DO EDUCADOR
Alonso Bezerra de Carvalho UNESP-Assis/Marília
Fabiola Colombani
UNESP/Marília
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Introdução
O tema das relações humanas e da convivência entre as pessoas na escola
tem sido objeto de reflexão e aumentado substancialmente nos últimos tempos.
Pretende-se com isso compreender porque certos comportamentos e condutas
habitam um lugar em que as pessoas poderiam ou deveriam se relacionar de
maneira mais amigável e solidária. Indisciplina, violência, desinteresse, indiferença,
etc, são atitudes que tem sido constatado na sala de aula e fora dela. Alunos e
professores parecem que não estão se entendendo, em que um descompasso entre
os seus juízos de valores, de gosto e de escolhas tem prevalecido. O resultado mais
evidente disso tudo é o conflito. Para solucionar esses problemas, a escola, como
espaço educativo e como instituição, ligado a um sistema social de ensino e
educacional tem tomado providências que tem causado polêmicas, tanto do ponto
de vista das reflexões e das ações pedagógicas quanto no campo da ética e da
moral.
Para os propósitos deste trabalho apresentamos algumas reflexões
concernentes ao tema da infância, destacando o tratamento que é dado às
situações consideradas desviantes nas crianças – os chamados Transtornos de
Déficit de Atenção e Hiperatividades (TDAH). É observável no cotidiano da escola
práticas que exprimem um desejo de instaurar uma política para a infância, que
toma como verdadeiros e plausíveis os diagnósticos provenientes de uma visão
patologizante da criança. Essa postura pretende implantar um processo de
homogeneização pretensamente “sadia”, com o objetivo de universalizar e
enquadrar os comportamentos infantis. Algumas condutas apresentadas pelas
crianças, neste contexto, são vistas como indicativos de transtornos e isso vem
contribuindo para que elas sejam encaminhadas pelos educadores aos profissionais
da saúde, pois a queixa aponta que tais comportamentos podem ser considerados
indisciplinados, agitados e impulsivos. Refletir e examinar tal questão pode revelar
os frutos de uma sociedade eugênica e disciplinar, que foi consolidada com o
processo de higienização ocorrido no início do século XX. De caráter crítico, este
trabalho busca mostrar que se pode olhar a educação na atualidade em outras
perspectivas e não tentar resolver os problemas por meio de uma mera técnica,
muitas vezes alheias e quiçá contrárias ao problema que se apresenta, pois, com
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isso, a educação pode perder seu caráter primordial de humanização e de encontro
entre as diversas formas de existir.
Nesse aspecto, pretende-se, num segundo momento deste texto, examinar a
percepção, a sensibilidade e a abertura que o professor pode construir para
compreender e interpretar os movimentos que acontecem na sala de aula. Com
isso, abre-se a possibilidade de se evitar um diagnóstico reducionista, organicista e
biologizante, que leva a um expressivo aumento no índice de medicalização da
infância. Para tanto, tomamos a amizade, no seu sentido filosófico, como uma
tentativa que pode proporcionar um questionamento e uma ruptura a um estilo
pedagógico que parece consolidado, isto é, que trata a infância como uma fase em
que a criança pode ser moldada e preparada para a fase adulta, com o intuito de
torná-la passiva, docilizada, ou seja, alvo de poder. A nossa idéia é de que a
amizade pode inverter ou converter esse fluxo de atitudes e posturas mecanizadas,
sobretudo quando desconsidera o aspecto subjetivo e as singularidades da criança.
Ao pensarmos em relações humanas na escola e, sobretudo na sala de aula, a
idéia ou pergunta que rapidamente vem à nossa cabeça é se há possibilidade de
uma relação amical, nos termos que trataremos aqui, entre professor e aluno, por
exemplo. É certo que a possibilidade de amizade entre professores e alunos põe-
nos diante de uma questão pertinente ao nosso tempo. Se a amizade é ter uma vida
em comum, que elemento pode unir os dois personagens? É evidente que há uma
diferença entre ambos, na vestimenta, no vocabulário, na idade, nos interesses, etc.
Não é a mesma coisa ser aluno e ser professor: um está diante do outro do ponto de
vista da sala de aula. Nesse sentido, pode ser catastrófico construir estratégias,
vindas de fora, para superar os conflitos e as dificuldades que surgem na sala de
aula, especialmente quando sabemos que pertencem ao mesmo grupo, à mesma
convivência, ao mesmo ambiente.
Se partirmos da constatação de que na escola, de maneira geral, e
particularmente na sala de aula, há um jogo ético nas relações que ali se
estabelecem, um estudo, uma reflexão na direção de uma prática renovada, tendo a
amizade como elemento principal, pode ser uma experiência significativa. Essa
experiência, aparentemente estranha, pois baseada entre pessoas diferentes, é o
que nos levaria a reconhecer a amizade como uma virtude, ao mostrar como a
revelação de pontos de vista, de crenças, desejos, atitudes e utopias distintas,
tornando-os próximas, e não anulá-las, controlá-las ou extirpá-las.
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A barreira hierárquica e o desejo de controle podem ser superados, em que
professores e alunos tenham o ato corajoso de circularem, “dois que andam juntos” ,
agindo e pensando um no terreno um do outro, de recriar uma espécie de
sociedade, de comunidade, sem estigmas, culpas e exclusões. Deste modo, a
escola pode, sim, ser um espaço de crescimento, onde a educação desempenha
seu papel de uma forma democrática e plural, sem ser arbitrária. E os educadores
construírem relações mais sólidas sem serem normatizadores e, junto com os
alunos, construírem alternativas, primeiro como reflexões e, depois, como
elaborações de propostas para enfrentar os problemas e questões que a realidade
escolar coloca.
A MEDICALIZAÇÃO NA ESCOLA A questão do TDAH – o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade –
tem atingindo em cheio o ambiente escolar. Quando há alguma suspeita, os
professores tem adotado um procedimento bem radical: as crianças são, com
freqüência, encaminhadas a centros especializados para se fazer um diagnóstico.
No âmbito escolar, o TDAH surge, então, como justificativa para a repetência,
o fracasso e a indisciplina. Crianças que apresentam comportamentos que não
correspondem ao esperado ou desejado pelos professores, são vistos como
portadores de tal transtorno. Os pais, influenciados pelas queixas dos educadores,
passam a procurar por ajuda médica e psicológica com o intuito de sanar tais
comportamentos considerados anormais, o que acarreta na medicalização, que
surge como principal meio de “solucionar” o problema.
No entanto, se olharmos a partir de uma visão crítica, essa postura e
interpretação indica o caráter organicista, biologizante e individualista da questão
que, à luz da teoria foucaultiana, pode ser compreendida como refletindo, ou melhor,
exprimindo os mecanismos institucionalizadores de poder presentes na sociedade.
O professor infantil, sobretudo, tem se queixado das “más” condutas e dos
comportamentos das crianças, associando-os a uma causa biológica, doentia e que
precisa de tratamento. Enfim, a postura dos educadores é patologizar as atitudes
das crianças.
Historicamente, a Educação Infantil sempre foi um ambiente disciplinador,
pois nasceu de uma educação compensatória que não tinha como principal objetivo,
um ambiente que correspondesse ao caráter criativo, livre e comunicativo desejável
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para a infância; levando os educadores a confundir o que é normal e o que é
patológico. Sob esta influência histórica, muitos dos comportamentos manifestos
pelas crianças são vistos como indisciplinados e agitados, fazendo com que essas
crianças sejam vistas como “hiperativas”. Essa visão, consequentemente, acarreta
no encaminhamento aos profissionais da saúde e posteriormente aos longos
tratamentos terapêuticos e medicamentosos.
Desta forma, é importante pensar no conceito „patologização‟ - ato de
patologizar -, que vem de patologia, cuja origem é a palavra grega pathos, que
significa, principalmente, „passividade, sofrimento e assujeitamento‟. A expressão
utilizada, no latim, na forma patere, significa „sofrimento, paixão‟ (no sentido de
passividade). Se as palavras forem analisadas será fácil perceber que elas são
interligadas e trazem uma conotação de sofrimento. Para Lebrun (1997, p. 18),
significa uma tendência que deixa o indivíduo suscetível às interferências, ou seja, é
uma potência que caracteriza o paciente, mas não um poder-operar, mas sim um
poder tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma nova
forma de movimento, ocupando a posição passiva receptora.
Transpondo a idéia para a patologização escolar, pode-se dizer que é algo
externo que influencia e modifica a subjetividade do indivíduo, ou seja, patologizar é
o próprio ato de apontar no aluno considerado “diferente” uma doença que mesmo
inexistente, passa a ser reconhecida e diagnosticada pela equipe escolar e de
saúde. Este ato além de estigmatizar o indivíduo colocando-o como anormal, ainda
busca através de justificativas sociais, afirmar a patologia, o que pode desencadear
como conseqüência, no ato da medicalização.
Collares e Moysés (1994, p. 29), conceituam o termo medicalização:
o termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo.
Este conceito caracteriza uma severa crítica à intervenção repressora da
medicina, que passou a assumir função de reguladora social e até hoje exerce
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influência na realidade, não através de violência ou repressão, mas pela força que
forma saber e produz um discurso, induzindo os indivíduos a agir conforme os
desejos e normas criados e impostos pela uma sociedade. Essa ingerência os
influencia na forma de pensar e de se comportar, fazendo com que aceitem e
adotem a necessidade de uma subjetividade medicalizada, que reconhece o desvio
e o diferente como patologias a serem cuidadas por uma sociedade disciplinar, na
qual a “indisciplina” e o “não-aprender” passam a ser doenças com indicações de
tratamento.
A presença da equipe de saúde nos assuntos educacionais é algo que foi
criado no Brasil no início do século XX, absorvendo os princípios higienistas. Desde
lá, essa abordagem neurológica dos distúrbios de aprendizagem toma força e
“arrasta” multidões de crianças, que acabam sendo enquadradas em diversas
patologias, segundo um raciocínio clínico tradicional.
O ato de patologizar atinge o indivíduo que se manifesta fora dos padrões
considerados normais. Porém, a questão não é somente médica, pois influencia a
educação e a conduta dos educadores, que levam para a sala de aula uma
concepção de criança que deve atender a um modelo pré-determinado socialmente,
o que acaba provocando equívocos sobre o binômio normal - patológico. Isso afeta
diretamente a relação professor-aluno, pois o professor cria uma expectativa em
torno da criança que influencia as suas condutas em relação a ela caso desvie
daquilo que ele, o professor, considera “normal”.
Muitas vezes, a concepção de criança que o educador possui não permite que
ele a veja como um ser individualizado e atravessado historicamente, o que pode
transformar o seu discurso no discurso de um sujeito infantil universal, ideal e
abstrato, produzido apenas pela razão, obedecendo de forma padronizada às
características biológicas próprias da idade à qual pertence. Essas peculiaridades
resultam de uma uniformização, o que produz uma tentativa de homogeneização da
educação. Assim, toda e qualquer criança que se desvia do padrão considerado
“normal”, acaba sendo vista como problemática e uma nova necessidade passa a
ser produzida, fazendo com que os educadores venham a solicitar “cuidados” dos
profissionais da área médica, com o intuito de detectar distúrbios e posteriormente
corrigi-los.
Com o desejo obstinado de produzir, próprio da sociedade capitalista, a escola
se destina ao desenvolvimento de um espaço em que a prioridade seja a
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produtividade e, ao mesmo tempo, a obediência às leis, que na maioria das vezes
não vem através de uma conscientização de cidadania, mas, numa forma alienante,
que destrói o aspecto crítico e questionador da infância, com o objetivo de priorizar o
sistema produtivo.
Em seu discurso, Foucault (apud DORNELLES, 2005, p. 19), contribui dizendo:
portanto, a invenção da infância implica na produção de saberes e “verdades” que têm a finalidade de descrever a criança, classificá-la, compará-la, diferenciá-la, hierarquizá-la, excluí-la, homogeneizá-la, segundo novas regras ou normas disciplinares. Impõe-se sobre a infância uma ordem normativa que lhe dá uma determinada visibilidade, tendo em conta que “o exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam os efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam”.
Sendo assim, esses efeitos do biopoder acabaram se institucionalizando de
forma que o processo de normatização, o ato de classificação e de individualização,
foram ganhando contornos próprios e a norma foi se afirmando, causando um
domínio sobre o comportamento e a disciplina, respaldados por saberes científicos
que encontram cada vez mais justificativas diagnósticas nas manifestações infantis
consideradas inadequadas ou “anormais”.
A escola tem uma forma disciplinar de funcionamento subjacente a uma
perspectiva educativa, um modo massificante e organicista de ver a criança que
apartada de suas condições culturais e sociais é analisada de forma superficial e
ambígua. Ao valorizar em demasia a ordem, a escola deixa de promover práticas de
vivências democráticas para aplicar as normas disciplinares que possuem a
finalidade de modificar comportamentos. Além disso, ela tem uma função de
produção e reprodução, que mantêm a desigualdade social, legitimando o
conhecimento dominante, sem levar em consideração as necessidades dos alunos,
fazendo da sala de aula apenas um lugar de transmissão de conhecimento. Nesse
processo, os educadores atuariam como agentes de reprodução econômica e
cultural de uma sociedade fragmentada e que aliena, tirando do indivíduo o aspecto
crítico que “cega” a visão de dominação de classe, de gênero e de raça. Porém,
estes aspectos da educação, embora tenham sido construídos historicamente,
atuam de forma naturalizada, numa verdade cristalizada e arbitrária.
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Capturados pela instância do poder, os alunos passam a se comportar de
forma robotizada. Contudo, há aqueles que fogem dos padrões de controle
considerados normais, e manifestam-se com outras formas de comportamento. Este
“desajuste”, que incomoda os educadores, é visto como indisciplina. A indisciplina é
entre os educadores, atualmente, uma das queixas que mais aparecem no cotidiano
escolar. Ao ouvi-los observa-se que se queixam de falta de regras, desobediência às
normas, desinteresse pelo ensino e atitudes agressivas. Porém, ao relatar estas
queixas, mais parece que os alunos apontados são adolescentes, estudantes do
ensino médio, quando na verdade são alunos da educação infantil, ou seja, crianças
entre 03 e 05 anos, que são vistas como descontroladas, desregradas,
desobedientes e agressivas.
Muitas das queixas dos professores em relação à indisciplina têm a ver com
falar demais, falar alto ou não permanecer sentado muito tempo no momento das
atividades em sala de aula, comportamentos comuns da infância, que passam a ser
confundidos muitas vezes com distúrbios e transtornos do comportamento, o que
acaba impulsionando o professor a solicitar o auxílio dos especialistas
parapedagógicos (psicólogos, neurologistas, psiquiatras e afins), com o intuito de
solucionar tais “problemas”.
Ao moldar, controlar e punir, a escola priva a criança de liberdade. Liberdade
de expressão, liberdade de brincar, de procurar os seus próprios interesses, de
socializar, de reivindicar, de errar enfim, de ser ela mesma, isto é, inocente, pois a
infância – livre de hipocrisia social - é a única fase em que o ser humano consegue
ser original. No seu texto As três transmutações, de Assim Falou Zaratustra,
Nietzsche parece querer dizer isso: “inocência é a criança, e esquecimento, um
começar-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro
movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso
um sagrado dizer-sim” (1978, p. 230). No entanto, na escola de hoje a criança vai
perdendo os seus sentidos, quando já não pode mais usá-los. A sua linguagem
corporal é roubada quando ela não pode mais manifestar as dores e os sabores por
meio do corpo ou da fala, ao se sentir presa num sistema que a rejeita, ela passa a
internalizar as disciplinas e a aceitar o que lhe impõem. Ainda conforme Nietzsche:
de criança, se transforma em leão e de leão em camelo que, ajoelhado, deve ser
bem carregado – o espírito de carga (idem, p. 229)
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Pode-se então, concluir, a partir de tais reflexões que a escola sempre foi
palco das disciplinas e das diversas formas de disciplinamento, onde todo e
qualquer indivíduo que não obedecesse às normas era considerado fora do padrão
desejado. E isso já começa na família.
Estado, família e educação
A família, mesmo dentro de uma posição senhorial, estava sendo dominada
lentamente, tomada por pequenos poderes que eram representados por agentes do
Estado, responsáveis pela divisão dos padrões de comportamento social em legais
e normativos, buscando a universalização de novos valores, principalmente o de
acreditar na supervalorização do Estado em relação à família, regulando os
indivíduos para que se adaptassem à ordem imposta pelo poder, não apenas para
abolir as condutas inaceitáveis, mas também para incorporar as novas práticas e
sentimentos.
Por seu lado e nesse processo, a medicina começou a atuar mais próxima
das pessoas, segundo uma prática filantrópico-assistencialista que invadia a vida
privada sem que configurasse um ato de desrespeito. Com isso, os indivíduos
acabaram permanecendo cegos, inertes e envolvidos pelo domínio estatal. Em
1829-1830 houve uma ascensão significativa desse poder, pela qual a higiene
médica obteve o seu reconhecimento público, impondo-se junto ao poder central
como elemento essencial à proteção da saúde pública.
Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as
vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa-Estado como antinaturais e
anormais. Todo trabalho de persuasão higiênica desenvolvido no século XIX vai ser
montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de
sua sujeição ao Estado (COSTA, 1989, p.63).
Segundo o autor, podemos dizer que a higiene, a princípio, parece cuidar da
moral e dos bons costumes da vida privada e pública dos indivíduos, mas na
verdade o maior alvo da higiene sempre foi a família, ao passar a idéia de que era
necessário um cuidado científico para que ela pudesse se adaptar à urbanização e
cuidar dos filhos, pois os pais eram vistos como incapazes, visto que erravam por
ignorância e a família acabava por descobrir no saber higiênico a prova de sua
incompetência que os higienistas faziam questão de apontar. Desta forma, a
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medicina passou a ser recebida e internalizada pela família que pode reconhecê-la
como padrão regulador dos comportamentos, dificultando toda e qualquer conduta
que se desviasse do padrão desejado pelos higienistas. Se o objetivo principal do
Estado era combater os maus hábitos entre os adultos, isso só ocorria com a
intenção de que a criança fosse influenciada com hábitos saudáveis, pensando
sempre no adulto do amanhã que contribuiria para o progresso.
Ao estabelecer um parâmetro de sociedade e família organizada, a disciplina
idealizada pelo Estado pôde passar a agir de forma mais significativa e constante,
combatendo a imoralidade, os corpos insanos e as atitudes corrompidas. Embora os
pensamentos teológicos ainda se encontrassem fortes, lentamente a ciência foi
conquistando território e sendo assimilada pela sociedade como uma forma de
progresso e solução à saída da sociedade de várias situações de caos.
Foucault, em sua obra Vigiar e Punir (2008), faz uma discussão singular
sobre a ação da disciplina como reguladora dos instrumentos normalizadores, a qual
favoreceu a docilidade com que a família se sujeitou à higiene, o que acabou
desencadeando uma nova constituição social. A higiene, representada por cientistas
da área médica, chegou exercendo um papel de suposto saber que, tomado de
pleno poder, recebeu licença para adentrar o seio familiar e, consequentemente,
influenciar o funcionamento de outras áreas que até então não faziam parte da
competência médica, como por exemplo, a educação.
A disciplina para Foucault tem ligação direta com o poder, pois segundo ele o
poder é a ação das forças em detrimento de algo ou de alguém que exerce
fragilidade ou submissão em relação ao outro. O olhar hierárquico, que estigmatiza e
reprime o que não é aceitável, tem como objetivo disciplinar o corpo dócil - termo
usado por Foucault - que está adjacente a uma época clássica em que houve a
descoberta do corpo como um alvo de poder. Os higienistas se utilizaram, em suas
investidas, de um corpo que pode ser manipulado, modelado, treinado, que obedece
e corresponde aos desejos dos detentores do poder que neste caso, está
caracterizado na figura médica.
(...) o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a
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eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (FOUCAULT, 2008, p.119).
O filósofo francês então elucida que o disciplinamento veio não só para
moldar a forma de organização familiar, como também, para cobrir de domínio
através da norma, todo o corpo social que ao ser vigiado e manipulado “lubrificava”
toda engrenagem, tornando-se a vigilância um operador econômico determinante,
na medida em que o poder disciplinar influencia na produtividade social.
Com o Iluminismo, as preocupações com a infância se intensificaram e se
centraram na idéia de transformar a criança em “homem dotado de razão”, sempre
com o objetivo de torná-la produtiva. Mas é no século XIX que a escola passa a ser
o local por excelência da educação e da aprendizagem das crianças, havendo os
disciplinamentos impostos pela instituição, com o intuito de constituir sujeitos
eugênicos e capazes, que dêem conta de uma nova forma econômica que surgia
naquele momento - a industrialização.
Já durante todo o século XIX e início do século XX, percebe-se todos os
resíduos cristalizados de uma sociedade eugênica e higiênica, que passa a ter como
suporte social, verdades construídas ainda no Brasil Colônia. Várias iniciativas,
nesta época, demonstram uma concepção assistencial que, proveniente de
inúmeras leis, acaba por influenciar as condutas jurídicas, sanitárias e educacionais,
tendo sido denominada de período assistencial científico. Assim:
as primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por um amplo debate em torno da reconstrução da identidade nacional, em meio à constatação de um quadro sanitário-educacional extremamente precário, tanto em zonas urbanas quanto em zonas rurais. Desencadeou-se um verdadeiro movimento pela saúde e saneamento do Brasil, marcado pela presença da doença como o grande obstáculo a ser superado, articulada fortemente com os temas da natureza, do clima, da raça, dentre outros (BOARINI, 2003, p. 45).
Desta forma, a infância passou a ser mais valorizada, sendo alvo de cuidados
específicos por meio de um controle assíduo. Se esse “controle” do corpo tinha
como principal objetivo obter uma infância protegida e higienizada, para que
houvesse a defesa da sociedade, pensando a criança como o “adulto do amanhã”,
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só o tinha para que esse “adulto do amanhã” viesse a ser um aparelho social
eficiente, isto é, um cidadão que viesse a contribuir para o avanço de sua nação
com suas práticas progressistas e salubres. A escola se tornou o lugar apropriado
para cultivar os bons hábitos na infância, cujo objetivo seria buscar a harmonização
do corpo e do espírito com o alcance da disciplina.
Que a escola é historicamente um lugar disciplinador isso já se sabe, mas o
que se pode perceber, a partir de observações e estudos feitos atualmente
(LUENGO,2010; PROENÇA, 2010; ASBAHR, F.da S.R.& SOUZA, M.P.R., 2007), é
que a educação infantil, mesmo com os avanços que já foram alcançados, pós
Constituição de 1988, vem demonstrar um trabalho centralizador, pelo qual o
professor culpabiliza o aluno pelo fracasso, atribuindo-lhe rótulos estigmatizantes,
que o apontam como indisciplinado e incapaz, de forma a enquadrá-lo num lugar de
exclusão, sem considerar o seu modo de ser.
A criança ao chegar à escola, se depara com essa forma de
funcionamento educacional, na qual a intolerância, a falta de paciência e o
desrespeito às singularidades estão quase sempre presentes. A escola deveria
oferecer também, um espaço de atividades livres e lúdicas, com o intuito de
despertar na criança o desejo de criar e de aprender, conforme sua própria
curiosidade, necessidade e interesse, sem que tenha que ser submetida a exames e
avaliações classificatórias, pois ela representa, para a criança, uma iniciação da vida
social, fase em que os pequenos passam a se relacionar com um mundo fora do
seio familiar, conectando-se às novas experiências.
Nesse aspecto, é exigido do aluno que ele se adapte aos ritmos
escolares intensos, submetendo-se às práticas de imposição e aceleramento. Um
exemplo é a apostila, que alfabetiza precocemente com o objetivo de “prepará-lo”
para o ensino fundamental. Para alcançar os objetivos pedagógicos vigentes no
planejamento, é exigido da criança que ela se mantenha atenta e interessada,
durante todo o período escolar. Mas se adultos, na universidade, desconcentram-se
ao permanecerem sentados por muito tempo ouvindo aulas e palestras, como é
possível que crianças tão pequenas possam corresponder a essa expectativa dos
educadores?
Ao esperar que o aluno comporte-se como mero espectador na sala de aula e
que contenha suas ações, manifestando-se somente quando convidado, seguindo
uma postura obediente e submissa, cria-se um modelo de aluno normal e
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disciplinado, ou seja, isso passa a fazer com que esse molde imposto pela escola,
venha classificar os comportamentos da criança, havendo previamente um padrão
considerado normal e outro desviante.
Aquele aluno que não corresponde ao padrão de normalidade exigido pela
sociedade, passa a ser olhado com os “olhos” de um sistema que não respeita as
características singulares, ficando, este aluno, vulnerável às intervenções. Ao
estigmatizá-lo, por não corresponder aos anseios sociais, cria-se a possibilidade de
“tratá-lo” para que só então, ele esteja apto a participar de uma vida escolar
produtiva.
Esses alunos, considerados “diferentes” ou “normais”, sofrem por uma
sociedade com ideais que visam uma constante homogeneização e universalização
do homem e os psicofármacos chegam como grandes auxiliares neste processo de
dominação.
Porém, assim como a criança é alvo dessas imposições sociais, o professor
também o é, pois embora tenhamos apontado em direção às práticas educativas
que controlam, disciplinam, estigmatizam, patologizam e medicalizam a criança,
sabemos que o educador é vítima e produto de um sistema político-social em que a
sua formação profissional muitas vezes é deficiente e, além disso, sentem-se
solitários numa luta diária que precisa corresponder a uma exigência de
produtividade imposta socialmente, influenciando a conduta das pessoas nos
diversos espaços sociais, o que agrava ainda mais a situação.
É sintomático, diante disso, que a sala de aula adquire e torna-se um espaço
privilegiado para se construir uma saída e um lugar em que o professor, por meio de
sua prática docente, pode assumir o compromisso de agir1 no sentido de romper ou
no mínimo problematizar esse processo de uniformização das condutas e
comportamentos feito via, por exemplo, a medicalização, como tratado até aqui.
A seguir, nos propomos trazer à discussão uma temática que pode oferecer
elementos que vão no sentido de proporcionar não apenas reflexões renovadas,
mas que tenham conseqüências nas práticas docentes atuais. De início, falaremos
1 A noção de agir que adotamos aqui é tomado da filosofia Hannah Arendt, em seu livro A condição
humana. Para ela, agir “no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, „começar, „ser o primeiro‟ e, em alguns casos „governar‟), imprimir movimento a alguma coisa (...) O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins cotidianos, equivale à certeza: assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (1983, p. 191)
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da sala de aula como espaço de encontro e, em seguida, da amizade – philia, em
grego - como uma perspectiva filosófica que pode nos conduzir a um horizonte
educacional menos objetivante, técnico e dominador e mais baseado na
intersubjetividade.
Sala de aula: lugar de encontro
Embora seja um espaço institucionalizado, a sala de aula pode ser um lugar
para transgredirmos e edificarmos uma maneira nova de nos relacionar. Para além
dos conteúdos que aí circulam, é possível que a comunidade escolar, sobretudo
professores e alunos, criem e inventem ocasiões para experimentar novos diálogos
e novas relações. Espaço plural de liberdade, a sala de aula não pode perder o seu
aspecto revolucionário, onde é possível construir conversações com o mundo e com
os outros, baseado no respeito, a escuta e no olhar atento (Cf. ESQUIROL, 2008).
Seres inacabados que somos, o desafio que é posto para aqueles que querem
intensamente fazer de sua existência uma obra de arte, está em se abrir ao outro;
não para anulá-lo e submetê-lo a desejos e ordens, porém no sentido de nos fazer
mais humanos e sensíveis, compartilhando dores e sofrimentos bem como as
alegrias. Reconhecendo esse permanente conflito e o caráter agônico da vida é que
nos tornará um “outro” para o “outro”, a ser considerado, ouvido, respeitado. E a
amizade, no seu sentido mais profundo e original- philia - pode ser tomada como a
ação mais decidida na direção do outro. E, portanto, a mais decididamente ética.
Pois o amigo é sempre mais do que simplesmente o outro. É sempre mais que um
outro. É o outro que queremos próximo, e toda uma ética da aproximação e da
proximidade deve se constituir em resposta ao seu chamado.
Como suporte de toda discussão que estamos fazendo neste espaço, alguns
conceitos são fundamentais: diálogo, consenso, tolerância, participação, afeto,
acordo, respeito à diferença, etc. Essas idéias pertencem à dimensão ética,
contribuindo para a construção de uma maneira nova de existir, nos levando para a
formação da cidadania.
O diálogo forma para a cidadania porque permite a indispensável autonomia
moral para uma efetiva atuação ética, numa construção política, reflexiva e solidária.
Pelo diálogo é que se gesta a futura amizade e o compromisso mútuo que, ao nosso
ver, é o pilar e o objetivo da educação (BARREIRA, 2006).
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Nesse sentido, a sala de aula pode ser pensada como um lugar rico para
essas ações, mas sempre buscando ultrapassá-la. Pois, para que serve uma sala de
aula se não for capaz de nos transportar além de suas portas? Uma pergunta dessa
natureza nos conduz a refletir e indagar o que estamos fazendo de nós mesmos
como professores e alunos quando vivemos num ambiente como a escola, muitas
vezes também marcado pelo conflito e pela violência.
É costume considerar a sala de aula como um momento privilegiado em que se
processam o ensino e a aprendizagem, confronto de idéias entre professor e aluno,
entre alunos e alunos, busca do aprimoramento de técnicas para maior
racionalização da transmissão de conteúdos (NOVASKI, 1995, p.11).
Tradicionalmente utilizados como campos inerentes ao ato pedagógico, o
ensino e a aprendizagem constituem ocasiões tensas e inquietantes, mas que bem
cuidadas podem ser fontes para criarmos maneiras novas de relações existenciais.
Se educar é costumeiramente definido como a possibilidade de “levar de um lugar
para outro”, devemos estar abertos para aumentar as nossas experiências e
vivências, configurando “um processo de ensino-aprendizado realmente humano”
(NOVASKI, 1995, p.11).
Desse ponto de vista, a sala de aula deve se tornar um lugar de encontros,
levando em conta as mais diversas, variadas e contraditórias perspectivas e
expectativas. As pessoas entram ali, constroem relações, momentos nos quais os
interlocutores experienciam perspectivas numa troca permanente de conteúdos, em
que as conversas deveriam produzir e fazer acumular informações enriquecedoras.
Como são infindáveis as perspectivas desde as quais um assunto pode ser
abordado, vemos aí então que a aprendizagem não termina nunca, o que torna
perigosa, diria mesmo ridícula, a postura de quem se acha o dono do saber
(NOVASKI, 1995, p. 12).
Como um artista, o professor - esse ator do ensinar-aprender – deve se manter
firme em suas convicções sem ser dogmático, e respeitoso das convicções alheias
sem ser subserviente. “A verdadeira arte consiste em cada um tornar-se suportável
e, se possível, agradável a si mesmo; e também suportável e, se possível, agradável
aos outros” (NOVASKI, 1995, p.12). Essa criatividade, intrínseca à arte de educar,
pode nos tornar mais humanos e mais próximos, enfim, mais eróticos.
Uma relação erótica, porque a relação de um professor com um aluno é como
a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o
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estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem a sensação de que, se não tiver
conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá perdido. Além disso, há
uma relação canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua
experiência (ECO, 2008, p. 5).
Esse canibalismo pedagógico de que fala Eco, nos leva a pensar em algo mais
radical, isto é, ao conhecimento que se pode ter cada vez mais do ser humano. Agir
assim é ir se inteirando da aprendizagem mais profunda e que realmente interessa
na vida: conhecer o humano, o mundo humano. A densidade de sentido dessa
experiência se revela por meio de um processo em que o saber não é algo mecânico
e instrumental, porém se deriva de um prazer, dor ou sofrimento advindo de uma
relação saborosa; doce ou amargo, mas sempre sabor.
Assim, a exigência para a prática de uma nova maneira do educar é também
educar-ser e não se apropriar do outro, reduzindo-o a um mero objeto ou coisa.
Segundo Eco:
Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua vida com pessoas
mais jovens, para poder dominá-las, e, quando envelhecem, estão com pessoas
mais velhas. Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com
pessoas mais velhas, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o que
é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao
outro. (ECO, 2008, p. 5).
Essa antropofagia pedagógica expõe que, como animais humanos, somos
capazes de encontros, de uma abertura que nos aperfeiçoa. Complementando o que
pensa Kant, esse aperfeiçoamento não nos conduziria apenas a um cosmopolitismo
social, mas nos prepararia continuamente para o enfrentamento das exigências que
o dia-a-dia nos apresenta.
A vida, prenhe de sentidos que se renovam a todo instante, é inesgotável. Por
isso, tanto na aprendizagem de conteúdos como na aprendizagem do que é o ser
humano cabe a nós escapar de pensar o mundo como um sistema fechado de
conceitos ou tentar reduzir o outro a um molde dentro do qual queremos enquadrá-
lo. “Muitas vezes temos que deixar de lado todo tipo de abordagem técnico-científica
e, desarmados, estar simplesmente com o outro... Educar é estar com o outro”
(NOVASKI, 1995, pp. 13-14).
Sendo otimistas, mas não iludidos, a escola pode significar o lócus para
aproximar as pessoas, sim, construindo momentos privilegiados de encontros. Mas é
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verdade também que ela pode - e geralmente o faz -, afastar as pessoas das
pessoas, o que muitas vezes pode estar causando a violência no âmbito escolar.
É suficiente recordarmos como foram e são as nossas relações na sala de
aula. Quanto tempo demora para se estabelecer – quando se estabelece – um
convívio mais próximo entre aluno-aluno e aluno-professor-aluno? O ensinar-
aprender do homem não se realiza só como interioridade, como assimilação de
conceitos, valores e teorias, mas saindo de si, estando perto das coisas e dos
outros; existir é sinônimo de vizinhança, de estar no mundo, de ser uma consciência
menos intencional e mais intencional. “A variedade insuspeitada de sentidos para
uma sala de aula é diretamente proporcional à densidade afetiva [erótica] com que
esse acontecimento foi vivido” (NOVASKI, 1995, p. 14), cuidando para que este
processo delicado não extrapole para a cooptação, a sedução e o controle do
professor sobre o aluno.
De uma relação erótica, nos termos aqui definidos, se pressupõe a proteção a
qualquer reducionismo, ou seja, ao tratar a aula e a sala de aula como espaço ou
tempo de encontro de gente com gente, sem querer dizer que tudo se sintetizaria e
afloraria de modo límpido e sereno. É preciso ponderar que “todas as vicissitudes
humanas perpassam de ponta a ponta nesse espaço e tempo, vicissitudes que
podem ser traduzidas em conflitos, alegrias, expectativas mal ou nunca satisfeitas,
recalques, exibicionismo, esperanças, avanços e retrocessos enfim, tudo o que é
humano” (NOVASKI, 1995, p. 14)
Portanto, o professor deveria estar atento para responder aos apelos – nem
sempre verbais - que emergem no ambiente da sala de aula. Essa responsabilidade
significa que ele deve ir além dos conteúdos, transportar-se para além da sala de
aula.
A relação em sala de aula é muitas vezes apresentada como uma relação que
se marca e se define pela alteridade; pela forma de compreensão, de percepção e
de recebimento dessa alteridade. Não sabemos se essa direção, ou mesmo se essa
descrição da sala de aula, como um espaço relacional a envolver fundamentalmente
a condição diferenciada e diferenciadora da alteridade, e, em especial, a mediação
do processo de construção do conhecimento pelo outro, é realmente a mais
adequada.
Tal importância da presença e da mediação do conhecimento e do aprendizado
pelo outro, reflete a concepção de um processo “social” e “socializado” de uma e
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outra esfera. O conhecimento, em todos os seus aspectos, e o aprender, por
decorrência, são acontecimentos de natureza social. O esperado, portanto, é que se
aponte para a importância central do outro, e da condição de alteridade, inclusive
para o estabelecimento efetivo de um processo de construção cognitiva, processo
este que, sem a presença do outro, permanece parcial, precário, ou mesmo
irrealizado.
Se a sala de aula pode ser transformada em lugar de encontro não-violento,
sem controle por meio fármacos, permitindo o estabelecimento de novas relações
com o outro, reconhecendo-o como o nosso amigo, como o fim de nossos
sentimentos filiais, quem sabe estamos diante de uma nova pedagogia, de uma
nova educação. Pois favorecendo a sustentabilidade da idéia de respeito ao outro, o
limite aparece não como aparato e mecanismo de poder, mas como ato civilizatório
que conscientiza a necessidade de respeitar a liberdade do outro, visto que o outro é
aquele que nos respeita e mantêm conosco relações de amizade.
A experiência da Amizade – philia
Ao entrar na sala de aula, em seu primeiro dia de escola, o menino não pensa
no que será a matemática ou na lição de português. Ele quer saber quem será sua
professora, mas, sobretudo, quer encontrar um amigo. A escola seria para ele,
menino, ou para ela, menina, essencialmente isso: o seu primeiro espaço de
amizades.
Mas por que, para todos, o amigo é tão importante nessa hora? O momento de
iniciação da escola confundir-se-ia inteiramente, no fundo, com esse desejo infantil
de “encontrar um amigo”? Essa expectativa da criança não é equivocada, nem
apenas “inocente”. Ela tampouco frustra, por assim dizer, os reais objetivos de
aprendizagem a serem buscados em um ambiente escolar. Muito pelo contrário, por
ela, a criança se liga, na verdade, à condição mesma em que, desde a Grécia, se
pensou a origem de nosso saber, e à situação em que se considerou inscrever a
nossa possibilidade de conhecimento, ou seja, em um ambiente ou uma relação de
philia, de amizade. Jamais uma criança pensaria que a escola é lugar de controle,
em que suas posturas e comportamentos estão sendo medidos, visando enquadrá-
lo num conjunto de normas e práticas que ele praticamente desconhece, mas que
passar a sentir.
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O saber como uma forma de atividade que, curiosamente, não podia prescindir
da relação amistosa, amigável: foi essa a herança inextricável e dramática dos
gregos. Para existir o saber, era preciso existir também esse amigo e essa amizade.
Era preciso fazer-se “amigo do saber”, philosophos.
O saber, segundo os gregos, não podia se dar senão sob a forma de uma
amizade-pelo-saber, philosophia. Mas, com isso, o próprio saber não seria outra
coisa que uma situação de amizade, a expressão e a manutenção dessa amizade
que o qualificaria essencialmente: a amizade como categoria do pensamento, como
condição para o pensamento enquanto tal.
Para o aluno que chega, o ambiente escolar parece ser então o mais favorável,
pois é essa situação originária que vigora ali mais uma vez. O amigo e a amiga não
tomam o lugar da aula, nem a amizade suplanta o conhecimento e o desejo de
conhecimento, mas ao contrário, eles o favorecem, fazem com que cada um, ao
ingressar na escola reencontre-se com essas condições requeridas para a
construção do seu próprio saber, reencontre-se com a condição originária da sophia,
que está posta no entorno da amizade.
E se a escola é tão importante na vida de toda criança, ela o é, inicialmente,
por isso: porque ao encontrar-se com seus amigos, a criança encontra neles uma
condição filosófica inaugural, encontra neles, nesses seus amigos, os seus comuns
amigos-do-saber, e, enquanto forma, encontra em tudo isso, a amizade como um
princípio, uma arché, o primeiro fulgor de uma nascente vontade de saber.
Assim, é que se todo saber requererá, de fato, a presença da amizade, se para
saber é preciso antes viver o sentido e o valor de uma amizade, descobrir-se amigo
e incluir-se nas formas e nos brinquedos da amizade, a escola é o lugar primeiro e
por excelência dessa vivência comum, e de uma comum aspiração fraterna. É isso
que também se “aprende” na escola. Vislumbrar a possibilidade da amizade nas
salas de aula é a pré-condição intransferível de uma co-cidadania, de uma
cidadania-em-comum.
Deste modo, podemos acreditar que a escola pode, sim, ser um espaço de
crescimento, onde a educação desempenharia seu papel de uma forma democrática
e humanizadora, sem ser arbitrária. E os educadores construiriam relações mais
sólidas sem serem normatizadores, podendo junto com os alunos, estabelecerem
alternativas, primeiro como reflexões e, depois, como elaborações de propostas para
enfrentar os problemas e questões que a realidade escolar e social nos coloca.
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Portanto, falar de violência, de indisciplina, TDAH, é questionar no centro da
existência o que temos de mais importante: como podemos viver e conviver com o
outro? Nesse sentido, a amizade pode se revestir de dimensões que se
circunscrevem nos limites da ética (viver) e da política (conviver).
Anotações finais
As reflexões que trouxemos neste texto tiveram como objetivo compartilhar
algumas inquietações, fazendo algumas reflexões que consideramos atuais, sobre
violência, indisciplina, relações humanas, ética e amizade na educação. Ao
acompanharmos as recentes discussões e feitos sobre a medicalização escolar,
indagamos sobre o fato de essa medida estar sendo implantada nas escolas com o
aval do Estado, como mecanismo de poder, e com o consentimento de pais,
professores e gestores escolares, em detrimento de uma análise profunda da
situação. Opta-se pelo mais fácil, sem saber que interesses alheios à escola estão
sendo contemplados. E com isso a escola perde o seu lugar.
Temos o receio de que com essas propostas que se efetivam friamente nas
escolas se instale com o intuito de remediar e controlar esses conflitos de
relacionamentos, discutindo-os e tentando-os curá-los superficialmente, sem
reflexões sobre as causas que os geram e os fazem permanecer no cotidiano
escolar.
Cremos que o exercício de domínio sobre o outro, estabelece-se uma relação
desigual, de submissão do forte para o mais fraco (corpo dócil). Esse corpo ao ser
controlado perde sua potência e aquele que exerce o controle “mata” o outro,
tirando-lhe a capacidade de externalizar suas singularidades, sua forma de ser e
agir diante do mundo. Não é possível haver relação numa situação de domínio, não
há interação, mas sim o controle, ou seja, a “morte” do outro, que de forma lenta e
contínua esvazia-se de sentidos.
Se pensarmos que a escola é um lugar de encontro, um espaço propício para
se relacionar, conviver com o outro e com as diferenças desse outro, dificultamos
modos novos de coexistência quando se permanece ou adota essas medidas no
ambiente escolar.
Ao trazer para o centro das discussões o diálogo e as relações entre
professores e alunos na sala de aula, o fazemos com a finalidade de pensar a
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escola como um espaço potencializador de amizade, onde o amigo serve de
mediador para que o outro sinta-se acompanhado em suas descobertas e reflexões.
Em nossa opinião, esse diálogo de forma horizontal, possibilita um espaço em
que as relações humanas no âmbito escolar constroem-se amigavelmente e com
isso, as barreiras das inevitáveis diferenças entre professores e alunos, se tornam
tão insignificantes que as relações acabam fluindo de forma positiva e significativa.
O jogo ético da relação social é evidente e, por isso, exige habilidade para
uma possível experiência da amizade. Para tanto
é necessário deixar de ser professor para poder sê-lo. Isto significa obrigatoriamente que toda relação social [...] implica um cimento, que é a amizade. Este elemento fundamental é o sentimento de uma cumplicidade, de uma comunidade essencial sobre as coisas mais importantes. Na relação do professor com seus alunos está o fato da partilha de uma certa imagem do que se deve ser alguém, de ter em comum uma forma de sensibilidade e de acolhimento ao outro (VERNANT, 1995, p. 194).
Sabemos que a violência é um assunto intrincado, que necessita de amplas
discussões, tanto por sua complexidade quanto por sua incidência, que sofreu
grande aumento nos últimos tempos. Mas cabe a nós como educadores pensar na
importância das relações interpessoais, como fator primordial para combatê-la no
domínio da educação.
Devemos refletir e problematizar cada vez mais a questão, pois a sociedade
vive num constante movimento de vai-e-vem, avança e retrocede ao mesmo tempo
e muitas das práticas realizadas nas escolas, são produzidas porque respondem a
um modelo de sociedade que rejeita a perspectiva da totalidade, limitando-se ao
micro, a casos isolados, sem conectar a realidade social ao cotidiano escolar.
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