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O MUNDO É UM MOINHOdramaturgo: Fauzi Arapdebatedores: Aimar Labaki e Gianni RattoLEITURA DRAMÁTICAdireção: Tunica Teixeiraatores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,Nilton Bicudo, Rita Elmôr eValter Portelatrilha sonora: Aline Meyerluz: Laura Figueredo
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O MUNDO É UM MOINHO
dramaturgo: Fauzi Arap
debatedores: Aimar Labaki e Gianni Ratto
LEITURA DRAMÁTICA
direção: Tunica Teixeira
atores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,
Nilton Bicudo, Rita Elmôr e
Valter Portela
trilha sonora: Aline Meyer
luz: Laura Figueredo
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206 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
O MUNDO É UM MOINHOum ato de Arap
...o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,
vai reduzir as ilusões a pó.
Cartola
PERSONAGEM
RUBENS velho autor beirando os setenta anos de idade
LUÍS jovem aspirante a ator, recém-formado
VERA atriz batalhadora, do grupo de Luís
LILINHA atriz sonhadora e mística
RODOLFO ator bonitão, também do grupo
CENÁRIOS
Sala do pequeno apartamento de Rubens, no centro velho de São Paulo.
Muitos papéis e pastas espalhados revelam que ali mora um homem só. No
canto direito, o escritório da casa de Vera, onde os atores do grupo se reúnem.
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207
CENA 1
LUÍS
(de pé, junto da porta) O senhor não vai me testar?
RUBENS
Não, não precisa. Pode começar amanhã, se puder.
LUÍS
Posso, claro. Se bem que eu achei... Disseram que o senhor queria me co-
nhecer.
RUBENS
Eles entenderam mal. Eu só queria dar uma olhada, ver a cara de quem vai
mexer nos meus papéis. Está muito bem, está tudo bem. Amanhã.
LUÍS
E eu começo por onde?
RUBENS
(impaciente) Qualquer coisa, qualquer coisa está bom. Pergunta lá na Se-
cretaria. Não são eles que vão te pagar?
LUÍS
Mas eles disseram que depende do senhor. Não explicaram nada.
RUBENS
Esse negócio de “memórias” e organizar meus arquivos não passa de pre-
texto! Eles só precisam de uma desculpa pra justificar os gastos comigo! Qual-
quer coisa serve! A verdade é que estão com medo que eu morra e resolveram
me ajudar. São velhos amigos e devem achar que eu não vou durar muito. Que-
ro só ver a cara deles, se demorar mais do que eles pensam.
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208 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
O senhor está enganado, ninguém está pensando nisso, de jeito nenhum!
Ninguém falou nada de morte, imagina! O senhor está ótimo, não está? (o ou-
tro não responde) E o interesse existe porque o senhor faz parte da história da
cultura, da cidade, do país. E é pra isso que servem as Secretarias de Cultura!
RUBENS
Papo furado. Eles sabem que essas anotações são pessoais e, mesmo que te-
nham servido pra mim, no passado, não são úteis pra mais ninguém! E eu só
aceitei porque preciso do dinheiro.
LUÍS
Bom, claro. Ninguém trabalha de graça.
RUBENS
Você acha que é trabalho? Deixar alguém vir aqui fuçar meus papéis, você
acha que isso é algum tipo de trabalho?
LUÍS
Bom, quer dizer... O trabalho já está feito.
RUBENS
Responde, o que é que você acha disso?
LUÍS
Não sei. Disso, o quê?
RUBENS
Mesmo que fosse trabalho, disso! Do dinheiro, trabalhar por dinheiro.
LUÍS
Não sei, não tou entendendo. Todo mundo não trabalha por dinheiro?
RUBENS
O que é que você faz na vida? Sua profissão? Qual é?
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209
LUÍS
Eu sou ator.
RUBENS
(surpreso) Ator, como? E o que é que você veio fazer aqui?
LUÍS
Por que a surpresa?
RUBENS
Porque, pra mim, ator representa, ensaia e participa de espetáculos. Pelo
menos, no meu tempo, era assim. Você está desempregado?
LUÍS
Não. Quer dizer, eu tenho esse emprego. Seja como for, é um privilégio po-
der estar aqui, com o senhor!
RUBENS
Privilégio, ora! Privilégio por quê? Quantos anos o senhor tem? Eu tenho
certeza de que o senhor não sabe coisa nenhuma sobre nada do que eu fiz!
LUÍS
Como não?
RUBENS
O senhor não era nem nascido quando eu comecei.
LUÍS
Mas o que é que tem? Eu adoro teatro, é tudo que eu mais gosto e eu sei que
o senhor tem muito pra ensinar. É claro que nunca vi um espetáculo seu, mas
eu vi as fotos, li artigos.
RUBENS
Então, não conhece!
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210 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
É a primeira vez que eu vou fazer um trabalho assim, mas eu aprendo
rápido.
RUBENS
A primeira vez? Então, também não tem experiência?
LUÍS
Se o senhor me ajudar a levantar o material, eu tenho certeza de dou con-
ta do recado. É claro que eu estou contando com o senhor!
RUBENS
Pode tirar o cavalo da chuva. Contando comigo, por quê? Você está aqui
pra organizar um arquivo, certo? E vai lidar com papéis. Eu espero que o nos-
so convívio seja o mínimo possível. Se você não sabe como fazer, vai ter que
se virar.
LUÍS
Mas por que tudo isso?
RUBENS
Ora, por quê. Eu não quero ser incomodado, eu disse pra eles! E só aceitei
porque me garantiram que eu não teria nem que olhar pra quem viesse aqui.
LUÍS
Mas eu tenho um prazo.
RUBENS
E eu com isso?
LUÍS
O senhor não pode ao menos me dar uma dica?
RUBENS
Dica? Que tipo de dica?
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211
LUÍS
Sei lá. Por onde começar?
RUBENS
Eu tenho muita coisa escrita e solta, não vai faltar material! Isto aqui está
um caos, você não está vendo? Começa com qualquer coisa. Aquele monte de
pastas, que tal? Espero que não seja enfadonho, para um candidato a ator. (o
rapaz começa a fuçar) Ah, nessas gavetas, não! Só tem coisa pessoal.
LUÍS
Então, está vendo? É melhor o senhor me mostrar.
RUBENS
Desculpa, mas eu não suporto nem a idéia de ter que olhar pra isso de
novo. Pra mim, é tudo matéria morta. Eu prefiro que você faça como qui-
ser. É só não mexer nas gavetas. É a eles que o senhor vai ter que prestar
contas, não a mim.
LUÍS
(surpreso) O senhor não tem computador, certo?!
RUBENS
E o que é que tem?
LUÍS
Posso levar o material pra digitar?
RUBENS
Digitar? Aqui em baixo tem uma papelaria, que tal xerocar?
LUÍS
E fotos, o senhor tem?
RUBENS
Poucas. Você não vai precisar vir todos os dias, vai?
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212 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Não, acho que não. A que horas é mais confortável pro senhor? Eu vou ten-
tar incomodar o mínimo possível.
RUBENS
Você não acha que, pruma primeira visita, já está bom? Esses papéis não
servem pra nada, não queira se enganar. (aponta os papéis) Eles não têm mais
nada a ver! E eu só aceitei pelo dinheiro, como você. E, por hoje, não quero per-
der mais tempo. Tudo bem. Pelo dinheiro. Uma vez por semana. Tá bem?
CENA 2
RUBENS
Pensei que tivesse desistido. Você sumiu.
LUÍS
Não, de jeito nenhum. Foi uma gripe.
RUBENS
Você não é bom mentiroso.
LUÍS
Imagina! Pra que que eu ia...? (confessa) Foi um teste que eu tive que fazer,
não deu pra avisar. Eu até pensei em ligar, mas não quis incomodar.
RUBENS
Teste? Que tipo de teste?
LUÍS
Comercial.
RUBENS
(com cara de nojo) Comercial? De televisão? E eles pagam por isso?
LUÍS
Quase nada, é um bico. Mas, pra quem vive duro...
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213
RUBENS
Bico? Mais um? Hoje em dia, ator só vive de bico?
LUÍS
Acho que a coisa é mais complicada do que no seu tempo. Eu fiz escola de tea-
tro, direitinho, me formei, mas não tem emprego pra todo mundo. Então, a maio-
ria vive de dublagem, dá aula, faz comercial, todo mundo se vira. E o sujeito deixa
um book na agência, na esperança de ser escolhido pra alguma coisa. Se tiver sor-
te, arranja um comercial e sobrevive um pouco melhor, algumas semanas. (pausa)
Por que o senhor não valoriza a pesquisa que vou fazer aqui, com o senhor?
RUBENS
(hesita) Porque é uma mentira, ninguém precisa dela.
LUÍS
Como não? E se o senhor tivesse morrido?
RUBENS
(rápido) Não disse que eles estão esperando que eu morra?
LUÍS
Não é isso, todo mundo morre um dia... E se alguém quisesse estudar sua
obra!?
RUBENS
Você acha que alguém ainda tem tempo pra ler? Com essa correria desata-
da atrás de dinheiro? Inda mais uma pesquisa!? E essa coisa de “obra”, eu não
entendo o que é. (sai para a cozinha)
LUÍS
(enquanto examina o que já digitou, grita) Alguns papéis estão datados e
outros, não.
RUBENS
(responde de fora) O destino deles era a lata de lixo. (volta pra cena) E as
idéias, as boas idéias, independem do contexto histórico. Pra que datar?
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214 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Mas claro que é importante! As datas situam o leitor.
RUBENS
As melhores idéias vêm sempre do nada, de repente, num raio! O dia e a
hora não têm importância nenhuma. Talvez a única coisa que importe seja a
verdade.
LUÍS
Que verdade?
RUBENS
Verdade. Só existe um tipo de verdade. Quando você se entrega e confia no
outro e fala a verdade. Você, desde que chegou, está tentando me enrolar.
LUÍS
Eu?
RUBENS
O que é que você está querendo?
LUÍS
Nada. Só fazer meu trabalho. Eles querem um depoimento ordenado, que
sirva de base para o livro.
RUBENS
Depoimento, que depoimento? Deixa ver se eu entendi, eles querem publi-
car? Como se fosse um depoimento?
LUÍS
Mas, e se publicarem, que é que tem?
RUBENS
Você não acha que é muita pretensão sua achar que pode escrever minhas
memórias, um ator que nem empregado está? Ora, ora!
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215
LUÍS
As memórias são suas, eu não vou ter nada a ver com isso.
RUBENS
Faz tempo que eu perdi a memória. Eu vou telefonar já pro Secretário e sus-
pender esse negócio.
LUÍS
Mas o que é que tem de mais? (hesita) Eu não estava enrolando, eu só esta-
va aguardando o momento certo pra falar. Eles pediram que eu perguntasse se
o senhor não teria interesse em...
RUBENS
Não tenho. Nenhum interesse, em nada. Há muito tempo que eu não
tenho interesse em coisa nenhuma. Mas eu vou ligar já e acabar com essa
palhaçada.
LUÍS
Por favor, não! (pausa) Tudo bem. A idéia foi minha. Eles não tocaram nes-
se assunto, de jeito nenhum. A idéia foi minha!
RUBENS
Eu acho melhor o senhor procurar outro emprego, outro “bico”. Eu não
posso conviver com alguém que mente desse jeito, pra se aproveitar.
LUÍS
Não, por favor! O senhor compreendeu mal. Eu estou encantado com o
que li, e acho um desperdício que as pessoas não possam ter acesso a isso
tudo. (pausa) Eu preciso deste emprego. (pausa) O senhor não acha impor-
tante deixar, quem sabe, uma herança, um testamento?
RUBENS
Eu não entendo sua cara-de-pau. Testamento, por quê? Eu ainda não estou
morto, e nem pretendo morrer tão já. Esse é o ponto: todos me tratam como
se eu já tivesse morrido.
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216 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Desculpa, eu não quis dizer que...
RUBENS
(enquanto disca) Eu sabia que não ia funcionar. Eu nunca soube conviver
com esse tipo de trabalho corrupto, onde as coisas são acertadas na base do fa-
vor, pra favorecer um amigo. Não podia mesmo dar certo.
LUÍS
Corrupto, por quê?
RUBENS
Tudo o que se faz hoje em dia é em nome do dinheiro ou em nome do pas-
sado. Eu não vejo ninguém fazer nada em nome do futuro. (termina a ligação)
Está ocupado. O que é que eles fazem naquela Secretaria, que não largam do
telefone, o dia inteiro?
LUÍS
Eu já me desculpei, será que é tão difícil entender? Não foi por mal. (o ou-
tro vai e abre a porta) Tudo bem, eu também não vou morrer por causa disso.
O senhor faça como quiser. Desiste, pega todos estes papéis e enfia!
RUBENS
Que bom, desistiu do papel de bonzinho? Já é um começo.
LUÍS
Quem o senhor pensa que é? Eu nunca vi tamanha arrogância. Enfiado
aqui, neste apartamento, trancado e tratando todos e tudo com um mau hu-
mor e uma condescendência, como se fosse o dono da verdade! Tudo tem um
limite. Não me interessa se foram seus amigos que resolveram bancar esse es-
tudo. O senhor deveria agradecer!
RUBENS
Então, estamos conversados. Pode ir, eu não estou interessado na sua
opinião!
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217
LUÍS
O senhor pensa que é fácil não ter trabalho e ser obrigado a viver de “bico”?
RUBENS
(irônico) Por que é que o senhor não faz televisão? Novelas? Vai fundo.
LUÍS
Quem me dera! Mas não é fácil. O senhor acha que eu não faria, se fosse
convidado? E o senhor devia dar graças a Deus por ter amigos e não precisar ir
prum asilo! De onde vem essa pretensão? E o senhor, por que não trabalha? Se
tá tão lúcido, não tá doente, e nem vai morrer, por quê? Vá à luta, então! Tra-
balha. Por que o senhor não tenta?
RUBENS
Ah, confessou? Agora você confessou! É por dinheiro, é apenas por dinhei-
ro que você está aqui. Não respeita meu trabalho coisa nenhuma! Nem conhe-
ce, nem respeita!
LUÍS
Respeito, claro que respeito! O senhor é quem não respeita o meu! Isso aqui
é um serviço digno, importante, que pode ajudar muita gente! Ninguém tem
a obrigação de conhecer o que o senhor deixa escondido a sete chaves! O se-
nhor vive escondido, como um ermitão, e há quinze anos não produz, não se
manifesta. Eu até pensei que o senhor fosse mais velho do que é. Por que o se-
nhor nunca mais escreveu coisa alguma, se despreza tanto o que já fez?
RUBENS
Quem disse que eu nunca mais escrevi? E quem disse que eu desprezo...?
Ninguém está interessado! Por isso. Ninguém!
LUÍS
Eu estou. Eu não estou aqui!
RUBENS
O teatro de hoje é uma mentira! Não existe, não existe mais teatro. Nin-
guém sabe mais o que está fazendo. Não existe mais ideal, nem pesquisa.
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218 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
Como é que se pode fazer teatro, sem nem conhecer quem está do seu lado? O
teatro profissional não passa de putaria, se você quer saber. Um bando de gen-
te que se reúne pra fazer uma peça porque dá prestígio, pra ocupar o tempo,
enquanto a televisão não chama de novo! Isso que se faz nunca foi teatro. Não
existem mais grupos.
LUÍS
Como não? Existem vários! O senhor é que está por fora. Há quanto tempo
o senhor não sai, não vai ver um espetáculo? O senhor vive aqui, fechado nu-
ma ilha de preconceito, e imagina estar acima de tudo e de todos. Qual é? Isso
é uma doença, a pior doença. O senhor parou no tempo. (ameaça sair)
RUBENS
Talvez, talvez eu tenha parado. Mas o que o senhor chama de grupo com
certeza depende do governo, ou da Secretaria, pra sobreviver! Duvido que eles
não vivam correndo atrás de patrocínio, esmolando apoios, pra poder fazer a
arte “idealista” que escolheram fazer. Mas, pra fazer teatro hoje em dia, é preci-
so se vender! Isso não é ser livre. Não existe mais ideologia nenhuma a não ser
o dinheiro.
LUÍS
O senhor está por fora. Existem grupos que são criticados porque até pare-
cem aqueles dos anos sessenta. E o senhor não conhece.
RUBENS
Conheço, sim, são os piores. Porque acreditam nessa conversa mole que
chamam de História! Na mentira da História! Será que eles não percebem que
a História que é contada é mentirosa? Eles só copiam a forma do que foi feito,
não existe vida no que eles fazem. Parece um prato requentado, não existe vi-
da, não! Até os grupos começam seus projetos com alguém fazendo contas
para ver se é lucrativo, se é viável, e tomando todo tipo de compromisso com
a realidade, pra não correr risco nenhum! Mas isso tira a liberdade de alma pra
pensar. Ninguém mais pensa, essa é que é a verdade. As pessoas querem con-
sumir, consumir tudo: margarina, sexo, até a história, o passado, a “cultura”
embalsamada do passado, mas pensar, que é bom, é indigesto.
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219
LUÍS
Eu quero que o senhor saiba que eu não vim só pelo dinheiro, não! Eles in-
ventaram esse projeto por sua causa, é o senhor quem está precisando! Por
mim, eu poderia fazer outro trabalho qualquer! Mas o senhor é quem manda.
Tudo bem, eu vou andando. (vai até a porta) Desculpa qualquer coisa.
RUBENS
(chocado) Quem disse que eu tou precisando?
LUÍS
Desculpa, eu não deveria ter... ter dito uma coisa dessas.
RUBENS
Essas esmolas que dão à cultura são pra simular que está tudo bem. Eu
tenho vergonha, o senhor está me entendendo? Eu tenho vergonha de de-
pender desse dinheiro! Durante anos, me deixaram à margem, definhando,
sem resposta, sem apoio, sem coisa nenhuma, e de repente me redescobri-
ram. Por quê?
LUÍS
Mas é assim que o mundo funciona!
RUBENS
Eu sei, mas eu tenho vergonha de fazer parte disso! No meu tempo, eu ti-
nha a ilusão de que meu trabalho importava. Mas acabou, meu tempo passou
e eu perdi todas as batalhas! Porque o mundo não mudou, nada mudou, nem
vai mudar! E não foi a ditadura, nem a falta de dinheiro que acabou comigo. É
que eu mesmo não acredito. Eu não consigo mais acreditar em nada. Meus
amigos morreram, e eu não tenho mais com quem falar, e eu também morri
um pouco, com cada um deles. Acho que eu não passo de um morto-vivo, se
o senhor quer saber!
LUÍS
O secretário é seu amigo; só quer ajudar. E a idéia de fazer um livro eu só
tive porque eu estou encantado com o que eu li. Sinceramente.
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220 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
Não é amigo, nunca foi. Sempre foi meu adversário, se é que o senhor me
entende! Nossas idéias nunca bateram. E agora eu aprendi com ele a palavra
mágica - visibilidade.“Eu quero te ajudar, mas você precisa dar umas entrevis-
tas, pra que eu possa...” Talvez o senhor não tenha consciência, mas até mesmo
o senhor só se lembrou de mim por causa dos jornais. A matéria que saiu, foi
ele que arrumou. E foi só por isso que, de repente, eu renasci. O artifício colou.
Capa do segundo caderno, fotos e... milagre! Funcionou! Adoraram porque fa-
lei mal de tudo. Eles adoram quem fala mal. Quando alguém esculhamba com
o que existe, está prestando um favor a quem não quer se comprometer.
LUÍS
Mas ele quer ajudar. Não sei se é seu amigo, mas é como se fosse.
RUBENS
Não é amigo, sempre político, sempre viveu pro sucesso e nunca mediu as
conseqüências para ter as rédeas na mão. E, agora que tudo passou e ele ven-
ceu, quer mostrar que o poder é magnânimo. Nós dois já estamos velhos, e é
só por isso que ele pode ter a elegância de querer me ajudar. Existem verdades
impronunciáveis, que só os mais velhos conhecem. Ele deve sentir pena da mi-
nha teimosia, só isso. É caridade, não amizade. Porque eu não conto mais. Fi-
ca subentendido que eu sempre estive errado.
LUÍS
Não pode ser! Eu sei que ele admira o senhor!
RUBENS
Tanto faz, não tem mais importância. Está tudo podre! Eu estou podre, vo-
cê também está! Você não vê? Não sou eu quem está morrendo, é um tempo
que está acabando. Eu sou o último estertor. Ele resolveu homenagear a agonia
de tudo em que ele também um dia acreditou. Nós sonhávamos com um tea-
tro para o povo. Engraçado. Para o povo! Nunca conseguimos chegar nem na
classe média, quanto mais no povo. E quem pode ir ao teatro, hoje em dia?
Com tanta gente nas ruas, pedindo, bebendo, morando, morrendo nas ruas,
que importância pode ter o teatro pra essa gente? Com sorte, o que eles podem
é ver televisão, e olhe lá! O teatro sempre foi feito pra uma elite, pra burguesia,
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221
e fazer um teatro popular nunca passou de um sonho. Uma ilusão, como as ou-
tras. (pausa) Pode ficar à vontade, pode ir, não liga pro que eu disse. Eu sei que
deve ser difícil sobreviver no mundo do jeito que está. Eu não quero te cansar.
LUÍS
O senhor não quer mesmo, então? (o outro não responde) Tá bem, eu vou
andando.
CENA 3
RUBENS
De novo? Eu pensei que nós tínhamos resolvido. O que foi agora?
LUÍS
Eles vão mandar outra pessoa, eu só vim me despedir. Eu me demiti, tou
fora da Secretaria.
RUBENS
Não sei por que essa mania de mentir e fantasiar. Deve ter sido porque eu
liguei e disse que não queria. É claro que foram eles...
LUÍS
Não, fui eu que pedi pra sair. O senhor tem fama de difícil, eles nem liga-
ram. Me ofereceram um outro serviço. Mas eu não aceitei. (o outro hesita) Pos-
so entrar?
RUBENS
Eu estou ocupado.
LUÍS
Eu trouxe o material que ficou comigo. Um pouco só. Não custa me rece-
ber. Eu não vou ganhar nada com esta visita. Eu só quero falar com o senhor.
(o outro abre)
RUBENS
Quer um café?
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222 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Não, obrigado. (Rubens sai, Luís fica) É o senhor mesmo quem faz?
RUBENS
E o almoço, também. É bom mexer na cozinha e trabalhar com as mãos,
me ajuda a descansar. Só tem uma faxineira, que vem duas vezes por semana.
LUÍS
Tem um texto onde o senhor diz que a vida verdadeira não cabe nos
arquivos de um computador e que o que importa realmente só é transfe-
rível pelo convívio vivo entre as pessoas. Mais ou menos isso! Depois da
última visita, eu não consegui parar de pensar nisso. (Rubens volta com
uma bandeja e café) O senhor sempre viveu sozinho? Me disseram que o
senhor foi casado.
RUBENS
Há muitos anos.
LUÍS
Uma atriz?
RUBENS
Era. Uma atriz. Especial.
LUÍS
Disseram que ela...
RUBENS
Desapareceu.
LUÍS
Morreu?
RUBENS
Pra mim, continua viva.
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223
LUÍS
Na sua memória ou...?
RUBENS
Açúcar?
LUÍS
Adoçante.
RUBENS
Adoçante não tem.
LUÍS
Açúcar, tudo bem. Eu... Eu posso...? Eu gostaria de poder continuar a vir
aqui.
RUBENS
Pra quê?
LUÍS
Não sei. Pra aprender.
RUBENS
Mas e seus compromissos, seus testes? Você não tem tempo, tem que ga-
nhar a vida.
LUÍS
Não, de jeito nenhum, não é problema. Eu descobri que ando fazendo tu-
do errado. Não foi pra isso que eu quis estudar teatro. O senhor está coberto
de razão, eu acho que eu entendi. Pra sobreviver, eu andei sacrificando o es-
sencial, e eu quero começar tudo de novo.
RUBENS
O senhor está querendo me agradar?
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224 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Não, quer dizer... Eu nem sei. Eu quero crescer e acho que o senhor, aqui, à
margem, parece que o senhor não está contaminado por uma espécie de febre,
de correria... Pelo espírito desse tempo. Por mais difícil que seja, eu quero ten-
tar. (pequena pausa) O senhor aceita?
RUBENS
Eu não sei o que pensar. O que é que o senhor quer de mim?
LUÍS
Eu faço parte de um grupo, e a gente anda em crise. Eu contei pro pessoal
do senhor, e os olhos deles brilharam. Eles pediram pra ver se o senhor aceita
uma turma de alunos.
RUBENS
Eu não suporto dar aula, menino. (hesita) Quantos são?
LUÍS
São quatro, comigo. O núcleo mesmo são quatro.
RUBENS
(ri) Quer saber? Eu não vou abrir mão do dinheiro da Secretaria. Eu conti-
nuo duro e não foi nada fácil conseguir. Tive até que me internar. Eles devem ter
te contado. Antes, eu cansava de ligar e ninguém me atendia. Aí, eu tive essa
idéia. Tomei os últimos comprimidos que eu tinha e me internei. Eles falaram
em suicídio, mas não foi nada disso. Foi puro teatro! Fiquei no hospital uma se-
mana. Pra repousar. E eu precisava comer. Eu sabia que algum jornalista bobo
ia descobrir e dar uma notinha, nem que fosse na página policial! É melhor eu
ligar pra eles, antes que me mandem outro chato. Vou dizer que fico com você!
LUÍS
Mas eu não quero mais o emprego, eles já deram baixa, eu não posso mais
voltar. Vão ficar loucos comigo.
RUBENS
Que nada, vão achar normal, deixa comigo. Burocracia é a praia deles, é
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225
tudo o que eles têm. E vão me achar louco do mesmo jeito.Você continua. Não
custa ajudar o governo a patrocinar uma pesquisa verdadeira. Só que aqui é
muito pequeno, não vai caber todo mundo.
CENA 4
VERA
O projeto não era esse, Luís. Você pirou!? A gente gastou um tempo enor-
me se preparando, e agora você quer jogar tudo fora?
LUÍS
Você não está entendendo.
VERA
Nós prometemos um nome famoso, alguém com prestígio, eles não vão
aceitar. É uma multinacional, Luís! Não foi fácil arranjar a grana e, pra mudar
tudo agora, só se fosse um outro nome forte. Eles ainda não fecharam com a
gente, e não vão querer, de jeito nenhum.
LUÍS
Mas o velho é uma lenda! Ele tem história, ele fez a história do teatro, o que
é que eles podem querer mais? Vai ser a grande volta de João Rubens Pessoa! O
homem é um gênio, você vai ver!
VERA
Que lenda, o quê! Ninguém mais sabe quem ele é. É louco, isso sim! Todo
mundo fala. Um velho caquético, que consegue ficar tanto tempo longe, sem
fazer coisa nenhuma, não tem nada a ver! Ninguém vai querer investir, ele es-
tá mais pra lá do que pra cá.
LUÍS
Não é nada caquético. Quando se anima, parece um menino, mais ágil do que
eu. Você não conhece, por isso tá falando. Nós podemos aprender um monte.
VERA
Cai na real, Luís, esse cara te enfeitiçou. O tempo dele já era, ele já era.
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226 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
Deve estar dando graças a Deus por ter arranjado um trouxa pra aturar suas
histórias, e ainda levar uma grana. (vai pro computador)
LUÍS
Não é assim, me deixa falar. Calma. Presta atenção. Não tem nada a ver com
feitiço. Eu estou com o material todo, ele tem meia dúzia de textos inéditos, eu
tenho certeza que você vai se apaixonar! Ele não parou de trabalhar esse tempo
todo. Antes de mais nada, eu quero que você leia parte do material...
VERA
E nem eu tou a fim de guru. Chega! Já pastei um monte de tempo no An-
tunes e depois no Oficina. Agora, eu quero liberdade. Eu larguei todos meus
empregos pra tocar nosso projeto. (pequena pausa) Foi ou não foi? Agora você
não pode me deixar na mão!
LUÍS
Ele é um autor. Não custa ler, não vai te tirar um pedaço. E o Secretário es-
tá disposto a investir nele. Acho que é culpa, sei lá. Os dois eram rivais, ou coi-
sa parecida, e agora resolveu ajudar o outro. Talvez a gente nem precise mais
correr atrás de patrocínio, o Secretário banca, você vai ver! Eles são da mesma
geração, vai rolar, eu tenho certeza. E ainda é capaz de a gente ficar com algu-
ma sala do Estado.
VERA
Ah, nem vem, não é nada disso! O Júlio, que é o braço direito do Secretário,
é que é apaixonado por você e é claro que é capaz de fazer o que você quiser.
LUÍS
Não fica repetindo uma coisa dessas. Ele só me indicou pra pesquisa por-
que eu sou bom, não teve nada de pessoal.
VERA
Pra cima de mim, Luís? Você anda dormindo com ele, não anda?
LUÍS
Não!
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227
VERA
Você é o maior mentiroso que eu já vi. E mente até pra você mesmo. Foi só
depois que você topou namorar com ele que ele te arranjou esse bico. Foi ou
não foi? Tou falando mentira?
LUÍS
Foi coincidência.
VERA
E esse patrocínio você tinha mesmo ficado de arranjar, desde o início.
Mas pro nosso projeto, que está pronto, escrito, aqui! Eu já te falei: é minha
última tentativa. Se não der certo, eu mudo de profissão. Você sabe quantas
noites eu varei fazendo as contas e montando tudo direitinho, de acordo com
a lei? Eu não vou jogar tudo fora, agora. Eles iam achar que nós piramos. O
projeto não era em torno de um clássico manjado, conhecido, consagrado?
Nós discutimos isso muito bem. Eles não querem saber de texto inédito. Pon-
to. Pra eles, não interessa. Texto nacional, só se fosse de um nome muito co-
nhecido, e que estivesse na moda. Não tem cabimento essa mudança. Eu que-
ro resolver minha vida já. Eu não sou bonitinha, a Globo não vai me chamar
nunca! E não sou filhinha de papai, pra ficar enrolando.
LUÍS
Me dá uma chance. Vamos fazer uma leitura. Se você não balançar, eu pro-
meto entrar na tua. Uma tentativa. Que tal?
CENA 5
Luís e Vera lêem trechos de escritos de Rubens, iluminados em contraluz.
LUÍS
(em tom de segredo) Palco iluminado: o mergulho é tão solitário e
particular, único, que chega a ser um mistério mesmo para o ator-agen-
te do processo. Mesmo público, só. Criação não é nunca do ego. É neces-
sário o sacrifício da consciência pessoal, para o acesso ao espaço real-
mente criador.
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228 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
VERA
E, por isso, a imagem pública do artista é anti-arte, pela própria contradi-
ção em que mergulha o envolvido. Prêmios e dinheiro, e mesmo uma plena
aceitação social, obrigam o ator a abandonar a solidão original implícita à cria-
ção e à convivência com o Absoluto. Toda solicitação mundana que se segue ao
sucesso é a antítese da pobreza, do não saber, do vazio e da humildade interio-
res e da nudez que possibilitam o contato. (a luz clareia o ambiente) Mas nem
uma peça é! São notas esparsas, não servem para nada. Não existe diálogo, his-
tória, nada. Não é teatro.
LUÍS
Não é uma peça, eu sei, mas é só um ponto de partida. Ele acha que só
havendo um compromisso em torno de uma idéia é que pode acontecer o
teatro verdadeiro. Justamente por isso, não é só mais uma peça. Ele tem tex-
tos prontos, também, não se preocupe! Eu só estou querendo te mostrar o
sentido da coisa. O que ele busca, a ideologia dele. Pra ver se bate.
VERA
Eu acho bonito, mas eu não estou interessada, pra dizer a verdade! Eu can-
sei. Eu quero existir, quero virar uma profissional. Isso ele não vai poder me dar
nunca! Ele também não sabe como conviver com a realidade, ele está pior que
nós. Não sabe, como ela existe, ele também não sabe!
LUÍS
Ele acha que, pra romper esse circulo vicioso em que transformaram a
vida, só arriscando. Ele acha que a verdade tem uma força única. Não a ver-
dade particular de um sujeito qualquer, mas a verdade mesmo, inteira. E
que existe uma catarse quando se fotografa no palco o avesso das coisas, da
vida, das pessoas. E que, quando isso acontece, ninguém consegue resistir.
E só assim se vai poder transformar o mundo. A partir de cada um.
VERA
Mas ele não era comunista, esse homem? Como é que agora ele vem
com essa conversa mística, de transformar as pessoas? Isso não combina.
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229
LUÍS
Não sei se era. Ele pode ter mudado. Quer dizer, parece que a mulher mor-
reu torturada, presa, não sei... Ele não gosta de falar nisso.
VERA
Como era o nome dela?
LUÍS
Acho que... Nina, sei lá. Nina Pessoa, deve ser.
VERA
Nina, como Nina? Quem disse que ela morreu? Aquela mulher meio louca
do Secretário também não chamava Nina?!
LUÍS
Não sei. Que mulher?
VERA
Aquela, de quando ele estava no Centro Cultural, dez anos atrás. Era o bra-
ço direito dele, uma mulher linda. E diziam que ela tinha pirado na prisão.
LUIS
Não pode ser a mesma!
VERA
Como não? Teve toda uma história. Foi um escândalo, o Rubens apareceu
e armou o maior barraco e precisou até de polícia pra separar. Ele não é casa-
do, o Secretário?
LUÍS
Não sei.
VERA
É a mesma, claro. Não morreu coisa nenhuma. Por isso, eles não se su-
portam.
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230 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Se fosse, ele não aceitaria a ajuda, de jeito nenhum. O problema dele com o
Secretário é outro. Ele sabe muito bem o que está fazendo. A separação pode
ter acontecido, mas daí a pensar que... O que eu sei é que talvez ele seja uma es-
pécie de guardião de uma verdade preciosa!
VERA
Que guardião, guardião de quê?
LUÍS
Guardião, sim, ele não guardou nos livros nem nas idéias, sei lá, mas guar-
dou com a própria vida. Mesmo que ele esteja errado, ele tentou manter uma
ética, um compromisso. E ele precisou desse tempo pra tentar entender. Ele an-
dou quebrando a cabeça, pra tentar retomar um fio da meada da história, re-
cuperar a essência do teatro que eles chegaram a praticar, um teatro de grupo,
unido em torno de uma idéia!
VERA
Pra mim, isso tá com cara de desculpa. Só se foi por amor. E, se não foi por
amor, pior! É muito utópico, muito fora do chão, Luís. Hoje não tem mais es-
paço pruma coisa assim.
LUÍS
Tem, sim, claro que tem. A questão é descobrir algum atalho que rompa es-
se circulo vicioso na relação com o público. Não existe mais um espectador pu-
ro. Ele é formado e contaminado pela televisão, cinema, internet, publicidade,
tudo! E o pior é que isso é feito com muito glamour e com muita grana. Difícil
resistir. No passado, eles tinham uma platéia que eles mesmos formaram – es-
tudantes, idealistas e intelectuais. E havia um diálogo, um rumo: o caminho foi
sendo construído a partir disso. Ele quer encontrar uma saída pra retomar essa
troca de idéias, fora do jogo de cartas marcadas em que se transformou a mídia.
VERA
Mas o público não tá interessado. As pessoas vivem massacradas, fazendo
contas e sobrevivendo. A gente tem que se colocar no lugar delas. E, no fim de
semana, têm mais é que se divertir. Tá certo. Parece adolescente.
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231
LUÍS
Eu sei que é um achado. Nós não podemos jogar isso fora. Você tem que
conhecer a figura. Se fosse um autor morto, você prestaria atenção. Ele tem
razão, as pessoas não enxergam quem está vivo. Pra fazer parte da cultura,
precisa morrer. Ou sumir. Se não, ninguém leva a sério, ninguém respeita.
(lê outro trecho) Olha aqui. “Oração e fé criam o que acontece. Por oração,
entenda-se tudo o que se fala e, por fé, até mesmo a ausência radical de
qualquer tipo de crença.”
VERA
Por que é que ele não publica? Isso é literatura, não é teatro, Luís, claro
que não! Não tem nada a ver, são palavras, Luís, não têm a ver com o
mundo em que a gente vive. Vai lá discutir o projeto com quem vai soltar
a grana. Vão rir na sua cara. Quer saber o que mais? Eu estou interessada é
nessa mulher. Se ele largou tudo por ela, aí, sim. Não tem idealismo, mas
tem uma história de amor. Isso eu até acho bonito. Ele não tem nada escrito
sobre ela?
LUÍS
Que eu saiba, não. Ah, tem uma gaveta em que ele não quer que eu mexa.
Só se estiver lá. Mas pra quê você quer saber dessa mulher? Não interessa a vida
pessoal dele!
VERA
É só o que interessa. Um sujeito que faz uma coisa dessas por amor é
capaz de ter escrito alguma coisa especial. Por que é que você não tenta
descobrir?
LUÍS
Mexer na gaveta? Foi a única coisa que ele proibiu, eu não posso. Não seria
honesto.
VERA
Não seria por quê? Você não está sendo pago para organizar o que ele
escreveu? É uma pesquisa ou não é? Então? Vá à luta!
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232 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
CENA 6
LUÍS
(com o livro Psicodrama nas mãos, lê) “E, quando estiveres perto, eu arranca-
rei teus olhos e colocarei no lugar dos meus, e tu arrancarás meus olhos e colo-
carás no lugar dos teus e, aí, eu te olharei com teus olhos, e tu me olharás com
os meus.” Eu não manjo nada de psicodrama. Você acha legal?
RUBENS
(sorri e não responde) Você sonha, Luís?
LUÍS
Sonho. Quer dizer, em que sentido?
RUBENS
De noite, quando tá dormindo.
LUÍS
Não, é raro, é muito raro. Pelo menos, eu não lembro.
RUBENS
E no que é que você acredita?
LUÍS
(hesita) Na vida... Em tudo... No teatro e também... Em tudo.
RUBENS
Você não tem uma religião, uma fé? Fora do teatro?
LUÍS
Minha família é católica, eu fui batizado, mas... Eu não sou muito ligado.
Eu pensei que você não se importasse com isso.
RUBENS
E política? Você é de algum partido? Já militou por alguma causa?
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233
LUÍS
Não, não, nunca! Eu não me ligo nessas coisas. Eu acho política um saco,
pra falar a verdade. Político é tudo igual, acho uma perda de tempo votar. Se eu
pudesse, pulava esse pedaço. Eu gosto de teatro, só ele me apaixona, e toma
muito tempo. Não dá pra... Onde é que você quer chegar?
RUBENS
Não sei. Onde é que VOCÊ quer chegar? Eu quero te conhecer melhor.
LUÍS
Mas você já me conhece. Eu sou assim, desse jeito mesmo. Não tem muito
mais que isso. Até que eu gostaria de ser mais profundo, de ter opiniões, idéias,
sei lá. Mas eu sou assim mesmo.
RUBENS
Você acha que pode aprender comigo, se não se abrir de verdade?
LUÍS
Mas eu não estou escondendo nada, eu não estou entendendo.
RUBENS
Você acha que uma relação pode existir com mão única? Que vai conseguir
aprender alguma coisa comigo, se eu também não aprender com você?
LUÍS
Você, comigo? Essa é boa, imagina!
RUBENS
Eu não tenho nenhuma resposta pra nada.
LUÍS
Tem, claro que tem.
RUBENS
Não tenho, por isso é que eu quero saber de você. Como é que você con-
segue viver assim? Colocando fora de você o teu centro? Claro que, pra crescer,
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234 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
você pode se apoiar em alguém com mais experiência, faz parte. Mas o rumo,
a longo prazo, vai nascer de você mesmo. A gente sempre acaba atraindo aqui-
lo que deseja.
LUÍS
Será? Eu não sei.
RUBENS
É porque, até agora, você nunca quis nada de verdade.
LUÍS
Eu quero ter uma vida legal, trabalhar e ser feliz. Não sei se é pouco, mas é
isso que eu quero.
RUBENS
Mas esse é um projeto pessoal, apenas. E o resto?
LUÍS
Não sei. O que é que existe mais pra se querer?
RUBENS
O fundamental. O que importa. O que faz a diferença. Um ator de verdade
precisa ter a coragem de mergulhar mais fundo que uma pessoa normal. E
descobrir que, lá no fundo, não existe diferença entre ele e os outros. Ele tem
que encontrar aquele ponto neutro, sábio, que existe no fundo de toda pessoa,
e VER o quanto é uno com toda a humanidade, com tudo o que possa existir,
com o bem e com o mal de cada um e de todos os outros.
LUÍS
Eu não sei. Será que precisa disso tudo? Assim é difícil. Eu não sou santo e
nem quero ser. Eu não sei se eu tenho esse tipo de vocação.
RUBENS
Sem isso, você acaba ficando à mercê das marés, das modas e das
opiniões de todos os outros, daqueles que te cercam. Para uma auto-refe-
rência, só tendo essa coragem. É preciso fazer essa escolha por você mesmo.
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235
Ninguém pode fazer isso por você. Professor nenhum, guru de nenhum
tipo, ninguém, por mais sábio que seja, pode dar ao outro aquilo que ele
não pretende.
LUÍS
Eu... É claro que eu quero ser um profissional e poder viver da arte que eu
faço. Isso é errado?
RUBENS
Errado não é. Mas o que eu estou dizendo é que existe uma escolha por
fazer. Não tem como escapar disso.Você tem que tomar partido na batalha que
corre invisível e perene, e da qual você faz parte, mesmo sem querer. É uma
batalha entre o Bem e o Mal.
LUÍS
Mas não fica uma coisa maniqueísta, simplista, dividir as coisas assim, entre
bem e mal, claro e escuro? Eu acho que a gente precisa lidar com os dois lados
ao mesmo tempo, e por isso é difícil.
RUBENS
Você tem razão. Precisa, mesmo, lidar com os dois lados ao mesmo tempo.
LUÍS
E então?Aonde é que você quer chegar?
RUBENS
É porque não é tão fácil. Essa escolha se renova. Mesmo quando alguém faz
sucesso porque escolheu o primeiro caminho, ele acaba tentado pelo poder.
Porque aí ele atrai muitas propostas rentáveis, e a economia das relações acaba
reproduzindo aquilo que existe na economia global. O rico fica mais rico, e o
pobre fica mais pobre. Existe uma lógica perversa para a qual não há saída,
quando o sujeito não escolhe. Pra romper o círculo vicioso, talvez o único
caminho seja o sacrifício. Mas, no mundo de hoje, todo mundo aprendeu a
cuidar das suas coisas e a ficar na sua e a ser cínico com tudo e a ir tocando e a
ir livrando sua cara e assim por diante.
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236 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Mas, desse jeito, é difícil demais. Eu só quero fazer teatro. Eu não sou a
palmatória do mundo.
RUBENS
Aquilo que você projeta em mim tem tudo a ver com isso. Mas você prefe-
re personalizar essa verdade e achar que eu sou assim e ficar me colocando
num pedestal. Mas isso não vai levar a nada. Você tem que olhar pra tua gera-
ção e pro que existe hoje à tua volta. Nas últimas décadas, reduziram tudo ao
filtro da estética. E do sucesso objetivo. O filtro adotado, e que ainda vigora,
com menos força, mas ainda é o mesmo, é o do sucesso material, que é a medi-
da e a prova de que alguma coisa vale a pena. Claro que o sucesso quer dizer
alguma coisa, mas o fracasso também quer. Ficar nessa resposta material da
concreção de um resultado é pouco, muito pouco. Daí o caos espiritual que
rola. Ele veste a máscara da liberdade de criação, mas é uma mentira. Não existe
liberdade sem um compromisso maior que a ambição e o desejo pessoal. E essa
escolha eu não posso fazer por você.
LUÍS
Será que eu entendi? Eu preciso escolher?
RUBENS
Não precisa responder. Aliás, eu acho que você vai ter a vida toda pra pen-
sar. E teus amigos, quando é que eles vêm?
LUÍS
Eles estão viajando, com um espetáculo, por isso eu não marquei ainda.
Mas a coisa tá andando. Eu falei na Secretaria, e eles vão apoiar. Vai ter um
cachê, uma ajuda de custo pra todos, e eu estou preparando o projeto novo.
Leva um tempo.
RUBENS
Projeto? De novo, pra quê?
LUÍS
Claro, o que está aprovado é a pesquisa sobre sua obra e sua vida. É o que
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237
nós estamos fazendo, organizando o material escrito. Mas o projeto de mon-
tagem é outra coisa.
RUBENS
Como é que pode? Viver atrelado assim? A cada passo, a cada idéia, ter que
correr atrás de aprovação? Assim você acaba se sujeitando a quem não entende
coisa nenhuma de teatro. Como é que pode?
LUÍS
Não é bem assim. O assessor do Secretário, o Júlio, é um sujeito muito culto
e já foi ator, tá tudo bem. Ele está dando a maior força. Está interessado mesmo.
RUBENS
Isso é uma camisa de força, por isso vocês não conseguem mais pensar. É
pior que um vício!
LUÍS
Mas é o único jeito. Hoje em dia, é tudo assim. O senhor precisa compreen-
der o outro lado. Claro que precisa de um projeto escrito.
RUBENS
(muda de assunto, abrupto) Eu não acredito nessa história de viagem. Teus
amiguinhos não vieram ainda por quê? O que é que eles tão esperando? Sair a
verba?
LUÍS
Não. Quer dizer, claro que eles querem uma definição mais clara do que é
que a gente pretende...
RUBENS
Ah, claro, está tudo muito vago mesmo. Você não disse que vocês eram um
grupo?
LUÍS
E somos. Mas a gente está tentando um comportamento profissional. Eu
quero muito, de verdade, mais que tudo, que esse negócio saia. Mas está difícil!
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238 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
Confia em mim, vai dar tudo certo. É só uma questão de planejamento. Eu vou
marcar uma leitura pra semana que vem, que tal?
RUBENS
Leitura? Que leitura? Leitura de quê? Acho que eu tou velho mesmo, eu
não entendo a vida desse jeito. Sabe como era no meu tempo? Os grupos
tinham um administrador, que ganhava menos que um ator. E olhe lá! UM
administrador. Não existia produtor, captador, nada disso. Hoje, tem esse
monte de gente que você fala: precisa de produtor, captador, assessor de
imprensa... É gente demais. E o pior é ver você, que quer ser ator, mergu-
lhado nesses papéis e pouco se importando com o que eu tenho pra dizer.
LUÍS
Mas é assim que as coisas são. Você não disse que também quer aprender
comigo? Não disse que são dois mundos? Disse, não disse? Então, você está
muito longe de um deles. A gente também precisa ter os pés no chão. Confia
em mim, vai dar tudo certo. (ameaça sair)
RUBENS
Luís, espera.
LUÍS
Que foi, agora?
RUBENS
Você mexeu naquela gaveta? Por que é que ela tá aberta?
LUÍS
Não sei. Que gaveta? Não fui eu. Talvez a faxineira tenha aberto, por
engano. (Rubens vai até a gaveta, desconfiado)
CENA 7
LUÍS
Eu peguei os papéis, e não adiantou. Olha aqui. Tudo em branco.
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239
VERA
Não é possível. Como tudo em branco?
LUÍS
Ele deve ter desconfiado. Eu tenho certeza que eu vi pastas e mais pastas na
gaveta, cheias de papéis.
VERA
E por que é que você escolheu justo essa?
LUÍS
Só sobrou essa. Eu peguei no susto e só abri depois. Lembro que um dia
eu cheguei e a gaveta estava aberta, eu vi, cheia de papéis, acho que tinha
até manuscritos. E agora não tem mais nada, só umas contas e um monte
de papeis soltos. Só se ele arrumou e jogou tudo fora, de medo de eu pegar.
Se ele descobre, é capaz me matar.
VERA
Por que você não pediu abertamente?
LUÍS
Ele me provocou o tempo todo com uma conversa que me deixou pira-
do. Um papo sobre dois mundos e não sei o que mais. Eu não entendi na-
da do que ele estava falando, mas tive que manter a pose.
VERA
Você não tem remédio, Luís. Por que é que você nunca fala a verdade?
LUÍS
Como não falo? Falo, claro que falo. (hesita) Meu Deus, será que foi de pro-
pósito? Não pode ser. Ele deve ter armado pra mim.
VERA
Imagina, ele não ia fazer uma coisa dessas.
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240 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Ah! Ele perguntou por que é que vocês ainda não foram lá comigo.
VERA
Você não disse que os meninos estão viajando, como a gente combinou?
LUÍS
Tá vendo, você manda mentir e depois me cobra. Claro que eu disse, mas
não colou. Parece que ele enxerga através da gente.
VERA
É que você é muito trouxa.Você nunca fala a verdade e o pior é que é o rei da
bandeira. Onde já se viu? Custava perguntar se ele não tem uma peça sobre ela?
LUÍS
Mas foi você que me mandou pegar.
VERA
Olha aqui. Um bilhete.Amarelado, deve ser bem antigo. (ela lê) “Desculpa, eu
tentei avisar, mas ele tá desconfiado, não larga do meu pé. Não sei como é que eu
fui cair nessa cilada. Casar com o Fran, Santo Deus. Onde é que eu estava com a
cabeça? Mas eu não vou me separar, eu não posso.” Fran não é o Secretário?
LUÍS
Não sei, pode ser.
VERA
Claro que é,“Fran” de Francisco. Deve ser dela! Será que ela traiu o marido
com ele? O... o ex-amante?
LUÍS
(continua a leitura) “Você adora dar uma de bonzinho. Mas se esquece que
foi você quem me internou.”
VERA
(interrompe) Ah, então, só pode ser dela. Ela não era louca mesmo!?
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241
LUÍS
Que louca, o quê, espera. Deixa eu acabar. “Você costuma dizer que, quan-
do saí da prisão, não falava coisa com coisa e que estava paranóica com tudo,
até com você. E foi por isso que me internou, que só quis ajudar. Mas desde
quando tomar choque cura alguém? Mas dinheiro ajuda, sim, e pode conser-
tar tudo. Foi a Casa de Repouso que ele arrumou que me ajudou a voltar pros
eixos. E acho que eu aprendi a lição.Agora eu quero conforto, e não quero nun-
ca mais depender de ninguém, é isso que eu quero.”
VERA
Continua!
LUÍS
É só isso, não tem mais nada.
VERA
Procura aí, vê se acha. Deve estar no meio dos papéis.
LUÍS
Não tem nada, Vera, não tá vendo? Tudo em branco. Porque é que você tá
obcecada com essa mulher?
VERA
Que obcecada, o quê! Estou curiosa só. Tenho certeza que deve existir uma
peça.
LUÍS
Duvido. Ele acha que a vida pessoal não tem nada a ver com teatro. Ele não
ia escrever justo sobre isso.
VERA
Como não? Pergunta pra ele.
LUÍS
Imagina, Vera, não tem nada a ver.
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242 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
VERA
Fala que pegou a carta por engano e que ficou curioso. Pergunta sobre ela,
diz que não mostra pra ninguém. Ele já acostumou com você, ele não vai te ne-
gar, eu tenho certeza.
CENA 8
RUBENS
(lê para Luís; revelação) “Manter-se nos limites do possível é respei-
tar as regras cênicas do pequeno drama psicológico embutido em histó-
rias sem grandeza. Só a deposição das máscaras que vestimos por medo
garante a reconquista da verdade e da fé. E é pela entrega que vem a des-
coberta de que nunca tivemos nada a perder. Quem se assiste descobre
que, além de ator, é co-autor da trama.” (pára de ler) E aí, que é que vo-
cê acha?
LUÍS
No palco ou na vida?
RUBENS
Nos dois. Claro que nos dois. Na vida do palco, e fora também. Não é tão
difícil de entender.
LUÍS
Como se cada um fosse um personagem, e não uma pessoa? Mas isso
embaralha tudo. Desse jeito, você não sabe mais onde começa o palco e on-
de começa a vida. Periga enlouquecer, não periga? Misturar tudo?
RUBENS
Quem tem vocação, o ator, o bom ator, tem que lidar com isso. Ele per-
cebe que até na vida as coisas se misturam. Representar é fingir, e o ator
descobre que, quando finge, existe um fundo de verdade, que até a menti-
ra acaba virando verdade. O palco é contíguo a esse espaço indefinido, a es-
se não saber quem se é, a essa coisa que se chama loucura.
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243
LUÍS
No que eu li, não tinha nada sobre isso. Você não tem alguma peça, ou al-
guma coisa escrita...?
RUBENS
Por que é que você tá perguntando?
LUÍS
Porque faz falta. Eu estou organizando o material, e parece que falta uma
peça do quebra-cabeça. Tá tudo redondo, quer dizer, quase. Tá fazendo falta,
sim, alguma coisa, não sei o que é.
RUBENS
Você mexeu na gaveta, Luís? (silêncio) Mexeu, não mexeu?
LUÍS
(tenta fingir) Eu... ?
RUBENS
(conformado) Mexeu.
LUÍS
Desculpa, não foi por querer. É que tinha uma página solta, de uma carta,
caída, que estava no meio dos papéis...
RUBENS
Que página o quê, Luís? Eu tirei tudo da gaveta.
LUÍS
Então, deve ter caído.
RUBENS
Só deixei uma única folha, pra te testar.
LUÍS
Desculpa, eu não sei o que dizer.
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244 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
Eu tinha esperança que você ia saber resistir, mas não. Tudo bem. No fun-
do, eu sabia. Aquilo que se fala vai fabricando o futuro. Quando eu disse pra
você não mexer, eu selei minha sorte. Como se fosse uma peça. A famosa pre-
paração. Você diz – não faça isso. É porque “isso”, mais adiante, vai acontecer,
ou pode acontecer.
LUÍS
Então, eu não tive culpa. Se foi de propósito...
RUBENS
Não tem importância se foi de propósito ou não. Você podia ter respei-
tado minha vontade. A página caiu na hora da arrumação, e eu resolvi cor-
rer o risco.
LUÍS
Posso... perguntar uma coisa? (o outro acede) Eu estou louco pra saber. Ela
ainda está viva ou...?
CENA 9
LILINHA
Espera, gente, eu quero contar pra vocês! Eu estava no meio da sessão e aí
eu vi o Luís, e ele me apontou um senhor que parecia um anjo.
RODOLFO
O quê? O Luís foi lá na sessão com você?
LILINHA
Não, Rodolfo, eu vi dentro da minha cabeça. Tinha aquele senhor e, na ho-
ra, eu não consegui entender o que é que ele estava querendo. Mas agora eu sei,
era o João Rubens, eu tenho certeza. Você não tá vendo, Vera? Foi um sinal.
VERA
Pelo amor de Deus, Lilinha, de novo esse papo, não!
ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 244 (Black plate)
245
LILINHA
(infantil) Que papo? Mais respeito. Pode tirar o cavalo da chuva, que eu não
vou abrir mão da minha fé.
VERA
Não mistura as coisas, Lilinha. Desde que você se enfiou nessa seita, não fa-
la mais coisa com coisa.
LILINHA
Não é seita, Vera, não é. Não sei por que você teima.
VERA
(corta de novo) É o quê, então?
LILINHA
Você fala de um jeito tão... tão pejorativo. Pode ser seita, mas não desse jei-
to que você fala. Não é uma loucura qualquer, é o “Dai-me”, até o Ney já fre-
qüentou.
VERA
Que Ney?
RODOLFO
Latorraca.
LILINHA
Matogrosso.
RODOLFO
Desculpa, eu pensei...
LILINHA
Não sei por que vocês teimam em não querer ir lá comigo, tirar a prova.
RODOLFO
Eu? Já basta ter sido coroinha, Deus me livre!
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246 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LILINHA
Porque, que abre a cabeça da gente, abre mesmo.
VERA
Só faltava você embarcar na canoa do Luís. A lei tá aprovada, e a gente tem
uma reunião, essa semana, vão dar a resposta. Como é que nós podemos che-
gar lá e falar que mudamos de idéia?
LILINHA
Vera, eu já te falei, você tem que ser realista. Quem te garante que eles
vão soltar a grana? Não está vendo a Argentina? O que nós estamos viven-
do é o fim dos tempos, não adianta mentir. Não adianta tentar fingir que
não é com você. Está tudo um caos, e você fica tentando fazer as coisas di-
reitinho, pra quê? Está tudo de pernas pro ar, o fim dos tempos está aí, es-
cuta o que eu tou te dizendo.
VERA
Não começa. Eu não quero discutir o fim dos tempos com você, tá certo?
Eu sou sua sócia. Aqui, pelo menos, tenta ser objetiva.
RODOLFO
Por enquanto, enquanto o mundo não acaba, nós temos que pagar as con-
tas, não temos? Enquanto não acaba de vez?
LILINHA
A coisa que eu mais queria era encontrar alguém assim como o João Ru-
bens, que tivesse uma visão lúcida de tudo. Eu não posso jogar fora essa chan-
ce. Na escola, eu sempre fui apaixonada pelos textos dele.
VERA
Ninguém mais sabe que ele existe!
LILINHA
Mas está tudo lá. Ele escreveu sobre tudo o que está rolando. Ele era adian-
tado demais pra época, por isso ninguém entendeu.
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247
RODOLFO
Lilinha, não leva a mal, mas presta atenção. A gente tem que fechar logo es-
sa porra de contrato, senão não vai ter peça nenhuma. Porque eu vou preso, tá
me entendendo? E a mulherada não quer saber de conversa, elas só querem
saber do dinheiro.
LILINHA
Você tá empregado, fazendo novela, tem mais é que pagar mesmo.
RODOLFO
Grande merda, a novela tá no fim. E, com o salário que eu ganho, você acha
que dá pra manter as duas?
LILINHA
Quem manda sair engravidando a torto e a direito, por aí?
RODOLFO
Aaah, é por isso que você nunca quis sair comigo?
LILINHA
Ah, vai te catar, Rodolfo. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu quero fazer
teatro de verdade. Tou louca pra conhecer o homem. Eu tenho certeza. Ele veio
pra mudar nossas vidas.
RODOLFO
Vera, eu só topei porque você garantiu que desta vez ninguém ia pirar. E
agora esses dois vêm com porra-louquice. Qual é?
VERA
Eu sei. Merda. Que saco, Lilinha! Você é que tem que me ajudar, Rodolfo,
porque eu não tenho mais paciência.
RODOLFO
Cadê o Luís, por que é que ele não veio? Com essa maluca eu não quero
papo, eu vou falar prele parar com enrolação.
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248 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
CENA 10
RUBENS
(lê para o outro) “A arte apenas profissional circunscreve e domestica o
artista e, na verdade, o castra naquilo que ele tem de mais autenticamente
criador. O sofrimento do ator advém do atrito entre essência e personali-
dade e das contradições que é obrigado a suportar. Como na prostituição,
a arte exercida como profissão vincula algo de sagrado e potencialmente
transcendente com comércio. O ator comercia com a alma e, se não vende
seu corpo, vende sua face.”
LUÍS
Será que eu entendi? Prostituição? Você compara o ator a uma...?
RUBENS
O ator tem um grande poder – a palavra. A arte tem! A publicidade não usa
esse poder para vender, vender e vender cada vez mais!?
LUÍS
Faz parte. A gente tem que sobreviver.
RUBENS
Claro que tem. Mas, enquanto isso, você acaba esquecendo o poder que
tem nas mãos. São os atores que emprestam suas vozes pra comunicar as men-
sagens dos patrocinadores, dos políticos... O ator é o ponta de lança desse sis-
tema, você não pode esquecer disso. Até nas novelas eles não enfiam men-
sagens no enredo, a torto e a direito, sem respeito nenhum pelo espectador? É
uma espécie de prostituição, sim, senhor!
LUÍS
Eu não sei. Só sei que preciso confessar uma coisa. Às vezes, eu saio daqui
piradinho. Você fala do palco como se fosse uma coisa sagrada e como se o
teatro fosse uma religião. (hesita)
RUBENS
E é. Ou poderia ser.
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249
LUIS
Mas, se fosse, não teria como viver no mundo.
RUBENS
É. O problema é esse.
LUÍS
(muda de assunto) Você deu uma olhada no projeto da peça?
RUBENS
Mais ou menos. Quer dizer, dei, mas não entendi nada.
LUÍS
Não entendeu o quê?
RUBENS
Vai ser uma cooperativa ou não?
LUÍS
Vai, claro que vai. É mais fácil, por causa da burocracia.
RUBENS
Mas os salários que você colocou não batem.
LUÍS
Por quê? Você achou pouco o que eu pus pra você?
RUBENS
Ao contrário, é porque cada um vai ganhar uma coisa. Eu não entendi.
Numa cooperativa, todos não ganham igual?
LUÍS
Nem sempre, Rubens. Não é bem assim. Claro que a Vera e eu, que
cuidamos da produção, merecemos um pró-labore maior, e você, como autor,
também.
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250 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
Claro. Só que, no plano da inspiração, não existe “meu” e “teu”. Não dá pra
saber quem merece ganhar mais. Essa divisão vai contaminar a atitude das pes-
soas. Elas vão achar que não têm responsabilidade igual e nem obrigação de
assumir que a obra em que estão metidas é também delas, uma propriedade
coletiva, comum.
LUÍS
Não mistura as coisas, Rubens, deixa comigo. Você andou afastado e não tá
por dentro. Uma coisa é a criação, do jeito que você tá falando, tá legal. Mas a
parte material é diferente. Ah, eu tinha esquecido, você tem uma firma?
RUBENS
Eu? Firma? Como, firma?
LUÍS
Por causa da lei. Facilita, se você puder dar nota fiscal.
RUBENS
Você tá brincando. Eu não sou uma firma, eu sou um autor. O que é que
vocês querem de mim, Santo Deus? Agora eu vou virar uma firma? Como nota
fiscal? Pra quê?
LUÍS
Calma, por causa da lei. É pra prestação de contas, depois... (hesita) Tudo
bem, não liga pro que eu disse. Esquece.
RUBENS
Não, explica, eu quero saber. Se eu tenho que virar uma firma, eu quero saber.
LUÍS
Todo mundo, hoje em dia, abre uma firma. Todo mundo. É mais fácil. Se
você abre, te ajuda a pagar menos imposto.
RUBENS
Menos imposto, como? Que imposto?
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251
LUÍS
De renda, imposto de renda! Se você guarda as notas das despesas, das com-
pras todas, tudo pode entrar como despesa de produção. Você economiza e
também ajuda o trabalho que a contadora vai ter.
RUBENS
Que contadora? Na equipe tem uma contadora? Na equipe tem também
uma contadora? Vocês estão inteiramente loucos? O que é que é isso, Santo
Deus? Você tem coragem de me falar uma coisa dessas? Quanto tempo vocês
perdem com essa loucura, com essa burocracia sem fim? É impraticável, é me-
lhor parar com tudo. Eu não quero mais. Não quero mais participar dessa coisa
lastimável.
LUÍS
Mas o que é que você quer? Você vive numa cidade, num país, tem que
pagar imposto! E se fizer sucesso, vai pagar mais. É com os impostos que o
governo teoricamente cuida do povo e da cidade e até dos miseráveis que te
comovem tanto. Claro que eles roubam e tem corrupção. Mas você quer fazer
de conta que não vive nesse mundo, Rubens. Qual é? Esquece, eu não falei por
mal. Esquece. Eu prometo que vou te deixar fora disso. Desculpa!
CENA 11
RODOLFO
Espera aí, “péra aí”. Dançou, como? Como, dançou?
LILINHA
Eu não disse que a Argentina podia atrapalhar? Bem que eu tive uma
intuição.
RODOLFO
Dá um tempo, Lilinha.
VERA
É isso mesmo que vocês ouviram. Me chamaram com urgência, me servi-
ram um cafezinho, falaram e falaram, e pronto. Dançou. Por enquanto, pelo
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252 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
menos. Eles têm razão. Acontece que, com essa coisa toda do dólar e essa crise,
estão com medo de investir e acabar ficando no vermelho. Pediram pra
esperar até o fim do ano.
RODOLFO
(grande escândalo) Até o fim do ano? Mas eu não entendo. Não estava tudo
certo? Eles não tinham dado a palavra?
VERA
É, mas não estava assinado.
RODOLFO
Mas quem garante que no fim do ano...?
VERA
Ninguém, ninguém garante. Mas eles disseram que, se conseguirem
equilibrar as contas, talvez seja possível, mas aí vai ter que ficar pro ano que
vem.
RODOLFO
Mas que merda, Vera, não é possível. De novo? Sempre aparece uma bosta
dessas no caminho? Essa crise parece que não acaba. Quando não é uma coisa, é
outra.
VERA
Desculpa, eu tenho hora no analista e não posso demorar. Achei melhor
avisar logo, assim, cada um vai cuidar da sua vida. Eu não consegui encontrar
o Luís, ele que me desculpe. Um de vocês podia dar um toque nele.
LILINHA
Não, Vera, espera. Mas como? Ainda tem o outro projeto. Não é pra hoje a
reunião na casa do João Rubens?
VERA
Ah, meu Deus, pra quê? Não vai dar em nada, Lilinha.
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253
LILINHA
Agora é que nós não podemos dar o cano, de jeito nenhum. Rodolfo, vocês
prometeram que iam. O Luís garantiu que a Secretaria...
VERA
O Luís mente demais.
LILINHA
(apela) Rodolfo!
RODOLFO
Vera, quem sabe? Não custa dar um pulo, ainda mais agora a gente ficou na
mão. Pode ser que quebre nosso galho.
VERA
Você acha que a Secretaria tem dinheiro pra torrar desse jeito? O Luís fan-
tasia demais. Aquele menino que ele namora usa a Secretaria pra segurar o
Luís. Deve ser coisa dele, não deve ter nada a ver com o Secretário.
LILINHA
Vera, não fala uma coisa dessas. O Júlio é apaixonado pelo Luís, e daí? Claro
que ele ajuda. Por isso mesmo, pode dar certo. Não custa, Vera, vamos lá. Nós
podemos fazer agora o projeto do João Rubens e, no fim do ano, se Deus qui-
ser, sai o patrocínio pra outra peça, e pronto.Você vai ver. Combinado? (a outra
vai saindo) É hoje à noite, hein? Vocês estão com o endereço?
CENA 12
RUBENS
Lilinha?
LILINHA
Como é que o senhor adivinhou?
RUBENS
Você. Pode me chamar de você.
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254 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LILINHA
Eu tava louca pra vir aqui.
RUBENS
(dirige-se à outra) E você é a Vera.
VERA
Eu mesma.
RUBENS
E ele, o galã, Rodolfo.
RODOLFO
Que galã? Imagina. Quem me dera. Só me dão papel de amigo do galã.
LILINHA
Que aura o senhor tem.
RUBENS
Aura?
VERA
A Lilinha acha que é vidente.
LILINHA
Acho, não, eu sou. Vocês não estão vendo? É incrível! De uma luz, de uma
limpeza rara.
RUBENS
Vamos sentar. Luís, pega as cadeiras da cozinha. Desculpa, aqui é pequeno,
vocês estão vendo. O Luís me disse que vocês são um grupo.
VERA
Bom, nem sei o que nós somos. Nós somos amigos e íamos fazer um tra-
balho, que agora foi adiado.
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255
RUBENS
Foi adiado, como, Luís?
LUÍS
Adiado, o quê? (custa a entender) Não, ela tá falando de outra coisa.
RUBENS
(olhando pro Luís) Quer dizer que não são bem um grupo?
LILINHA
Somos, sim, a Vera é que tem essa mania. Ela é crítica demais.
VERA
Como grupo, Lilinha? Quantos espetáculos a gente já fez? Meio.
LILINHA
Não interessa. Vamos fazer muitos ainda.
RODOLFO
Faz tempo que a gente estava pra marcar, mas não deu pra gente vir antes.
O Luís não teve culpa. Ele tem falado muito do senhor. E que tem um texto seu,
maravilhoso, aliás, mais de um.
VERA
Mas eu acho pouco provável que a Secretaria dê o dinheiro assim, a fundo
perdido.
LUÍS
Mas não é a fundo perdido. Eles já concordaram.
VERA
Concordaram quando, Luís? Deixa de ser mentiroso.
LUÍS
Nós só temos que dar umas oficinas, como forma de pagamento.
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256 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
VERA
Oficinas, Luís, de novo? Até receber, a gente já vai estar duro, e vamos ter o
mesmo problema: “vão” montar de que jeito? Só a verba pra mídia já é uma
pequena fortuna. E eles não bancam montagens, que eu saiba. Eu tou fora. Se
for um projeto alternativo, eu tou fora. Eu cansei. Eu não quero saber de nada
alternativo.
LUÍS
Mas você é uma atriz alternativa.
VERA
Alternativa, vírgula.
LUÍS
Ninguém sabe quem você é.
VERA
Sou uma atriz com oito anos de carreira, com muito orgulho. Todo mundo
me conhece.
LILINHA
Gente, não vamos brigar por causa de bobagem, por favor. Vera, dá um
tempo. Agora responde uma coisa, Luís. Vai ter verba pra montagem, mesmo?
Fala a verdade.
LUÍS
Meu Deus, eu já falei, mas parece que ninguém presta atenção. As oficinas
são só pra facilitar os ensaios, uma ajuda a mais, que o Júlio arrumou. Mas
depois vai ter uma verba de patrocínio, eu já disse.
VERA
Que verba? De onde vão tirar essa verba?
LUÍS
Verba, sim, senhora. Eu já estou com o projeto quase todo formatado. O
Júlio tá me ajudando. Vai sair como um projeto especial. O Secretário está
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257
empenhado. Eu já cataloguei praticamente todo o material aqui, do Rubens, e
eles têm interesse em que se monte uma das peças pra coincidir com o lança-
mento dos arquivos, que vão ficar lá, à disposição, na biblioteca da Secretaria.
Que foi, Vera, por que essa cara? Você não pode chegar e querer jogar tudo pro
alto. Qual é? O teu projeto é que acabou não saindo. Foi ou não foi?
LILINHA
Calma, gente.
VERA
Pois é, eu não comando a economia global, meu caro. O que é que eu posso
fazer, se justo agora a Argentina resolve falir?
LILINHA
Vera, o que interessa é que tem essa possibilidade. O Luís não ia ser louco
de inventar. Não vamos perder tempo discutindo. Eu estou curiosa, eu quero
saber do texto do João, que é o que interessa. (mais baixo, só pro Luís) Luís,
conta, quem sabe a Vera acalma?
LUÍS
Vera, olha isso aqui, nas minhas mãos. Você vai pirar. É um texto ineditís-
simo do João, que ele acabou de escrever pra nós quatro. Tá legal assim, Vera?
VERA
Como, pra nós? É novo mesmo?
LUÍS
E é sobre tudo o que a gente tá querendo falar. Tudo que está aí, essa reali-
dade pirante. Atual, atualíssimo. É ator, teatro, grupo, tudo isso. E como essa
questão da globalização afetou cada um. O João acha que existe um véu, um
muro que impede que a gente enxergue o nó da questão, o essencial. Esse bom-
bardeio de informações que não deixa espaço pra mais nada.
VERA
(irônica) Ah, que maravilha, quero só ver.
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258 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Vera, assim não é possível.
VERA
Eu estou curiosa.
RUBENS
Calma, Luís, não tem problema.
VERA
Eu só estranhei o tema. O Luís disse que o senhor nem computador tem e
faz tempo que vive aqui, à margem. E como é que o senhor se mete agora a falar
sobre o que não sabe?
RUBENS
Por isso mesmo. Porque estou à margem, é que eu acho que fui capaz de
enxergar uma luz. Às vezes, só quem está à margem consegue enxergar o que
está na cara e que ninguém vê. Eu podia estar vivendo no mato e, por isso
mesmo, enxergar a podridão da cidade com mais clareza do que qualquer
um. A senhora precisa ter mais respeito, dona Vera, não só por mim, mas
pelos seus colegas.
VERA
Quem o senhor pensa que é, pra querer me ensinar?
LILINHA
Vera, pára, pelo amor de Deus. Que é isso?
RODOLFO
Segura, Vera, dá um tempo.
LILINHA
Seu Rubens, desculpa, a Vera é desse jeito, não leva a mal.
Todos falam ao mesmo tempo e a coisa vira uma balbúrdia.
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259
LUÍS
Ela ainda deve estar vendo na frente as cifras com que ela anda lidando.
VERA
Claro, vocês sempre largam tudo nas minhas costas.
RUBENS
(dá um esporro) Chega! Aqui não é hora nem lugar pra ficar discutindo
desse jeito. (silêncio, uma pausa) Que coisa mais árida, chata. Pra quê fazer
teatro, se for assim? (pequena pausa) O que eu não entendo é como é que con-
seguiram convencer o mundo de que não há como lutar e nem contra o quê
lutar! (olha pra cada um deles) Tá todo mundo ilhado, engasgado com essa
balela de que essa é a única forma de vida possível... E ninguém mais se comu-
nica, as pessoas só sabem fazer negócios.
VERA
Que conversa mais antiga. E o que é que o senhor pretende? Uma revolução
comunista, por acaso? A esta altura?
RUBENS
Quem sabe? Será que não existe outro jeito pra se viver? Até o comunismo,
apesar de tudo, me parece mais cristão do que isso que está aí. Um dia, no
futuro, ainda vão falar dessa paralisia diante dessa realidade que parece ter
escapado ao nosso controle. E vão rir da nossa estupidez, porque é claro que
existe uma saída. Mas é preciso começar a procurar.
VERA
(cínica) E o senhor não tem computador, por quê?
RUBENS
Quem disse pra senhora que eu não tenho?
VERA
Tem?
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260 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
O Luís me fez o favor de comprar, com a primeira parcela da Secretaria.
VERA
E onde é que ele está?
RUBENS
No quarto, pode ir lá ver. É muito útil. Eu estou fascinado, confesso. Mas
não existe o que possa substituir aquilo que você é capaz de fazer recolhido
com seus botões, de madrugada, em silêncio, numa hora em que estão todos
dormindo. Computador nenhum é capaz de fazer você pensar com originali-
dade e resolver as questões que realmente importam. É preciso encontrar den-
tro de nós por onde caminhar, e essa visão, essa inspiração não está arquivada
em parte alguma do mundo. Ao contrário do que a senhora possa pensar, eu
não tenho preconceito com nada.
VERA
Desculpa, eu... Ando meio estressada e... Me desculpa, mesmo.
LILINHA
Sabe o que eu acho? Eu saquei esse lance no meio de uma sessão... (sem jeito
por causa do Rubens) Quer dizer...
VERA
Lilinha, não.
RUBENS
(divertido) A senhora é espírita ou o quê?
LILINHA
Não, era uma sessão do “Dai-me”, o senhor sabe o que é?
RUBENS
Ouvi falar.
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261
LILINHA
Eu preciso levar o senhor pra ver. É lindo, é lindo. É como se fosse uma
internet na cabeça da gente. Como se fosse a internet dos índios e que eles
deixaram pra nós. O Ayahuasca é um chá que a gente prepara, e ele abre todos
os canais. Com o ritual, ele consegue conectar a gente com tudo, com o astral,
com tudo o que existe. Comparado com ele, essa internet do mundo parece
um circo sem pão. Ou um circo pros que têm pão. Porque essa coisa, do jeito
que está, parece que não tem mais fim. Eu já disse pra Vera que é como se fosse
o fim do mundo, e o anticristo tivesse tomado conta, e ela fica me gozando. Eu
acho que ele está aí, e é como se ele não tivesse cara. Porque todo mundo pen-
sou que era o Hitler, com aquela coisa do nazismo, e depois que era o Sadam
Hussein, coitado. Tomou uma sova dos americanos. O anticristo mesmo eu
acho que é essa coisa que assumiu as rédeas do mundo com a economia. É ou
não é? (olha pra Rubens) O senhor entende o que eu...?
RUBENS
Entendo muito bem.
RODOLFO
Acho que anticristo mesmo são minhas mulheres, que dizem que acredi-
tam em Deus, mas só pensam em dinheiro.
LILINHA
Ah, Rodolfo, você me cortou.
RUBENS
Quantas mulheres o senhor tem?
LILINHA
Muitas.
RODOLFO
Duas. Com filhos, duas. E, depois que inventaram esse negócio de “pensão”,
o homem divorciado virou escravo. E até que a Lilinha tem razão, com essa
história de anticristo. Os bancos enlouquecem o mundo, com esse poder que
eles têm, devem ser eles, mesmo. Não vê os juros? E os economistas também
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262 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
devem estar na jogada. E a gente fica sem saída. Eu estourei todos os meus
cartões pra pagar as contas, mas a culpa é deles, que não dão colher de chá
prum pai de família com três filhos.
LILINHA
Você, pai de família?
RODOLFO
Posso não ser de família, mas sou pai. Eles pegam pesado, e eu jogo sujo
também, fazer o quê? Não vou passar a pão e água, enquanto eles faturam com
a minha desgraça. Pra pagar, só se eu ganhar na loteria. Porque é uma bola de
neve, minha dívida parece a do Brasil, só faz crescer.
LILINHA
Tá bom, Rodolfo, chega.
LUÍS
Vera, uma surpresa que eu tinha preparado pra você, e nem sei se você
merece. Está aqui aquela peça que você queria ler. Está aqui.
A luz muda e todos os atores congelam, menos Lilinha, que vai até Luís e pega
o texto que ele tem nas mãos e o entrega a Vera, enquanto diz o texto que se segue.
CENA 13
LILINHA
(lê um fragmento do que Rubens escreveu) “Desmascaramento. Todos têm,
oculto em si, o ator. Médico e monstro, para ser, o ator NÃO É. Não é, para que
a personagem seja e, em cima dessa contradição, toda a arte teatral se proces-
sa. Quando o ator trabalha apenas com a personalidade, acaba por desprezar
os veios mais profundos do tesouro que a arte pode proporcionar. Pois o teatro
é arte alquímica, que oferece ao adepto a oportunidade de uma transformação
cabal...” Tá vendo, Rodolfo? Televisão não é a mesma coisa, porque você tem
que aparecer e brilhar. Teatro é diferente. É como no “Dai-me”. Lá, de tanto
repetir o hinário, eu acabo me sentindo fora de mim, de um jeito parecido com
o palco.
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263
LUÍS
Dá um tempo, Lilinha. E aí, Vera, leu a peça? O que é que você achou? Ele
escreveu pra você.
VERA
Claro que não foi pra mim.
RODOLFO
(preocupado) Mas não vai dar bode? Você disse que o meu papel é o do
Secretário, mas ele aparece como um belo dum filho-da-puta! Quando ele
descobrir...
LUÍS
Bode nenhum.
RODOLFO
Mas ele já leu? Ele não vai querer patrocinar uma peça que...
LUÍS
Ele não vai ler. Ele não tem tempo pra ler.
LILINHA
Mas não é a vida deles, Rodolfo, é só uma peça, é ficção. Ninguém vai perce-
ber. Pra quê que ele ia ligar?
VERA
É, legal. Mas uma coisa eu não entendi. Você não disse que ela era atriz? Na
história, ela não é.
LUÍS
Como não? Faz teatro de estudantes. Na vida também ela abriu mão do
teatro profissional. Só fez no começo, por paixão.
VERA
Então, é tudo um pouco idealizado demais, eu acho.
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264 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
É porque ela encarna o ideal deles, por isso. Eles conseguiram viver uma
utopia, era um tempo mais feliz. Existia um projeto, uma esperança. Não era só
teatro, não era só mais uma peça, nada disso. O que norteava tudo era a perspec-
tiva de uma mudança radical, política, que não veio. Eles se amaram enquanto
faziam peças em sindicatos e faculdades, pela cidade, sempre pregando.
VERA
Deixa eu te dizer uma coisa, Luís.Você não percebe quando mente? Me diz.
LUÍS
Por que isso agora?
VERA
Porque já é doença. Você não disse que era uma peça sobre ela?
LUÍS
Desculpa, é que, pra ele, não tem importância a história pessoal. Ele
preferiu colocar o amor deles dessa forma, essa paixão em ação, compartilha-
da, na militância artística e política. Foi por isso que ele deu a peça pra gente.
Ele acha que pode ajudar a gente a se encontrar. Porque o que forma um grupo
é uma crença comum, e nós não temos nenhuma.
VERA
(sem entender) Como não?
LILINHA
Tá vendo, Vera, eu não falei?
VERA
(indignada) Falou o quê? Aqui, cada um pensa tão diferente, que só for-
mando quatro grupos. Um pra cada um.
RODOLFO
Mas teatro não é igreja, nem partido, desculpa. Nós não estamos aqui
reunidos, e tudo? O que é que ele quer?
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265
LUÍS
Um grupo não é um bando de gente reunida pra fazer uma peça. Não é.
RODOLFO
É difícil, hoje em dia, o que é que ele tá pensando? A gente não tem nem
onde ficar, nem sede, nem teatro, nem porra nenhuma. Claro que o jeito é se
reunir de vez em quando, conforme der.
LUÍS
Mas, pra fazer, a gente precisa discutir essa questão. Pra ele, sem um proje-
to maior que a peça, não existe um grupo.
RODOLFO
Mas nós já temos dois projetos. Não tem o outro pro fim do ano? Então...
LUÍS
Mas é pouco, Rodolfo, não é isso.
LILINHA
Pouco por quê? O Rodolfo tem razão, no tempo deles, era diferente. Não
dá pra fazer igual.
LUÍS
Lilinha, ninguém tá querendo fazer igual. É só uma questão de compreen-
são do sentido de grupo, como aparece na peça.
VERA
Pelo que eu entendi, eles se sentiam o centro do mundo e achavam que a
História dependia deles. E acabaram acreditando que eram heróis. Mas o que
eles faziam era terrorismo. E muitos morreram por causa disso.
LUÍS
Que terrorismo, o quê. Era uma luta política.
RODOLFO
Eu não quero nem saber. O que interessa é o patrocínio. Quando é que sai?
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266 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Tá tudo certo, só falta a gente ir lá, assinar.
RODOLFO
Aí, garoto! (todos se abraçam e comemoram)
LUÍS
O único problema é que eles querem que a gente leve o Rubens no dia da
assinatura do contrato.
LILINHA
E daí?
LUÍS
Ele disse que não vai, de jeito nenhum.
VERA
Como não?
LUÍS
E o Secretário faz questão, a gente vai ter que dar um jeito.
RODOLFO
A Lilinha pode falar com ele. Ele gostou dela, deu pra ver.
LUÍS
É, mas ele é teimoso. E o pior é que eu acho que o Secretário está mesmo
querendo humilhar ele.
VERA
Como, humilhar? Ele não vai bancar tudo? Claro que ele tem direito de fa-
turar em cima, por que não? Não tem cabimento. Ele é a estrela do evento e
não quer aparecer? Tenha paciência.
LILINHA
Deixa comigo, eu falo com ele. Ele vai aceitar, sim. Ele não diz que o “não”
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267
e o “sim” são mais próximos do que parecem? Deixa comigo.
CENA 14
RUBENS
Pra quê essa roupa nova, menina? Eu já disse que eu vou, não disse? Vou
com as velhas, mesmo, não quero enganar ninguém.
LILINHA
Mas é uma solenidade. O que custa? Olha aqui, essa camisa, que linda!
(mostra uma camisa cor de maravilha)
RUBENS
Essa, como? Eu não posso usar uma coisa dessas.
LILINHA
Não tem nada de mais. Prova, não discute, prova.
RUBENS
Vocês estão querendo me fantasiar de quê? (enquanto se troca) Ah, não, gra-
vata, de jeito nenhum.
VERA
O senhor não vai ficar com ela pra sempre.
LILINHA
Seu Rubens, não custa. É a assinatura do contrato, e os jornais vão estar lá.
RUBENS
Jornais, pra quê?
VERA
É o preço, homem, o que é que o senhor quer? Eles querem bancar, eles vão
mesmo bancar. Custa, um sacrifício?
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268 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
Eu não vou ficar confortável. Parece uma palhaçada.
LILINHA
Seu Rubens, foi uma sorte conseguir. Faz parte cumprir o ritual. Claro que
é política, mas faz parte.
RUBENS
Há mais de quarenta anos que eu não uso uma gravata. (começa a dar o nó)
Quando eu comecei, eu era certinho, eu tinha até esquecido. Até destoava dos
outros, sempre de paletó e gravata. Olha só, que coisa sem pé nem cabeça. (no
espelho) Vão achar que eu enlouqueci. Esse homem aí não sou eu. (começa a
tirar tudo)
VERA
Eu desisto.
RUBENS
Eu odeio provar roupa, me tira do eixo. Eu só resolvi fazer teatro pra poder
não ligar pra coisa nenhuma, muito menos pra roupa. Na hora, eu visto qual-
quer uma, pode deixar.
LILINHA
A gente não é o que veste, mas faz parte, seu Rubens.
RUBENS
Eu sei que é problema meu, mas eu odeio me apresentar como um “autor”.
Porque eu não sou. Quando eu escrevo, eu não sou autor, eu não sou nada.
Nada de nada. Era isso que eu queria. Queria era uma roupa de nada.
LILINHA
Então, que tal essa preta? Vai parecer uma rotunda, não é nada.
RUBENS
O artista só cria nu. Não que seja sem roupas, mas a atitude é de uma
nudez... Assim, de alma. Ele não pode se preocupar com nada.
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269
LILINHA
Mas ele tem que vender seu peixe. Na hora de vender, é outra coisa.
VERA
Eu já vou indo. Não tem o menor cabimento. Eu estou convencida de que
o senhor é completamente louco. A gente não pode perder mais tempo. Deixa
ele ir nu, se ele quiser. A reunião é daqui a quinze minutos.
RUBENS
Como, quinze minutos?
LILINHA
O tempo passou e a gente não se deu conta. Vamos logo, Seu Rubens.
VERA
Eu vou indo, vocês vão chegar atrasados. (sai)
LILINHA
Por favor, seu Rubens, vamos logo. Ela vai jogar isso na nossa cara o resto
da vida. É tão importante a gente conseguir. Por favor.
RUBENS
Pelo menos, sem gravata. Pronto, eu estou pronto. Tá bom assim? Eu sou
isso, assim mesmo, desse jeito, incompleto. E já me conformei com isso.
CENA 15
RODOLFO
Que foi engraçado, foi. O Secretário fazendo o discurso e falando maravi-
lhas, mas ele fingindo que não era com ele, nem olhou pra cara do outro.
LILINHA
Como se não estivesse entendendo nada. Como se fosse gagá. (ri)
RODOLFO
Eu acho uma sacanagem o que ele faz com o Secretário. Ele é até simpático.
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270 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
Não sei como ele tem coragem. Aceita o dinheiro do outro e depois xinga o cara
no palco.
LUÍS
Não é o Secretário, Santo Deus! É o personagem, que sabe se arrumar com
o poder, só isso.
RODOLFO
Mas ele puxa a brasa pra sardinha do escritor, o tempo todo.
LILINHA
Se eles não forem diferentes, fica sem colorido. Tem que ter uma con-
tradição.
RODOLFO
Claro que tinha que perder ela pro Secretário. A mulher presa, ele ficou na
dele, lavou as mãos, não quis nem saber.
VERA
Mas o outro também não fez nada.
LUÍS
Eles não eram do mesmo partido. Ela fez a opção lá dela, nenhum dos dois
pôde fazer nada.
RODOLFO
Que panaca! Foi o Rubens que deixou ela ir à luta, sozinha. O Rubens!
LILINHA
Ela nem estava mais com ele.
RODOLFO
Ele tinha que ter pegado em armas, como ela. Tinha que ter morrido!
LILINHA
Que horror! Se tivesse morrido, não tinha peça.
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271
VERA
Mas existe uma culpa, lá no fundo. Como se ele não tivesse se perdoado.
LILINHA
Claro, ele não internou ela?
VERA
Uma coisa que eu não entendo é essa mania dele de dizer que ela está viva.
LUÍS
Mania, por que? Eu não te contei? É porque ela está. Ela está viva, sim, senhora!
VERA
Como, está? E onde é que ela se enfiou?
LUÍS
Ninguém sabe, fugiu. Sumiu no mundo. Deu um golpe no Secretário,
pegou uma grana e caiu na estrada. Ninguém sabe onde foi parar.
LILINHA
Que maravilhosa! Claro, nenhum dos dois merecia ela. Fez ela muito bem.
VERA
Mas, na peça, ela não morre?
LUÍS
É o que eu tou dizendo. A peça é só é inspirada neles. E a “culpa” de que
você fala não é bem essa. Ele só quis refletir sobre a dificuldade dos que não
morreram. Não por causa deles, mas porque ele vê uma ruptura, que fez
com que eles não conseguissem passar o bastão da História pra nossa ge-
ração. Essa é a questão. É como se ele assumisse que eles têm uma dívida
conosco. E daí o cinismo e o besteirol e o teatro desengajado que a gente
pratica. Ele quer pôr o dedo nessa ferida.
RODOLFO
Eu não entendo esse preconceito. Eu adoro besteirol.
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272 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
É sua cara, mesmo.
VERA
Que responsabilidade? Que coisa mais neurótica! Eles não têm nada a ver
com isso!
RODOLFO
Que cara chato!
VERA
Onde já se viu ele assumir uma responsabilidade desse tamanho? Que coisa
mais onipotente!
LILINHA
O Rodolfo só está de bronca por causa do personagem dele.
RODOLFO
Que personagem, o caralho! Esse velho é que é muito enjoado.
LILINHA
(explode, emocionada) Enjoado, nada. Ele é sério, muito sério. Você não sabe
como ele saiu da Secretaria! (culpada por ter omitido) Luís, quando eu deixei ele
em casa, ele estava bem estranho. Não abriu a boca, não falou nada no caminho.
VERA
Devia estar cansado.
LILINHA
(para Luís) Não, não era isso. Ele estava mal. Era bom você ir falar com ele.
Não custa. Dá uma ligada, pelo menos.
CENA 16
LUÍS
Eu fiquei preocupado. Você desligou o telefone por quê?
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273
RUBENS
Não foi nada.
LUÍS
Você tá abatido.
RUBENS
Não é nada, não. Eu estou... Nada mesmo, tá tudo bem.
LUÍS
Pode falar.
RUBENS
Eu tentei, você viu que eu tentei. Levei numa boa a reunião, o encontro,
tudo. Mas foi um erro. Foi um erro. Um erro. Eu fiz mal, não adianta me enga-
nar. Eu tou enojado comigo. Enojado!
LUÍS
Quando a gente vai numa dessas reuniões, bate uma ressaca, faz parte.
RUBENS
Eu queria sumir, como ela. É como se faltasse um pedaço dentro de mim.
Dói, sabe, Luís? Dói! Ele achava que ela era radical, mas, mesmo assim, era
apaixonado por ela, tanto quanto eu. Ela sempre foi melhor do que nós dois
juntos. Ela cobrava. O tempo todo ela cobrava. E obrigava a gente a aprofun-
dar todas as questões. Não era patrulha, era certo. Ela nunca fez média com
coisa nenhuma. Sem isso, não resta nada!
LUÍS
Porque é que você nunca foi atrás dela?
RUBENS
Até nisso ela foi radical: nunca escreveu, sumiu de vez. E acho que foi a
coisa certa. É impossível mudar sem matar o passado. Ontem, na
Secretaria, eu aceitei fazer o papel de mim, como os outros me vêem.
Assumi minha vida, meu passado, e eu não sou isso, claro que não. Era mais
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274 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
confortável o papel de suicida, louco e ausente.
LUÍS
Mas ela deve ter construído outra vida. E você também precisa se cuidar.
Ninguém vive fora do mundo. Você fala como se ela tivesse conseguido preser-
var uma pureza, mas você também!
RUBENS
Ela deve ter encontrado uma nova trincheira, eu tenho certeza. E eu não sei
inventar outra, sem ela. Porque eu fiquei aqui, apatetado, desse jeito, congela-
do, neste apartamento, e não entendo mais o sentido da vida, nem da minha,
nem da dos outros. Depois que você chegou com essa história da pesquisa, eu
andei tentando me enganar. Mas eu não sei. E quer saber? Eu tentei mesmo o
suicídio, não foi nada forjado. Depois, eu fiquei sem graça, e inventei aquela
história toda, menti. Enquanto eu estava lá pra assinatura do contrato, ela não
saía da minha cabeça e eu tenho certeza que o Secretário também não pensa-
va em outra coisa. Ele está pouco se lixando pro projeto. O dinheiro só tem a
ver com ela.
LUÍS
Mas o que importa é que ele deu.
RUBENS
Ninguém cede impunemente. Quando você faz o jogo do sistema, pensan-
do em levar vantagem, você se contamina de alguma forma. E se contagia com
os vícios que quer combater, é impossível passar batido, atravessar ileso.
LUÍS
Mas, pra viver, é preciso jogar, não existe outra forma.
RUBENS
Mas, no campo do inimigo, você já entra em desvantagem. Ele sabe disso
muito bem, ele sempre foi uma das melhores cabeças. E sabe também que, ao
ir lá, eu assinei minha rendição. Ele é pragmático e só acredita nos frutos da
ação objetiva, mas, mesmo assim, eu vi uma tristeza nova nos olhos dele. Ele
sabe que também perdeu com meu fracasso. Não foi uma simples vitória, não
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275
foi uma vitória verdadeira. Nem ele, nem eu conseguimos ficar com ela, que
era o que contava. E agora eu me rendi ao caos. Lá, enquanto assinava, eu esta-
va me rendendo ao caos.
LUÍS
Você não está exagerando? Foi só um contrato. Todo mundo assina con-
tratos, faz parte.
RUBENS
O caos só existe e cresce cada vez mais, porque todos acham que não vale a
pena resistir nem se indignar com mais nada. E eu não vejo saída. Talvez, se ela
estivesse aqui, eu conseguisse compreender. Claro que pra viver você tem que
sujar as mãos. Mas tem um limite. Eu não sei se vou suportar.
CENA 17
LUÍS
Gente, ele está em crise. Eu não sei se não foi um erro levar ele lá.
VERA
Erro, por quê? Ele é adulto, assumiu um compromisso, agora não pode
voltar atrás.
LUÍS
Eu sei, eu sei...
RODOLFO
Desculpa, eu tenho que ir andando.
LILINHA
Dá um tempo, Rodolfo.
RODOLFO
Não posso, já faltei a duas audiências. O juiz não é mole. É capaz de ele
mandar me prender, dessa vez!
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276 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LILINHA
Audiências, que audiências, Rodolfo? De novo?
RODOLFO
As duas se juntaram, agora. Querem acabar comigo.
LILINHA
Vera, você tem toda razão, a gente nunca foi um grupo. Nem sei se a gente
tem condição de fazer uma peça assim, tão... tão...
VERA
Espera aí, só por causa do Rodolfo? Uma coisa não tem nada a ver com
outra.
LILINHA
O Rodolfo nunca tem tempo, e odeia discutir. Assim não dá.
LUÍS
Esquece o Rodolfo, Lilinha. Eu estou preocupado com o Rubens, porque
ele não está nada bem. Não é fingimento. Ele está dilacerado por ter aceito o
patrocínio.
VERA
O QUÊ? Esse homem não regula. Ele quer viver do quê? De brisa?
LUÍS
Ele diz que a ingenuidade e a pureza são a única forma...
VERA
(corta) Pureza, agora? Você sabe mentir muito bem quando te interessa,
quando te convém. (furiosa) A esta altura, com tudo assinado, duvidar? Tenha
paciência.
LUÍS
Mas ele tem razão. Não tem como fingir, Vera. Tem uma coisa, lá den-
tro, que você não consegue trair, sem se violentar. Se você está cheio de
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277
problemas, torturado, o que é que você vai fazer? Despejar seu lixo sobre
os outros?
VERA
Isso é bonito de falar. Eu quero que os outros se danem. Esse homem é
louco, obcecado, Santo Deus, nunca vi uma coisa igual. Eu não me confor-
mo. Ele já escreveu a peça. Pronto. Ele que fique na dele, não tem nada que
interferir. A única coisa que me deixa segura é que ele não pode mais voltar
atrás.
LUÍS
Pode, sim. Claro que pode.
VERA
Era só o que faltava...
LUÍS
Tem uma cláusula...
VERA
Que cláusula?
LUÍS
Ele se reservou o direito de desistir, se achar que a coisa não...
VERA
Como é que você deixou passar uma coisa assim? Luís, como é que você fez
uma cagada dessas?
RODOLFO
Ele não pode fazer isso com a gente!
VERA
Quer dizer que agora a gente vai depender do humor do homem, para
saber se a coisa sai ou não sai? Ele é louco, não vai dar certo.
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278 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Chega, Vera, nem mais uma palavra, chega. Quer saber? Se a coisa não
sair, a culpa vai ser sua. Você tem que se abrir, será que você não entende?
Tá pensando que vai usar o Rubens, como se ele fosse... sei lá... um idiota?
Ele não é um idiota, e é você que está sendo estúpida, burra e teimosa. Você
não me deixa falar. O projeto só saiu porque eu acreditei. Mas você conti-
nua duvidando, e eu estou de saco cheio. Se manca. Se você não quiser, não
precisa fazer a peça com a gente, tá bem assim?
VERA
Ah, você está querendo me tirar, Luís? Agora que eu entendi. É isso que você
quer?
LUÍS
Não quero tirar ninguém. Só estou dizendo que é justo que a coisa seja feita
com a cara dele, do jeito que ele achar melhor. Ele é o autor, será que você não
entende?
VERA
Ele é o autor, e eu sou uma atriz.
LUÍS
É um sujeito perfeitamente razoável e lúcido, e não vai aprontar. Se ele
desistir, vai ser por uma boa causa.
VERA
Boa causa?
LUÍS
Eu não vou fazer nada que vá contra o que ele acredita e muito
menos contra o que eu acho certo. Eu confio muito mais nele do que em
você.
VERA
Ah, é assim? Então é assim? (pros outros) Vocês ouviram? Vocês ouviram?
Mas que merda! Se você pensa que pode falar comigo desse jeito, está muito
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279
enganado. Eu não preciso dessa merda, tá sabendo? Fodam-se, você e o seu
autor! Eu estou fora! FO-RA! (sai, batendo a porta)
LILINHA
Calma, gente. Vera, espera!
CENA 18
LUÍS
Desculpa, eu sei que é tarde. Mas eu e a Vera brigamos... e eu achei melhor
vir falar com você. Eu estou precisando.
RUBENS
Entra.
LILINHA
Eu quis vir junto, o senhor se importa?
RUBENS
Não tem problema, claro que não. Vamos entrar.
LUÍS
Desculpa, eu sei que não é problema seu. Mas eu minto demais e nem sei
mais quando tou falando a verdade, porque é tudo tão louco. Só sei que está
tudo errado, continua tudo errado, e não é porque eu minto. Claro que não.
(explode) Eu estou cansado! Cansado! Eu odeio discutir, mas ela não acredita
em nada e só vive me cobrando. Parece que tem prazer! Se, pra fazer teatro, eu
vou ter que brigar assim, o tempo todo, discutir tudo, sem parar, eu não sei se
eu quero. Ela nunca assume o que é feito pelo outro. E agora, ficou louca, quan-
do soube da cláusula que te dá o direito de desistir.
RUBENS
Calma, nós estamos no mesmo barco. Eu não vou desistir.
LUÍS
Não vai, como?
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280 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LILINHA
Mas, então, você não precisa sofrer desse jeito, Luís. Eu vou ligar já pra Vera,
e vai ficar tudo bem.
LUÍS
Não vai ligar nada pra ninguém! Espera, Lilinha. Explica melhor, Rubens.
Como, não vai desistir, por quê? Desde o início, a gente conversou direitinho,
e você sabe que tem todo o direito de mudar de idéia.
RUBENS
Eu tenho um compromisso com você, Luís, e vou cumprir.Agora não existe
mais “teu” e “meu”. Minha peça agora já é sua também, por direito. Claro que
é. E o que estamos passando também é problema nosso, não é só seu.
LUÍS
Eu nem sei... Sabe por que é que eu minto? No fundo, é o que as pessoas
esperam. Eu sinto isso. Ninguém quer saber da verdade, porra nenhuma!
Todos só querem ouvir o que escolheram como verdade. E querem a confir-
mação de que estão certos. Mas que verdade? E eu me viro. Ela diz que não tem
preconceito com nada, mas é mentira. Vive pegando no meu pé por causa do
Júlio. Ele me ajuda, mas não tem nada a ver com a nossa relação. No fundo, ela
tem inveja, porque não tem ninguém. E eu não posso sair por aí anunciando
que namoro o rapaz que assessora o Secretário. Ninguém ia entender. Isso não
é mentir!
LILINHA
O Seu Rubens não vai desistir, Luís, não tem mais problema.
LUÍS
Tem, porque sou eu que não quero mais. Eu não suporto mais olhar pra
cara dela, nem ouvir o Rodolfo falar das mulheres dele. Parece que não tem
fim. Parece que ninguém quer saber do que interessa.
RUBENS
Senta, Luís, relaxa. Todo mundo às vezes tem vontade de jogar tudo pro alto
e sumir. Mas não tem pra onde, essa é que é a verdade. Não tem.
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281
LILINHA
Calma, Luisinho, vai ficar tudo bem.
RUBENS
A contradição faz parte da vida. Existe uma responsabilidade de quem está
no comando, e, no caso, você está.
LUÍS
Eu, no comando? Desde quando?
RUBENS
Desde que o projeto saiu. Você não pode querer eliminar a Vera desse
jeito. Ela está em você, não vai adiantar. Desculpa, eu sei que a culpa foi
minha. Ontem, quando você veio, eu desabafei com você como amigo. Mas
eu não posso voltar atrás. A assinatura do contrato mexeu comigo, mas
acabou sendo uma libertação. Esse tempo, todo eu me viciei em culpar o
Secretário pelos meus problemas. Mas, se eu quiser continuar a viver, eu vou
ter que participar de tudo como existe. E essa sua crise tem um lado bom.
Tem um nível de pensamento que a gente só atinge quando entrega os pon-
tos e desiste. Como se fosse uma morte. Mas, se você pára e olha pro proble-
ma que tinha, ou que pensava que tinha, vai ver que... não tem mais
importância.
LILINHA
O Rubens tem razão, nós podemos não ser um grupo, mas nós somos ami-
gos, Luís. No fundo, eu sei que você gosta dela.
LUÍS
Eu acho que nós não estamos à altura da sua peça. Como é que eu posso
defender no palco suas idéias, se, na vida, eu não consigo praticar?
RUBENS
A prova de que você está à altura é duvidar. Você está muito diferente do
menino deslumbrado que apareceu aqui a primeira vez. E, se cada vez que
alguém duvidasse, largasse tudo, o mundo não saía do lugar.
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282 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
LUÍS
Ela faz análise, mas parece que não adianta. Não acredita em nada. Como
é que vai poder fazer a personagem?
RUBENS
Acredita, sim, e nem sabe que acredita. Às vezes, a vida obriga você a vestir
uma máscara e, depois, você não sabe mais como tirar. E, mesmo quando um
ator não conhece a personagem, nos ensaios, ele pode ir descobrindo as facetas
escondidas que nem imagina que tem. E, com isso, ele cresce e se transforma.
E eu duvido que ela consiga ensaiar o papel da Nina sem se envolver. Ela vai se
contagiar da beleza da personagem, eu tenho certeza. Mas isso só vai ser pos-
sível se vocês confiarem nela.
LILINHA
Ela também não me respeita, Luís, é o jeito dela. Não vê como ela fala
comigo? Eu não posso abrir a boca. Ela quase não dorme, é por isso que
vive tensa. Porque sono também é vida, isso é que ela não sabe. O sono não
é uma bênção, Rubens?! Ele apaga tudo de ruim que a gente passa durante
o dia. Como se fosse um perdão. E é isso que a gente tem que fazer, Luís, a
melhor coisa agora é a gente ir dormir. Amanhã, você acorda outro, você
vai ver.
LUÍS
Mas que é que eu tenho a ver com a loucura dela, me diz?
RUBENS
Porque não é só dela, é sua também. E o único problema é que vocês estão
com medo.
LUÍS
Medo de quê? Ela não tem medo de nada.
LILINHA
Deixa de ser tonto, Luís. Claro, nós todos estamos mexidos. Pra ela, deve ser
ainda mais difícil, porque não acredita em nada.
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283
LUÍS
(para Rubens) Mas não existe uma contradição enorme entre o que você
prega e essa forma pela qual a gente vai fazer a peça? A gente vai, pega o di-
nheiro, toma mil compromissos com tudo e é obrigado a dar o crédito pra
Secretaria, pra todos os apoios? É um inferno, tudo isso. Isso não invalida
tudo?
RUBENS
Não, não invalida, não. Se não for assim, essas idéias não vão sair do papel.
Mesmo que exista uma contradição, é o único jeito. Pode ser que pra alguém,
que a gente nem sabe quem é, elas possam ser um estímulo, provocar uma
descoberta, ser o estopim de uma transformação, quem sabe? E vai ter valido a
pena. E principalmente cada um de vocês também vai se transformar, com
certeza. Uma peça não é uma coisa morta. Eu tenho certeza de que a Vera vai
se transformar, e você e eu também, mesmo a distância, todos nós vamos
mudar, e é isso que importa. (olha pra Lilinha) Vocês são um grupo, sim. Um
grupo do início do milênio, no Brasil, com todas dificuldades que isso possa
ter. Eu quero te agradecer, Luís: você veio até aqui e me tirou de um limbo onde
eu tinha me metido. Minhas idéias não servem pra nada, se não forem passadas
adiante, pra ouvidos jovens, como os de vocês.
LUÍS
Por que é que, na hora H, dá esse frio na barriga, Santo Deus? Eu tou morto
de medo!
RUBENS
Tá tudo certo, Luís.Vamos em frente. (a luz cai, em contraluz, e o iluminador
dá meia platéia)
CENA 19
LUÍS
(se dirige à cabine de luz) Pessoal, vamos dar uma passada na luz da cena
final. (chama pelos outros) Rodolfo, chega aqui. Vera, vem dar uma força. Eu já
volto. (ele sai, a luz passeia pelo cenário)
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284 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RODOLFO
(cantarola) “... assim pungente, não há de ser inutilmente... a esperança”
VERA
(cantarola) “cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar...”
Entra uma música de transição para o final.
LILINHA
Gente, eu nem acredito, passou tão depressa. Eu morro de medo de estréia!
VERA
Rodolfo, suas duas mulheres estão lá fora. No maior papo, juntas. Você
é louco?
RODOLFO
Elas que quiseram, estão amigas, nem se largam mais. Ando até
desconfiado.
VERA
Desconfiado, como?
RODOLFO
Brincadeira, elas me adoram. A Lilinha é que não quer saber de mim. (corre
atrás da atriz)
LUÍS
(entra pela platéia) Pessoal, olha quem chegou!
RUBENS
Eu só vim dar um abraço.
LILINHA
Que flores lindas, Rubens, que maravilha!
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285
VERA
Eu também adorei, obrigada pelas palavras. Meu Deus, a camisa! Lilinha,
não tá vendo? É aquela.
RUBENS
Em sua homenagem. Ah, o cenário está igualzinho ao meu apartamento!?
E aí, tudo pronto?
LUÍS
Eu estou estranhando sua animação. Não tá nem um pingo nervoso?
RUBENS
Eu estou feliz. Pra mim, já foi um sucesso. Ela me mandou um cartão.
Soube da estréia e mandou.
LILINHA
Ela, quem? Não é possível! Depois de tanto tempo? Deixa eu ver. Meu Deus,
veio da Índia? Então ela está lá? (lê) “Agora, eu vivo com Shiva.” Meu Deus!
RODOLFO
Que filha-da-puta. Ela casou com um indiano?
LILINHA
(ri) Que indiano, o quê! É um Deus, Rodolfo. Tá aqui a imagem, no cartão.
Aquele, de muitos braços.
RUBENS
Os adeptos de Shiva acreditam que a melhor forma de devoção a Deus é
mostrar o quanto a própria vida é um teatro. Por isso, largam tudo e vivem sem
nada, pelas ruas, o rosto coberto de cinzas, sem mais nada. Abrem mão até
deles mesmos.
LILINHA
(continua a ler) Vera, olha que lindo! Ela diz: “Força! Nós estamos juntos!
A distância não importa!” Como é que ela adivinhou?
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286 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS
RUBENS
E aí, Luís, não é pra ficar contente?
VERA
Rubens, vem cá. Eu quero falar com você. Obrigada... por tudo. Vai ser um
sucesso. Eu nunca fiz uma peça tão forte. Eu estou apaixonada pela Nina, pela
peça, por você, por tudo. Você vai jantar com a gente, não vai? Eu não aceito
recusa.
RUBENS
Claro, vamos jantar todos juntos e comemorar.
LUÍS
Ela está mesmo apaixonada, Rubens, é melhor você se cuidar!
RODOLFO
Gente, tá na hora! O autor, já pra platéia. Vai começar!
LILINHA
Rubens, espera! Eu quero te dedicar uma frase sua. (vira-se para a platéia)
“Oração e fé criam o que acontece...” (pausa, torturada) Esqueci. (corre e Ru-
bens a abraça)
RUBENS
Por oração, entenda-se tudo o que se fala. (sopra baixinho pra ela) E,
por fé...
VERA
(com ar maroto) ... até mesmo a ausência radical de qualquer tipo de cren-
ça”.
Lilinha sai correndo atrás da outra, e Rubens descobre Luís melancólico, abre
os braços e todos se abraçam.
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287
FAUZI ARAP
ator e diretor. Estreou como diretor profissional na montagem de Navalha na
Carne (1966), de Plinio Marcos, na versão carioca produzida por Tônia Carre-
ro. Na década de 1970, estréia como autor, com Pano de Boca, e passa uma tem-
porada dirigindo apenas seus próprios textos: O Amor do Não, Um Ponto de
Luz, entre outros. No final da década de 1980 cria o projeto Rosa dos Ventos que
ocupa o Teatro Eugênio Kusnet por dois anos e consegue recuperar o espaço
com encenações, leituras e shows de música popular. O projeto mereceu o
Grande Prêmio da APCA, e lançou a autora Noemi Marinho, com Fulaninha
& Dona Coisa, seu texto de estréia. Também na década de 1980, coordenou o
seminário permanente de dramaturgia da APART (Associação Paulista de Au-
tores Teatrais). Seus trabalhos recentes incluem direções de peças de Leilah As-
sumpção, Leo Lama, Juca de Oliveira, José Vicente, Mário Bortolotto, e dos
shows Âmbar, A Força que Nunca Seca, e Maricotinha, todos de Maria Bethâ-
nia. Seus prêmios incluem dois Molière, como autor, (1977 e 1988), mais
inúmeros prêmios Shell, Mambembe, APETESP e APCA, como diretor e au-
tor. Pelas direções de Santidade e Caixa Dois (1997), recebeu os prêmios Shell
e APETESP de melhor direção; os dois espetáculos também foram escolhidos
na categoria melhores do ano. Publicou pela Editora Senac o livro Mare Nos-
trum (1998), relato autobiográfico em torno de suas experiências lisérgicas, vi-
vidas nas décadas de sessenta e setenta. O Mundo é Um Moinho foi produzido
no Rio de Janeiro, pela Casa da Gávea (2003), com direção do autor e tendo no
elenco Caio Blat, Cláudio Cavalcanti, Maria Ribeiro, Cristiana Kalache e Pau-
linho Giardini.
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