83
O MUNDO É UM MOINHO dramaturgo: Fauzi Arap debatedores: Aimar Labaki e Gianni Ratto LEITURA DRAMÁTICA direção: Tunica Teixeira atores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville, Nilton Bicudo, Rita Elmôr e Valter Portela trilha sonora: Aline Meyer luz: Laura Figueredo

Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

Embed Size (px)

DESCRIPTION

O MUNDO É UM MOINHOdramaturgo: Fauzi Arapdebatedores: Aimar Labaki e Gianni RattoLEITURA DRAMÁTICAdireção: Tunica Teixeiraatores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,Nilton Bicudo, Rita Elmôr eValter Portelatrilha sonora: Aline Meyerluz: Laura Figueredo

Citation preview

Page 1: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

O MUNDO É UM MOINHO

dramaturgo: Fauzi Arap

debatedores: Aimar Labaki e Gianni Ratto

LEITURA DRAMÁTICA

direção: Tunica Teixeira

atores convidados: Cristina Rocha, Nelson Baskerville,

Nilton Bicudo, Rita Elmôr e

Valter Portela

trilha sonora: Aline Meyer

luz: Laura Figueredo

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 205 (Black plate)

Page 2: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

206 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

O MUNDO É UM MOINHOum ato de Arap

...o mundo é um moinho

vai triturar teus sonhos tão mesquinhos,

vai reduzir as ilusões a pó.

Cartola

PERSONAGEM

RUBENS velho autor beirando os setenta anos de idade

LUÍS jovem aspirante a ator, recém-formado

VERA atriz batalhadora, do grupo de Luís

LILINHA atriz sonhadora e mística

RODOLFO ator bonitão, também do grupo

CENÁRIOS

Sala do pequeno apartamento de Rubens, no centro velho de São Paulo.

Muitos papéis e pastas espalhados revelam que ali mora um homem só. No

canto direito, o escritório da casa de Vera, onde os atores do grupo se reúnem.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 206 (Black plate)

Page 3: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

207

CENA 1

LUÍS

(de pé, junto da porta) O senhor não vai me testar?

RUBENS

Não, não precisa. Pode começar amanhã, se puder.

LUÍS

Posso, claro. Se bem que eu achei... Disseram que o senhor queria me co-

nhecer.

RUBENS

Eles entenderam mal. Eu só queria dar uma olhada, ver a cara de quem vai

mexer nos meus papéis. Está muito bem, está tudo bem. Amanhã.

LUÍS

E eu começo por onde?

RUBENS

(impaciente) Qualquer coisa, qualquer coisa está bom. Pergunta lá na Se-

cretaria. Não são eles que vão te pagar?

LUÍS

Mas eles disseram que depende do senhor. Não explicaram nada.

RUBENS

Esse negócio de “memórias” e organizar meus arquivos não passa de pre-

texto! Eles só precisam de uma desculpa pra justificar os gastos comigo! Qual-

quer coisa serve! A verdade é que estão com medo que eu morra e resolveram

me ajudar. São velhos amigos e devem achar que eu não vou durar muito. Que-

ro só ver a cara deles, se demorar mais do que eles pensam.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 207 (Black plate)

Page 4: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

208 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

O senhor está enganado, ninguém está pensando nisso, de jeito nenhum!

Ninguém falou nada de morte, imagina! O senhor está ótimo, não está? (o ou-

tro não responde) E o interesse existe porque o senhor faz parte da história da

cultura, da cidade, do país. E é pra isso que servem as Secretarias de Cultura!

RUBENS

Papo furado. Eles sabem que essas anotações são pessoais e, mesmo que te-

nham servido pra mim, no passado, não são úteis pra mais ninguém! E eu só

aceitei porque preciso do dinheiro.

LUÍS

Bom, claro. Ninguém trabalha de graça.

RUBENS

Você acha que é trabalho? Deixar alguém vir aqui fuçar meus papéis, você

acha que isso é algum tipo de trabalho?

LUÍS

Bom, quer dizer... O trabalho já está feito.

RUBENS

Responde, o que é que você acha disso?

LUÍS

Não sei. Disso, o quê?

RUBENS

Mesmo que fosse trabalho, disso! Do dinheiro, trabalhar por dinheiro.

LUÍS

Não sei, não tou entendendo. Todo mundo não trabalha por dinheiro?

RUBENS

O que é que você faz na vida? Sua profissão? Qual é?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 208 (Black plate)

Page 5: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

209

LUÍS

Eu sou ator.

RUBENS

(surpreso) Ator, como? E o que é que você veio fazer aqui?

LUÍS

Por que a surpresa?

RUBENS

Porque, pra mim, ator representa, ensaia e participa de espetáculos. Pelo

menos, no meu tempo, era assim. Você está desempregado?

LUÍS

Não. Quer dizer, eu tenho esse emprego. Seja como for, é um privilégio po-

der estar aqui, com o senhor!

RUBENS

Privilégio, ora! Privilégio por quê? Quantos anos o senhor tem? Eu tenho

certeza de que o senhor não sabe coisa nenhuma sobre nada do que eu fiz!

LUÍS

Como não?

RUBENS

O senhor não era nem nascido quando eu comecei.

LUÍS

Mas o que é que tem? Eu adoro teatro, é tudo que eu mais gosto e eu sei que

o senhor tem muito pra ensinar. É claro que nunca vi um espetáculo seu, mas

eu vi as fotos, li artigos.

RUBENS

Então, não conhece!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 209 (Black plate)

Page 6: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

210 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É a primeira vez que eu vou fazer um trabalho assim, mas eu aprendo

rápido.

RUBENS

A primeira vez? Então, também não tem experiência?

LUÍS

Se o senhor me ajudar a levantar o material, eu tenho certeza de dou con-

ta do recado. É claro que eu estou contando com o senhor!

RUBENS

Pode tirar o cavalo da chuva. Contando comigo, por quê? Você está aqui

pra organizar um arquivo, certo? E vai lidar com papéis. Eu espero que o nos-

so convívio seja o mínimo possível. Se você não sabe como fazer, vai ter que

se virar.

LUÍS

Mas por que tudo isso?

RUBENS

Ora, por quê. Eu não quero ser incomodado, eu disse pra eles! E só aceitei

porque me garantiram que eu não teria nem que olhar pra quem viesse aqui.

LUÍS

Mas eu tenho um prazo.

RUBENS

E eu com isso?

LUÍS

O senhor não pode ao menos me dar uma dica?

RUBENS

Dica? Que tipo de dica?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 210 (Black plate)

Page 7: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

211

LUÍS

Sei lá. Por onde começar?

RUBENS

Eu tenho muita coisa escrita e solta, não vai faltar material! Isto aqui está

um caos, você não está vendo? Começa com qualquer coisa. Aquele monte de

pastas, que tal? Espero que não seja enfadonho, para um candidato a ator. (o

rapaz começa a fuçar) Ah, nessas gavetas, não! Só tem coisa pessoal.

LUÍS

Então, está vendo? É melhor o senhor me mostrar.

RUBENS

Desculpa, mas eu não suporto nem a idéia de ter que olhar pra isso de

novo. Pra mim, é tudo matéria morta. Eu prefiro que você faça como qui-

ser. É só não mexer nas gavetas. É a eles que o senhor vai ter que prestar

contas, não a mim.

LUÍS

(surpreso) O senhor não tem computador, certo?!

RUBENS

E o que é que tem?

LUÍS

Posso levar o material pra digitar?

RUBENS

Digitar? Aqui em baixo tem uma papelaria, que tal xerocar?

LUÍS

E fotos, o senhor tem?

RUBENS

Poucas. Você não vai precisar vir todos os dias, vai?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 211 (Black plate)

Page 8: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

212 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, acho que não. A que horas é mais confortável pro senhor? Eu vou ten-

tar incomodar o mínimo possível.

RUBENS

Você não acha que, pruma primeira visita, já está bom? Esses papéis não

servem pra nada, não queira se enganar. (aponta os papéis) Eles não têm mais

nada a ver! E eu só aceitei pelo dinheiro, como você. E, por hoje, não quero per-

der mais tempo. Tudo bem. Pelo dinheiro. Uma vez por semana. Tá bem?

CENA 2

RUBENS

Pensei que tivesse desistido. Você sumiu.

LUÍS

Não, de jeito nenhum. Foi uma gripe.

RUBENS

Você não é bom mentiroso.

LUÍS

Imagina! Pra que que eu ia...? (confessa) Foi um teste que eu tive que fazer,

não deu pra avisar. Eu até pensei em ligar, mas não quis incomodar.

RUBENS

Teste? Que tipo de teste?

LUÍS

Comercial.

RUBENS

(com cara de nojo) Comercial? De televisão? E eles pagam por isso?

LUÍS

Quase nada, é um bico. Mas, pra quem vive duro...

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 212 (Black plate)

Page 9: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

213

RUBENS

Bico? Mais um? Hoje em dia, ator só vive de bico?

LUÍS

Acho que a coisa é mais complicada do que no seu tempo. Eu fiz escola de tea-

tro, direitinho, me formei, mas não tem emprego pra todo mundo. Então, a maio-

ria vive de dublagem, dá aula, faz comercial, todo mundo se vira. E o sujeito deixa

um book na agência, na esperança de ser escolhido pra alguma coisa. Se tiver sor-

te, arranja um comercial e sobrevive um pouco melhor, algumas semanas. (pausa)

Por que o senhor não valoriza a pesquisa que vou fazer aqui, com o senhor?

RUBENS

(hesita) Porque é uma mentira, ninguém precisa dela.

LUÍS

Como não? E se o senhor tivesse morrido?

RUBENS

(rápido) Não disse que eles estão esperando que eu morra?

LUÍS

Não é isso, todo mundo morre um dia... E se alguém quisesse estudar sua

obra!?

RUBENS

Você acha que alguém ainda tem tempo pra ler? Com essa correria desata-

da atrás de dinheiro? Inda mais uma pesquisa!? E essa coisa de “obra”, eu não

entendo o que é. (sai para a cozinha)

LUÍS

(enquanto examina o que já digitou, grita) Alguns papéis estão datados e

outros, não.

RUBENS

(responde de fora) O destino deles era a lata de lixo. (volta pra cena) E as

idéias, as boas idéias, independem do contexto histórico. Pra que datar?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 213 (Black plate)

Page 10: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

214 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Mas claro que é importante! As datas situam o leitor.

RUBENS

As melhores idéias vêm sempre do nada, de repente, num raio! O dia e a

hora não têm importância nenhuma. Talvez a única coisa que importe seja a

verdade.

LUÍS

Que verdade?

RUBENS

Verdade. Só existe um tipo de verdade. Quando você se entrega e confia no

outro e fala a verdade. Você, desde que chegou, está tentando me enrolar.

LUÍS

Eu?

RUBENS

O que é que você está querendo?

LUÍS

Nada. Só fazer meu trabalho. Eles querem um depoimento ordenado, que

sirva de base para o livro.

RUBENS

Depoimento, que depoimento? Deixa ver se eu entendi, eles querem publi-

car? Como se fosse um depoimento?

LUÍS

Mas, e se publicarem, que é que tem?

RUBENS

Você não acha que é muita pretensão sua achar que pode escrever minhas

memórias, um ator que nem empregado está? Ora, ora!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 214 (Black plate)

Page 11: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

215

LUÍS

As memórias são suas, eu não vou ter nada a ver com isso.

RUBENS

Faz tempo que eu perdi a memória. Eu vou telefonar já pro Secretário e sus-

pender esse negócio.

LUÍS

Mas o que é que tem de mais? (hesita) Eu não estava enrolando, eu só esta-

va aguardando o momento certo pra falar. Eles pediram que eu perguntasse se

o senhor não teria interesse em...

RUBENS

Não tenho. Nenhum interesse, em nada. Há muito tempo que eu não

tenho interesse em coisa nenhuma. Mas eu vou ligar já e acabar com essa

palhaçada.

LUÍS

Por favor, não! (pausa) Tudo bem. A idéia foi minha. Eles não tocaram nes-

se assunto, de jeito nenhum. A idéia foi minha!

RUBENS

Eu acho melhor o senhor procurar outro emprego, outro “bico”. Eu não

posso conviver com alguém que mente desse jeito, pra se aproveitar.

LUÍS

Não, por favor! O senhor compreendeu mal. Eu estou encantado com o

que li, e acho um desperdício que as pessoas não possam ter acesso a isso

tudo. (pausa) Eu preciso deste emprego. (pausa) O senhor não acha impor-

tante deixar, quem sabe, uma herança, um testamento?

RUBENS

Eu não entendo sua cara-de-pau. Testamento, por quê? Eu ainda não estou

morto, e nem pretendo morrer tão já. Esse é o ponto: todos me tratam como

se eu já tivesse morrido.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 215 (Black plate)

Page 12: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

216 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Desculpa, eu não quis dizer que...

RUBENS

(enquanto disca) Eu sabia que não ia funcionar. Eu nunca soube conviver

com esse tipo de trabalho corrupto, onde as coisas são acertadas na base do fa-

vor, pra favorecer um amigo. Não podia mesmo dar certo.

LUÍS

Corrupto, por quê?

RUBENS

Tudo o que se faz hoje em dia é em nome do dinheiro ou em nome do pas-

sado. Eu não vejo ninguém fazer nada em nome do futuro. (termina a ligação)

Está ocupado. O que é que eles fazem naquela Secretaria, que não largam do

telefone, o dia inteiro?

LUÍS

Eu já me desculpei, será que é tão difícil entender? Não foi por mal. (o ou-

tro vai e abre a porta) Tudo bem, eu também não vou morrer por causa disso.

O senhor faça como quiser. Desiste, pega todos estes papéis e enfia!

RUBENS

Que bom, desistiu do papel de bonzinho? Já é um começo.

LUÍS

Quem o senhor pensa que é? Eu nunca vi tamanha arrogância. Enfiado

aqui, neste apartamento, trancado e tratando todos e tudo com um mau hu-

mor e uma condescendência, como se fosse o dono da verdade! Tudo tem um

limite. Não me interessa se foram seus amigos que resolveram bancar esse es-

tudo. O senhor deveria agradecer!

RUBENS

Então, estamos conversados. Pode ir, eu não estou interessado na sua

opinião!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 216 (Black plate)

Page 13: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

217

LUÍS

O senhor pensa que é fácil não ter trabalho e ser obrigado a viver de “bico”?

RUBENS

(irônico) Por que é que o senhor não faz televisão? Novelas? Vai fundo.

LUÍS

Quem me dera! Mas não é fácil. O senhor acha que eu não faria, se fosse

convidado? E o senhor devia dar graças a Deus por ter amigos e não precisar ir

prum asilo! De onde vem essa pretensão? E o senhor, por que não trabalha? Se

tá tão lúcido, não tá doente, e nem vai morrer, por quê? Vá à luta, então! Tra-

balha. Por que o senhor não tenta?

RUBENS

Ah, confessou? Agora você confessou! É por dinheiro, é apenas por dinhei-

ro que você está aqui. Não respeita meu trabalho coisa nenhuma! Nem conhe-

ce, nem respeita!

LUÍS

Respeito, claro que respeito! O senhor é quem não respeita o meu! Isso aqui

é um serviço digno, importante, que pode ajudar muita gente! Ninguém tem

a obrigação de conhecer o que o senhor deixa escondido a sete chaves! O se-

nhor vive escondido, como um ermitão, e há quinze anos não produz, não se

manifesta. Eu até pensei que o senhor fosse mais velho do que é. Por que o se-

nhor nunca mais escreveu coisa alguma, se despreza tanto o que já fez?

RUBENS

Quem disse que eu nunca mais escrevi? E quem disse que eu desprezo...?

Ninguém está interessado! Por isso. Ninguém!

LUÍS

Eu estou. Eu não estou aqui!

RUBENS

O teatro de hoje é uma mentira! Não existe, não existe mais teatro. Nin-

guém sabe mais o que está fazendo. Não existe mais ideal, nem pesquisa.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 217 (Black plate)

Page 14: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

218 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Como é que se pode fazer teatro, sem nem conhecer quem está do seu lado? O

teatro profissional não passa de putaria, se você quer saber. Um bando de gen-

te que se reúne pra fazer uma peça porque dá prestígio, pra ocupar o tempo,

enquanto a televisão não chama de novo! Isso que se faz nunca foi teatro. Não

existem mais grupos.

LUÍS

Como não? Existem vários! O senhor é que está por fora. Há quanto tempo

o senhor não sai, não vai ver um espetáculo? O senhor vive aqui, fechado nu-

ma ilha de preconceito, e imagina estar acima de tudo e de todos. Qual é? Isso

é uma doença, a pior doença. O senhor parou no tempo. (ameaça sair)

RUBENS

Talvez, talvez eu tenha parado. Mas o que o senhor chama de grupo com

certeza depende do governo, ou da Secretaria, pra sobreviver! Duvido que eles

não vivam correndo atrás de patrocínio, esmolando apoios, pra poder fazer a

arte “idealista” que escolheram fazer. Mas, pra fazer teatro hoje em dia, é preci-

so se vender! Isso não é ser livre. Não existe mais ideologia nenhuma a não ser

o dinheiro.

LUÍS

O senhor está por fora. Existem grupos que são criticados porque até pare-

cem aqueles dos anos sessenta. E o senhor não conhece.

RUBENS

Conheço, sim, são os piores. Porque acreditam nessa conversa mole que

chamam de História! Na mentira da História! Será que eles não percebem que

a História que é contada é mentirosa? Eles só copiam a forma do que foi feito,

não existe vida no que eles fazem. Parece um prato requentado, não existe vi-

da, não! Até os grupos começam seus projetos com alguém fazendo contas

para ver se é lucrativo, se é viável, e tomando todo tipo de compromisso com

a realidade, pra não correr risco nenhum! Mas isso tira a liberdade de alma pra

pensar. Ninguém mais pensa, essa é que é a verdade. As pessoas querem con-

sumir, consumir tudo: margarina, sexo, até a história, o passado, a “cultura”

embalsamada do passado, mas pensar, que é bom, é indigesto.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 218 (Black plate)

Page 15: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

219

LUÍS

Eu quero que o senhor saiba que eu não vim só pelo dinheiro, não! Eles in-

ventaram esse projeto por sua causa, é o senhor quem está precisando! Por

mim, eu poderia fazer outro trabalho qualquer! Mas o senhor é quem manda.

Tudo bem, eu vou andando. (vai até a porta) Desculpa qualquer coisa.

RUBENS

(chocado) Quem disse que eu tou precisando?

LUÍS

Desculpa, eu não deveria ter... ter dito uma coisa dessas.

RUBENS

Essas esmolas que dão à cultura são pra simular que está tudo bem. Eu

tenho vergonha, o senhor está me entendendo? Eu tenho vergonha de de-

pender desse dinheiro! Durante anos, me deixaram à margem, definhando,

sem resposta, sem apoio, sem coisa nenhuma, e de repente me redescobri-

ram. Por quê?

LUÍS

Mas é assim que o mundo funciona!

RUBENS

Eu sei, mas eu tenho vergonha de fazer parte disso! No meu tempo, eu ti-

nha a ilusão de que meu trabalho importava. Mas acabou, meu tempo passou

e eu perdi todas as batalhas! Porque o mundo não mudou, nada mudou, nem

vai mudar! E não foi a ditadura, nem a falta de dinheiro que acabou comigo. É

que eu mesmo não acredito. Eu não consigo mais acreditar em nada. Meus

amigos morreram, e eu não tenho mais com quem falar, e eu também morri

um pouco, com cada um deles. Acho que eu não passo de um morto-vivo, se

o senhor quer saber!

LUÍS

O secretário é seu amigo; só quer ajudar. E a idéia de fazer um livro eu só

tive porque eu estou encantado com o que eu li. Sinceramente.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 219 (Black plate)

Page 16: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

220 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Não é amigo, nunca foi. Sempre foi meu adversário, se é que o senhor me

entende! Nossas idéias nunca bateram. E agora eu aprendi com ele a palavra

mágica - visibilidade.“Eu quero te ajudar, mas você precisa dar umas entrevis-

tas, pra que eu possa...” Talvez o senhor não tenha consciência, mas até mesmo

o senhor só se lembrou de mim por causa dos jornais. A matéria que saiu, foi

ele que arrumou. E foi só por isso que, de repente, eu renasci. O artifício colou.

Capa do segundo caderno, fotos e... milagre! Funcionou! Adoraram porque fa-

lei mal de tudo. Eles adoram quem fala mal. Quando alguém esculhamba com

o que existe, está prestando um favor a quem não quer se comprometer.

LUÍS

Mas ele quer ajudar. Não sei se é seu amigo, mas é como se fosse.

RUBENS

Não é amigo, sempre político, sempre viveu pro sucesso e nunca mediu as

conseqüências para ter as rédeas na mão. E, agora que tudo passou e ele ven-

ceu, quer mostrar que o poder é magnânimo. Nós dois já estamos velhos, e é

só por isso que ele pode ter a elegância de querer me ajudar. Existem verdades

impronunciáveis, que só os mais velhos conhecem. Ele deve sentir pena da mi-

nha teimosia, só isso. É caridade, não amizade. Porque eu não conto mais. Fi-

ca subentendido que eu sempre estive errado.

LUÍS

Não pode ser! Eu sei que ele admira o senhor!

RUBENS

Tanto faz, não tem mais importância. Está tudo podre! Eu estou podre, vo-

cê também está! Você não vê? Não sou eu quem está morrendo, é um tempo

que está acabando. Eu sou o último estertor. Ele resolveu homenagear a agonia

de tudo em que ele também um dia acreditou. Nós sonhávamos com um tea-

tro para o povo. Engraçado. Para o povo! Nunca conseguimos chegar nem na

classe média, quanto mais no povo. E quem pode ir ao teatro, hoje em dia?

Com tanta gente nas ruas, pedindo, bebendo, morando, morrendo nas ruas,

que importância pode ter o teatro pra essa gente? Com sorte, o que eles podem

é ver televisão, e olhe lá! O teatro sempre foi feito pra uma elite, pra burguesia,

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 220 (Black plate)

Page 17: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

221

e fazer um teatro popular nunca passou de um sonho. Uma ilusão, como as ou-

tras. (pausa) Pode ficar à vontade, pode ir, não liga pro que eu disse. Eu sei que

deve ser difícil sobreviver no mundo do jeito que está. Eu não quero te cansar.

LUÍS

O senhor não quer mesmo, então? (o outro não responde) Tá bem, eu vou

andando.

CENA 3

RUBENS

De novo? Eu pensei que nós tínhamos resolvido. O que foi agora?

LUÍS

Eles vão mandar outra pessoa, eu só vim me despedir. Eu me demiti, tou

fora da Secretaria.

RUBENS

Não sei por que essa mania de mentir e fantasiar. Deve ter sido porque eu

liguei e disse que não queria. É claro que foram eles...

LUÍS

Não, fui eu que pedi pra sair. O senhor tem fama de difícil, eles nem liga-

ram. Me ofereceram um outro serviço. Mas eu não aceitei. (o outro hesita) Pos-

so entrar?

RUBENS

Eu estou ocupado.

LUÍS

Eu trouxe o material que ficou comigo. Um pouco só. Não custa me rece-

ber. Eu não vou ganhar nada com esta visita. Eu só quero falar com o senhor.

(o outro abre)

RUBENS

Quer um café?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 221 (Black plate)

Page 18: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

222 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, obrigado. (Rubens sai, Luís fica) É o senhor mesmo quem faz?

RUBENS

E o almoço, também. É bom mexer na cozinha e trabalhar com as mãos,

me ajuda a descansar. Só tem uma faxineira, que vem duas vezes por semana.

LUÍS

Tem um texto onde o senhor diz que a vida verdadeira não cabe nos

arquivos de um computador e que o que importa realmente só é transfe-

rível pelo convívio vivo entre as pessoas. Mais ou menos isso! Depois da

última visita, eu não consegui parar de pensar nisso. (Rubens volta com

uma bandeja e café) O senhor sempre viveu sozinho? Me disseram que o

senhor foi casado.

RUBENS

Há muitos anos.

LUÍS

Uma atriz?

RUBENS

Era. Uma atriz. Especial.

LUÍS

Disseram que ela...

RUBENS

Desapareceu.

LUÍS

Morreu?

RUBENS

Pra mim, continua viva.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 222 (Black plate)

Page 19: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

223

LUÍS

Na sua memória ou...?

RUBENS

Açúcar?

LUÍS

Adoçante.

RUBENS

Adoçante não tem.

LUÍS

Açúcar, tudo bem. Eu... Eu posso...? Eu gostaria de poder continuar a vir

aqui.

RUBENS

Pra quê?

LUÍS

Não sei. Pra aprender.

RUBENS

Mas e seus compromissos, seus testes? Você não tem tempo, tem que ga-

nhar a vida.

LUÍS

Não, de jeito nenhum, não é problema. Eu descobri que ando fazendo tu-

do errado. Não foi pra isso que eu quis estudar teatro. O senhor está coberto

de razão, eu acho que eu entendi. Pra sobreviver, eu andei sacrificando o es-

sencial, e eu quero começar tudo de novo.

RUBENS

O senhor está querendo me agradar?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 223 (Black plate)

Page 20: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

224 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Não, quer dizer... Eu nem sei. Eu quero crescer e acho que o senhor, aqui, à

margem, parece que o senhor não está contaminado por uma espécie de febre,

de correria... Pelo espírito desse tempo. Por mais difícil que seja, eu quero ten-

tar. (pequena pausa) O senhor aceita?

RUBENS

Eu não sei o que pensar. O que é que o senhor quer de mim?

LUÍS

Eu faço parte de um grupo, e a gente anda em crise. Eu contei pro pessoal

do senhor, e os olhos deles brilharam. Eles pediram pra ver se o senhor aceita

uma turma de alunos.

RUBENS

Eu não suporto dar aula, menino. (hesita) Quantos são?

LUÍS

São quatro, comigo. O núcleo mesmo são quatro.

RUBENS

(ri) Quer saber? Eu não vou abrir mão do dinheiro da Secretaria. Eu conti-

nuo duro e não foi nada fácil conseguir. Tive até que me internar. Eles devem ter

te contado. Antes, eu cansava de ligar e ninguém me atendia. Aí, eu tive essa

idéia. Tomei os últimos comprimidos que eu tinha e me internei. Eles falaram

em suicídio, mas não foi nada disso. Foi puro teatro! Fiquei no hospital uma se-

mana. Pra repousar. E eu precisava comer. Eu sabia que algum jornalista bobo

ia descobrir e dar uma notinha, nem que fosse na página policial! É melhor eu

ligar pra eles, antes que me mandem outro chato. Vou dizer que fico com você!

LUÍS

Mas eu não quero mais o emprego, eles já deram baixa, eu não posso mais

voltar. Vão ficar loucos comigo.

RUBENS

Que nada, vão achar normal, deixa comigo. Burocracia é a praia deles, é

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 224 (Black plate)

Page 21: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

225

tudo o que eles têm. E vão me achar louco do mesmo jeito.Você continua. Não

custa ajudar o governo a patrocinar uma pesquisa verdadeira. Só que aqui é

muito pequeno, não vai caber todo mundo.

CENA 4

VERA

O projeto não era esse, Luís. Você pirou!? A gente gastou um tempo enor-

me se preparando, e agora você quer jogar tudo fora?

LUÍS

Você não está entendendo.

VERA

Nós prometemos um nome famoso, alguém com prestígio, eles não vão

aceitar. É uma multinacional, Luís! Não foi fácil arranjar a grana e, pra mudar

tudo agora, só se fosse um outro nome forte. Eles ainda não fecharam com a

gente, e não vão querer, de jeito nenhum.

LUÍS

Mas o velho é uma lenda! Ele tem história, ele fez a história do teatro, o que

é que eles podem querer mais? Vai ser a grande volta de João Rubens Pessoa! O

homem é um gênio, você vai ver!

VERA

Que lenda, o quê! Ninguém mais sabe quem ele é. É louco, isso sim! Todo

mundo fala. Um velho caquético, que consegue ficar tanto tempo longe, sem

fazer coisa nenhuma, não tem nada a ver! Ninguém vai querer investir, ele es-

tá mais pra lá do que pra cá.

LUÍS

Não é nada caquético. Quando se anima, parece um menino, mais ágil do que

eu. Você não conhece, por isso tá falando. Nós podemos aprender um monte.

VERA

Cai na real, Luís, esse cara te enfeitiçou. O tempo dele já era, ele já era.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 225 (Black plate)

Page 22: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

226 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Deve estar dando graças a Deus por ter arranjado um trouxa pra aturar suas

histórias, e ainda levar uma grana. (vai pro computador)

LUÍS

Não é assim, me deixa falar. Calma. Presta atenção. Não tem nada a ver com

feitiço. Eu estou com o material todo, ele tem meia dúzia de textos inéditos, eu

tenho certeza que você vai se apaixonar! Ele não parou de trabalhar esse tempo

todo. Antes de mais nada, eu quero que você leia parte do material...

VERA

E nem eu tou a fim de guru. Chega! Já pastei um monte de tempo no An-

tunes e depois no Oficina. Agora, eu quero liberdade. Eu larguei todos meus

empregos pra tocar nosso projeto. (pequena pausa) Foi ou não foi? Agora você

não pode me deixar na mão!

LUÍS

Ele é um autor. Não custa ler, não vai te tirar um pedaço. E o Secretário es-

tá disposto a investir nele. Acho que é culpa, sei lá. Os dois eram rivais, ou coi-

sa parecida, e agora resolveu ajudar o outro. Talvez a gente nem precise mais

correr atrás de patrocínio, o Secretário banca, você vai ver! Eles são da mesma

geração, vai rolar, eu tenho certeza. E ainda é capaz de a gente ficar com algu-

ma sala do Estado.

VERA

Ah, nem vem, não é nada disso! O Júlio, que é o braço direito do Secretário,

é que é apaixonado por você e é claro que é capaz de fazer o que você quiser.

LUÍS

Não fica repetindo uma coisa dessas. Ele só me indicou pra pesquisa por-

que eu sou bom, não teve nada de pessoal.

VERA

Pra cima de mim, Luís? Você anda dormindo com ele, não anda?

LUÍS

Não!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 226 (Black plate)

Page 23: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

227

VERA

Você é o maior mentiroso que eu já vi. E mente até pra você mesmo. Foi só

depois que você topou namorar com ele que ele te arranjou esse bico. Foi ou

não foi? Tou falando mentira?

LUÍS

Foi coincidência.

VERA

E esse patrocínio você tinha mesmo ficado de arranjar, desde o início.

Mas pro nosso projeto, que está pronto, escrito, aqui! Eu já te falei: é minha

última tentativa. Se não der certo, eu mudo de profissão. Você sabe quantas

noites eu varei fazendo as contas e montando tudo direitinho, de acordo com

a lei? Eu não vou jogar tudo fora, agora. Eles iam achar que nós piramos. O

projeto não era em torno de um clássico manjado, conhecido, consagrado?

Nós discutimos isso muito bem. Eles não querem saber de texto inédito. Pon-

to. Pra eles, não interessa. Texto nacional, só se fosse de um nome muito co-

nhecido, e que estivesse na moda. Não tem cabimento essa mudança. Eu que-

ro resolver minha vida já. Eu não sou bonitinha, a Globo não vai me chamar

nunca! E não sou filhinha de papai, pra ficar enrolando.

LUÍS

Me dá uma chance. Vamos fazer uma leitura. Se você não balançar, eu pro-

meto entrar na tua. Uma tentativa. Que tal?

CENA 5

Luís e Vera lêem trechos de escritos de Rubens, iluminados em contraluz.

LUÍS

(em tom de segredo) Palco iluminado: o mergulho é tão solitário e

particular, único, que chega a ser um mistério mesmo para o ator-agen-

te do processo. Mesmo público, só. Criação não é nunca do ego. É neces-

sário o sacrifício da consciência pessoal, para o acesso ao espaço real-

mente criador.

ágora_09.qxd 8/10/06 1:47 PM Page 227 (Black plate)

Page 24: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

228 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

E, por isso, a imagem pública do artista é anti-arte, pela própria contradi-

ção em que mergulha o envolvido. Prêmios e dinheiro, e mesmo uma plena

aceitação social, obrigam o ator a abandonar a solidão original implícita à cria-

ção e à convivência com o Absoluto. Toda solicitação mundana que se segue ao

sucesso é a antítese da pobreza, do não saber, do vazio e da humildade interio-

res e da nudez que possibilitam o contato. (a luz clareia o ambiente) Mas nem

uma peça é! São notas esparsas, não servem para nada. Não existe diálogo, his-

tória, nada. Não é teatro.

LUÍS

Não é uma peça, eu sei, mas é só um ponto de partida. Ele acha que só

havendo um compromisso em torno de uma idéia é que pode acontecer o

teatro verdadeiro. Justamente por isso, não é só mais uma peça. Ele tem tex-

tos prontos, também, não se preocupe! Eu só estou querendo te mostrar o

sentido da coisa. O que ele busca, a ideologia dele. Pra ver se bate.

VERA

Eu acho bonito, mas eu não estou interessada, pra dizer a verdade! Eu can-

sei. Eu quero existir, quero virar uma profissional. Isso ele não vai poder me dar

nunca! Ele também não sabe como conviver com a realidade, ele está pior que

nós. Não sabe, como ela existe, ele também não sabe!

LUÍS

Ele acha que, pra romper esse circulo vicioso em que transformaram a

vida, só arriscando. Ele acha que a verdade tem uma força única. Não a ver-

dade particular de um sujeito qualquer, mas a verdade mesmo, inteira. E

que existe uma catarse quando se fotografa no palco o avesso das coisas, da

vida, das pessoas. E que, quando isso acontece, ninguém consegue resistir.

E só assim se vai poder transformar o mundo. A partir de cada um.

VERA

Mas ele não era comunista, esse homem? Como é que agora ele vem

com essa conversa mística, de transformar as pessoas? Isso não combina.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 228 (Black plate)

Page 25: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

229

LUÍS

Não sei se era. Ele pode ter mudado. Quer dizer, parece que a mulher mor-

reu torturada, presa, não sei... Ele não gosta de falar nisso.

VERA

Como era o nome dela?

LUÍS

Acho que... Nina, sei lá. Nina Pessoa, deve ser.

VERA

Nina, como Nina? Quem disse que ela morreu? Aquela mulher meio louca

do Secretário também não chamava Nina?!

LUÍS

Não sei. Que mulher?

VERA

Aquela, de quando ele estava no Centro Cultural, dez anos atrás. Era o bra-

ço direito dele, uma mulher linda. E diziam que ela tinha pirado na prisão.

LUIS

Não pode ser a mesma!

VERA

Como não? Teve toda uma história. Foi um escândalo, o Rubens apareceu

e armou o maior barraco e precisou até de polícia pra separar. Ele não é casa-

do, o Secretário?

LUÍS

Não sei.

VERA

É a mesma, claro. Não morreu coisa nenhuma. Por isso, eles não se su-

portam.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 229 (Black plate)

Page 26: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

230 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Se fosse, ele não aceitaria a ajuda, de jeito nenhum. O problema dele com o

Secretário é outro. Ele sabe muito bem o que está fazendo. A separação pode

ter acontecido, mas daí a pensar que... O que eu sei é que talvez ele seja uma es-

pécie de guardião de uma verdade preciosa!

VERA

Que guardião, guardião de quê?

LUÍS

Guardião, sim, ele não guardou nos livros nem nas idéias, sei lá, mas guar-

dou com a própria vida. Mesmo que ele esteja errado, ele tentou manter uma

ética, um compromisso. E ele precisou desse tempo pra tentar entender. Ele an-

dou quebrando a cabeça, pra tentar retomar um fio da meada da história, re-

cuperar a essência do teatro que eles chegaram a praticar, um teatro de grupo,

unido em torno de uma idéia!

VERA

Pra mim, isso tá com cara de desculpa. Só se foi por amor. E, se não foi por

amor, pior! É muito utópico, muito fora do chão, Luís. Hoje não tem mais es-

paço pruma coisa assim.

LUÍS

Tem, sim, claro que tem. A questão é descobrir algum atalho que rompa es-

se circulo vicioso na relação com o público. Não existe mais um espectador pu-

ro. Ele é formado e contaminado pela televisão, cinema, internet, publicidade,

tudo! E o pior é que isso é feito com muito glamour e com muita grana. Difícil

resistir. No passado, eles tinham uma platéia que eles mesmos formaram – es-

tudantes, idealistas e intelectuais. E havia um diálogo, um rumo: o caminho foi

sendo construído a partir disso. Ele quer encontrar uma saída pra retomar essa

troca de idéias, fora do jogo de cartas marcadas em que se transformou a mídia.

VERA

Mas o público não tá interessado. As pessoas vivem massacradas, fazendo

contas e sobrevivendo. A gente tem que se colocar no lugar delas. E, no fim de

semana, têm mais é que se divertir. Tá certo. Parece adolescente.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 230 (Black plate)

Page 27: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

231

LUÍS

Eu sei que é um achado. Nós não podemos jogar isso fora. Você tem que

conhecer a figura. Se fosse um autor morto, você prestaria atenção. Ele tem

razão, as pessoas não enxergam quem está vivo. Pra fazer parte da cultura,

precisa morrer. Ou sumir. Se não, ninguém leva a sério, ninguém respeita.

(lê outro trecho) Olha aqui. “Oração e fé criam o que acontece. Por oração,

entenda-se tudo o que se fala e, por fé, até mesmo a ausência radical de

qualquer tipo de crença.”

VERA

Por que é que ele não publica? Isso é literatura, não é teatro, Luís, claro

que não! Não tem nada a ver, são palavras, Luís, não têm a ver com o

mundo em que a gente vive. Vai lá discutir o projeto com quem vai soltar

a grana. Vão rir na sua cara. Quer saber o que mais? Eu estou interessada é

nessa mulher. Se ele largou tudo por ela, aí, sim. Não tem idealismo, mas

tem uma história de amor. Isso eu até acho bonito. Ele não tem nada escrito

sobre ela?

LUÍS

Que eu saiba, não. Ah, tem uma gaveta em que ele não quer que eu mexa.

Só se estiver lá. Mas pra quê você quer saber dessa mulher? Não interessa a vida

pessoal dele!

VERA

É só o que interessa. Um sujeito que faz uma coisa dessas por amor é

capaz de ter escrito alguma coisa especial. Por que é que você não tenta

descobrir?

LUÍS

Mexer na gaveta? Foi a única coisa que ele proibiu, eu não posso. Não seria

honesto.

VERA

Não seria por quê? Você não está sendo pago para organizar o que ele

escreveu? É uma pesquisa ou não é? Então? Vá à luta!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 231 (Black plate)

Page 28: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

232 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 6

LUÍS

(com o livro Psicodrama nas mãos, lê) “E, quando estiveres perto, eu arranca-

rei teus olhos e colocarei no lugar dos meus, e tu arrancarás meus olhos e colo-

carás no lugar dos teus e, aí, eu te olharei com teus olhos, e tu me olharás com

os meus.” Eu não manjo nada de psicodrama. Você acha legal?

RUBENS

(sorri e não responde) Você sonha, Luís?

LUÍS

Sonho. Quer dizer, em que sentido?

RUBENS

De noite, quando tá dormindo.

LUÍS

Não, é raro, é muito raro. Pelo menos, eu não lembro.

RUBENS

E no que é que você acredita?

LUÍS

(hesita) Na vida... Em tudo... No teatro e também... Em tudo.

RUBENS

Você não tem uma religião, uma fé? Fora do teatro?

LUÍS

Minha família é católica, eu fui batizado, mas... Eu não sou muito ligado.

Eu pensei que você não se importasse com isso.

RUBENS

E política? Você é de algum partido? Já militou por alguma causa?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 232 (Black plate)

Page 29: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

233

LUÍS

Não, não, nunca! Eu não me ligo nessas coisas. Eu acho política um saco,

pra falar a verdade. Político é tudo igual, acho uma perda de tempo votar. Se eu

pudesse, pulava esse pedaço. Eu gosto de teatro, só ele me apaixona, e toma

muito tempo. Não dá pra... Onde é que você quer chegar?

RUBENS

Não sei. Onde é que VOCÊ quer chegar? Eu quero te conhecer melhor.

LUÍS

Mas você já me conhece. Eu sou assim, desse jeito mesmo. Não tem muito

mais que isso. Até que eu gostaria de ser mais profundo, de ter opiniões, idéias,

sei lá. Mas eu sou assim mesmo.

RUBENS

Você acha que pode aprender comigo, se não se abrir de verdade?

LUÍS

Mas eu não estou escondendo nada, eu não estou entendendo.

RUBENS

Você acha que uma relação pode existir com mão única? Que vai conseguir

aprender alguma coisa comigo, se eu também não aprender com você?

LUÍS

Você, comigo? Essa é boa, imagina!

RUBENS

Eu não tenho nenhuma resposta pra nada.

LUÍS

Tem, claro que tem.

RUBENS

Não tenho, por isso é que eu quero saber de você. Como é que você con-

segue viver assim? Colocando fora de você o teu centro? Claro que, pra crescer,

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 233 (Black plate)

Page 30: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

234 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

você pode se apoiar em alguém com mais experiência, faz parte. Mas o rumo,

a longo prazo, vai nascer de você mesmo. A gente sempre acaba atraindo aqui-

lo que deseja.

LUÍS

Será? Eu não sei.

RUBENS

É porque, até agora, você nunca quis nada de verdade.

LUÍS

Eu quero ter uma vida legal, trabalhar e ser feliz. Não sei se é pouco, mas é

isso que eu quero.

RUBENS

Mas esse é um projeto pessoal, apenas. E o resto?

LUÍS

Não sei. O que é que existe mais pra se querer?

RUBENS

O fundamental. O que importa. O que faz a diferença. Um ator de verdade

precisa ter a coragem de mergulhar mais fundo que uma pessoa normal. E

descobrir que, lá no fundo, não existe diferença entre ele e os outros. Ele tem

que encontrar aquele ponto neutro, sábio, que existe no fundo de toda pessoa,

e VER o quanto é uno com toda a humanidade, com tudo o que possa existir,

com o bem e com o mal de cada um e de todos os outros.

LUÍS

Eu não sei. Será que precisa disso tudo? Assim é difícil. Eu não sou santo e

nem quero ser. Eu não sei se eu tenho esse tipo de vocação.

RUBENS

Sem isso, você acaba ficando à mercê das marés, das modas e das

opiniões de todos os outros, daqueles que te cercam. Para uma auto-refe-

rência, só tendo essa coragem. É preciso fazer essa escolha por você mesmo.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 234 (Black plate)

Page 31: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

235

Ninguém pode fazer isso por você. Professor nenhum, guru de nenhum

tipo, ninguém, por mais sábio que seja, pode dar ao outro aquilo que ele

não pretende.

LUÍS

Eu... É claro que eu quero ser um profissional e poder viver da arte que eu

faço. Isso é errado?

RUBENS

Errado não é. Mas o que eu estou dizendo é que existe uma escolha por

fazer. Não tem como escapar disso.Você tem que tomar partido na batalha que

corre invisível e perene, e da qual você faz parte, mesmo sem querer. É uma

batalha entre o Bem e o Mal.

LUÍS

Mas não fica uma coisa maniqueísta, simplista, dividir as coisas assim, entre

bem e mal, claro e escuro? Eu acho que a gente precisa lidar com os dois lados

ao mesmo tempo, e por isso é difícil.

RUBENS

Você tem razão. Precisa, mesmo, lidar com os dois lados ao mesmo tempo.

LUÍS

E então?Aonde é que você quer chegar?

RUBENS

É porque não é tão fácil. Essa escolha se renova. Mesmo quando alguém faz

sucesso porque escolheu o primeiro caminho, ele acaba tentado pelo poder.

Porque aí ele atrai muitas propostas rentáveis, e a economia das relações acaba

reproduzindo aquilo que existe na economia global. O rico fica mais rico, e o

pobre fica mais pobre. Existe uma lógica perversa para a qual não há saída,

quando o sujeito não escolhe. Pra romper o círculo vicioso, talvez o único

caminho seja o sacrifício. Mas, no mundo de hoje, todo mundo aprendeu a

cuidar das suas coisas e a ficar na sua e a ser cínico com tudo e a ir tocando e a

ir livrando sua cara e assim por diante.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 235 (Black plate)

Page 32: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

236 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Mas, desse jeito, é difícil demais. Eu só quero fazer teatro. Eu não sou a

palmatória do mundo.

RUBENS

Aquilo que você projeta em mim tem tudo a ver com isso. Mas você prefe-

re personalizar essa verdade e achar que eu sou assim e ficar me colocando

num pedestal. Mas isso não vai levar a nada. Você tem que olhar pra tua gera-

ção e pro que existe hoje à tua volta. Nas últimas décadas, reduziram tudo ao

filtro da estética. E do sucesso objetivo. O filtro adotado, e que ainda vigora,

com menos força, mas ainda é o mesmo, é o do sucesso material, que é a medi-

da e a prova de que alguma coisa vale a pena. Claro que o sucesso quer dizer

alguma coisa, mas o fracasso também quer. Ficar nessa resposta material da

concreção de um resultado é pouco, muito pouco. Daí o caos espiritual que

rola. Ele veste a máscara da liberdade de criação, mas é uma mentira. Não existe

liberdade sem um compromisso maior que a ambição e o desejo pessoal. E essa

escolha eu não posso fazer por você.

LUÍS

Será que eu entendi? Eu preciso escolher?

RUBENS

Não precisa responder. Aliás, eu acho que você vai ter a vida toda pra pen-

sar. E teus amigos, quando é que eles vêm?

LUÍS

Eles estão viajando, com um espetáculo, por isso eu não marquei ainda.

Mas a coisa tá andando. Eu falei na Secretaria, e eles vão apoiar. Vai ter um

cachê, uma ajuda de custo pra todos, e eu estou preparando o projeto novo.

Leva um tempo.

RUBENS

Projeto? De novo, pra quê?

LUÍS

Claro, o que está aprovado é a pesquisa sobre sua obra e sua vida. É o que

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 236 (Black plate)

Page 33: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

237

nós estamos fazendo, organizando o material escrito. Mas o projeto de mon-

tagem é outra coisa.

RUBENS

Como é que pode? Viver atrelado assim? A cada passo, a cada idéia, ter que

correr atrás de aprovação? Assim você acaba se sujeitando a quem não entende

coisa nenhuma de teatro. Como é que pode?

LUÍS

Não é bem assim. O assessor do Secretário, o Júlio, é um sujeito muito culto

e já foi ator, tá tudo bem. Ele está dando a maior força. Está interessado mesmo.

RUBENS

Isso é uma camisa de força, por isso vocês não conseguem mais pensar. É

pior que um vício!

LUÍS

Mas é o único jeito. Hoje em dia, é tudo assim. O senhor precisa compreen-

der o outro lado. Claro que precisa de um projeto escrito.

RUBENS

(muda de assunto, abrupto) Eu não acredito nessa história de viagem. Teus

amiguinhos não vieram ainda por quê? O que é que eles tão esperando? Sair a

verba?

LUÍS

Não. Quer dizer, claro que eles querem uma definição mais clara do que é

que a gente pretende...

RUBENS

Ah, claro, está tudo muito vago mesmo. Você não disse que vocês eram um

grupo?

LUÍS

E somos. Mas a gente está tentando um comportamento profissional. Eu

quero muito, de verdade, mais que tudo, que esse negócio saia. Mas está difícil!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 237 (Black plate)

Page 34: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

238 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Confia em mim, vai dar tudo certo. É só uma questão de planejamento. Eu vou

marcar uma leitura pra semana que vem, que tal?

RUBENS

Leitura? Que leitura? Leitura de quê? Acho que eu tou velho mesmo, eu

não entendo a vida desse jeito. Sabe como era no meu tempo? Os grupos

tinham um administrador, que ganhava menos que um ator. E olhe lá! UM

administrador. Não existia produtor, captador, nada disso. Hoje, tem esse

monte de gente que você fala: precisa de produtor, captador, assessor de

imprensa... É gente demais. E o pior é ver você, que quer ser ator, mergu-

lhado nesses papéis e pouco se importando com o que eu tenho pra dizer.

LUÍS

Mas é assim que as coisas são. Você não disse que também quer aprender

comigo? Não disse que são dois mundos? Disse, não disse? Então, você está

muito longe de um deles. A gente também precisa ter os pés no chão. Confia

em mim, vai dar tudo certo. (ameaça sair)

RUBENS

Luís, espera.

LUÍS

Que foi, agora?

RUBENS

Você mexeu naquela gaveta? Por que é que ela tá aberta?

LUÍS

Não sei. Que gaveta? Não fui eu. Talvez a faxineira tenha aberto, por

engano. (Rubens vai até a gaveta, desconfiado)

CENA 7

LUÍS

Eu peguei os papéis, e não adiantou. Olha aqui. Tudo em branco.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 238 (Black plate)

Page 35: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

239

VERA

Não é possível. Como tudo em branco?

LUÍS

Ele deve ter desconfiado. Eu tenho certeza que eu vi pastas e mais pastas na

gaveta, cheias de papéis.

VERA

E por que é que você escolheu justo essa?

LUÍS

Só sobrou essa. Eu peguei no susto e só abri depois. Lembro que um dia

eu cheguei e a gaveta estava aberta, eu vi, cheia de papéis, acho que tinha

até manuscritos. E agora não tem mais nada, só umas contas e um monte

de papeis soltos. Só se ele arrumou e jogou tudo fora, de medo de eu pegar.

Se ele descobre, é capaz me matar.

VERA

Por que você não pediu abertamente?

LUÍS

Ele me provocou o tempo todo com uma conversa que me deixou pira-

do. Um papo sobre dois mundos e não sei o que mais. Eu não entendi na-

da do que ele estava falando, mas tive que manter a pose.

VERA

Você não tem remédio, Luís. Por que é que você nunca fala a verdade?

LUÍS

Como não falo? Falo, claro que falo. (hesita) Meu Deus, será que foi de pro-

pósito? Não pode ser. Ele deve ter armado pra mim.

VERA

Imagina, ele não ia fazer uma coisa dessas.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 239 (Black plate)

Page 36: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

240 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Ah! Ele perguntou por que é que vocês ainda não foram lá comigo.

VERA

Você não disse que os meninos estão viajando, como a gente combinou?

LUÍS

Tá vendo, você manda mentir e depois me cobra. Claro que eu disse, mas

não colou. Parece que ele enxerga através da gente.

VERA

É que você é muito trouxa.Você nunca fala a verdade e o pior é que é o rei da

bandeira. Onde já se viu? Custava perguntar se ele não tem uma peça sobre ela?

LUÍS

Mas foi você que me mandou pegar.

VERA

Olha aqui. Um bilhete.Amarelado, deve ser bem antigo. (ela lê) “Desculpa, eu

tentei avisar, mas ele tá desconfiado, não larga do meu pé. Não sei como é que eu

fui cair nessa cilada. Casar com o Fran, Santo Deus. Onde é que eu estava com a

cabeça? Mas eu não vou me separar, eu não posso.” Fran não é o Secretário?

LUÍS

Não sei, pode ser.

VERA

Claro que é,“Fran” de Francisco. Deve ser dela! Será que ela traiu o marido

com ele? O... o ex-amante?

LUÍS

(continua a leitura) “Você adora dar uma de bonzinho. Mas se esquece que

foi você quem me internou.”

VERA

(interrompe) Ah, então, só pode ser dela. Ela não era louca mesmo!?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 240 (Black plate)

Page 37: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

241

LUÍS

Que louca, o quê, espera. Deixa eu acabar. “Você costuma dizer que, quan-

do saí da prisão, não falava coisa com coisa e que estava paranóica com tudo,

até com você. E foi por isso que me internou, que só quis ajudar. Mas desde

quando tomar choque cura alguém? Mas dinheiro ajuda, sim, e pode conser-

tar tudo. Foi a Casa de Repouso que ele arrumou que me ajudou a voltar pros

eixos. E acho que eu aprendi a lição.Agora eu quero conforto, e não quero nun-

ca mais depender de ninguém, é isso que eu quero.”

VERA

Continua!

LUÍS

É só isso, não tem mais nada.

VERA

Procura aí, vê se acha. Deve estar no meio dos papéis.

LUÍS

Não tem nada, Vera, não tá vendo? Tudo em branco. Porque é que você tá

obcecada com essa mulher?

VERA

Que obcecada, o quê! Estou curiosa só. Tenho certeza que deve existir uma

peça.

LUÍS

Duvido. Ele acha que a vida pessoal não tem nada a ver com teatro. Ele não

ia escrever justo sobre isso.

VERA

Como não? Pergunta pra ele.

LUÍS

Imagina, Vera, não tem nada a ver.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 241 (Black plate)

Page 38: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

242 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

Fala que pegou a carta por engano e que ficou curioso. Pergunta sobre ela,

diz que não mostra pra ninguém. Ele já acostumou com você, ele não vai te ne-

gar, eu tenho certeza.

CENA 8

RUBENS

(lê para Luís; revelação) “Manter-se nos limites do possível é respei-

tar as regras cênicas do pequeno drama psicológico embutido em histó-

rias sem grandeza. Só a deposição das máscaras que vestimos por medo

garante a reconquista da verdade e da fé. E é pela entrega que vem a des-

coberta de que nunca tivemos nada a perder. Quem se assiste descobre

que, além de ator, é co-autor da trama.” (pára de ler) E aí, que é que vo-

cê acha?

LUÍS

No palco ou na vida?

RUBENS

Nos dois. Claro que nos dois. Na vida do palco, e fora também. Não é tão

difícil de entender.

LUÍS

Como se cada um fosse um personagem, e não uma pessoa? Mas isso

embaralha tudo. Desse jeito, você não sabe mais onde começa o palco e on-

de começa a vida. Periga enlouquecer, não periga? Misturar tudo?

RUBENS

Quem tem vocação, o ator, o bom ator, tem que lidar com isso. Ele per-

cebe que até na vida as coisas se misturam. Representar é fingir, e o ator

descobre que, quando finge, existe um fundo de verdade, que até a menti-

ra acaba virando verdade. O palco é contíguo a esse espaço indefinido, a es-

se não saber quem se é, a essa coisa que se chama loucura.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 242 (Black plate)

Page 39: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

243

LUÍS

No que eu li, não tinha nada sobre isso. Você não tem alguma peça, ou al-

guma coisa escrita...?

RUBENS

Por que é que você tá perguntando?

LUÍS

Porque faz falta. Eu estou organizando o material, e parece que falta uma

peça do quebra-cabeça. Tá tudo redondo, quer dizer, quase. Tá fazendo falta,

sim, alguma coisa, não sei o que é.

RUBENS

Você mexeu na gaveta, Luís? (silêncio) Mexeu, não mexeu?

LUÍS

(tenta fingir) Eu... ?

RUBENS

(conformado) Mexeu.

LUÍS

Desculpa, não foi por querer. É que tinha uma página solta, de uma carta,

caída, que estava no meio dos papéis...

RUBENS

Que página o quê, Luís? Eu tirei tudo da gaveta.

LUÍS

Então, deve ter caído.

RUBENS

Só deixei uma única folha, pra te testar.

LUÍS

Desculpa, eu não sei o que dizer.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 243 (Black plate)

Page 40: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

244 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Eu tinha esperança que você ia saber resistir, mas não. Tudo bem. No fun-

do, eu sabia. Aquilo que se fala vai fabricando o futuro. Quando eu disse pra

você não mexer, eu selei minha sorte. Como se fosse uma peça. A famosa pre-

paração. Você diz – não faça isso. É porque “isso”, mais adiante, vai acontecer,

ou pode acontecer.

LUÍS

Então, eu não tive culpa. Se foi de propósito...

RUBENS

Não tem importância se foi de propósito ou não. Você podia ter respei-

tado minha vontade. A página caiu na hora da arrumação, e eu resolvi cor-

rer o risco.

LUÍS

Posso... perguntar uma coisa? (o outro acede) Eu estou louco pra saber. Ela

ainda está viva ou...?

CENA 9

LILINHA

Espera, gente, eu quero contar pra vocês! Eu estava no meio da sessão e aí

eu vi o Luís, e ele me apontou um senhor que parecia um anjo.

RODOLFO

O quê? O Luís foi lá na sessão com você?

LILINHA

Não, Rodolfo, eu vi dentro da minha cabeça. Tinha aquele senhor e, na ho-

ra, eu não consegui entender o que é que ele estava querendo. Mas agora eu sei,

era o João Rubens, eu tenho certeza. Você não tá vendo, Vera? Foi um sinal.

VERA

Pelo amor de Deus, Lilinha, de novo esse papo, não!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 244 (Black plate)

Page 41: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

245

LILINHA

(infantil) Que papo? Mais respeito. Pode tirar o cavalo da chuva, que eu não

vou abrir mão da minha fé.

VERA

Não mistura as coisas, Lilinha. Desde que você se enfiou nessa seita, não fa-

la mais coisa com coisa.

LILINHA

Não é seita, Vera, não é. Não sei por que você teima.

VERA

(corta de novo) É o quê, então?

LILINHA

Você fala de um jeito tão... tão pejorativo. Pode ser seita, mas não desse jei-

to que você fala. Não é uma loucura qualquer, é o “Dai-me”, até o Ney já fre-

qüentou.

VERA

Que Ney?

RODOLFO

Latorraca.

LILINHA

Matogrosso.

RODOLFO

Desculpa, eu pensei...

LILINHA

Não sei por que vocês teimam em não querer ir lá comigo, tirar a prova.

RODOLFO

Eu? Já basta ter sido coroinha, Deus me livre!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 245 (Black plate)

Page 42: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

246 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Porque, que abre a cabeça da gente, abre mesmo.

VERA

Só faltava você embarcar na canoa do Luís. A lei tá aprovada, e a gente tem

uma reunião, essa semana, vão dar a resposta. Como é que nós podemos che-

gar lá e falar que mudamos de idéia?

LILINHA

Vera, eu já te falei, você tem que ser realista. Quem te garante que eles

vão soltar a grana? Não está vendo a Argentina? O que nós estamos viven-

do é o fim dos tempos, não adianta mentir. Não adianta tentar fingir que

não é com você. Está tudo um caos, e você fica tentando fazer as coisas di-

reitinho, pra quê? Está tudo de pernas pro ar, o fim dos tempos está aí, es-

cuta o que eu tou te dizendo.

VERA

Não começa. Eu não quero discutir o fim dos tempos com você, tá certo?

Eu sou sua sócia. Aqui, pelo menos, tenta ser objetiva.

RODOLFO

Por enquanto, enquanto o mundo não acaba, nós temos que pagar as con-

tas, não temos? Enquanto não acaba de vez?

LILINHA

A coisa que eu mais queria era encontrar alguém assim como o João Ru-

bens, que tivesse uma visão lúcida de tudo. Eu não posso jogar fora essa chan-

ce. Na escola, eu sempre fui apaixonada pelos textos dele.

VERA

Ninguém mais sabe que ele existe!

LILINHA

Mas está tudo lá. Ele escreveu sobre tudo o que está rolando. Ele era adian-

tado demais pra época, por isso ninguém entendeu.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 246 (Black plate)

Page 43: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

247

RODOLFO

Lilinha, não leva a mal, mas presta atenção. A gente tem que fechar logo es-

sa porra de contrato, senão não vai ter peça nenhuma. Porque eu vou preso, tá

me entendendo? E a mulherada não quer saber de conversa, elas só querem

saber do dinheiro.

LILINHA

Você tá empregado, fazendo novela, tem mais é que pagar mesmo.

RODOLFO

Grande merda, a novela tá no fim. E, com o salário que eu ganho, você acha

que dá pra manter as duas?

LILINHA

Quem manda sair engravidando a torto e a direito, por aí?

RODOLFO

Aaah, é por isso que você nunca quis sair comigo?

LILINHA

Ah, vai te catar, Rodolfo. Eu não tenho nada a ver com isso. Eu quero fazer

teatro de verdade. Tou louca pra conhecer o homem. Eu tenho certeza. Ele veio

pra mudar nossas vidas.

RODOLFO

Vera, eu só topei porque você garantiu que desta vez ninguém ia pirar. E

agora esses dois vêm com porra-louquice. Qual é?

VERA

Eu sei. Merda. Que saco, Lilinha! Você é que tem que me ajudar, Rodolfo,

porque eu não tenho mais paciência.

RODOLFO

Cadê o Luís, por que é que ele não veio? Com essa maluca eu não quero

papo, eu vou falar prele parar com enrolação.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 247 (Black plate)

Page 44: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

248 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

CENA 10

RUBENS

(lê para o outro) “A arte apenas profissional circunscreve e domestica o

artista e, na verdade, o castra naquilo que ele tem de mais autenticamente

criador. O sofrimento do ator advém do atrito entre essência e personali-

dade e das contradições que é obrigado a suportar. Como na prostituição,

a arte exercida como profissão vincula algo de sagrado e potencialmente

transcendente com comércio. O ator comercia com a alma e, se não vende

seu corpo, vende sua face.”

LUÍS

Será que eu entendi? Prostituição? Você compara o ator a uma...?

RUBENS

O ator tem um grande poder – a palavra. A arte tem! A publicidade não usa

esse poder para vender, vender e vender cada vez mais!?

LUÍS

Faz parte. A gente tem que sobreviver.

RUBENS

Claro que tem. Mas, enquanto isso, você acaba esquecendo o poder que

tem nas mãos. São os atores que emprestam suas vozes pra comunicar as men-

sagens dos patrocinadores, dos políticos... O ator é o ponta de lança desse sis-

tema, você não pode esquecer disso. Até nas novelas eles não enfiam men-

sagens no enredo, a torto e a direito, sem respeito nenhum pelo espectador? É

uma espécie de prostituição, sim, senhor!

LUÍS

Eu não sei. Só sei que preciso confessar uma coisa. Às vezes, eu saio daqui

piradinho. Você fala do palco como se fosse uma coisa sagrada e como se o

teatro fosse uma religião. (hesita)

RUBENS

E é. Ou poderia ser.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 248 (Black plate)

Page 45: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

249

LUIS

Mas, se fosse, não teria como viver no mundo.

RUBENS

É. O problema é esse.

LUÍS

(muda de assunto) Você deu uma olhada no projeto da peça?

RUBENS

Mais ou menos. Quer dizer, dei, mas não entendi nada.

LUÍS

Não entendeu o quê?

RUBENS

Vai ser uma cooperativa ou não?

LUÍS

Vai, claro que vai. É mais fácil, por causa da burocracia.

RUBENS

Mas os salários que você colocou não batem.

LUÍS

Por quê? Você achou pouco o que eu pus pra você?

RUBENS

Ao contrário, é porque cada um vai ganhar uma coisa. Eu não entendi.

Numa cooperativa, todos não ganham igual?

LUÍS

Nem sempre, Rubens. Não é bem assim. Claro que a Vera e eu, que

cuidamos da produção, merecemos um pró-labore maior, e você, como autor,

também.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 249 (Black plate)

Page 46: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

250 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Claro. Só que, no plano da inspiração, não existe “meu” e “teu”. Não dá pra

saber quem merece ganhar mais. Essa divisão vai contaminar a atitude das pes-

soas. Elas vão achar que não têm responsabilidade igual e nem obrigação de

assumir que a obra em que estão metidas é também delas, uma propriedade

coletiva, comum.

LUÍS

Não mistura as coisas, Rubens, deixa comigo. Você andou afastado e não tá

por dentro. Uma coisa é a criação, do jeito que você tá falando, tá legal. Mas a

parte material é diferente. Ah, eu tinha esquecido, você tem uma firma?

RUBENS

Eu? Firma? Como, firma?

LUÍS

Por causa da lei. Facilita, se você puder dar nota fiscal.

RUBENS

Você tá brincando. Eu não sou uma firma, eu sou um autor. O que é que

vocês querem de mim, Santo Deus? Agora eu vou virar uma firma? Como nota

fiscal? Pra quê?

LUÍS

Calma, por causa da lei. É pra prestação de contas, depois... (hesita) Tudo

bem, não liga pro que eu disse. Esquece.

RUBENS

Não, explica, eu quero saber. Se eu tenho que virar uma firma, eu quero saber.

LUÍS

Todo mundo, hoje em dia, abre uma firma. Todo mundo. É mais fácil. Se

você abre, te ajuda a pagar menos imposto.

RUBENS

Menos imposto, como? Que imposto?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 250 (Black plate)

Page 47: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

251

LUÍS

De renda, imposto de renda! Se você guarda as notas das despesas, das com-

pras todas, tudo pode entrar como despesa de produção. Você economiza e

também ajuda o trabalho que a contadora vai ter.

RUBENS

Que contadora? Na equipe tem uma contadora? Na equipe tem também

uma contadora? Vocês estão inteiramente loucos? O que é que é isso, Santo

Deus? Você tem coragem de me falar uma coisa dessas? Quanto tempo vocês

perdem com essa loucura, com essa burocracia sem fim? É impraticável, é me-

lhor parar com tudo. Eu não quero mais. Não quero mais participar dessa coisa

lastimável.

LUÍS

Mas o que é que você quer? Você vive numa cidade, num país, tem que

pagar imposto! E se fizer sucesso, vai pagar mais. É com os impostos que o

governo teoricamente cuida do povo e da cidade e até dos miseráveis que te

comovem tanto. Claro que eles roubam e tem corrupção. Mas você quer fazer

de conta que não vive nesse mundo, Rubens. Qual é? Esquece, eu não falei por

mal. Esquece. Eu prometo que vou te deixar fora disso. Desculpa!

CENA 11

RODOLFO

Espera aí, “péra aí”. Dançou, como? Como, dançou?

LILINHA

Eu não disse que a Argentina podia atrapalhar? Bem que eu tive uma

intuição.

RODOLFO

Dá um tempo, Lilinha.

VERA

É isso mesmo que vocês ouviram. Me chamaram com urgência, me servi-

ram um cafezinho, falaram e falaram, e pronto. Dançou. Por enquanto, pelo

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 251 (Black plate)

Page 48: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

252 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

menos. Eles têm razão. Acontece que, com essa coisa toda do dólar e essa crise,

estão com medo de investir e acabar ficando no vermelho. Pediram pra

esperar até o fim do ano.

RODOLFO

(grande escândalo) Até o fim do ano? Mas eu não entendo. Não estava tudo

certo? Eles não tinham dado a palavra?

VERA

É, mas não estava assinado.

RODOLFO

Mas quem garante que no fim do ano...?

VERA

Ninguém, ninguém garante. Mas eles disseram que, se conseguirem

equilibrar as contas, talvez seja possível, mas aí vai ter que ficar pro ano que

vem.

RODOLFO

Mas que merda, Vera, não é possível. De novo? Sempre aparece uma bosta

dessas no caminho? Essa crise parece que não acaba. Quando não é uma coisa, é

outra.

VERA

Desculpa, eu tenho hora no analista e não posso demorar. Achei melhor

avisar logo, assim, cada um vai cuidar da sua vida. Eu não consegui encontrar

o Luís, ele que me desculpe. Um de vocês podia dar um toque nele.

LILINHA

Não, Vera, espera. Mas como? Ainda tem o outro projeto. Não é pra hoje a

reunião na casa do João Rubens?

VERA

Ah, meu Deus, pra quê? Não vai dar em nada, Lilinha.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 252 (Black plate)

Page 49: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

253

LILINHA

Agora é que nós não podemos dar o cano, de jeito nenhum. Rodolfo, vocês

prometeram que iam. O Luís garantiu que a Secretaria...

VERA

O Luís mente demais.

LILINHA

(apela) Rodolfo!

RODOLFO

Vera, quem sabe? Não custa dar um pulo, ainda mais agora a gente ficou na

mão. Pode ser que quebre nosso galho.

VERA

Você acha que a Secretaria tem dinheiro pra torrar desse jeito? O Luís fan-

tasia demais. Aquele menino que ele namora usa a Secretaria pra segurar o

Luís. Deve ser coisa dele, não deve ter nada a ver com o Secretário.

LILINHA

Vera, não fala uma coisa dessas. O Júlio é apaixonado pelo Luís, e daí? Claro

que ele ajuda. Por isso mesmo, pode dar certo. Não custa, Vera, vamos lá. Nós

podemos fazer agora o projeto do João Rubens e, no fim do ano, se Deus qui-

ser, sai o patrocínio pra outra peça, e pronto.Você vai ver. Combinado? (a outra

vai saindo) É hoje à noite, hein? Vocês estão com o endereço?

CENA 12

RUBENS

Lilinha?

LILINHA

Como é que o senhor adivinhou?

RUBENS

Você. Pode me chamar de você.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 253 (Black plate)

Page 50: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

254 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Eu tava louca pra vir aqui.

RUBENS

(dirige-se à outra) E você é a Vera.

VERA

Eu mesma.

RUBENS

E ele, o galã, Rodolfo.

RODOLFO

Que galã? Imagina. Quem me dera. Só me dão papel de amigo do galã.

LILINHA

Que aura o senhor tem.

RUBENS

Aura?

VERA

A Lilinha acha que é vidente.

LILINHA

Acho, não, eu sou. Vocês não estão vendo? É incrível! De uma luz, de uma

limpeza rara.

RUBENS

Vamos sentar. Luís, pega as cadeiras da cozinha. Desculpa, aqui é pequeno,

vocês estão vendo. O Luís me disse que vocês são um grupo.

VERA

Bom, nem sei o que nós somos. Nós somos amigos e íamos fazer um tra-

balho, que agora foi adiado.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 254 (Black plate)

Page 51: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

255

RUBENS

Foi adiado, como, Luís?

LUÍS

Adiado, o quê? (custa a entender) Não, ela tá falando de outra coisa.

RUBENS

(olhando pro Luís) Quer dizer que não são bem um grupo?

LILINHA

Somos, sim, a Vera é que tem essa mania. Ela é crítica demais.

VERA

Como grupo, Lilinha? Quantos espetáculos a gente já fez? Meio.

LILINHA

Não interessa. Vamos fazer muitos ainda.

RODOLFO

Faz tempo que a gente estava pra marcar, mas não deu pra gente vir antes.

O Luís não teve culpa. Ele tem falado muito do senhor. E que tem um texto seu,

maravilhoso, aliás, mais de um.

VERA

Mas eu acho pouco provável que a Secretaria dê o dinheiro assim, a fundo

perdido.

LUÍS

Mas não é a fundo perdido. Eles já concordaram.

VERA

Concordaram quando, Luís? Deixa de ser mentiroso.

LUÍS

Nós só temos que dar umas oficinas, como forma de pagamento.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 255 (Black plate)

Page 52: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

256 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

VERA

Oficinas, Luís, de novo? Até receber, a gente já vai estar duro, e vamos ter o

mesmo problema: “vão” montar de que jeito? Só a verba pra mídia já é uma

pequena fortuna. E eles não bancam montagens, que eu saiba. Eu tou fora. Se

for um projeto alternativo, eu tou fora. Eu cansei. Eu não quero saber de nada

alternativo.

LUÍS

Mas você é uma atriz alternativa.

VERA

Alternativa, vírgula.

LUÍS

Ninguém sabe quem você é.

VERA

Sou uma atriz com oito anos de carreira, com muito orgulho. Todo mundo

me conhece.

LILINHA

Gente, não vamos brigar por causa de bobagem, por favor. Vera, dá um

tempo. Agora responde uma coisa, Luís. Vai ter verba pra montagem, mesmo?

Fala a verdade.

LUÍS

Meu Deus, eu já falei, mas parece que ninguém presta atenção. As oficinas

são só pra facilitar os ensaios, uma ajuda a mais, que o Júlio arrumou. Mas

depois vai ter uma verba de patrocínio, eu já disse.

VERA

Que verba? De onde vão tirar essa verba?

LUÍS

Verba, sim, senhora. Eu já estou com o projeto quase todo formatado. O

Júlio tá me ajudando. Vai sair como um projeto especial. O Secretário está

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 256 (Black plate)

Page 53: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

257

empenhado. Eu já cataloguei praticamente todo o material aqui, do Rubens, e

eles têm interesse em que se monte uma das peças pra coincidir com o lança-

mento dos arquivos, que vão ficar lá, à disposição, na biblioteca da Secretaria.

Que foi, Vera, por que essa cara? Você não pode chegar e querer jogar tudo pro

alto. Qual é? O teu projeto é que acabou não saindo. Foi ou não foi?

LILINHA

Calma, gente.

VERA

Pois é, eu não comando a economia global, meu caro. O que é que eu posso

fazer, se justo agora a Argentina resolve falir?

LILINHA

Vera, o que interessa é que tem essa possibilidade. O Luís não ia ser louco

de inventar. Não vamos perder tempo discutindo. Eu estou curiosa, eu quero

saber do texto do João, que é o que interessa. (mais baixo, só pro Luís) Luís,

conta, quem sabe a Vera acalma?

LUÍS

Vera, olha isso aqui, nas minhas mãos. Você vai pirar. É um texto ineditís-

simo do João, que ele acabou de escrever pra nós quatro. Tá legal assim, Vera?

VERA

Como, pra nós? É novo mesmo?

LUÍS

E é sobre tudo o que a gente tá querendo falar. Tudo que está aí, essa reali-

dade pirante. Atual, atualíssimo. É ator, teatro, grupo, tudo isso. E como essa

questão da globalização afetou cada um. O João acha que existe um véu, um

muro que impede que a gente enxergue o nó da questão, o essencial. Esse bom-

bardeio de informações que não deixa espaço pra mais nada.

VERA

(irônica) Ah, que maravilha, quero só ver.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 257 (Black plate)

Page 54: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

258 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Vera, assim não é possível.

VERA

Eu estou curiosa.

RUBENS

Calma, Luís, não tem problema.

VERA

Eu só estranhei o tema. O Luís disse que o senhor nem computador tem e

faz tempo que vive aqui, à margem. E como é que o senhor se mete agora a falar

sobre o que não sabe?

RUBENS

Por isso mesmo. Porque estou à margem, é que eu acho que fui capaz de

enxergar uma luz. Às vezes, só quem está à margem consegue enxergar o que

está na cara e que ninguém vê. Eu podia estar vivendo no mato e, por isso

mesmo, enxergar a podridão da cidade com mais clareza do que qualquer

um. A senhora precisa ter mais respeito, dona Vera, não só por mim, mas

pelos seus colegas.

VERA

Quem o senhor pensa que é, pra querer me ensinar?

LILINHA

Vera, pára, pelo amor de Deus. Que é isso?

RODOLFO

Segura, Vera, dá um tempo.

LILINHA

Seu Rubens, desculpa, a Vera é desse jeito, não leva a mal.

Todos falam ao mesmo tempo e a coisa vira uma balbúrdia.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:56 PM Page 258 (Black plate)

Page 55: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

259

LUÍS

Ela ainda deve estar vendo na frente as cifras com que ela anda lidando.

VERA

Claro, vocês sempre largam tudo nas minhas costas.

RUBENS

(dá um esporro) Chega! Aqui não é hora nem lugar pra ficar discutindo

desse jeito. (silêncio, uma pausa) Que coisa mais árida, chata. Pra quê fazer

teatro, se for assim? (pequena pausa) O que eu não entendo é como é que con-

seguiram convencer o mundo de que não há como lutar e nem contra o quê

lutar! (olha pra cada um deles) Tá todo mundo ilhado, engasgado com essa

balela de que essa é a única forma de vida possível... E ninguém mais se comu-

nica, as pessoas só sabem fazer negócios.

VERA

Que conversa mais antiga. E o que é que o senhor pretende? Uma revolução

comunista, por acaso? A esta altura?

RUBENS

Quem sabe? Será que não existe outro jeito pra se viver? Até o comunismo,

apesar de tudo, me parece mais cristão do que isso que está aí. Um dia, no

futuro, ainda vão falar dessa paralisia diante dessa realidade que parece ter

escapado ao nosso controle. E vão rir da nossa estupidez, porque é claro que

existe uma saída. Mas é preciso começar a procurar.

VERA

(cínica) E o senhor não tem computador, por quê?

RUBENS

Quem disse pra senhora que eu não tenho?

VERA

Tem?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 259 (Black plate)

Page 56: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

260 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

O Luís me fez o favor de comprar, com a primeira parcela da Secretaria.

VERA

E onde é que ele está?

RUBENS

No quarto, pode ir lá ver. É muito útil. Eu estou fascinado, confesso. Mas

não existe o que possa substituir aquilo que você é capaz de fazer recolhido

com seus botões, de madrugada, em silêncio, numa hora em que estão todos

dormindo. Computador nenhum é capaz de fazer você pensar com originali-

dade e resolver as questões que realmente importam. É preciso encontrar den-

tro de nós por onde caminhar, e essa visão, essa inspiração não está arquivada

em parte alguma do mundo. Ao contrário do que a senhora possa pensar, eu

não tenho preconceito com nada.

VERA

Desculpa, eu... Ando meio estressada e... Me desculpa, mesmo.

LILINHA

Sabe o que eu acho? Eu saquei esse lance no meio de uma sessão... (sem jeito

por causa do Rubens) Quer dizer...

VERA

Lilinha, não.

RUBENS

(divertido) A senhora é espírita ou o quê?

LILINHA

Não, era uma sessão do “Dai-me”, o senhor sabe o que é?

RUBENS

Ouvi falar.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 260 (Black plate)

Page 57: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

261

LILINHA

Eu preciso levar o senhor pra ver. É lindo, é lindo. É como se fosse uma

internet na cabeça da gente. Como se fosse a internet dos índios e que eles

deixaram pra nós. O Ayahuasca é um chá que a gente prepara, e ele abre todos

os canais. Com o ritual, ele consegue conectar a gente com tudo, com o astral,

com tudo o que existe. Comparado com ele, essa internet do mundo parece

um circo sem pão. Ou um circo pros que têm pão. Porque essa coisa, do jeito

que está, parece que não tem mais fim. Eu já disse pra Vera que é como se fosse

o fim do mundo, e o anticristo tivesse tomado conta, e ela fica me gozando. Eu

acho que ele está aí, e é como se ele não tivesse cara. Porque todo mundo pen-

sou que era o Hitler, com aquela coisa do nazismo, e depois que era o Sadam

Hussein, coitado. Tomou uma sova dos americanos. O anticristo mesmo eu

acho que é essa coisa que assumiu as rédeas do mundo com a economia. É ou

não é? (olha pra Rubens) O senhor entende o que eu...?

RUBENS

Entendo muito bem.

RODOLFO

Acho que anticristo mesmo são minhas mulheres, que dizem que acredi-

tam em Deus, mas só pensam em dinheiro.

LILINHA

Ah, Rodolfo, você me cortou.

RUBENS

Quantas mulheres o senhor tem?

LILINHA

Muitas.

RODOLFO

Duas. Com filhos, duas. E, depois que inventaram esse negócio de “pensão”,

o homem divorciado virou escravo. E até que a Lilinha tem razão, com essa

história de anticristo. Os bancos enlouquecem o mundo, com esse poder que

eles têm, devem ser eles, mesmo. Não vê os juros? E os economistas também

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 261 (Black plate)

Page 58: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

262 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

devem estar na jogada. E a gente fica sem saída. Eu estourei todos os meus

cartões pra pagar as contas, mas a culpa é deles, que não dão colher de chá

prum pai de família com três filhos.

LILINHA

Você, pai de família?

RODOLFO

Posso não ser de família, mas sou pai. Eles pegam pesado, e eu jogo sujo

também, fazer o quê? Não vou passar a pão e água, enquanto eles faturam com

a minha desgraça. Pra pagar, só se eu ganhar na loteria. Porque é uma bola de

neve, minha dívida parece a do Brasil, só faz crescer.

LILINHA

Tá bom, Rodolfo, chega.

LUÍS

Vera, uma surpresa que eu tinha preparado pra você, e nem sei se você

merece. Está aqui aquela peça que você queria ler. Está aqui.

A luz muda e todos os atores congelam, menos Lilinha, que vai até Luís e pega

o texto que ele tem nas mãos e o entrega a Vera, enquanto diz o texto que se segue.

CENA 13

LILINHA

(lê um fragmento do que Rubens escreveu) “Desmascaramento. Todos têm,

oculto em si, o ator. Médico e monstro, para ser, o ator NÃO É. Não é, para que

a personagem seja e, em cima dessa contradição, toda a arte teatral se proces-

sa. Quando o ator trabalha apenas com a personalidade, acaba por desprezar

os veios mais profundos do tesouro que a arte pode proporcionar. Pois o teatro

é arte alquímica, que oferece ao adepto a oportunidade de uma transformação

cabal...” Tá vendo, Rodolfo? Televisão não é a mesma coisa, porque você tem

que aparecer e brilhar. Teatro é diferente. É como no “Dai-me”. Lá, de tanto

repetir o hinário, eu acabo me sentindo fora de mim, de um jeito parecido com

o palco.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 262 (Black plate)

Page 59: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

263

LUÍS

Dá um tempo, Lilinha. E aí, Vera, leu a peça? O que é que você achou? Ele

escreveu pra você.

VERA

Claro que não foi pra mim.

RODOLFO

(preocupado) Mas não vai dar bode? Você disse que o meu papel é o do

Secretário, mas ele aparece como um belo dum filho-da-puta! Quando ele

descobrir...

LUÍS

Bode nenhum.

RODOLFO

Mas ele já leu? Ele não vai querer patrocinar uma peça que...

LUÍS

Ele não vai ler. Ele não tem tempo pra ler.

LILINHA

Mas não é a vida deles, Rodolfo, é só uma peça, é ficção. Ninguém vai perce-

ber. Pra quê que ele ia ligar?

VERA

É, legal. Mas uma coisa eu não entendi. Você não disse que ela era atriz? Na

história, ela não é.

LUÍS

Como não? Faz teatro de estudantes. Na vida também ela abriu mão do

teatro profissional. Só fez no começo, por paixão.

VERA

Então, é tudo um pouco idealizado demais, eu acho.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 263 (Black plate)

Page 60: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

264 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É porque ela encarna o ideal deles, por isso. Eles conseguiram viver uma

utopia, era um tempo mais feliz. Existia um projeto, uma esperança. Não era só

teatro, não era só mais uma peça, nada disso. O que norteava tudo era a perspec-

tiva de uma mudança radical, política, que não veio. Eles se amaram enquanto

faziam peças em sindicatos e faculdades, pela cidade, sempre pregando.

VERA

Deixa eu te dizer uma coisa, Luís.Você não percebe quando mente? Me diz.

LUÍS

Por que isso agora?

VERA

Porque já é doença. Você não disse que era uma peça sobre ela?

LUÍS

Desculpa, é que, pra ele, não tem importância a história pessoal. Ele

preferiu colocar o amor deles dessa forma, essa paixão em ação, compartilha-

da, na militância artística e política. Foi por isso que ele deu a peça pra gente.

Ele acha que pode ajudar a gente a se encontrar. Porque o que forma um grupo

é uma crença comum, e nós não temos nenhuma.

VERA

(sem entender) Como não?

LILINHA

Tá vendo, Vera, eu não falei?

VERA

(indignada) Falou o quê? Aqui, cada um pensa tão diferente, que só for-

mando quatro grupos. Um pra cada um.

RODOLFO

Mas teatro não é igreja, nem partido, desculpa. Nós não estamos aqui

reunidos, e tudo? O que é que ele quer?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 264 (Black plate)

Page 61: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

265

LUÍS

Um grupo não é um bando de gente reunida pra fazer uma peça. Não é.

RODOLFO

É difícil, hoje em dia, o que é que ele tá pensando? A gente não tem nem

onde ficar, nem sede, nem teatro, nem porra nenhuma. Claro que o jeito é se

reunir de vez em quando, conforme der.

LUÍS

Mas, pra fazer, a gente precisa discutir essa questão. Pra ele, sem um proje-

to maior que a peça, não existe um grupo.

RODOLFO

Mas nós já temos dois projetos. Não tem o outro pro fim do ano? Então...

LUÍS

Mas é pouco, Rodolfo, não é isso.

LILINHA

Pouco por quê? O Rodolfo tem razão, no tempo deles, era diferente. Não

dá pra fazer igual.

LUÍS

Lilinha, ninguém tá querendo fazer igual. É só uma questão de compreen-

são do sentido de grupo, como aparece na peça.

VERA

Pelo que eu entendi, eles se sentiam o centro do mundo e achavam que a

História dependia deles. E acabaram acreditando que eram heróis. Mas o que

eles faziam era terrorismo. E muitos morreram por causa disso.

LUÍS

Que terrorismo, o quê. Era uma luta política.

RODOLFO

Eu não quero nem saber. O que interessa é o patrocínio. Quando é que sai?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 265 (Black plate)

Page 62: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

266 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Tá tudo certo, só falta a gente ir lá, assinar.

RODOLFO

Aí, garoto! (todos se abraçam e comemoram)

LUÍS

O único problema é que eles querem que a gente leve o Rubens no dia da

assinatura do contrato.

LILINHA

E daí?

LUÍS

Ele disse que não vai, de jeito nenhum.

VERA

Como não?

LUÍS

E o Secretário faz questão, a gente vai ter que dar um jeito.

RODOLFO

A Lilinha pode falar com ele. Ele gostou dela, deu pra ver.

LUÍS

É, mas ele é teimoso. E o pior é que eu acho que o Secretário está mesmo

querendo humilhar ele.

VERA

Como, humilhar? Ele não vai bancar tudo? Claro que ele tem direito de fa-

turar em cima, por que não? Não tem cabimento. Ele é a estrela do evento e

não quer aparecer? Tenha paciência.

LILINHA

Deixa comigo, eu falo com ele. Ele vai aceitar, sim. Ele não diz que o “não”

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 266 (Black plate)

Page 63: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

267

e o “sim” são mais próximos do que parecem? Deixa comigo.

CENA 14

RUBENS

Pra quê essa roupa nova, menina? Eu já disse que eu vou, não disse? Vou

com as velhas, mesmo, não quero enganar ninguém.

LILINHA

Mas é uma solenidade. O que custa? Olha aqui, essa camisa, que linda!

(mostra uma camisa cor de maravilha)

RUBENS

Essa, como? Eu não posso usar uma coisa dessas.

LILINHA

Não tem nada de mais. Prova, não discute, prova.

RUBENS

Vocês estão querendo me fantasiar de quê? (enquanto se troca) Ah, não, gra-

vata, de jeito nenhum.

VERA

O senhor não vai ficar com ela pra sempre.

LILINHA

Seu Rubens, não custa. É a assinatura do contrato, e os jornais vão estar lá.

RUBENS

Jornais, pra quê?

VERA

É o preço, homem, o que é que o senhor quer? Eles querem bancar, eles vão

mesmo bancar. Custa, um sacrifício?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 267 (Black plate)

Page 64: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

268 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

Eu não vou ficar confortável. Parece uma palhaçada.

LILINHA

Seu Rubens, foi uma sorte conseguir. Faz parte cumprir o ritual. Claro que

é política, mas faz parte.

RUBENS

Há mais de quarenta anos que eu não uso uma gravata. (começa a dar o nó)

Quando eu comecei, eu era certinho, eu tinha até esquecido. Até destoava dos

outros, sempre de paletó e gravata. Olha só, que coisa sem pé nem cabeça. (no

espelho) Vão achar que eu enlouqueci. Esse homem aí não sou eu. (começa a

tirar tudo)

VERA

Eu desisto.

RUBENS

Eu odeio provar roupa, me tira do eixo. Eu só resolvi fazer teatro pra poder

não ligar pra coisa nenhuma, muito menos pra roupa. Na hora, eu visto qual-

quer uma, pode deixar.

LILINHA

A gente não é o que veste, mas faz parte, seu Rubens.

RUBENS

Eu sei que é problema meu, mas eu odeio me apresentar como um “autor”.

Porque eu não sou. Quando eu escrevo, eu não sou autor, eu não sou nada.

Nada de nada. Era isso que eu queria. Queria era uma roupa de nada.

LILINHA

Então, que tal essa preta? Vai parecer uma rotunda, não é nada.

RUBENS

O artista só cria nu. Não que seja sem roupas, mas a atitude é de uma

nudez... Assim, de alma. Ele não pode se preocupar com nada.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 268 (Black plate)

Page 65: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

269

LILINHA

Mas ele tem que vender seu peixe. Na hora de vender, é outra coisa.

VERA

Eu já vou indo. Não tem o menor cabimento. Eu estou convencida de que

o senhor é completamente louco. A gente não pode perder mais tempo. Deixa

ele ir nu, se ele quiser. A reunião é daqui a quinze minutos.

RUBENS

Como, quinze minutos?

LILINHA

O tempo passou e a gente não se deu conta. Vamos logo, Seu Rubens.

VERA

Eu vou indo, vocês vão chegar atrasados. (sai)

LILINHA

Por favor, seu Rubens, vamos logo. Ela vai jogar isso na nossa cara o resto

da vida. É tão importante a gente conseguir. Por favor.

RUBENS

Pelo menos, sem gravata. Pronto, eu estou pronto. Tá bom assim? Eu sou

isso, assim mesmo, desse jeito, incompleto. E já me conformei com isso.

CENA 15

RODOLFO

Que foi engraçado, foi. O Secretário fazendo o discurso e falando maravi-

lhas, mas ele fingindo que não era com ele, nem olhou pra cara do outro.

LILINHA

Como se não estivesse entendendo nada. Como se fosse gagá. (ri)

RODOLFO

Eu acho uma sacanagem o que ele faz com o Secretário. Ele é até simpático.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 269 (Black plate)

Page 66: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

270 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

Não sei como ele tem coragem. Aceita o dinheiro do outro e depois xinga o cara

no palco.

LUÍS

Não é o Secretário, Santo Deus! É o personagem, que sabe se arrumar com

o poder, só isso.

RODOLFO

Mas ele puxa a brasa pra sardinha do escritor, o tempo todo.

LILINHA

Se eles não forem diferentes, fica sem colorido. Tem que ter uma con-

tradição.

RODOLFO

Claro que tinha que perder ela pro Secretário. A mulher presa, ele ficou na

dele, lavou as mãos, não quis nem saber.

VERA

Mas o outro também não fez nada.

LUÍS

Eles não eram do mesmo partido. Ela fez a opção lá dela, nenhum dos dois

pôde fazer nada.

RODOLFO

Que panaca! Foi o Rubens que deixou ela ir à luta, sozinha. O Rubens!

LILINHA

Ela nem estava mais com ele.

RODOLFO

Ele tinha que ter pegado em armas, como ela. Tinha que ter morrido!

LILINHA

Que horror! Se tivesse morrido, não tinha peça.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 270 (Black plate)

Page 67: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

271

VERA

Mas existe uma culpa, lá no fundo. Como se ele não tivesse se perdoado.

LILINHA

Claro, ele não internou ela?

VERA

Uma coisa que eu não entendo é essa mania dele de dizer que ela está viva.

LUÍS

Mania, por que? Eu não te contei? É porque ela está. Ela está viva, sim, senhora!

VERA

Como, está? E onde é que ela se enfiou?

LUÍS

Ninguém sabe, fugiu. Sumiu no mundo. Deu um golpe no Secretário,

pegou uma grana e caiu na estrada. Ninguém sabe onde foi parar.

LILINHA

Que maravilhosa! Claro, nenhum dos dois merecia ela. Fez ela muito bem.

VERA

Mas, na peça, ela não morre?

LUÍS

É o que eu tou dizendo. A peça é só é inspirada neles. E a “culpa” de que

você fala não é bem essa. Ele só quis refletir sobre a dificuldade dos que não

morreram. Não por causa deles, mas porque ele vê uma ruptura, que fez

com que eles não conseguissem passar o bastão da História pra nossa ge-

ração. Essa é a questão. É como se ele assumisse que eles têm uma dívida

conosco. E daí o cinismo e o besteirol e o teatro desengajado que a gente

pratica. Ele quer pôr o dedo nessa ferida.

RODOLFO

Eu não entendo esse preconceito. Eu adoro besteirol.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 271 (Black plate)

Page 68: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

272 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

É sua cara, mesmo.

VERA

Que responsabilidade? Que coisa mais neurótica! Eles não têm nada a ver

com isso!

RODOLFO

Que cara chato!

VERA

Onde já se viu ele assumir uma responsabilidade desse tamanho? Que coisa

mais onipotente!

LILINHA

O Rodolfo só está de bronca por causa do personagem dele.

RODOLFO

Que personagem, o caralho! Esse velho é que é muito enjoado.

LILINHA

(explode, emocionada) Enjoado, nada. Ele é sério, muito sério. Você não sabe

como ele saiu da Secretaria! (culpada por ter omitido) Luís, quando eu deixei ele

em casa, ele estava bem estranho. Não abriu a boca, não falou nada no caminho.

VERA

Devia estar cansado.

LILINHA

(para Luís) Não, não era isso. Ele estava mal. Era bom você ir falar com ele.

Não custa. Dá uma ligada, pelo menos.

CENA 16

LUÍS

Eu fiquei preocupado. Você desligou o telefone por quê?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 272 (Black plate)

Page 69: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

273

RUBENS

Não foi nada.

LUÍS

Você tá abatido.

RUBENS

Não é nada, não. Eu estou... Nada mesmo, tá tudo bem.

LUÍS

Pode falar.

RUBENS

Eu tentei, você viu que eu tentei. Levei numa boa a reunião, o encontro,

tudo. Mas foi um erro. Foi um erro. Um erro. Eu fiz mal, não adianta me enga-

nar. Eu tou enojado comigo. Enojado!

LUÍS

Quando a gente vai numa dessas reuniões, bate uma ressaca, faz parte.

RUBENS

Eu queria sumir, como ela. É como se faltasse um pedaço dentro de mim.

Dói, sabe, Luís? Dói! Ele achava que ela era radical, mas, mesmo assim, era

apaixonado por ela, tanto quanto eu. Ela sempre foi melhor do que nós dois

juntos. Ela cobrava. O tempo todo ela cobrava. E obrigava a gente a aprofun-

dar todas as questões. Não era patrulha, era certo. Ela nunca fez média com

coisa nenhuma. Sem isso, não resta nada!

LUÍS

Porque é que você nunca foi atrás dela?

RUBENS

Até nisso ela foi radical: nunca escreveu, sumiu de vez. E acho que foi a

coisa certa. É impossível mudar sem matar o passado. Ontem, na

Secretaria, eu aceitei fazer o papel de mim, como os outros me vêem.

Assumi minha vida, meu passado, e eu não sou isso, claro que não. Era mais

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 273 (Black plate)

Page 70: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

274 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

confortável o papel de suicida, louco e ausente.

LUÍS

Mas ela deve ter construído outra vida. E você também precisa se cuidar.

Ninguém vive fora do mundo. Você fala como se ela tivesse conseguido preser-

var uma pureza, mas você também!

RUBENS

Ela deve ter encontrado uma nova trincheira, eu tenho certeza. E eu não sei

inventar outra, sem ela. Porque eu fiquei aqui, apatetado, desse jeito, congela-

do, neste apartamento, e não entendo mais o sentido da vida, nem da minha,

nem da dos outros. Depois que você chegou com essa história da pesquisa, eu

andei tentando me enganar. Mas eu não sei. E quer saber? Eu tentei mesmo o

suicídio, não foi nada forjado. Depois, eu fiquei sem graça, e inventei aquela

história toda, menti. Enquanto eu estava lá pra assinatura do contrato, ela não

saía da minha cabeça e eu tenho certeza que o Secretário também não pensa-

va em outra coisa. Ele está pouco se lixando pro projeto. O dinheiro só tem a

ver com ela.

LUÍS

Mas o que importa é que ele deu.

RUBENS

Ninguém cede impunemente. Quando você faz o jogo do sistema, pensan-

do em levar vantagem, você se contamina de alguma forma. E se contagia com

os vícios que quer combater, é impossível passar batido, atravessar ileso.

LUÍS

Mas, pra viver, é preciso jogar, não existe outra forma.

RUBENS

Mas, no campo do inimigo, você já entra em desvantagem. Ele sabe disso

muito bem, ele sempre foi uma das melhores cabeças. E sabe também que, ao

ir lá, eu assinei minha rendição. Ele é pragmático e só acredita nos frutos da

ação objetiva, mas, mesmo assim, eu vi uma tristeza nova nos olhos dele. Ele

sabe que também perdeu com meu fracasso. Não foi uma simples vitória, não

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 274 (Black plate)

Page 71: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

275

foi uma vitória verdadeira. Nem ele, nem eu conseguimos ficar com ela, que

era o que contava. E agora eu me rendi ao caos. Lá, enquanto assinava, eu esta-

va me rendendo ao caos.

LUÍS

Você não está exagerando? Foi só um contrato. Todo mundo assina con-

tratos, faz parte.

RUBENS

O caos só existe e cresce cada vez mais, porque todos acham que não vale a

pena resistir nem se indignar com mais nada. E eu não vejo saída. Talvez, se ela

estivesse aqui, eu conseguisse compreender. Claro que pra viver você tem que

sujar as mãos. Mas tem um limite. Eu não sei se vou suportar.

CENA 17

LUÍS

Gente, ele está em crise. Eu não sei se não foi um erro levar ele lá.

VERA

Erro, por quê? Ele é adulto, assumiu um compromisso, agora não pode

voltar atrás.

LUÍS

Eu sei, eu sei...

RODOLFO

Desculpa, eu tenho que ir andando.

LILINHA

Dá um tempo, Rodolfo.

RODOLFO

Não posso, já faltei a duas audiências. O juiz não é mole. É capaz de ele

mandar me prender, dessa vez!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 275 (Black plate)

Page 72: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

276 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Audiências, que audiências, Rodolfo? De novo?

RODOLFO

As duas se juntaram, agora. Querem acabar comigo.

LILINHA

Vera, você tem toda razão, a gente nunca foi um grupo. Nem sei se a gente

tem condição de fazer uma peça assim, tão... tão...

VERA

Espera aí, só por causa do Rodolfo? Uma coisa não tem nada a ver com

outra.

LILINHA

O Rodolfo nunca tem tempo, e odeia discutir. Assim não dá.

LUÍS

Esquece o Rodolfo, Lilinha. Eu estou preocupado com o Rubens, porque

ele não está nada bem. Não é fingimento. Ele está dilacerado por ter aceito o

patrocínio.

VERA

O QUÊ? Esse homem não regula. Ele quer viver do quê? De brisa?

LUÍS

Ele diz que a ingenuidade e a pureza são a única forma...

VERA

(corta) Pureza, agora? Você sabe mentir muito bem quando te interessa,

quando te convém. (furiosa) A esta altura, com tudo assinado, duvidar? Tenha

paciência.

LUÍS

Mas ele tem razão. Não tem como fingir, Vera. Tem uma coisa, lá den-

tro, que você não consegue trair, sem se violentar. Se você está cheio de

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 276 (Black plate)

Page 73: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

277

problemas, torturado, o que é que você vai fazer? Despejar seu lixo sobre

os outros?

VERA

Isso é bonito de falar. Eu quero que os outros se danem. Esse homem é

louco, obcecado, Santo Deus, nunca vi uma coisa igual. Eu não me confor-

mo. Ele já escreveu a peça. Pronto. Ele que fique na dele, não tem nada que

interferir. A única coisa que me deixa segura é que ele não pode mais voltar

atrás.

LUÍS

Pode, sim. Claro que pode.

VERA

Era só o que faltava...

LUÍS

Tem uma cláusula...

VERA

Que cláusula?

LUÍS

Ele se reservou o direito de desistir, se achar que a coisa não...

VERA

Como é que você deixou passar uma coisa assim? Luís, como é que você fez

uma cagada dessas?

RODOLFO

Ele não pode fazer isso com a gente!

VERA

Quer dizer que agora a gente vai depender do humor do homem, para

saber se a coisa sai ou não sai? Ele é louco, não vai dar certo.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 277 (Black plate)

Page 74: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

278 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Chega, Vera, nem mais uma palavra, chega. Quer saber? Se a coisa não

sair, a culpa vai ser sua. Você tem que se abrir, será que você não entende?

Tá pensando que vai usar o Rubens, como se ele fosse... sei lá... um idiota?

Ele não é um idiota, e é você que está sendo estúpida, burra e teimosa. Você

não me deixa falar. O projeto só saiu porque eu acreditei. Mas você conti-

nua duvidando, e eu estou de saco cheio. Se manca. Se você não quiser, não

precisa fazer a peça com a gente, tá bem assim?

VERA

Ah, você está querendo me tirar, Luís? Agora que eu entendi. É isso que você

quer?

LUÍS

Não quero tirar ninguém. Só estou dizendo que é justo que a coisa seja feita

com a cara dele, do jeito que ele achar melhor. Ele é o autor, será que você não

entende?

VERA

Ele é o autor, e eu sou uma atriz.

LUÍS

É um sujeito perfeitamente razoável e lúcido, e não vai aprontar. Se ele

desistir, vai ser por uma boa causa.

VERA

Boa causa?

LUÍS

Eu não vou fazer nada que vá contra o que ele acredita e muito

menos contra o que eu acho certo. Eu confio muito mais nele do que em

você.

VERA

Ah, é assim? Então é assim? (pros outros) Vocês ouviram? Vocês ouviram?

Mas que merda! Se você pensa que pode falar comigo desse jeito, está muito

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 278 (Black plate)

Page 75: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

279

enganado. Eu não preciso dessa merda, tá sabendo? Fodam-se, você e o seu

autor! Eu estou fora! FO-RA! (sai, batendo a porta)

LILINHA

Calma, gente. Vera, espera!

CENA 18

LUÍS

Desculpa, eu sei que é tarde. Mas eu e a Vera brigamos... e eu achei melhor

vir falar com você. Eu estou precisando.

RUBENS

Entra.

LILINHA

Eu quis vir junto, o senhor se importa?

RUBENS

Não tem problema, claro que não. Vamos entrar.

LUÍS

Desculpa, eu sei que não é problema seu. Mas eu minto demais e nem sei

mais quando tou falando a verdade, porque é tudo tão louco. Só sei que está

tudo errado, continua tudo errado, e não é porque eu minto. Claro que não.

(explode) Eu estou cansado! Cansado! Eu odeio discutir, mas ela não acredita

em nada e só vive me cobrando. Parece que tem prazer! Se, pra fazer teatro, eu

vou ter que brigar assim, o tempo todo, discutir tudo, sem parar, eu não sei se

eu quero. Ela nunca assume o que é feito pelo outro. E agora, ficou louca, quan-

do soube da cláusula que te dá o direito de desistir.

RUBENS

Calma, nós estamos no mesmo barco. Eu não vou desistir.

LUÍS

Não vai, como?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 279 (Black plate)

Page 76: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

280 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LILINHA

Mas, então, você não precisa sofrer desse jeito, Luís. Eu vou ligar já pra Vera,

e vai ficar tudo bem.

LUÍS

Não vai ligar nada pra ninguém! Espera, Lilinha. Explica melhor, Rubens.

Como, não vai desistir, por quê? Desde o início, a gente conversou direitinho,

e você sabe que tem todo o direito de mudar de idéia.

RUBENS

Eu tenho um compromisso com você, Luís, e vou cumprir.Agora não existe

mais “teu” e “meu”. Minha peça agora já é sua também, por direito. Claro que

é. E o que estamos passando também é problema nosso, não é só seu.

LUÍS

Eu nem sei... Sabe por que é que eu minto? No fundo, é o que as pessoas

esperam. Eu sinto isso. Ninguém quer saber da verdade, porra nenhuma!

Todos só querem ouvir o que escolheram como verdade. E querem a confir-

mação de que estão certos. Mas que verdade? E eu me viro. Ela diz que não tem

preconceito com nada, mas é mentira. Vive pegando no meu pé por causa do

Júlio. Ele me ajuda, mas não tem nada a ver com a nossa relação. No fundo, ela

tem inveja, porque não tem ninguém. E eu não posso sair por aí anunciando

que namoro o rapaz que assessora o Secretário. Ninguém ia entender. Isso não

é mentir!

LILINHA

O Seu Rubens não vai desistir, Luís, não tem mais problema.

LUÍS

Tem, porque sou eu que não quero mais. Eu não suporto mais olhar pra

cara dela, nem ouvir o Rodolfo falar das mulheres dele. Parece que não tem

fim. Parece que ninguém quer saber do que interessa.

RUBENS

Senta, Luís, relaxa. Todo mundo às vezes tem vontade de jogar tudo pro alto

e sumir. Mas não tem pra onde, essa é que é a verdade. Não tem.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 280 (Black plate)

Page 77: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

281

LILINHA

Calma, Luisinho, vai ficar tudo bem.

RUBENS

A contradição faz parte da vida. Existe uma responsabilidade de quem está

no comando, e, no caso, você está.

LUÍS

Eu, no comando? Desde quando?

RUBENS

Desde que o projeto saiu. Você não pode querer eliminar a Vera desse

jeito. Ela está em você, não vai adiantar. Desculpa, eu sei que a culpa foi

minha. Ontem, quando você veio, eu desabafei com você como amigo. Mas

eu não posso voltar atrás. A assinatura do contrato mexeu comigo, mas

acabou sendo uma libertação. Esse tempo, todo eu me viciei em culpar o

Secretário pelos meus problemas. Mas, se eu quiser continuar a viver, eu vou

ter que participar de tudo como existe. E essa sua crise tem um lado bom.

Tem um nível de pensamento que a gente só atinge quando entrega os pon-

tos e desiste. Como se fosse uma morte. Mas, se você pára e olha pro proble-

ma que tinha, ou que pensava que tinha, vai ver que... não tem mais

importância.

LILINHA

O Rubens tem razão, nós podemos não ser um grupo, mas nós somos ami-

gos, Luís. No fundo, eu sei que você gosta dela.

LUÍS

Eu acho que nós não estamos à altura da sua peça. Como é que eu posso

defender no palco suas idéias, se, na vida, eu não consigo praticar?

RUBENS

A prova de que você está à altura é duvidar. Você está muito diferente do

menino deslumbrado que apareceu aqui a primeira vez. E, se cada vez que

alguém duvidasse, largasse tudo, o mundo não saía do lugar.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 281 (Black plate)

Page 78: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

282 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

LUÍS

Ela faz análise, mas parece que não adianta. Não acredita em nada. Como

é que vai poder fazer a personagem?

RUBENS

Acredita, sim, e nem sabe que acredita. Às vezes, a vida obriga você a vestir

uma máscara e, depois, você não sabe mais como tirar. E, mesmo quando um

ator não conhece a personagem, nos ensaios, ele pode ir descobrindo as facetas

escondidas que nem imagina que tem. E, com isso, ele cresce e se transforma.

E eu duvido que ela consiga ensaiar o papel da Nina sem se envolver. Ela vai se

contagiar da beleza da personagem, eu tenho certeza. Mas isso só vai ser pos-

sível se vocês confiarem nela.

LILINHA

Ela também não me respeita, Luís, é o jeito dela. Não vê como ela fala

comigo? Eu não posso abrir a boca. Ela quase não dorme, é por isso que

vive tensa. Porque sono também é vida, isso é que ela não sabe. O sono não

é uma bênção, Rubens?! Ele apaga tudo de ruim que a gente passa durante

o dia. Como se fosse um perdão. E é isso que a gente tem que fazer, Luís, a

melhor coisa agora é a gente ir dormir. Amanhã, você acorda outro, você

vai ver.

LUÍS

Mas que é que eu tenho a ver com a loucura dela, me diz?

RUBENS

Porque não é só dela, é sua também. E o único problema é que vocês estão

com medo.

LUÍS

Medo de quê? Ela não tem medo de nada.

LILINHA

Deixa de ser tonto, Luís. Claro, nós todos estamos mexidos. Pra ela, deve ser

ainda mais difícil, porque não acredita em nada.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 282 (Black plate)

Page 79: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

283

LUÍS

(para Rubens) Mas não existe uma contradição enorme entre o que você

prega e essa forma pela qual a gente vai fazer a peça? A gente vai, pega o di-

nheiro, toma mil compromissos com tudo e é obrigado a dar o crédito pra

Secretaria, pra todos os apoios? É um inferno, tudo isso. Isso não invalida

tudo?

RUBENS

Não, não invalida, não. Se não for assim, essas idéias não vão sair do papel.

Mesmo que exista uma contradição, é o único jeito. Pode ser que pra alguém,

que a gente nem sabe quem é, elas possam ser um estímulo, provocar uma

descoberta, ser o estopim de uma transformação, quem sabe? E vai ter valido a

pena. E principalmente cada um de vocês também vai se transformar, com

certeza. Uma peça não é uma coisa morta. Eu tenho certeza de que a Vera vai

se transformar, e você e eu também, mesmo a distância, todos nós vamos

mudar, e é isso que importa. (olha pra Lilinha) Vocês são um grupo, sim. Um

grupo do início do milênio, no Brasil, com todas dificuldades que isso possa

ter. Eu quero te agradecer, Luís: você veio até aqui e me tirou de um limbo onde

eu tinha me metido. Minhas idéias não servem pra nada, se não forem passadas

adiante, pra ouvidos jovens, como os de vocês.

LUÍS

Por que é que, na hora H, dá esse frio na barriga, Santo Deus? Eu tou morto

de medo!

RUBENS

Tá tudo certo, Luís.Vamos em frente. (a luz cai, em contraluz, e o iluminador

dá meia platéia)

CENA 19

LUÍS

(se dirige à cabine de luz) Pessoal, vamos dar uma passada na luz da cena

final. (chama pelos outros) Rodolfo, chega aqui. Vera, vem dar uma força. Eu já

volto. (ele sai, a luz passeia pelo cenário)

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 283 (Black plate)

Page 80: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

284 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RODOLFO

(cantarola) “... assim pungente, não há de ser inutilmente... a esperança”

VERA

(cantarola) “cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar...”

Entra uma música de transição para o final.

LILINHA

Gente, eu nem acredito, passou tão depressa. Eu morro de medo de estréia!

VERA

Rodolfo, suas duas mulheres estão lá fora. No maior papo, juntas. Você

é louco?

RODOLFO

Elas que quiseram, estão amigas, nem se largam mais. Ando até

desconfiado.

VERA

Desconfiado, como?

RODOLFO

Brincadeira, elas me adoram. A Lilinha é que não quer saber de mim. (corre

atrás da atriz)

LUÍS

(entra pela platéia) Pessoal, olha quem chegou!

RUBENS

Eu só vim dar um abraço.

LILINHA

Que flores lindas, Rubens, que maravilha!

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 284 (Black plate)

Page 81: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

285

VERA

Eu também adorei, obrigada pelas palavras. Meu Deus, a camisa! Lilinha,

não tá vendo? É aquela.

RUBENS

Em sua homenagem. Ah, o cenário está igualzinho ao meu apartamento!?

E aí, tudo pronto?

LUÍS

Eu estou estranhando sua animação. Não tá nem um pingo nervoso?

RUBENS

Eu estou feliz. Pra mim, já foi um sucesso. Ela me mandou um cartão.

Soube da estréia e mandou.

LILINHA

Ela, quem? Não é possível! Depois de tanto tempo? Deixa eu ver. Meu Deus,

veio da Índia? Então ela está lá? (lê) “Agora, eu vivo com Shiva.” Meu Deus!

RODOLFO

Que filha-da-puta. Ela casou com um indiano?

LILINHA

(ri) Que indiano, o quê! É um Deus, Rodolfo. Tá aqui a imagem, no cartão.

Aquele, de muitos braços.

RUBENS

Os adeptos de Shiva acreditam que a melhor forma de devoção a Deus é

mostrar o quanto a própria vida é um teatro. Por isso, largam tudo e vivem sem

nada, pelas ruas, o rosto coberto de cinzas, sem mais nada. Abrem mão até

deles mesmos.

LILINHA

(continua a ler) Vera, olha que lindo! Ela diz: “Força! Nós estamos juntos!

A distância não importa!” Como é que ela adivinhou?

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 285 (Black plate)

Page 82: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

286 ÁGORA LIVRE DRAMATURGIAS

RUBENS

E aí, Luís, não é pra ficar contente?

VERA

Rubens, vem cá. Eu quero falar com você. Obrigada... por tudo. Vai ser um

sucesso. Eu nunca fiz uma peça tão forte. Eu estou apaixonada pela Nina, pela

peça, por você, por tudo. Você vai jantar com a gente, não vai? Eu não aceito

recusa.

RUBENS

Claro, vamos jantar todos juntos e comemorar.

LUÍS

Ela está mesmo apaixonada, Rubens, é melhor você se cuidar!

RODOLFO

Gente, tá na hora! O autor, já pra platéia. Vai começar!

LILINHA

Rubens, espera! Eu quero te dedicar uma frase sua. (vira-se para a platéia)

“Oração e fé criam o que acontece...” (pausa, torturada) Esqueci. (corre e Ru-

bens a abraça)

RUBENS

Por oração, entenda-se tudo o que se fala. (sopra baixinho pra ela) E,

por fé...

VERA

(com ar maroto) ... até mesmo a ausência radical de qualquer tipo de cren-

ça”.

Lilinha sai correndo atrás da outra, e Rubens descobre Luís melancólico, abre

os braços e todos se abraçam.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 286 (Black plate)

Page 83: Fauzi Arap - O Mundo é Um Moinho

287

FAUZI ARAP

ator e diretor. Estreou como diretor profissional na montagem de Navalha na

Carne (1966), de Plinio Marcos, na versão carioca produzida por Tônia Carre-

ro. Na década de 1970, estréia como autor, com Pano de Boca, e passa uma tem-

porada dirigindo apenas seus próprios textos: O Amor do Não, Um Ponto de

Luz, entre outros. No final da década de 1980 cria o projeto Rosa dos Ventos que

ocupa o Teatro Eugênio Kusnet por dois anos e consegue recuperar o espaço

com encenações, leituras e shows de música popular. O projeto mereceu o

Grande Prêmio da APCA, e lançou a autora Noemi Marinho, com Fulaninha

& Dona Coisa, seu texto de estréia. Também na década de 1980, coordenou o

seminário permanente de dramaturgia da APART (Associação Paulista de Au-

tores Teatrais). Seus trabalhos recentes incluem direções de peças de Leilah As-

sumpção, Leo Lama, Juca de Oliveira, José Vicente, Mário Bortolotto, e dos

shows Âmbar, A Força que Nunca Seca, e Maricotinha, todos de Maria Bethâ-

nia. Seus prêmios incluem dois Molière, como autor, (1977 e 1988), mais

inúmeros prêmios Shell, Mambembe, APETESP e APCA, como diretor e au-

tor. Pelas direções de Santidade e Caixa Dois (1997), recebeu os prêmios Shell

e APETESP de melhor direção; os dois espetáculos também foram escolhidos

na categoria melhores do ano. Publicou pela Editora Senac o livro Mare Nos-

trum (1998), relato autobiográfico em torno de suas experiências lisérgicas, vi-

vidas nas décadas de sessenta e setenta. O Mundo é Um Moinho foi produzido

no Rio de Janeiro, pela Casa da Gávea (2003), com direção do autor e tendo no

elenco Caio Blat, Cláudio Cavalcanti, Maria Ribeiro, Cristiana Kalache e Pau-

linho Giardini.

ágora_09.qxd 8/9/06 2:57 PM Page 287 (Black plate)