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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO
Danny ABENSUR
A utilização do recurso da periodização da História
no romance “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão
São Paulo
2016
Danny Abensur
A utilização do recurso da periodização da História
no romance “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão
Trabalho temático apresentado para as disciplinas do 1º semestre do curso de graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação
São Paulo
2016
Danny Abensur
A utilização do recurso da periodização da História no romance “Não verás país
nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão
Trabalho temático apresentado para as disciplinas do 1º semestre do curso de
graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação
Banca examinadora
Dr. Ivan Russeff
Assinatura: __________________________
Dra. Carla Diégues
Assinatura: __________________________
Esp. Evanda Verri Paulino
Assinatura: __________________________
Esp. Henrique M. Coimbra Ferreira
Assinatura: __________________________
Ma. Daniele Cristina Gonçalves Brene Pires
Assinatura: __________________________
Me. José Mário de Oliveira Mendes
Assinatura: __________________________
Esp. Maria Rosa Crespo
Assinatura: __________________________
São Paulo, junho de 2016
Lê-se ficção para fortalecer a noção estúpida de que há sentido, lógica, causa e efeito lineares e outros adereços que integrariam a vida. Lê-se ficção, ou mesmo livros de historiadores ou jornalistas, por insegurança, porque o absurdo da vida é insuportável para a vastidão dos desvalidos que povoa a Terra. (Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro, 2002)
Resumo
Na construção da realidade ficcional de “Não verás país nenhum”, romance distópico
de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, o autor segmenta, na narrativa,
menos de meio século da História que ainda estava por vir – dos anos 1980 ao início
do século XXI – em mais de vinte períodos históricos ficcionais distintos. O objetivo
do presente trabalho é investigar e construir uma interpretação possível e coerente
com o contexto ficcional específico do texto, para o modo de utilização, na obra, do
recurso da periodização da História. Para tal, foi feita a identificação dos períodos
históricos ficcionais citados pelas personagens ao longo do texto. Foram reunidas
também as alusões diretas e indiretas das personagens ao tempo histórico e à
escrita da História. Foram utilizadas como base teórica as perspectivas a respeito
das abordagens do tempo histórico da corrente de pensamento historiográfico
Nouvelle Histoire, representada, principalmente, pelo historiador francês Jacques Le
Goff. Do confronto da referência teórica com o recorte sobre o texto ficcional,
constrói-se uma interpretação que vincula a fragmentação do tempo histórico com a
realidade social e política distópica do romance.
Palavras-chave: Literatura. Historiografia. Nouvelle Histoire. Autoritarismo. Distopia.
Abstract
In the construction of the fictional reality of "Não verás país nenhum", a dystopian
novel by Ignácio de Loyola Brandão published in 1981, the author partitions less than
half a century of history still to come – from the 1980s to the early 21st century – in
over twenty different fictional historical periods. The aim of this study is to investigate
and develop a possible interpretation, consistent with the specific fictional context of
the narrative, for the way periodization of history is used in the book. For this
purpose, the fictional historical periods mentioned by the characters within the text
were identified, as well as direct and indirect mentions from those characters about
historical time and the writing of history. Perspectives regarding approaches to
historical time from the historiographical current of thought Nouvelle Histoire, mainly
represented by French historian Jacques Le Goff, were used as theoretical
framework for the analysis. From the confrontation between the theoretical reference
and the framework adopted to approach the fictional piece, an interpretation is built
establishing a link connecting the fragmentation of historical time to the dystopian
social and political reality of the novel.
Keywords: Literature. Historiography. Nouvelle Histoire. Authoritarianism. Dystopia.
Lista de quadros
Quadro 1: Períodos históricos em “Não verás país nenhum”....................................13
Sumário
1 Introdução.............................................................................................................8
2 Perspectivas teóricas sobre a periodização da História.................................9
2.1 A Nouvelle Histoire e o tempo histórico..............................................................10
3 Periodização da História em “Não verás país nenhum”................................12
4 Considerações finais..........................................................................................17
Referências bibliográficas.......................................................................................18
8
1 Introdução
A fruição de um romance é sempre uma construção conjunta do leitor com o
autor. Este fornece uma série de pistas e fragmentos a partir dos quais aquele,
munido de sua bagagem cultural e experiência pessoal, elabora, em sua mente, um
ambiente ficcional particular.
Em “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, o autor sugere
um fluxo histórico alternativo para uma certa cidade de São Paulo, em um país
evidentemente distópico. Tendo sido escrita a partir de 1976 e publicada em 1981
(IMERCIO, 2015), portanto, na segunda metade do período da Ditadura Civil-Militar
no Brasil, a obra se desenvolve nos anos e décadas que viriam ainda pela frente – e
possui como tempo presente o início do século XXI.
Para a construção desse segmento do tempo histórico que estava ainda por
vir, o autor lança mão, ao longo da narrativa, da nomeação e breve descrição de
uma série de períodos históricos ficcionais posteriores à década de 1980 ou, como
denominada no livro, os “Abertos Oitenta”. Em, aparentemente, menos de cinquenta
anos, as personagens de Loyola citam mais de duas dezenas de períodos históricos
distintos e, além de revelarem um desconforto com o tempo presente da narrativa,
discutem consideravelmente, ao longo da obra, questões a respeito do tempo, da
memória e também do fazer historiográfico.
Esta pesquisa busca confrontar, em particular, o recurso à periodização da
História utilizado por Brandão com algumas perspectivas teóricas da historiografia
contemporânea – essencialmente, da Nouvelle Histoire (a Nova História) – acerca
da abordagem fragmentada do tempo histórico. A partir desse enfoque, uma
proposta interpretativa é desenhada, sugerindo um vínculo direto entre a escrita da
História no espaço ficcional de “Não verás país nenhum” e os dilemas daquela
sociedade apresentada no romance.
9
2 Perspectivas teóricas sobre a periodização da História
Em um artigo no qual buscou apresentar o estado da arte da questão da
periodização da História na historiografia ocidental, Jorge (2006, p. 23, grifo do
autor) define o conceito como “a secção do tempo histórico para fins analíticos, ou
instauração de segmentos naquilo que se constitui o continuum humano”. Cada
segmento instaurado constitui um período histórico, que, por sua vez, é entendido,
“de acuerdo a una recibida definición de C. J. Neumann [como] ‘espacios de tiempo
bien individualizados de la vida histórica, que, por su contenido y sustancia, se ligan
en una unidad, y que, justamente por ello, se destacan de los que preceden o
siguen’”. (RAMA, 1963, p. 176 apud JORGE, 2006, p. 26)
Pode-se derivar, no entanto, da própria definição de periodização da História
um problema: “seccionar o tempo histórico, ainda que para efeito de método, entra
em choque com o material de trabalho do historiador, que é o ‘desenrolar’
ininterrupto de eventos” (JORGE, 2006, p. 27). Períodos históricos (sejam eles
curtos ou longos) não são descobertos ou revelados, e nem mesmo existem em
algum tipo de forma natural. São construções arbitrárias que visam a atender
necessidades específicas de historiadores limitados pelo espaço e pelo tempo em
que vivem.
Uns preferem periodizar segundo critérios econômicos, outros [...], marcam os períodos baseados nas transformações espirituais e culturais ou nas suas relações com as modificações econômicas, e outros, finalmente [...], de acordo com a tradição, preferem apoiar-se nas modificações políticas. (RODRIGUES, 1969, p. 116 apud JORGE, 2006, p. 27)
A arbitrariedade da divisão do tempo histórico em períodos, eras ou épocas
não é, contudo, fundamento que invalide a priori a utilidade do método, que é
encarado como ferramenta relevante no processo de “[...] reconstruir aquilo que já
não é (o passado) para tentar dar sentido ao momento que passa, ou seja, o
presente. [...]” (JORGE, 2006, p. 25); e encontra suas origens na transposição de
práticas da astrologia para utilização na divisão da História da humanidade, por
parte do Cristianismo romano, em quatro impérios: Assírio, Persa, Macedônio e
Romano (RODRIGUES, 1969 apud JORGE, 2006, p. 28).
10
O que se faz necessário ressaltar é o cuidado que se precisa ter ao se levar
em consideração tal procedimento, que é sempre fruto de uma escolha humana ou
de um grupo ideológico.
2.1 A Nouvelle Histoire e o tempo histórico
Pelo caráter utilitário, arbitrário e, de certa forma, artificial inerente à questão
da segmentação do tempo histórico para fins analíticos, pode-se encontrar na
literatura acadêmica posições distintas, mesmo na contemporaneidade, a respeito
do tema. Uma importante escola de pensamento historiográfico que se debruçou (e
ainda o faz) sobre o assunto – e que optamos por destacar aqui – é a chamada
Nouvelle Histoire (Nova História ou História Nova, dependo da tradução, quando
feita).
Ela surge sobre fundações lançadas pelo grupo que criou, em Estrasburgo,
em 1929, a revista Annales d’histoire économique et sociale.
A história nova nasceu em grande parte de uma revolta contra a história positivista do século XIX, tal como havia sido definida por algumas obras metodológicas por volta de 1900. [...] A história nova ampliou o campo do documento histórico; ela substituiu a história de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma história baseada numa multiplicidade de documentos: escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. [...]. (LE GOFF, 2005, p. 36, grifo do autor)
Além de propor uma nova abordagem a respeito do que se enquadra na
noção de documento histórico, a Nouvelle Histoire revê também a postura do
historiador frente ao tempo histórico.
A mais fecunda das perspectivas definidas pelos pioneiros da história nova foi a da longa duração. A história caminha mais ou menos depressa, porém as forças profundas da história só atuam e se deixam apreender no tempo longo. Um sistema econômico e social só muda lentamente. Marx – que pelo conceito de modo de produção, pela teoria da passagem da escravidão ao feudalismo, depois ao capitalismo, designou como formações essenciais da história sistema plurisseculares – compreendeu isso. [...] A história de curto prazo é incapaz de apreender e explicar as permanências e as mudanças. Uma história política que se pauta pelas mudanças de reinados, de governos, não apreende a vida profunda [...]. Portanto, é preciso estudar o que muda lentamente e o que se chama, desde há alguns decênios, de estruturas [...]. (LE GOFF, 2005, p. 62, grifo do autor)
11
Lacouture (2005, p. 311), no espírito da mesma escola historiográfica, alerta
para o cuidado que se deve ter ao se tentar lançar mão apenas de acontecimentos
para buscar o entendimento de processos históricos: “[...] se for preciso avaliar como
uma sociedade se move, como uma mudança coletiva se dá, constataremos que o
‘acontecimento’ não raro é apenas criador de emoções passageiras. [...].” Seria,
portanto, da longa duração que se obteria melhores análises e uma compreensão
mais sólida. Ou, como defende Le Goff (1982, p. 23), sem menosprezar “[...] a
fecundidade própria [...] [do acontecimento, este] tem raízes profundas, [...] não é
mais que uma ponta do clássico icebergue.”
A proposta interpretativa que segue a respeito da obra literária “Não verás
país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, toma como ponto de partida, portanto,
a crítica da Nouvelle Histoire com relação a uma historiografia que não se atenta
para a longa duração e que, com isso, fica privada de qualquer tipo de entendimento
acerca dos processos históricos profundos que estão na gênese do estado das
coisas em um determinado momento presente e, até mesmo, poderiam permitir
especulações mais fundamentadas sobre o futuro.
12
3 Periodização da História em “Não verás país nenhum”
Na distopia social, ambiental e política criada por Ignácio de Loyola Brandão,
o narrador em primeira pessoa, Souza, e também algumas outras personagens com
as quais Souza trava diálogo revelam ao leitor, por vezes de modo até bastante
didático, o funcionamento da sociedade naquela realidade particular da obra literária
em discussão.
Além de abordarem as restritivas normas de circulação de pessoas na cidade
de São Paulo de “Não verás país nenhum”, a geografia física e humana de um país
devastado e loteado a nações estrangeiras, as possibilidades de acesso a alimentos
e serviços, a dinâmica da burocracia estatal denominada “Esquema”, as
personagens e, é claro, o narrador referem-se, ao longo da obra, aos diversos
períodos históricos – mais ou menos recentes – que os levaram ao momento
presente da narração.
Não há, no entanto, na obra, a preocupação em situar exatamente no tempo
todos os períodos históricos levantados. Com exceção dos “Abertos Oitenta”, citados
em diversos momentos ao longo do livro, e das décadas de 40, 50, 60 e 70, citadas
esparsamente pela obra, não se atribui uma década específica, um intervalo de anos
determinado ou, até mesmo, uma distância temporal exata em relação aos tais
“Abertos Oitenta”, a cada período nominado.
Sabe-se que a narrativa se passa “na entrada do século 21” (BRANDÃO,
1982, p. 175) mas, no intervalo entre a década de 1980 e esses primeiros anos do
século seguinte, uma sucessão de acontecimentos dá nome a uma sucessão de
períodos históricos reconhecidos pela sociedade (na voz das personagens). Souza,
por exemplo, afirma: “[...] Nestes últimos anos, saltamos rapidamente de um ciclo
para outro. Mal nos acostumamos a um, precisamos mudar. Incessantemente.”
(BRANDÃO, 1982, p. 55). E ainda: “[...] O que conta agora não são os dias e os
meses, e sim as situações e os acontecimentos.” (BRANDÃO, 1982, p. 160).
A responsabilidade pela nomeação dos períodos históricos recai, segundo as
personagens, sobre historiadores, sociólogos e, por vezes, sobre o próprio povo:
“[...] há dezenas de anos, as situações vêm sendo batizadas, rotuladas, catalogadas.
Não nos referimos mais aos fatos pelos anos, mas pelo conjunto de situações que
se abrigaram sob uma denominação.” (BRANDÃO, 1982, p. 181).
13
Os dois marcos mais citados na segmentação do tempo histórico de “Não
verás país nenhum” são os “Abertos Oitenta” e a “Época ou Era da Grande
Locupletação”. Esta última teria vindo “ [...] logo depois dos Abertos Oitenta que
tinham se sucedido a uma ditadura grotesca1. [...]” (BRANDÃO, 1982, p. 52). Ainda
assim, a duração do período não é explicitada.
Uma série de outros 21 ciclos históricos, grafados sempre com iniciais
maiúsculas, são citados ao longo da obra. Porém, diferentemente da recorrência das
menções aos “Abertos Oitenta” e à “Época ou Era da Grande Locupletação”,
aqueles são apresentados apenas pontualmente e, raramente, são localizados com
precisão no tempo cronológico ou até mesmo no tempo histórico em relação a
outros períodos. No Quadro 1, temos a listagem desses períodos conforme sua
aparição no texto:
Quadro 1: Períodos históricos em “Não verás país nenhum”
Período histórico Página da ocorrência
Meses Sombrios de Buscas e Atentados p. 46
Era das Casuísticas p. 50
Grande Ciclo de Combate à Abertura da Igreja p. 53
Grande Ciclo das Comunicações p. 96
Período Agudo das Especulações Imobiliárias p. 111
Tempo das Crianças Exterminadas p. 131 e 134
Fase dos Escândalos Financeiros Abafados p. 131
Grande Época dos DIs p. 173-174
Período dos Mentirosos Crônicos p. 174
Tempos Lamentáveis das Imensas Escamoteações p. 175
Interessante Época do Domínio Português sobre Cafés e Padarias p. 240
Grande Medo de Sair à Rua p. 241
Década das Declarações Incoerentes do Presidente a se Chocar com as Afirmações Paradoxais dos Ministros
p. 245
Ciclo de Intervenções Judiciárias p. 251
Falácias Perigosas p. 281-282
Hesitação Atônita p. 295-296
Astúcia Rapace p. 296
Breve Período de Repouso de Gargantas Indignadas e Inflamadas p. 296
Ventre Livre p. 313
Grande Ciclo da Esterilidade p. 314
Temporada dos Jumbos Espaciais p. 315
Fonte: Adaptado de Brandão (1982).
1 Os eventos anteriores à passagem da década de 70 aos anos 80 citados em “Não verás país
nenhum”, são, de modo geral, referências a situações históricas de fato – e não ficcionais. Nesse sentido, não há dúvida de que a “ditadura grotesca” a que se refere a personagem é a Ditadura Civil -Militar que tomou o poder no Brasil em 1964 e lá se manteve até 1985.
14
Para completar o quadro temos Souza, ex-professor de História, personagem
principal e narrador em um processo de descoberta, ao longo da narrativa, a
respeito da realidade à sua volta; um regime político autoritário; extrema
concentração de riquezas; e um clima de colapso socioambiental. Neste cenário,
parece conveniente ao regime antidemocrático que os cidadãos sejam alienados e,
até mesmo, se percebam num turbilhão de acontecimentos sobre os quais não há
possibilidade alguma de intervenção.
Um dos homens que passou a morar na casa de Souza lhe diz:
[...] Você é um ex-professor de história, devia saber disto. Durante séculos as coordenadas históricas e sociais funcionaram. No entanto, de uns trinta anos para cá, tudo o que temos são descoordenadas. A aceleração histórica prejudicou tudo, a dinâmica se assumiu em sua concepção total, ou seja, contínua transformação, a cada instante, hora, dia. (BRANDÃO, 1982, p. 156)
O que se perde nesta aparência de aceleração da história são justamente os
processos de longa duração. Limitar-se meramente à sucessão de acontecimentos
imediatos é abrir mão da profundidade dos fluxos históricos. É como se a História
fosse suspensa. Tadeu Pereira, colega de Souza, nota: “[...] É difícil, as pessoas
andam espantadas. Ninguém quer saber de mais nada. O que vale é o dia-a-dia. Só
se pensa na sobrevivência.” (BRANDÃO, 1982, p. 90).
No contexto de um regime extremamente autoritário como aquele descrito em
“Não verás país nenhum”, a reflexão e o pensamento crítico, a capacidade de
analisar os caminhos e descaminhos da sociedade para, então, tomar uma posição
e, quem sabe até agir, são abafados a todo custo. Enquanto a propaganda oficial faz
o seu trabalho de doutrinação dos cidadãos, os críticos e intelectuais são tidos como
“espíritos negativistas” (BRANDÃO, 1982, p. 53) pelo regime. Souza afirma logo no
início da obra: “Sou lúcido para saber que o controle total, rígido, dos meios de
comunicação, aliados à Intensa Propaganda Oficial, IPO, amorteceu as mentes. De
tal modo que esta emergência em que vivemos passou a ser considerada normal.”
(BRANDÃO, 1982, p. 28).
É nesse cenário e nessa chave interpretativa que propomos perceber a
extrema fragmentação do tempo histórico recente em “Não verás país nenhum”
como sintoma – e também instrumento – de uma sociedade que persegue
15
professores, pesquisadores, médicos e cientistas, a fim de castrar o pensamento
crítico.
O historiador Jacques Le Goff, figura proeminente da Nouvelle Histoire, ao
buscar as origens da crítica àquela historiografia que se atém apenas à curta
duração da história e aos acontecimentos em detrimento da longa duração do
desenrolar da trajetória da humanidade e das sociedades, recorre ao filósofo francês
do século XVIII Voltaire:
[...] depois de ter lido três ou quatro mil descrições de batalhas, e o teor de algumas centenas de tratados, percebi que, no fundo, quase não estava mais instruído. Só aprendia acontecimentos. [...] Eis aí, já, um dos objetos da curiosidade de quem quer que queira ler a história como cidadão ou filósofo. Ele não se limitará a esse conhecimento; procurará saber qual foi o vício radical e a virtude dominante de uma nação [...]. (VOLTAIRE apud LE GOFF, 2005, p. 50-51, grifo nosso)
No romance de Loyola Brandão, Souza, o protagonista – caracterizado
oportunamente como um professor de História aposentado compulsoriamente –,
passa, a partir de um evento absurdo – o surgimento de um furo na mão que retira a
personagem do estado de letargia – boa parte da narrativa discutindo e lamentando
como foi possível que a sociedade da qual fazia parte tivesse chegado a tal ponto.
Em determinado momento, afirma Souza:
Dos anos 70 em diante, fomos conduzidos dentro de indefinições. Rodeados por coordenadas paradoxais. [...] Nunca nos ocorreu que era uma nova forma de sistema. Sem contornos definidos. O nosso erro foi procurar na própria história os moldes. Esquecidos que os tempos e os homens tinham se modificado, substancialmente. [...]. (BRANDÃO, 1982, p. 56, grifo nosso)
Uma leitura apressada do excerto pode sugerir que Souza estaria percebendo
o campo de conhecimento da História como incapaz de fornecer um ferramental útil
de análise da conjuntura do momento presente. Porém, se levarmos em
consideração o modelo de historiografia dominante no contexto ficcional da obra –
aquele que reparte menos de meio século de história em mais de duas dezenas de
períodos históricos (ainda que seja razoável supor que muitos dos períodos citados
tenham ocorrido concomitantemente) –, de fato, de acordo com a crítica da Nouvelle
Histoire a tal procedimento, a História teria pouca serventia, pois seria
excessivamente superficial.
16
Ao se tomar o último período da fala de Souza, à luz da reflexão de Voltaire,
pode-se, no entanto, compreender que o que o protagonista se recente é de ter sua
geração deixado passar ao largo a (tentativa de) compreensão da evolução das
grandes mudanças da História, pois, como afirma, Lacouture (2005, p. 311), “[...] O
movimento que importa descrever situa-se com frequência fora da grande feira dos
rumores [...]”.
Nessa chave interpretativa, nota-se, portanto, que, na distopia autoritária
construída por Loyola em “Não verás país nenhum”, a ausência de um campo
historiográfico crítico – materializada, entre outros fatores, na fragmentação
excessiva do tempo histórico e, até mesmo, na aposentadoria compulsória do
protagonista-ex-professor da disciplina – cumpre papel fundamental na manutenção
do um status quo de uma sociedade desigual.
17
4 Considerações finais
Por mais que se deva ter muita cautela e ceticismo quando se capta uma
mensagem oficial de um governo autoritário – e também daqueles ditos
democráticos, afinal interesses estão quase sempre em jogo e a verdade, por vezes,
não lhes é conveniente –, há instantes em que a voz oficial deixa a mentira de lado e
diz algo honesto. Em “Não verás país nenhum”, por exemplo, a propaganda oficial,
do chamado Esquema, na televisão, diz assim:
[...] Como é de conhecimento, o Esquema preocupa-se com a manutenção da história. [...] O corte final foi um pequeno filme, despretensioso, malfeito, mas que no entanto favoreceu a queda da elite que formou a Era da Grande Locupletação, possibilitando os primeiros passos para a instalação do atual Esquema. Que, como todos sentem, resolveu os graves problemas internos e externos deste país. [...] (BRANDÃO, 1982, p. 144, grifo nosso)
É de se supor, a partir da leitura da totalidade do romance de Loyola Brandão,
que quase tudo aquilo que está dito no excerto acima é mera falsificação. O primeiro
período, no entanto, pode ser tido como bastante verdadeiro. O regime que está no
poder, de fato, irá preocupar-se com a manutenção da História – da História que lhe
melhor convier, que menos permitir indagações e possibilidade de mudança.
Na chave interpretativa que se buscou construir e fundamentar neste trabalho
sobre o romance de Ignácio de Loyola Brandão, o tempo histórico fragmentado – a
deixar perder de vista as transições mais profundas da história de uma sociedade,
como alerta a perspectiva historiográfica da Nouvelle Histoire – figura como sintoma
e importante elemento de retroalimentação de estruturais sociopolíticas autoritárias,
às quais a reflexão e o pensamento crítico da população são, no mínimo,
indesejados.
De modo mais amplo, a interpretação aqui levantada aponta para ideia de
que, assim como a censura oficial dos meios de comunicação, os rigorosos
controles de circulação de pessoas, a restrição (para as classes não privilegiadas)
de acesso a recursos básicos de sobrevivência, e o patrulhamento da produção
intelectual acadêmica são elementos essenciais à construção da distopia autoritária
de “Não verás país nenhum”. Segmentar menos de meio século de História em mais
de vinte períodos distintos, colocando um véu sobre possibilidade de compreensão
dos fluxos históricos longos e profundos, vem a se somar também como importante
18
característica constitutiva da realidade ficcional percebida na obra de Ignácio de
Loyola Brandão.
19
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não verás país nenhum: (memorial descritivo). São Paulo: Círculo do Livro, 1982. 330 p. IMERSIO, Aline. Ignácio de Loyola Brandão: "A tragédia vai nos ensinar a sobreviver e olhar para os outros". Época, [S.l.], 04 fev. 2015. Blog do Planeta. Disponível em: <http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/blog-do-planeta/noticia/2015/02/crise-da-agua-tragedia-vai-nos-bensinar-sobreviverb-e-olhar-para-os-outros.html> Acesso em: 14 maio 2016. JORGE, Marcos. Apontamentos sobre a técnica de periodizar. Práxis Educacional: Revista do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, v. 2, n. 2, p.23-34, nov. 2006. Quadrimestral. Disponível em: <http://periodicos.uesb.br/index.php/ praxis/article/viewFile/377/407>. Acesso em: 13 abr. 2016. LACOUTURE, Jean. A história imediata. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 287-321. LE GOFF, Jacques. A história nova. In: ______. A história nova. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31-84. LE GOFF, Jacques. Reflexões sobre a história: entrevista de Francesco Maiello. Lisboa: Edições 70, 1982.
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